The Project Gutenberg eBook of Fábulas—folhas cahidas This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Fábulas—folhas cahidas Author: Visconde de João Batista da Silva Leitão de Almeida Garrett Almeida Garrett Release date: August 3, 2023 [eBook #71330] Language: Portuguese Original publication: Lisboa: Imp. Nacional Credits: Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK FÁBULAS—FOLHAS CAHIDAS *** OBRAS DO V. DE A. GARRETT. XVII. (SEGUNDO DOS VERSOS.) VERSOS DO V. DE ALMEIDA-GARRETT. II. FÁBULAS--FOLHAS CAHIDAS, SEGUNDA EDIÇÃO. LISBOA NA IMPRENSA NACIONAL 1853. A QUEM LER No anno de 1828, em Londres, se publicou o primeiro volume dos versos ou ‘poesias fugitivas’ do Sr. Garrett. Extinguiu-se em pouco tempo a edição; mas o auctor, occupado de outros trabalhos e preoccupado de mais serios cuidados, não tractou nunca de preparar a reimpressão que, entre nacionaes e extrangeiros, pediam todos os collectores de suas obras. Até ao anno de 1841, não lhe foi possivel nem lançar os olhos áquelle modesto volume que, sob o nome de LYRICA DE JOÃO MINIMO, tam popular o tinha feito, e algumas de cujas peças ja tinham merecido ser trasladadas nas linguas mais cultas da Europa. N’esse anno, retirado a descançar no campo de grandes fadigas de corpo e de espirito, deu emfim algumas horas de mais lazer a repassar as composições de sua infancia litteraria, e a escolher as principaes das que, em mais feita edade, lhe tinha arrancado a condescendencia com amigos, ou a irresistivel inspiração de algum objecto ou circumstância da vida que mais o impressionára. Resmas e resmas de papel lhe vimos destruir e queimar ao fazer d’esta escolha. E apezar do desapiedado apuramento, ainda ficou uma collecção copiosa que, entre o ja impresso e o ainda manuscripto, dava materia para bons quatro volumes. Infileirou tudo por generos e datas,--algumas das quaes só estavam na pouco exacta reminiscencia do auctor. Mas depois de tentados e desprezados varios methodos, assentou porfim--que dos quatro volumes, ficaria sendo o primeiro essa mesma LYRICA DE JOÃO MINIMO, apenas alterada da primitiva edição de Londres em leves differenças de collocação, e acaso additada com alguma composição juvenil que o auctor desprezára, mas que reclamavam os seus apaixonados;--que o segundo, sob o titulo de FLORES SEM FRUCTO, conteria o resto das composições lyricas da sua primeira e segunda epocha;--que o terceiro sería destinado ás FÁBULAS E CONTOS, e por appendice aos poucos sonetos que não intregára ás chammas;--o quarto volume finalmente, com o titulo de FOLHAS CAHIDAS, foi dedicado ás producções de edade mais madura e que elle considerava como os seus ultimos versos. D’estes quatro volumes assim detalhados, não se tractou todavia por emquanto de dar ao prelo senão o segundo, as FLORES SEM FRUCTO, que ainda assim só vieram a imprimir-se em 1845. E nem a popularidade que obteve o livro, nem o remanso de maiores lidas, que por então gosou o auctor, o poderam mover a pôr a última mão a nenhum dos outros. Sómente em principios de 1851 entrou na imprensa o primeiro volume, isto é, a segunda edição da LYRICA DE JOÃO MINIMO, e o quarto, isto é, as FOLHAS CAHIDAS. Motivos bem notorios de serviço público vieram reclamar toda a efficacia e attenção do nosso auctor; e os dois volumes lá ficaram abandonados na imprensa, meio compostas e meio revistas as folhas. Assim estiveram dois annos até principios do actual, 1853, em que felizmente desimbaraçado e liberto, pôde outravez dar-se aos seus queridos cuidados litterarios. Publicou-se então a LYRICA e as FOLHAS CAHIDAS; aquella muito correcta e avantajada á primeira edição; éstas cerceadas e mondadas pelo auctor, que apenas ficou uma pequena brochura do que tinha sido um volume regular. Em poucos dias porêm desappareceram as FOLHAS;--levadas de bons e de maus ventos... voaram. E sendo reclamada pela opinião e pelas necessidades do commercio uma segunda edição, resolveu-se o auctor a fazer da reimpressão d’esse voluminho, e do inedito que era destinado ás Fábulas, sonetos, etc., um só tomo, com o título de SEGUNDO VOLUME DOS PRIMEIROS E ULTIMOS VERSOS. Para resummir d’este modo, era necessario porèm queimar ainda mais sonetos e mais apologos. Assim se fez, sendo genero de occupação em que muito parece comprazer-se o auctor. Mas por tal modo, com estes dois volumes e com o das FLORES SEM FRUCTO, está completa, em tres tomos regulares, a collecção das poesias menores do Sr. Garrett: nome pelo qual sempre será mais conhecido o Visconde de Almeida Garrett, a quem as dignidades politicas não elevam nunca acima do que a si proprio se eleva por seu ingenho e estudo. Detractores e inimigos gratuitos--porque não invejosos tambem?--podem clamar que essas dignidades rebaixam o nome que não podem exaltar. É um sophisma de calumnia, porventura admissivel como epigramma se, republicano e demagogo, o auctor de Camões, de Gil-Vicente e de Fr. Luiz de Sousa, houvesse alguma hora professado as hypocritas doutrinas do nivelamento social, que tam poucos acclamam com sinceridade, e menos ainda com perseverança. Mas a tribuna, a imprensa e o Conselho o viram sustentar sempre com denodo e dedicação a causa da monarchia, sustentá-la como inseparavel da causa da liberdade do povo, da qual é não menos zeloso e strenuo defensor. A verdade é que as distincções monarchicas tanto dão lustre ao merito e o recebem d’elle, quanto se invilecem e prostituem lançadas á ignavia ou ao demerito que não conseguem innobrecer. O dia em que os reis comprehenderem bem este axioma, será o último das aspirações demagogicas. Voltemos porêm á historia da nossa collecção. Não ficou ella nem rigorosamente chronologica nem perfeitamente systematica. Participa de uma e de outra coisa, innevoada de um certo mysterio que muito por acaso a involve, sem nenhuma prevenção ou pretenção da parte do auctor. Na Lyrica de João Minimo, tal como no princípio d’este anno se publicou, está a infancia poetica, toda a vida juvenil do homem de lettras, do artista, do patriota sincero e innocente, do enthusiasta da Liberdade que ainda não conhece, que ama com exaltação, que serve com fervor, e pela qual sacrifica de bom grado a patria, o socêgo doméstico, a fortuna, a saude e quanto os homens mais prezam. Ha n’essa lyra uma corda que ja soa de amor, do amor apaixonado, ardente, cioso que um dia abafará talvez as outras todas. Mas os gemidos soltos que por agora lança, os vagos suspiros que balbucia mostram bem claro que no coração do poeta dormem ainda as tempestades que porventura lhe hãode agitar depois a vida. Para tudo o que não é a Patria e a Liberdade, é tibio e froixo o seu canto, desgarrado e mal sentido. Hade entrar muito fundo n’esse coração a pena ou o prazer, antes que chegue a fazer vibrar a corda íntima que está silenciosa, distendida--e apenas geme a espaços como harpa eolia pendente do ramo, que, agitada por incerta brisa, suspira vaga e saudosa, sem a percutir ninguem, por ninguem, por coisa nenhuma, e só movida de um indeterminado presentimento do que hade ser, do que póde ser, do que talvez não seja nunca. Falla de amor o poeta... Sim, falla; e ha Délias e ha Lilias, e ha flores e ha estrêllas, e ha bejos e ha suspiros, e ha todo esse estado maior e menor de um exército de paixões que sai a conquistar o mundo no princípio da vida de um rapaz cheio de alma, de fogo, de exuberante energia e vehemencia de sangue. Mas esse exército é todo de parada, fórma bem na revista--em travando peleja séria, hade fugir, porque é boçal e não o anima nenhum sentimento verdadeiro e tenaz. Ve-se o poeta atravez do amante: falso amor e falsa poesia! Quando um e outro são verdade, não apparece senão o amante, não se ve senão a paixão, a arte some-se, annulla-se deante d’ella: então vem a poesia do coração. Não ha ainda d’essa poesia na LYRICA DE JOÃO MINIMO. A da alma sim. Nos tres livros em que se divide a LYRICA estão as tres primeiras epochas da existencia do mancebo. As impressões e aspirações da infancia que desponta á puberdade, os instinctos da glória, do amor e do patriotismo suspiram no primeiro livro, que se sente escripto no socêgo da casa paterna á repousada sombra das faias e das larangeiras da sua ilha no meio do Athlantico,[1] e logo depois ás margens classicas do Mondego, nas horas vagas dos estudos superiores. O segundo livro é nova era para o poeta e para o patriota. Alceu imberbe, tribuno de dezeseis annos, levanta-se com a revolução, destitue todos os idolos velhos, e não canta senão hymnos á liberdade. O profundo sentimento monarchico lá resumbra todavia sempre dos mais exaltados cantos com que se insurge a sua musa revolucionaria. Ve-se que, apezar de todo o impeto que leva essa carreira, jamais hade precipitá-lo na anarchia. O irreconciliavel inimigo dos despotas e dos hypocritas não hade ser nunca o amigo dos demagogos, nem blasphemará jamais contra Deus e contra a religião em nome da liberdade que adora como emanação do seio divino. No terceiro livro ahi está elle repousando no lar paterno das primeiras lidas públicas; ahi canta em suaves endeixas os mais puros affectos da familia, a saudade dos que ja não vivem, o carinho dos que ainda o abraçam. Mas a patria, essa patria que hade renegá-lo e proscrevê-lo d’ahi a pouco, a liberdade que hade fugir bem depressa, vem tirá-lo do seu momentaneo descanso. Os cinco annos da vida de Coimbra passaram, o socêgo da casa materna a que regressou cança-o. Elle que sai outra vez da sua ilha tranquilla para as tempestades da capital. A causa do povo é trahida, abandonada... elle não a abandona; prefere o exilio, e em terra extrangeira o ouvimos cantar as suas imprecações, as suas saudades e a constancia indomita do auctor do CATÃO. Tal é a historia da LYRICA DE JOÃO MINIMO, que termina em 1824. Começa no anno seguinte a das FLORES SEM FRUCTO, collecção ja muito menos volumosa, porque a superabundancia de seus espiritos poeticos tem ja outras derivações. O CAMÕES, a DONA BRANCA, a ADOZINDA, absorvem muito d’elle. Fórma-se com a experiencia e a observação na terra extrangeira o talento do publicista, aperfeiçoa-se na patria com a práctica; começam as luctas politicas de 1826, em que o redactor do PORTUGUEZ e do CHRONISTA mostra que, se a natureza o fez poeta, o estudo e o amor do seu paiz o fizeram orador eloquente e escriptor politico abalisado. Nova emigração, novos trabalhos litterarios e politicos, e novos cantos lyricos tambem, em que ora geme, ora triumpha a liberdade.--Mas no segundo dos dois livros das FLORES começam as paixões do coração a tomar posse mais ampla e mais tenaz do poeta. Sería que as desillusões da politica, os desappontamentos da vida pública, as deffecções da amizade o levassem a refugiar-se nas chymeras d’esse outro paiz de sonhos, em que o despertar não é todavia nem menos desanimado nem menos triste? Não sei: a vida de um poeta hade sempre ter capítulos mysteriosos, transições inexplicaveis e inesperadas; a filiação de suas ideas e de seus sentimentos é quasi sempre _cryptogamica_. O certo é que, nas primeiras composições dramaticas do restaurador do nosso theatro, o amor não existe. No CATÃO e na MEROPE só ha as paixões d’alma, o amor da patria ou da familia; no GIL-VICENTE porêm ja o coração toma o primeiro logar,--disputado ainda pela glória, pela paixão das lettras, da arte--mas o primeiro. N’esta segunda collecção lyrica do nosso auctor, basta a peça que tem por titulo _As minhas asas_ para se ver que o homem público, o philosopho, o poeta da glória e da liberdade pagou emfim o tardio e pesado feudo de sua independencia vencida e subjugada. Até então as homenagens ao suzerano eram meias de escarneo, eram um tributo de condescendencia--de uma como elegante ironia! O estado de coisas é outro agora. As FOLHAS CAHIDAS continuam esse estado. Os seus dois livros (que na primeira edição foram um só) visivelmente o mostram. As FOLHAS CAHIDAS são o principal n’este segundo volume dos VERSOS, que vem a ser o terceiro, porque entre elle e o primeiro estão as FLORES SEM FRUCTO. As FÁBULAS e os SONETOS não são senão appendices ou accessorios; e por suas datas e por seu genero pertencem mais á primeira collecção de que acima fallámos, do que a ésta terceira de que vamos occupar-nos. Aqui os sentimentos patrioticos, o amor da glória, o enthusiasmo da liberdade teem ainda saudosos ecchos na lyra do poeta. Mas a energia, a vehemencia de suas cordas não vibra ja senão com outra paixão mais ciosa e mais exclusiva. As Julias, as Délias, não se contentam ja de inspirar, dominam absolutamente o coração do poeta, os hymnos, as canções, as imprecações mesmas da sua lyra. Que é de o Alceu que bramia liberdade, o Anacreonte que zombava com o prazer, o Tyrteu que precedia as phalanges da Terceira aopé do pendão azul e branco da joven Rainha dos exilados? Que é das elegias suaves e melancholicas do auctor do Camões? Que é feito dos desgarres semi-rabelaicos do poeta de Dona Branca, dos sarcasmos byronicos e incredulos, dos surrisos mephistophelicos espalhados por essas VIAGENS NA MINHA TERRA, pelo ARCO DE SANCT’ANNA, por tanto volume de prosas e de versos? Tudo isso acabou, porque acabaram provavelmente todas as decepções do seu ânimo, e não ficou, em logar d’ellas, senão outra decepção maior que ingana mais cega, e venda mais apertada. Taes são as FOLHAS CAHIDAS, _última palavra_ até agora, mas que não será a _derradeira_ do nosso poeta: affoitamente o confiâmos. Confiâmo-lo de seu ingenho grande, de sua alma elevada e nobre, traduzimo-lo da sua admiravel introducção ao pequeno volume que hoje reproduzimos. As FOLHAS CAHIDAS não são o fim, são a transição. O que virá depois sabe-o Deus, sabe-o o destino mysterioso de uma existencia á parte, que não tem lei nas regras, mas nas excepções da humanidade. O tempo o mostrará, porque uma vida, que tam longa parece por tam cheia que tem sido, é ainda curta e môça bastante para nos deixar aguardar socegadamente pelo futuro que esperâmos d’ella... e muito! NOTAS DE RODAPÉ: [1] Em Angra, na ilha Terceira, capital dos Açores. PRIMEIROS VERSOS. FÁBULAS E CONTOS.--SONETOS. Senti sempre que a lingua portugueza era para todo o genero de composições. E o rebellar-se ella em algumas pareceu-me que era mais inhabilidade de quem a conduzia do que defeito proprio seu. Por honra d’ella, mais que por vaidade minha, tentei compor em tam desvairados assumptos e generos como tenho feito. Hoje estou crente e firme convencido de que a tudo serve, a todo stylo se presta. Nem me persuadi mais d’isso por alguma coisa em que sahi bem de meus insaios, do que pelas muitas em que falhei. A singeleza de seu dizer, uma certa malicia popular e mordente de sua innocencia saloia faz o dialecto portuguez eminentemente proprio para o apologo e para o conto. Está pouco trabalhado o genero entre nós em verso. Mas as fábulas dos animaes, contadas em prosa pelas gentes do campo, teem tanta graça de stylo como as de Esopo e de Pilpay; e as narrativas do Decameron popular em que sempre figura o frade, a mulher do çapateiro, o marido logrado, o amante umas vezes bem succedido em seus artificios, outras colhido n’elles proprios e punido de sua audacia, não teem que invejar a Lafontaine ou ao licencioso italiano que fez as delicias de nossos gaiatos avós da renascença. Quando, em bem criança, quiz tambem insaiar a minha penna n’este genero, não adverti tanto no que agora escrevo e penso. Fique pois o meu mau exemplo, fique a minha quéda por farol de aviso aos que navegarem n’este rumo, paraque saibam que as imitações dos extrangeiros são perigosas sempre, e quasi sempre infelizes quando se não poem bem deante dos olhos os unicos typos verdadeiros, que são a natureza, a indole da lingua, e os modos de dizer do povo em cujo idioma se escreve. Tambem comprehende a segunda parte destes meus ‘primeiros versos’ alguns sonetos, poucos. De centos que fiz, e que me fizeram fazer, apenas deixei estes. Não são bons, e eu não gósto do genero, que por indole propria é pretencioso e facticio. Mas confesso que hoje tenho remorso da reacção que promovi contra o soneto. Tinha aomenos restricções e difficuldades que não tem a sôlta liberdade das canções descabelladas e plusquam romanticas, pelas quaes foi substituido; na qual soltura cresceu descompassadamente a turma dos janisaros do Parnaso, que levaram a anarchia poetica alêm de todas as raias do senso commum. Se nós invocaremos ainda o soneto e a Arcadia e a Academia, como os povos, cançados e infastiados das orgias da liberdade desinfreada, invocam a tyrannia, último e fatal remedio dos males presentes, que lhes fazem esquecer os passados? Ochalá que não, porque a coisa era muito semsabor e muito pedante. Mas ésta é tam piegas! Da litteratura piegas nos livre Deus, sôbre todas as coisas. Emfim, a historia do mundo não é senão uma serie de reacções e contra-reacções. A da litteratura é o mesmo. O que unicamente fica immutavel são os eternos principios da verdade, do gôsto, e da razão em tudo. Lisboa, Janeiro 1853. FÁBULAS E CONTOS. LIVRO UNICO I. INTRODUCÇÃO. Cahiram com a folha os meus prazeres; E as musas, caro Gomes,[2] que, outro tempo, Torrentes d’estro me esparziam n’alma, Até as mesmas musas Sem dó, sem compaixão desampararam O froixo amante inválido. Embalde as chamo, e as desmontadas cordas Da saudosa lyra Lhes peço aomenos que siquer me affinem. São bellas, como bellas, caprichosas: Não me admirou que fujam. Porêm, amigo, no celeste côro, Como por ca na terra, De milagre inda ás vezes se depara Com alma bemfazeja. Das nove irmans gentis a mais gaiata, Garrida e brincalhona, A galhofeira, magica Thalia, Rindo-se ás gargalhadas Da lamuria que fiz por ver fugi-las: --‘Deixa,’ me disse ‘és louco; Deixa, que ellas virão sem que as tu chames: É costume do sexo, Assim fazemos todas. E que lhes queres tu? que incantos achas Na macillenta, pallida Melpomene, Que, desde que houve em Grecia um tal Eschylo Até o dia d’hoje, Sempre lagrymijando Nos sécca, nos injoa E nos quebra os ouvidos com gemidos?... Sempre se anda a mattar e nunca morre! As outras--na verdade, Aqui muito em segredo, Éstas minhas irmans... Não é má lingua, Não é geito da _saia_... mas decerto Não sei esses poetas Porque tanto as incensam, tanto as buscam. Olha: o velho Philinto, Que tu, e os teus patricios--boa gente!-- Tanto gabaram, applaudiram tanto, Sem lhe mattar a fome, Postoque a todas nós galanteava, Comtudo a do seu peito Foi a mana Polymnia. Nunca vi um namôro mais rançoso; Fizeram duzias de odes... duzias!--centos. Tantas e tantas foram, Que emfim o mano Apollo Ja de odes infastiado, Assim que o pobre velho deu á casca, Protestou, e protesta Não dar a mais ninguem o officio vago De Lyrico da casa. ‘Caliope, essa tolla impavezada, Que Homero, e o teu Camões, Virgilio e Tasso Tam mal acostumaram, Sempre de bico doce, Torce o nariz a tudo E diz que a ninguem mais quer dar cavaco; E até, se não soubesse Que um tal poeta lá da tua terra Que faz Orientes e baptiza Gamas, E a quem nós todas temos mortal osga, Fôra frade tambem... que ia ser freira. As mais é tudo o mesmo, São todas desdenhosas: Além d’isso têem lá os seus namoros, E não querem largá-los. ‘Eu ca não sou assim ... Porêm não penses, Por me ver rir com todos, Que a todos quero, que namóro a todos. Ingana-se commigo muita gente, Tenho inganado a muitos Que julgam conseguir os meus favores: Cahem como uns patinhos Nas peças que lhes armo. Cuidou que me pilhava aqui ha tempos Um tal cantor de _burros_, Macaco encyclopedico Que em tudo quer metter-se. Preguei-lhe um lôgro... oh este foi machucho: Vesti a minha môça da cozinha Que vocês lá no mundo Appellidam Chalaça, Que sempre anda mettida entre estudantes, Marujos e arreeiros, Vesti-a c’uma roupa do meu uso Ja rota e desbotada, E mandei-lh’a em meu nome ao tal poeta, Que a pillula ingoliu, E muito satisfeito da conquista, Por tal a deu aos parvos Que as sujas trovas, que os immundos versos Extasiados applaudem. ‘Quando eu tinha os meus dôze, e era donzella... --Que hoje, cre-me a verdade, Vai ca no Olympo o que lá vai na terra! Namorei-me de um Grego: oh! bello amante! Chamava-se Aristophanes: Dei-lhe, intreguei-lhe tudo --Como o teu Camões disse-- O que deu para dar-se á natureza. Um Phrygio corcovado, Mas que tinha mil graças Que a corcova das costas lhe incubriam, Soube tambem vencer-me. Com estes dois gosei prazer tam doce, Tam deleitosas horas, Que os monumentos d’ellas Inda lá pela terra os mimos fazem De quantos sentem de meus dons o preço. ‘Quando no Sena ovante, Quando no Tejo e Tybre Se ergueram nossos templos Que a barbara ignorancia derrubára, Ao cantor do Lutrin, ao da Pucelle, Ao mago auctor do santarrão Tartufo, Ao teu do bento Hyssope, E a esse galhofeiro Italiano Que aos animaes deu falla, Dei-lhe os favores, franqueei-lhe os mimos Que a Ariosto, a Gil-Vicente, Que aos outros todos concedêra outrora. Se o que elles foram sabes, Quanto eu valho apprecia. Eu não sou como as manas, Rio de tudo, tudo rindo insino; E nas coisas mais sérias Acho, descubro o lado Em que o sal do epigramma incaixa a geito. Por mim da atroz affronta, Por mim da escravidão, por mim da inveja O ingenho se despica, E n’um só _trait d’esprit_, de eterno opprobrio, C’o sêllo do ridiculo, Marca indelevel na ignorancia imprime, Na presumpção, no orgulho, Toma’ e, dizendo, me intregou a lyra, ‘Toma, e conhece quanto podem risos Da magica Thalia. Fere-a, e, se os sons mal destros, Desafinados, rudes te sahirem, Começa n’isso mesmo A gosar minhas dadivas; Ri-te d’elles, de ti, ri-te da lyra, E de mim se quizeres.’ Tal me fallou a minha bella deusa Que tantas gargalhadas, Nos dias folgasões de nosso tempo, Nos fez dar tantas vezes Quando na voz roufenha Do nosso mathematico Alvarenga.[3] Ás mãos cheias vertia Pilherias do Kai-Pira e Sganarello,[4] Do impulhado Avarento. Satisfeito da offerta, e mais que d’ella, Do longo e bom cavaco, --Cavaco que jejuo ha tanto tempo! Cavaco suspirado Com que me acenam ja vesperas sanctas Do tardio feriado!-- Toquei, ou antes arranhei á toa Os versos que te mando. Ri-te se forem bons e se gostares, Ri-te se forem maus e te injoarem, Ri-te, ri-te, que o mundo Não se póde levar de outra maneira: Assim o insina a deusa. Coimbra--1820. NOTAS DE RODAPÉ: [2] O Dr. Francisco Gomes da Silva, meu companheiro e amigo da Universidade. [3] Outro amigo da Universidade. [4] Farças que representavamos no nosso theatro. II. PELO ZURRO O BURRO. CONTO ACADEMICO. Naturam expellas Furca, tamen usque recurral. MORAT. Era uma vez: diz mestre Lafontaine, Que lh’o dissera Phedro seu amigo, Que lh’o dissera um grego corcovado... Pois tudo n’este mundo vai por dittos, Tudo se diz porque outros o disseram... E talvez que não fôsse Lafontaine, Mas foi outro que tal, que vale o mesmo: Um dia... mas o fio á minha historia Não o tórno a quebrar por coisa alguma; Poema que tem muitos episodios Nunca póde ser bom, nem bons ser elles: Diz padre Horacio ou outro tal como elle D’estes que intentam accanhar o genio Com leis servis por elles arranjadas Que, segundo a moderna guapa eschola, As não póde soffrer de taes birbantes. Um dia pois o pae d’homens e numes, Como eu ia contando aos meus leitores... --Se é que a sorte, que os nega a bons poetas, M’os deparar a mim, chulo trovista-- A rogos, mas de quem ja me não lembra, Asno felpudo de orelhões cahidos Quiz transformar em fervido ginete; E ao bom Mercurio, seu fiel ministro, Manda que o longo pêllo lhe tosquie E um bom naco cerceie das orelhas. Era grande o burrico, nedeo e gordo, E por milagre do supremo Jove, Que sempre faz como este bons milagres, Ei-lo desimpennado e mui lampeiro, Qual andaluz corcel ou egua arabia, A par d’outros corceis se vai trotando. O povo cavallar na fórma nova Não reconhece a burrical maranha. Como elles folgazão retouça e pulla, Ladeia, faz corcovos, trava o passo, Emfim parece--Tanto podem numes E tal é o podêr de um bom milagre!-- Cavallo mestre e feito em picaria. --Qual rustico peão de bronca aldea De tamancos nos pés, no sacco a broa, Que vem para imbarcar lá da provincia, E para um tio, que é senhor d’ingenho, Ricasso em pretos, em arroz, mellaço, Ingoiado apprendiz vai ser caixeiro: Morre-lhe o tio, eis o rapaz n’um sino, Vende pretos e pretas e mellaço, E vem, Cresso de cocos e patacas, Metter toda Lisboa n’um chinello; Ja por boas, luzentes amarellas Serodeo compra fidalguesco fôro... D’antes--que hoje a visita da saude, Em cheirando a caturra, a bordo o prende, E é ja barão quando põe pé em terra. Ei-lo que alteia os hombros incolhidos, Intufa em vento as bochechudas belfas, Impina a pansa, ingrossa a voz pausada, E no tropel dos nobres involvido, Se o não conheces, crêra-lo provindo Dos que nos velhos pergaminhos vivem. Tal ja desorelhado e uffano o burro Entre altivos ginetes campeava. Mas, oh fado infeliz, mesquinha sorte! Quando entre os novos ledos companheiros Se vai trotando com pimpão meneio, Ei-lo depara com villan jumenta De hirsuta felpa e de costado esguio, Que os fios corta d’alma a quem a via, Como bem diz Latino-luso vate De mui gaiata e festival memória. Subito esquece o recem-nobre estado, Lembram-lhe antigos, burricaes requebros E o tom gallanteador de asnal namôro: Estira amante o beijador focinho, E em notas de invejar por um Lablache, Psalmeia airoso, compassado orneio, Deixa os amigos e a azzurrar se fica! Ora pois, como fez o senhor Jove, Fez certo gran’senhor de lettras gordas E protector das magras.--Foi milagre Que pela intercessão foi operado De uma a que chamam deusa da Sandice, De outra Impostura e de outra Pedantice. Começa o caso c’o outro parecido. Havia em certa terra muito longe, Lá nas pontas dos pés d’este hemispherio, Que dizem fôra outr’ora povoada Por certo beberrão feitor de Baccho, Havia uma familia de animalculos, Zoophytos, e quasi mycroscopicos, Aos quaes Lineu, que achou nomes a tudo, Nunca deu nome, nem especie ou genero, Nem eu lh’o sei tambem, só sei que arrotam Textos, medalhas, chymicas rançosas, Que trazem n’algibeira um compassinho, Muito accanhado, curto e pequenino, Talhado ao molde dos miollos d’elles, Com que querem medir todo este mundo. D’estes pois--e aqui vai o gran’milagre-- Burros na fórma, na sciencia burros, Mas burros mais que tudo na cacholla, Quiz o tal gran’senhor citado acima Fazer--ó musa o quê?--Dize, não temas, Não fujas, dize e vai-te.--‘Uma académia’ Disse a musa e safou-se ás gargalhadas. Mas que académia!--Oh! venham as brilhantes De Londres, de Paris, de Petersburgo Beber aqui sciencia não sabida De assopradas, pomposas ninharias. Que producções, que producções! Oh quanto Quanto seria mais se um deus maligno, Inimigo dos guapos academicos, Das tres que Deus nos deu potencias d’alma Lhes não saccasse duas á surrelfa, Deixando só memorias e memorias... Quanto sería mais, quanto fulgira Em gordos, grossos, grandes calhamaços A portugueza, majestosa lingua, Se os novos sabios, no comêço á emprêsa, A antigas manhas não perdendo o affinco, Não incontrassem por desgraça nossa C’um perfido _azzurrar_--zurrar malditto!... Ficaram no azzurrar sempre zurrando. Coimbra--1818. III. AMOR E VAIDADE. FÁBULA. Ja mais veloz corria o espaço usado Que as horas marca ao dia O deus que atrás de Daphne --Infructuoso trabalho!--dera ás gambias; E aos braços d’Amphitrite ia mais cedo Dos trabalhos da luz gosar nas trevas Desejado descanço. Iam seccando pelo prado as hervas, E o verde-escuro dos frondosos montes Amarello cahia; Sentado aopé da magustal[5] fogueira, Vermelho e rubicundo O bemdito e louvado San’ Martinho, --Que a cega antiguidade, Por não tomar a bulla da cruzada, Nem jejuar aos dias de jejum, Baccho chamava em sua escandalosa E misera ignorancia-- Bastas fazia navegar, nos máres Da barriga sanctissima, As puchantes castanhas; Banhos e quintas ao socêgo antigo Despovoados tornavam; Voava a folha, sibilava o vento, E em fim, sem metaphoricas periphrases, Era ja meio outomno. Amor, Cupido, ou Ero, ou qual mais gostem Dar-lhe baptismo ou chrisma, Comtanto que não chegue A tanto o desafôro Que ousem--como eu ouvi, por meus peccados, Co’estes que a terra um dia Ou mar tem de comer-- Por louca affectação de Anglo-mania, (O que não farão modas!) Chamar-lhe em Portuguez... chamar-lhe _Love_! Amor pois ou Cupido, --Que assim nossos avos sempre disseram Em tempos venturosos Que tudo se chamava por seu nome, Que ás bellas se dizia Em Portuguez sincero e sem malicia O que hoje é fôrça rebuçar no manto De alegoria equivoca-- Amor, do rebulicio da cidade, Do barulho infastiado, Farto ja de frexar c’os aureos tiros Os corações tam gastos, Usados, velhos, estropiados, frouxos Da gente que a povoa, Para o campo fugiu d’onde ella foge. Lá nos singelos bosques, Nas simplices cabanas Singelos corações, simplices almas Espera achar ainda Em Daphnis e Amaryllis. Por um ameno solitario valle, Em seus projectos imbebido o numen, Caminhava... eis da incosta d’um outeiro Ve descendo gentil, esbelta dama Que bem, no airoso infeite, No perluxo das modas, Conheceu que não era habitadora Da rustica espessura. Fugi-la quer; mas sentimento occulto, Que entre nós ca na terra Se diz curiosidade, --Não sei como no ceo lhe chamam numes!-- Sentimento imperioso No sexo lindo que nos doira a vida... --Que a doira se gosar sabemos d’elle, Que aos parvos a invenena-- Este o reteve, suspendeu-lhe os passos. Quem será? Quer sabê-lo. Ei-los junctos; e Amor que á bella dama Cortezmente sauda: --‘No campo ainda e só, quando á cidade Apressurada corre toda a gente! Tam delicada, tam formosa dama Da quadra desabrida Os insultos não teme? Foge acaso o prazer da sociedade, E n’estas mudas selvas Vem porventura, desgraçada amante, Chorar na soledade?’ Não gostou do cortejo e cumprimento A nympha bella, desdenhosa e dengue; Offendida que o nome lhe ignorassem, Orgulhosa responde: --‘Conhece-me o universo; em toda a parte Templos, altares tenho; Domino os corações, govérno as almas, Sou uma deusa, e chamo-me Vaidade. Por mim co’a morte, c’os revezes lucta O guerreiro no campo; E ante o espelho traidor consomme a vida A belleza que aos annos se não rende: Por mim o litterato sôbre os livros Curva a frente abrazeada; Por mim nos gestos, no fallar se estuda O adamado peralta; Por mim vivem contentes satisfeitos Os que menos razão têem de viverem; E o mago meu podêr se estende a tanto, Que entro no seio mesmo aos que me offendem, Desprezam e injuriam. Por meu influxo, n’esse proprio escripto Em que me insulta o sabio, Corrige e apura o sabio o stylo, a penna, Aos louvores armando. Eu as suberbas, elevadas cupulas Ergo de vãos palacios; E até na estancia gellida da morte, Nas mentirosas lapidas Lavro pomposas lettras Que a inganado porvir levam memorias De parvos, de maus reis, sanctões Tartufos, De tonsuradas bêstas. Eu em certa famosa academia As charamellas tanjo, As conclusões defendo, Em vandalo Latim peroro ás turbas, Tufo a brilhante borla Com que as caveiras jumentaes adórno. Emfim até d’amor perturbo o imperio: Por mim, por meus auspicios, A parvoa chusma dos galans mais parvos, Dos fofos petimestres Ja do sexo gentil não quer favores: Indiff’rentes ao gôso e á ventura, Basta que o mundo os tenha por felizes... Por mim a dama desdenhosa e bella Ja não procura amores, Nem de Venus suavissimos deleites, Mas o gaudio maior, mais lisongeiro De que os outros a creiam Cercada de servis adoradores, De humildosos escravos’... Ia por diante; mas o deus zangado, Furioso a interrompe: --‘Basta; o numen d’amor sou eu: não entra Tam facil em meu reino Teu sacrilego pé: sobejas vezes De muitos corações tenho extirpado Teu petulante vício. Em vão esse Hymeneo, que deus se chama E egual amim se inculca. Ousa pleitear commigo: Os nós lhe quebro que appellida sanctos, E em seu templo introduzo --Embora a testa doia Aos miseros maridos-- Quem me apraz, quem me segue, e a quem eu quero. Por mim se eguallam desvairadas sortes, Que as baixas condições uno ás mais altas. Lidia, a orgulhosa Lidia Que a ladaínha dos avós impurra A todo o instante e a todos, Lidia que nunca ri... c’um tiro as pompas E as sombras dos avós lhe desfiz n’alma: Puni-a, fi-la escrava, Fi-la escrava... e de quem!... do seu lacaio. Togas, aureos bastões, borlas, espadas, Mittras, coroas, toucas e capuzes Ao meu imperio tudo está sujeito.’ Desdenhosa e surrindo ouviu a deusa, E em submissa ironia lhe responde: --‘Pois bem: assim será; não valho nada No coração das bellas. Mas expliquem sem mim seu vário peito; Isso que o mundo appellidou capricho, Que em sua alma domina, Dize-me o que é? será sem causa o effeito? Suas obras tam variaveis, tam confusas, Com que os amantes pasmam, Não as deciphro eu só, de mim não partem?’ Esquentou-se a questão: denovo os deuses Pro e contra razões allegam, mostram. É cabeçudo Amor, ella teimosa... Não acabavam nunca. Ficariam na mesma, Se o meio de findar contendas tantas Não acordasse á deusa: --‘Prescindamos’ clamou ‘de vans palavras, Argumentos deixemos; Vamos a factos, e de nossas armas Façamos experiencia.’ Sahia a ponto do vizinho bosque Pastorella innocente: Alma inda nova, coração ingenuo, No simples do vestido, No mal composto dos cabellos louros, De sobejo mostrava: Era toda ao pintar para a exp’riencia. Consentem ambos em provar, na bella E timida pastora, O podêr de suas armas. Jurou Amor de dar-se por vencido Se de seus magos tiros Podésse defendê-la a Vaidade. Com lisonjeiro, placido semblante E com doces palavras, Tomando-a pela mão, a affaga a deusa; Pungente frexa Amor no arco imbebe, E mostrando-lhe a um tempo Joven pastor que dera inveja a Páris, O tiro lhe dispara. Voa a setta fatal... mas no momento Em que lhe toca o peito, Subito a deusa aos olhos lhe apresenta No mesmo instante crystallino espelho... Pasma extasiada e fixa A simplice donzella, O semblante gentil contempla immovel; Nem um só volver d’olhos para o bello Mancebo lhe escapou. Sorriu-se a deusa; Amor de invergonhado, De corrido fugiu. Coimbra--1818. NOTAS DE RODAPÉ: [5] Magusto, no dialecto da minha provincia, é a fogueira em que se assam as castanhas nos dias marcados pelo ritual minhoto. IV. ESOPO E O BURRO. FÁBULA. A. TH. DA SILVA QUINTANILHA. Foi grande tempo, amigo, Aquelle tempo antigo: Eram maiores peras e mellões... Pois uma melancia? Por essa casa dentro não cabia. Bem o mostram as sábias conclusões Do famoso Gil-Braz de Santilhana: Guardadas proporções, Se a conta não ingana, Certamente sería A maçan com que a Adão Eva inganou, Maior do que uma abobora-menina: E então ja bem se atina Como ella lhe incalhou No gargallo do pae da humanidade; Cuja enorme hombridade, Segundo o mesmo cálculo constante, Devia ser maior que a d’um gigante. N’esse tempo feliz da carochinha, Em que pato e peru, porco e gallinha, Burros e burras--e o rhynoceronte-- Cabreavam, ahi por esse monte, Com toda a mais canalha Que era da sua egualha, Toda essa corja dizem que fallava, Como nós, na sua lingua-mistiforio. Não sei se Deus fez bem no seu decreto Que a mercê lhe tirou do fallatorio; Pois, segundo mui douto me insinava Meu mestre José-Vaz, homem discreto E de saber profundo, Em toda a sociedade d’este mundo Por fôrça hade reger O famoso _direito de accrescer_. Accresceu para nós, tristes humanos, Toda a loquacidade De quantos bicharrões, bichos, bichanos D’este universo á grande sociedade Veio a perdas e damnos: E assim vemos fallar moços e môças, Velhos e velhas, sabios e tarellos, Com vozes finas e com vozes grossas, O gentio, o christão, moiro e judeu, Por quantos cotovellos Deus e o _direito de accrescer_ lhes deu. N’esse tempo feliz então havia Em Grecia um corcovado Que de todo o animal, ave ou pescado Intendia e fallava a algaravia. Muitas ja tinha em Grego traduzido Das famosas comedias, Altisonas tragedias, Entremezes chistosos e ingraçados, A que tinha assistido, Dos bichassos auctores mais fallados. Um dia passeando Por juncto de um ribeiro, --Talvez algum dialogo pilhando De bichitos de couve ou formigueiro-- Eis-ahi senão quando Direito a elle em frente Orelhudo jumento vem trotando; E depois de o saudar mui cortezmente Com uma cavatina Em notas que nem ja Lablache affina, Findado o ritornello, Assim o nosso burro, Em sua lingua asinina De mui pullido zurro, Ao corcunda fallou, Quero dizer--orneou: --‘Tenho um favor que te pedir, Esopo: No apologo primeiro Que em lingua traduzires da tua gente, Não me faças tam zôpo Como, useiro e veseiro, Fazes constantemente. Em meus discursos mette alguma graça E pilherias com sal e com finura, Que eu, a zurrar, sou forte na chalaça.’ O bom do Esopo olhou para a figura Do elegante orelhudo, E com tam destampada, Tremenda gargalhada Lhe respondeu ao animal felpudo, Que elle, de orelha murcha e mui trombudo, Se foi sem dizer nada. Do sincero de Esopo quam diff’rentes Andam certos auctores Que altisonantes fallas farfalhudas Imprestam a patetas gran’senhores, Excelsos presidentes De pedantes reaes academias, Illustres senadores Que as cachollas vazias Inchados ornam de compradas flores! Quantos ha ahi garraios descarados Que vão pimpar, sem pejo, pelos pulpitos Com os sermões espurios Que aos padres mestres da ordem são furtados! Quantos vates servís, lamosos gansos Que, em vis dedicatorias campanudas, De podres versos ranços, Na linguagem da Phenix-renascida, Vão dar ethica vida A Zenobias barbudas; E a Mecenas palhaças De sabichões da Grecia dão fumaças! Mas Esopo ficou qual d’antes era, E o burro, burro estreme; Mas aos nossos Mecenas sécca e treme Na frente o loiro, a hera Com que venaes poetas Lhes coroaram as testas de patetas, Em trovas semsabôres; Mas os nossos modernos escriptores Ficam asnos sem sizo Para os homens de bem e de juizo. Coimbra--1820. V. O MENINO E A COBRA. C’uma cobra doméstica folgava Criança innocentinha, E--‘Meu bicho’ dizia a criancinha ‘Comtigo tam seguro eu não brincava Se primeiro, o veneno refalsado Não te houvessem tirado. Que vós sois muito más, muito ingratonas, Minhas serpentezonas. Oh! nunca a tal historia me esqueceu D’aquelle homem que a cobra achou na rua --Talvez fôsse avó tua-- E tanto se doeu De a ver toda de frio retransida. Que no seio a metteu E comsigo a aqueceu. Que fez a bicha mal-agradecida? Apenas se recobra A traidora da cobra Vai, e zaz!--e mordeu O pobre homem, que logo da ferida Venenosa morreu.’ --‘Bem parciaes’ responde-lhe a serpente ‘São as vossas historias; Recontam-nos o caso mui diff’rente Lá as nossas memorias. O teu homem, que tens por charidoso, Creu realmente a cobra ja finada, E foi, por cubiçoso Da pelle, que era linda e mosqueada. Que o teu santinho d’home’ a quiz salvar: Era para a esfollar.’ --‘Vai-te’ responde em cholera o menino ‘Vai-te, bicho mofino: Todo o ingrato é ladino Para se desculpar, E ao seu bemfeitor calumniar.’ O pae da criancinha, mui contente. Toda ésta conversa ouvindo esteve; E--‘Pois, meu filho’ disse ‘honradamente Julgaste como deve Todo homem de bem: Mas é preciso em tudo ser prudente, E injusto com ninguem. Ha casos de tam feia ingratidão. Que a razão Não se atreve A crê-los, sem exame, assim de leve. Raras vezes a ingratos obrigaram Os que são verdadeiros bemfeitores; Mas o mundo, meu filho, por desgraça, Harto está cheio de ruins Mecenas, De falsos protectores, Que a detestavel raça Dos ingratos no mundo propagaram. Arrastados favores, Inda menos baratos Que interesseiras sordidas onzenas, O que hãode produzir, senão ingratos?’ Coimbra--1821. VI. A SAUDE E A MEDICINA. Ja tenho, meu Eloy,[6] tudo inmallado; Fica até no bahu o estro fechado. Mas antes de partir, Quero contar-te um conto, que hasde rir. Hontem o incontrei N’aquelle teu Pignotti tam magano; E, se em meu Portuguez não desbotei As côres do Italiano, Hasde-lhe achar a graça que eu lhe achei. Vou abrir o bahu, e venha o estro! Sôbre o canhão da bota. Como dizer se usa, Farei regrinhas curtas e compridas. Botas... e esporas tenho ja cingidas, Montarei o Pégaso, que nem trota Commigo, de esfalfado. Eu muito descançado Ahi me vou choitando, O meu conto contando. O conto é da Saude e Medicina... E tracta de te rir, Que, se não ris, serviu-te a carapuça, É um reles doutor de mula ruça Doutor que se amoffina E não quer consentir Que a pobre, atormentada humanidade Se desforre uma vez co’a faculdade. Jove, esse Jove em Grecia tam temido, Que imperava nos ceos, nos elementos, Nos raios e nos ventos, De moda emfim cahido, O credito perdeu e está fallido. Mas quando elle reinava Viam-se casos n’este baixo mundo Que o vulgo parvo assegurar ousava Desdizerem de seu saber profundo: E n’este ponto a grega theologia Por desculpa dizia Que, ao dar ordem a coisa tam soez Como é d’esta vida o entremez, Lhe cahem muita vez Os oc’los do nariz; E que n’estes momentos Tudo o que faz e diz É asneira--sandice por um triz. Em um d’estes accessos mazelentos, Em que de facto, do nariz divino, E sem elle dar tino, Tinham cahido os seus oculos bentos, Á terra nos mandou, Só para nosso bem, como julgou, Duas boas divindades companheiras, Ambas riccas herdeiras De sua graça divina: A saber, a Saude e a Medicina. Na fôrça juvenil tinha uma d’ellas Ageis e vigorosos Fortes os membros, cheios, musculosos, Tintas de côr rosada, Florida e ingraçada As frescas faces bellas; E nos olhos tranquillos e gozosos Tinha a indolência com a paz pintada. A outra, de gesto magro e macilento, Cabello pouco, e o pouco de alvo argento, Com as faces rugosas descahidas, As carnes resequidas, E em círculos de chumbo incaixilhados Os olhos incovados Remelosos, vidrados. Intrançada de malva e de chicoria Ampla coroa a frente lhe cingia, Como um splendor de glória; E a negra sotana que vestia Rota, e cossado o pêllo, lhe luzia Com erudita e sábia porcaria. Aos hombros alquebrados, Que a muita edade impêna, Em fórma de capuz, juncto ao toitiço Assim como uns calções esfarrapados De antigo, velho riço, E da côr de bandeira em quarentena. N’um frangalho da tal coisa amarella Lhe pendia, á feição de bambinella, Não Tusão de Oiro ou a Pollar estrêlla, Vermelho Christo ou roxo San’ Thiago, Mas o instrumento aziago... Certo tubo que todos conhecemos, Que no lúbrico pau escorregando, Emquanto vai e vem assim brincando, Ao nobre officio serve que sabemos... Cingida era de emtòrno A venera pendente De um magnífico adôrno De pilulas, lancetas em pingente, Sinapismos, ventosas, Com que, a modo de pedras preciosas, A nova ordem militar fulgia, De Esculapio em memoria e honraria. A este sabio Mentor, Jove intregára Em guarda a bella deusa das rotundas Bochechas rubicundas, E mui severamente Que em tudo a governasse, lhe mandára. Ei-las, breve, a caminho: E a deusa obediente Submissa e reverente, A sua mestra seguia Como ao guardião faria Um timido noviço capuchinho. Mas, alguns passos dados, A magra Medicina Prega na outra os olhos incovados, De admiração malina Franze o sobrôlho esguio, E tomando-lhe o pulso, em ar sombrio, Com palavras que ignoras, Profano vulgo, graves e sonoras, Disse--‘que a robustez ja muito athletica Que lhe achava, a fazia mui plethorica, E daria em pleuritica ou phrenetica. Provou-lhe mais com medica rhetorica Que um excesso mui rude Soffria de saude; E para que o morboso estado mude, E ella possa viver seguramente, De todo era forçoso Que tivesse o seu tanto de doente.’ Disse, impunha a lanceta, Fere um vaso venenoso, E á pobre da pateta Tres libras de sadio e generoso, Vermelho sangue puro lhe sacou: Muito menos a muitos ja mattou! Mas era a paciente Tam pouco natural a estar doente, Que á sua directora vigilante De melhorar não deu signal bastante: Pelo que foi gramando, ás ordens d’ella, Nogenta beberagem amarella, Fedorenta, asquerosa Em dóze prodigiosa!.. Tanto, tanto bebeu, Que a rebelde natura emfim cedeu. O appetite, o vigor Iam diminuindo; E a brilhante côr, A frescura das faces vai fugindo. --‘Bravo,’ gritava a outra em ledo aspeito ‘Bravo, que a arte vai fazendo effeito!’ E temendo funesta recahida Em quanto de uma vez Não tinha debellada e bem vencida Do morbo a robustez, Manda avançar as horridas catervas Dos xaropes, conservas, Seguros laxativos, Fortes aperitivos... Com tal fôrça e podêr, que a desgraçada Em sua consciencia De todo em todo se sentiu curada. Mas com tanta sciencia Tam eruditamente era trattada, Por via de tam graves aphorismos E agudos sylogismos, Lardeados de Grego e de Latim, Que até, morrer assim, Morrer n’esta doçura, Morrer tam sabiamente era ventura. Da nossa boa alumna, por má sorte. Era estupida um tanto a natureza, E romba de agudeza: Graça a mais superfina Que nos póde fazer a mão divina! De tam ditosa morte Não pôde comprehender toda a belleza. Cobrou medo a mofina Da sciencia divina, E, sem mais Deus-te-salve ou mais embora, Desanda-me a fugir, dando á canella Por esse mundo fóra. Larga a outra atrás d’ella A correr... e correu, e correrá... Mas nunca a apanhará. E d’então para ca Ninguem mais se gabou De que junctas ou perto as incontrou. Tal medo uma da outra concebeu, Que aonde a Medicina appareceu, É logo--n’um momento Foge a Saude mais veloz que o vento. Coimbra--1821. NOTAS DE RODAPÉ: [6] O Dr. João Eloy Nunes Cardoso, de Monte-mór-o-Novo, outro amigo velho e verdadeiro, da Universidade. VII. O GALLEGO E O DIABO. Eu por mim gósto de contos, Diga o mundo o que quizer; E para mattar o tempo Um conto quero escrever. Mattar o tempo é preciso Aos ignorantes--dirão; Ao sabio sempre elle corre Voando, que lento não. Porêm, amigo censor, E quem me fez sabio a mim? Sou eu lente ou academico, Prégador ou coisa assim? Verdade é, no Quebra-costas Minha vez escorreguei, Fui prêso por Verdeaes, E á porta Ferrea m...ei. Mas que doutor fiquei eu, Se nunca o Martini li, Se, o que sube da instituta E do digesto, esqueci? Sabenças para que servem? Brucharia, eu t’arrenego! Vou-me contar o meu conto; E o meu conto é de um Gallego. Era uma vez um Gallego Boçal, felpudo e lanzudo, Um Gallego em corpo e alma. Em chancas, juizo e tudo. Nunca lá das Gallileas[7] Sahiu cabeça tam romba A alistar-se nas companhas Dos bravos heroes da bomba. Melena loira e comprida, Azeitada e corredia, Ôlho azul, pasmado e parvo, Bôcca aberta, a barba esguia; Calção de abanante orelha, Por onde fura o quadril, Nos pés a fragante chanca, Ás costas sacco e barril; Eis-aqui a vera effigie De Thiago Manuel Juan, O mais fiel dos Gallegos Que jamais _comieron pan_. Em devoção não fallemos, Que nisso era exemplar; Deixára um prato de tripas Para á missa não faltar. A miudo ia a confêsso; E nunca o somno o pilhou Senão a rezar o terço, Que--nunca mais acabou. Em duas ou tres egrejas Era freguez de _basar_; O seu barril tinha a honra De agua benta ás pias dar. Tam devoto, tam modesto Nunca houve outro Thiago; Não ha memorias de ouvir-lhe Nem uma só vez um _ajo_. Um dia, á volta das onze, Cançado de apregoar, --Era em Julho, que escaldava, Um calor mesmo de assar!-- N’uma egreja de capuchos O bom de Thiago entrava; E a egreja tam fresquinha, Que á oração convidava. Por tendencia natural, Instincto de chafariz, Ajoelhou aopé da pia, Herdeira de seus barris. Mal se tinha _santiguado_,[8] Isto é, se persignou, Um berreiro destampado Detrás de si escutou: Era um membrudo capucho, Destemido Ferrabraz Que, a duros botes d’estolla, Brigava com Satanaz. Tinha-se o demo incaixado No bôjo de uma beata, E d’alli se defendia Como de uma casa-matta. Arripiaram-se as melenas A Thiago no toitiço, Pôz-se-lhe em pé no cachaço Até o próprio choiriço.[9] Mas o ôlho arregallado Em ponto de admiração, Não se attrevia a tirá-lo D’aquella horrivel visão. Travava a descompostura Do dize-tu, direi-eu... Fallava o frade latim Que nem o demo intendeu. Satanaz é bom latino; Ninguem lh’o póde negar: As syllabadas do frade Faziam-n’o blasphemar. Grita o frade:--‘_Abrenuncí-ò!_’ E o cachorro do Asmodeu: --‘Assim não me deitas fóra; Dize _abrenún-cio_, sandeu.’ --‘Latim sabe elle, o malditto...’ Disse o frade aos seus cordões; Que os frades, como os não usam, Não fallam c’os seus botões: ‘No Latim me venceu elle, E não fez grande façanha; Elle é o diabo, e eu sou capucho! Veremos se o faz na manha.’ Ria o demo ás gargalhadas Por ter o frade incovado; E o capucho, de velhaco, Dava-se ja por cangado, Mas co’a mão á caldeirinha, Sem que o pesque Satanaz, Vai mansinho... e de repente Prega-lhe a hyssopada--zaz! Deu tal estoiro a beata, Que parecia uma bomba ... Não era ella, era o demo: Cheira a enxophre que tomba. --‘Eu te esconjuro, malditto!’ Brada o frade em Portuguez (Que não quiz comprometter O seu Latim d’esta vez) ‘Eu te esconjuro, malditto, Que d’este corpo te vas, E não tornes a entrar nelle, Negregado Satanaz.’ --‘Vou-me’ disse o porco-sujo ‘Vou-me embora, Fr. Sandeu, Que me escalda essa agua benta. Mas para onde heide ir eu?’ --‘Para onde?...’ E deitando os olhos A um lado d’improviso, Deu o frade com Thiago Que rebentava de riso. Thiago, de um grande medo Passára a grande alegria; E, esfregando as mãos no sacco, Como um perdido se ria. Leitor não te escandalizes; Que o ver logrado o demonio Até fez perder de riso, N’um sermão, a Sancto Antonio. --‘Para onde?...’ repete o frade ‘Que me importa a mim, pespêgo? Vai-te metter, se quizeres, No c... d’aquelle Gallego.’ Conhecem-se os grandes homens Nas grandes occasiões: Thiago, sem mais demora, Deitou abaixo os calções; E, em menos tempo ainda Do que o demo esfrega um ôlho, Ja na pia da agua benta Tinha elle o seu de môlho. Batte-me quatro palmadas No rechonchudo do traz, E diz-lhe:--‘Agora, só diabo, Venha p’ra ca, se é capaz.’ Havre de Graça--1824. NOTAS DE RODAPÉ: [7] Terra de Gallegos, em dialecto scholastico. [8] Feito o signal da cruz. [9] O non-descriptum de trapo e cordagens que o gallego põe no cachaço quando carrega o pau e corda. VIII. O Casquilho. (JANOTA) FÁBULA. Quem de Ovidio os contos leu Certo inda tem na memoria A mais curiosa historia Que elle em seus contos metteu: --De como Jove indignado C’uma nação de velhacos, Para os não fazer em cacos Os converteu em macacos. Vendo-se assim humilhado, Veio o povo castigado, De contricto coração A pedir perdão Ao deus que fulmina o raio e o trovão. Fazendo caretas, ganindo e guinchando Lhe vinham bradando Em mona e bugia: --‘Restaura-nos, ó padre soberano, O antigo vulto humano Co’a perdida razão.’ O Tonnante, a quem passado Era o primeiro furor, Dos bugios ao clamor Prestou ouvido apiedado; Mas do macaco requerimento Não despachou senão ametade, E o resto a deidade Mandou dispersar nas azas do vento. Mal o acceno omnipotente Troou na celeste abobeda, A monaria contente Se ergueu altiva, impavida; Toda se impavesou E repimpou; E como gente A andar por esse mundo se deitou. O pêllo esfarripado. Que as cabeças télli lhes ouriçava, Em lindos caracoes se debruçava Agora pelo rosto transmudado. Não mudou por dentro o caco, Que ficou sempre macaco; E a cara por fóra Tambem não mudou muito do que fôra. Os mesmos focinhos, As mesmas caretas, E os parvos risinhos E as fofas e as tretas. Assim meio mudados, meio não, Lhes fez o padre Jove um bom sermão, E lhes mandou tomar Aopé da raça humana o seu logar. O homem com desprêzo o bicho olhou, Nem siquer nome para dar-lhe achou; Mas a mulher gostou Da tal farofia de apparente brilho, E á _coisa_ pôz o nome de--CASQUILHO. Londres--1829. IX. OS AMANTES GENEROSOS. CONTO. A. J. LARCHER. Pois os mimosos sons da branda musa Do tam gentil Bernard, na patria lyra Queres ouvir suave modulados, E em luso trajo disputar-se um beijo De Tempe os generosos amadores, As cordas ferirei por comprazer-te, Cortar-lhe-hei galas dos pastores nossos: Na lingua de Camões, se posso tanto, Virão aqui a suspirar d’amores; E os echos d’estes valles mais sinceros Te dirão suas fallas namoradas. Tu, que es meio francez, meio germano, Que á meiga Deshouliers canções tam finas, Que a Gesner mais singelo ouviste o canto Na propria avena de seus tons cantado, Se os teus pastores nas ribeiras nossas, N’estas suaves margens do Mondego Vires diff’rentes, demudada a graça, E alternando sem arte a cantilena Que em seu patrio idioma foi tam bella, A ti só, que o quizeste, imputa o êrro, Nem acoimes á lingua tam formosa O desprimor e as faltas do poeta. Juncto aos valles de Tempe, amena estancia, Mansão querida de Pomona e Flora, O joven Hylas, Égle inda mais joven, Ambos loucos d’amor, o amor se occultam. A um terno olhar suas fallas se limitam, Sua chamma constrangida não se exhala: O innocente pastor fallar não ousa, Nem, que fallasse, a simples o intendêra. Mas tarde ou cedo, se o desejo a inflamma, Amestram a innocencia amor e a edade. Tirou-os d’este nada em que jaziam O acaso um dia. Á sombra da espessura, Tam bella, ou mais que amor, Égle dormia, Hylas a incontra, e os olhos namorados Para admirá-la não lhe bastam ambos. --‘Vénus’ exclama ‘eu tibio em teu serviço Ouso implorar-te: dá-me que estes labios, Em quanto aqui na relva Égle descança, Possam nos seus colhêr suave beijo. E eu te juro, ó divina Cytherea, Que em trôco lhe darei dois mansos pombos Muito mais lindos que os que tens em Chypre.’ O voto fez-se; o beijo foi colhido: Fingido somno approveitou á bella, E, á noite o preço recebeu do voto. Veio outro dia, e Égle a dormir sempre... Mas não dorme o pastor:--‘Deus dos amores, Ves alli quanto adoro n’este mundo. Ah, de tanta belleza, tantas graças Consente que uma só eu gose ao menos. Se eu podesse--sem que Égle o presentisse, Sob o lenço invejoso ir co’a mão trémula Tocar n’aquelles candidos thesoiros, Dar-lhe-hia pelo roubo--tam secreto! O cordeirinho que entre os meus mais quero. Oh! adormece, amor, Égle formosa!’ O mais profundo somno Hylas incontra. Viu, tocou, apalpou, beijou cem vezes O seio d’Égle, que retem manhosa Até o respirar, e a somno sôlto Mais dormia... quanto elle mais velava. Custou-lhe no outro dia a vir ao bosque, Timida ainda e vergonhosa a bella; Mas veio emfim... Foi só curiosidade, Tinha curiosidade--era o que tinha-- De saber que presente aquelle dia Lhe faria o pastor; veio. Após ella Hylas veio também:--‘Eternos deuses, Aqui a incontro! Oh concedei-me agora Um último favor, que nos seus braços Eu gose emfim dos seus incantos todos. Ah! vós bem o sabeis: eu nada tenho, Mais nada ja do que o meu cão--e dou-lh’o.’ Oh que pesado somno Égle dormia! E é bem de crer que o instante em que o mancebo No extasi do prazer fechára os olhos, Os lindos olhos d’Égle não se abriram. Mas o sonho acabou... e despertaram. O pastor imbrenhou-se na espessura E o cãosinho fiel ficou co’a bella. Incontraram-se á tarde, invergonhados... A pastora corou, elle suspira... Sós se achavam, sem medo, sem receios... Ao amante acordada Égle se intrega, Acha mais doce não dormir agora, E toda a imbriaguez do amor conhece: Quantos dons do pastor Égle recebe, Com dulcissima usura os restitue. Mas as antigas dadivas pesavam Á pastora gentil:--‘Sei que te devo Duas pombinhas que uma vez me déste. E se me ellas fugirem! vivo sempre N’este receio! Toma-as lá, e o preço Que por ellas te dei também m’o torna.’ Surriu-se o joven, e pagou-as... ambas. Um momento depois o cordeirinho Á pastora lembrou:--‘Tanto te quero, E heide-te privar do que mais amas? Tam bonito! era a tua companhia, Comia-te nas mãos! Nada, não quero: Recebe-o, que t’o dou.’ E o cordeirinho Foi restituido.--O cão só lhe restava: Novas razões, e emfim ordem por fôrça De acceitar outra vez o seu rafeiro: --‘Não tens mais que um, é o guarda do rebanho, Recebe-o, doce amante, e ainda emcima, De fóraparte te heide dar um beijo. Eu não quero mais dadivas, querido; Com o teu coração estou contente.’ Oh! taes dons para dar custaram pouco. Mas o preço da intrega era dobrado... O pastor affroixou, negocio serio Veio porfim a ser o tal brinquedo. Aopé de Égle acordada Hylas dormia... E ella, que mais pretextos ja não tinha, A suspirar dizia tristemente: --‘Não me dar elle todo o seu rebanho!’ Coimbra--1821. SONETOS. I. PORFIA D’AMOR. D’emtorno á arvorezinha que murchára Se affadiga o cultor esperançoso; Invisca as varas caçador teimoso Armando ao passarinho que escapára; Porfiado rompe com a dextra avara As intranhas da terra o cubiçoso; Sua co’a bomba o nauta pressuroso Por estancar a nau que lhe arrombára. Mas larga cadaqual desesperado, Quebra furioso o inutil instrumento Se o continuo trabalho ve baldado. Só eu, com desinganos cento e cento, Só eu, por Délia sempre desprezado, Teimo cadavez mais no meu tormento. Angra--1814. II. CAMÕES NÁUFRAGO. Cedendo á furia de Neptuno irado Sossobra a nau que o gran’thesoiro incerra; Lucta co’a morte na espumosa serra O divino cantor do Gama ousado. Ai do canto mimoso a Lysia dado!... Camões, grande Camões, embalde a terra Teu braço forte, nadador afferra Se o canto lá ficou no mar salgado. Chorae, Lusos, chorae! Tu morre, ó Gama, Foi-se a tua glória... Não; lá vai rompendo Co’a dextra o mar, na sestra a lusa fama. Eterno, eterno ficará vivendo: E a torpe inveja, que inda agora brama, No abysmo cahirá do Averno horrendo. Angra--1815. III. A UMA FEIA COM LINDA VOZ. Quando Orpheu pela espôsa suspirada Desceu co’a maga lyra ao reino escuro, Incantado Plutão ferrenho e duro De júbilo exultou na atroz morada. --‘Furias,’ clamou ‘e turba condemnada, Quero tudo a cantar; do mais não curo. Ralhe Jove ou não ralhe, eu voto e juro Que não heide ouvir mais ésta assoada.’ Eis impunhando o açoite crepitante Rege Megera o condemnado côro, Cantando em doce voz pura e tocante. Ah! quando te oiço, ó N--y, o som canoro, E arrebatado attento em teu semblante, Um milagre d’Orpheu no Averno adoro. Lisboa--1816. IV. ‘SUFFOQUE AS ÍRAS, CALLE E SINTA E GEMA’ Se d’uns olhos gentis, d’um gesto brando, D’um surrir desdenhoso innamorado, Imprega o triste amante o seu cuidado Em quem das leis d’amor se vai zombando; De tormento em tormento variando, Té o proprio queixume lhe é vedado: Ri-se a bella do mal que lhe ha causado, Dos ferros mofa que lhe vai forjando. Pene emtanto o infeliz, suspire ao vento, Té de que o saiba a perfida se tema, Não lhe assome no labio um só lamento; E ao som da ferrea, da cruel algema, Martyr de seu inutil soffrimento ‘Suffoque as íras, calle e sinta e gema.’ Porto--1817. V. ‘É DOS OLHOS GENTIS DA MINHA AMADA.’ Um prodigio d’incantos, de belleza Es, ó mãe dos ternissimos amores, Que, em teus labios, seus aureos passadores Hervam, seguros de acertar a prêza. Fulge em teus olhos divinaes accesa A tocha dos desejos seductores; Em ti de seus esmeros, seus primores, O thesoiro esgotou a natureza. Mas oh, por mais que arte divina estude, Não te dá da innocencia a flor nevada Que se não finge, nem fingida illude! Esse dom virginal que tanto agrada É só mimo da candida virtude, ‘É dos olhos gentis da minha amada.’ Porto--1817. VI. ‘NAS FROIXAS, DEBEIS AZAS DA SAUDADE.’ Esses muros que amor, razão despreza, Que ergueu do fanatismo a voz trovosa, Deixa, ó Nise gentil, deixa-os, vaidosa De escutares a voz da natureza. Crê no teu coração; não é fraqueza Fugir aos males para ser ditosa: Ja nos meus braços a ventura anciosa Espera, com amor, tua belleza. Vem, não oiças conselhos fementidos, Ouve amor, a razão, a liberdade, E a virtude e o prazer verás unidos. Farás minha cabal felicidade, Nem teus votos verás sempre perdidos ‘Nas froixas, debeis azas da saudade.’ Porto--1817. VII. O CAMPO DE SANCT’ANNA. Longe, hypocritas vis, longe, impostores, O mentido apparato religioso! Que um deus d’amor, o nosso Deus piedoso Abomina, detesta esses horrores. De atrozes leis cruentos guardadores, Vós curvais ante o despota orgulhoso, E o sangue da patria precioso Torpemente vendeis por seus favores. Geme sem proctetor a humanidade: E vós, juizes, vós, tigres humanos, A immolais sem remorso e sem piedade. Ah! tremei, sanguinarios deshumanos; Que ella hade vir, tremei, a Liberdade Punir despotas, bonzos e tyrannos. Coimbra--1817. VIII. ‘VIRTUDE SEM PRAZER NÃO É VIRTUDE’ Deixa, eu t’o rogo, deixa, Annalia minha, Duros preceitos de moral sombria; Fingiu-os a traidora hypocrisia Que detrás d’elles, a zombar, se aninha. Leis de tartufos, invenção danninha Que protege a impostura e o vício cria, O egoismo as dictou, funesta harpia Que as horas do gosar nos amesquinha. A mão da natureza, a mão sublime O gran’sêllo forjou na eterna incude Com que o signal de falsas lhes imprime. O coração m’o diz, que não illude: Crime sem dor, Annalia, não é crime, ‘Virtude sem prazer não é virtude.’ Coimbra--1818. IX. A FLOR SÊCCA. Vai, flor gentil, vai prenda suspirada, Doce mimo d’amor terno e fagueiro, Vai, que elle mesmo grato e prazenteiro Elle te hade levar á minha amada. Cumpre a que ella te impoz, que é lei sagrada: Se mudada te achar, sem côr, sem cheiro, Se o viço, a gala do verdor primeiro Em tuas pallidas folhas vir crestada, Diz-lhe que mais que a ti, mais me queimára O intenso ardor d’aquella saudade Que a ambos n’este estado nos deixára. Oh! se um benigno influxo de piedade De seus formosos olhos te orvalhára... Qual de nós ambos reviver não hade? Porto--1819. X. A CERTA TRAGEDIA. Mil parabens á musa portugueza Que do padre José fulgiu na penna! Cai a velha Melpomene da scena, Foi-se a tragedia grega e a franceza. Sóphocles pôz-se a dar voltas d’Andreza, Euripedes está de quarentena, Corneille indoudeceu de inveja e pena, Crebillon foi queimar o Atreu e a mesa; Racine professou nos Mariannos, Voltaire está a leites de jumenta, Alfieri vai fazer sonetos de annos. Victorioso o padre a Branca ostenta: Só por vencer lhe restam dois maganos... Mas temiveis rivaes--Paiva e Pimenta. Coimbra--1819. XI. MARIA E CAROLINA. Que hade brindar á amavel Carolina Pelos seus annos a gentil Maria? Tam franca de seus dons, ao dar-lhe o dia, Não deixou que outorgar-lhe a mão divina. Qual de ambas póde haver offerta dina De quantas liberal natura cria? Que gera o loiro sol ou que allumia Que encha os desejos d’alma peregrina? A amigas taes, ao par que me innamora Ja não tem que lhes dar a humanidade, Por mais que seus thesoiros aprimora. Amor, divino amor, doce amizade, Numes do coração, valei-me agora: Dae-lhes, pois deuses sois, a eternidade. Porto--1819. XII. SAUDADE. Seculos são, na vida que infastia, Estes dias de exilio amargurados; Um por um, mágoa a mágoa, vão contados Em lenta e cruellissima agonia. Oh! roubemos-lhe aomenos este dia, Ao padecer que todos trás roubados; Sejam pela amizade consagrados Ao casto amor instantes de alegria. Tem prazeres tambem a desventura: A propria carrancuda adversidade Surri co’a esp’rança que lhe luz futura. Vem, amigo, no seio da amizade Festeja a espôsa, sonha co’a ventura Que um dia hade mattar tanta saudade. Londres--1828. ULTIMOS VERSOS. FOLHAS CAHIDAS. DOS EDITORES. Cumpre-se a promessa feita no primeiro volume d’esta collecção reunindo aqui, em segunda edição muito augmentada e correcta, as FOLHAS CAHIDAS. Apezar de estarem no prelo desde 1851, o auctor tinha descuidado na primeira edição o seu habitual escrupulo de rever e corrigir; e não teve paciencia para as augmentar com muitas peças que agora vão, e que então não estavam postas a limpo. Trabalhos mais serios o distrahiram durante os dois annos que levaram a imprimir tam poucas paginas. Julgou-se agora melhor dividir em dois livros o que, assim augmentado, ficaria demaziado para um só. Maio--1853. ADVERTENCIA.[10] Antes que venha o hynverno e disperse ao vento essas folhas de poesia que por ahi cahiram, vamos escolher uma ou outra que valha a pena conservar, ainda que não seja senão para memoria. A outros versos chamei eu ja as últimas recordações de minha vida poetica. Inganei o público, mas de boa fe, porque me inganei primeiro a mim. Protestos de poetas que sempre estão a dizer adeus ao mundo, e morrem abraçados com o louro--ás vezes imaginario, porque ninguem os coroa. Eu pouco mais tinha de vinte annos quando publiquei certo poema, e jurei que eram os ultimos versos que fazia. Que juramentos! Se dos meus se rirem, teem razão; mas saibam que eu tambem primeiro me ri d’elles. Poeta na primavera, no estio e no outomno da vida, heide sê-lo no hynverno se lá chegar, e heide sê-lo em tudo. Mas d’antes cuidava que não, e n’isso ia o êrro. Os cantos que formam ésta pequena collecção pertencem todos a uma epocha de vida íntima e recolhida que nada tem com as minhas outras collecções. Essas mais ou menos mostram o poeta que canta deante do público. Das FOLHAS CAHIDAS ninguem tal dirá, ou bem pouco intende de stylos e modos de cantar. Não sei se são bons ou maus estes versos; sei que gósto mais d’elles do que de nenhuns outros que fizesse. Porque? É impossivel dizê-lo, mas é verdade. E como nada são por elle nem para elle, é provavel que o público sinta bem diversamente do auctor. Que importa? Apezar de sempre se dizer e escrever ha cem mil annos o contrário, parece-me que o melhor e mais recto juiz que póde ter um escriptor, é elle proprio, quando o não cega o amor proprio. E eu sei que tenho os olhos abertos, aomenos agora. Custa-lhe a uma pessoa, como custava ao Tasso, e ainda sem ser Tasso, a queimar os seus versos, que são seus filhos; mas o sentimento paterno não impede de ver os defeitos das crianças. Emfim, eu não queimo estes. Consagrei-os _ignoto deo_. E o deus que os inspirou que os anniquille se quizer: não me julgo com direito de o fazer eu. Ainda assim, no _ignoto deo_ não imaginem alguma divindade meia-velada com cendal transparente, que o devoto está morrendo que lhe caia paraque todos a vejam bem clara. O meu deus desconhecido é realmente aquelle mysterioso, occulto e não-definido sentimento d’alma que a leva ás aspirações de uma felicidade ideal, o sonho de oiro do poeta. Imaginação que porventura se não realisa nunca. E d’ahi quem sabe? A culpa é talvez da palavra, que é abstracta demais. Saude, riqueza, miseria, pobreza, e ainda coisas mais materiaes, como o frio e o calor, não são senão estados comparativos, approximativos. Ao infinito não se chega, porque deixava de o ser em se chegando a elle. Logo o poeta é louco, porque aspira sempre ao impossivel. Não sei. Essa é uma disputação mais longa. Mas sei que as presentes FOLHAS CAHIDAS representam o estado d’alma do poeta nas variadas, incertas e vacillantes oscillações do espirito que, tendendo ao seu fim unico, a posse do IDEAL, ora pensa tê-lo alcançado, ora estar a ponto de chegar a elle--ora ri amargamente porque reconhece o seu ingano--ora se desespera de raiva impotente por sua credulidade van. Deixae-o passar, gente do mundo, devotos do podêr, da riqueza, do mando, ou da glória. Elle não intende bem d’isso, e vós não intendeis nada d’elle. Deixae-o passar, porque elle vai onde vós não ides; vai, ainda que zombeis d’elle, que o callunieis, que o assacineis. Vai, porque é espirito, e vós sois materia. E vós morrereis, elle não. Ou só morrerá d’elle aquillo em que se pareceu e se uniu convosco. E essa falta que é a mesma de Adam, tambem será punida com a morte. Mas não triumpheis, porque a morte não passa do corpo, que é tudo em vós, e nada ou quasi nada no poeta. Janeiro--1853. NOTAS DE RODAPÉ: [10] Do auctor na primeira edição. FOLHAS CAHIDAS. LIVRO PRIMEIRO. I. IGNOTO DEO D. D. D. Creio em ti, Deus: a fe viva De minha alma a ti se eleva. Es:--o que es não sei. Deriva Meu ser do teu: luz... e treva, Em que--indistinctas!--se involve Este espirito agitado, De ti vem, a ti devolve. O Nada, a que foi roubado Pelo sôpro creador Tudo o mais, o hade tragar. Só vive de eterno ardor O que está sempre a aspirar Ao infinito d’onde veio. Belleza es tu, luz es tu, Verdade es tu só. Não creio Senão em ti; o ôlho nu Do homem não ve na terra Mais que a dúvida a incerteza, A fórma que ingana e erra. Essencia! a real belleza, O puro amor--o prazer Que não fatiga e não gasta... Só por ti os póde ver O que inspirado se affasta, Ignoto Deus, das ronceiras, Vulgares turbas: despidos Das coisas vans e grosseiras Sua alma, razão, sentidos, A ti se dão, em ti vida, E por ti vida teem. Eu, consagrado A teu altar, me prostro e a combatida Existencia aqui ponho, aqui votado Fica este livro--confissão sincera Da alma que a ti voou e em ti só spera. II. ADEUS! Adeus! para sempre adeus! Vai-te, oh! vai-te, que n’esta hora Sinto a justiça dos ceus Esmagar-me a alma que chora. Chóro porque não te amei, Chóro o amor que me tiveste; O que eu perco, bem n’o sei, Mas tu... tu nada perdeste: Que este mau coração meu Nos secretos escaninhos Tem venenos tam damninhos Que o seu podêr só sei eu. Oh! vai... para sempre adeus! Vai, que ha justiça nos ceus. Sinto gerar na peçonha Do ulcerado coração Essa vibora medonha Que por seu fatal condão Hade rasgá-lo ao nascer: Hade sim, serás vingada, E o meu castigo hade ser Ciume de ver-te amada, Remorso de te perder. Vai-te, oh! vai-te, longe, embora, Que sou eu capaz agora De te amar.--Ai! se eu te amasse! Vê se no arido pragal D’este peito se ateasse De amor o incendio fatal! Mais negro e feio no inferno Não chammeja o fogo eterno. Que sim? Que antes isso?--Ai, triste! Não sabes o que pediste. Não te bastou supportar O cepo-rei; impaciente Tu ousas a deus tentar Pedindo-lhe o rei-serpente! E cuidas amar-me ainda? Inganas-te: é morta, é finda, Dissipada é a illusão. Do meigo azul de teus olhos Tanta lagryma verteste, Tanto esse orvalho celeste Derramado o viste em vão N’esta seara de abrolhos, Que a fonte seccou. Agora Amarás... sim hasde amar, Amar deves... Muito embora... Oh! mas n’outro hasde sonhar Os sonhos de oiro incantados Que o mundo chamou amores. E eu réprobo... eu se o verei? Se em meus olhos incovados Der a luz de teus ardores... Se com ella cegarei? Se o nada d’essas mentiras Me entrar pelo vão da vida... Se, ao ver que feliz deliras, Tambem eu sonhar... Perdida, Perdida serás--perdida. Oh! vai-te, vai, longe, embora! Que te lembre sempre e agora Que não te amei nunca... ai! não; E que pude a sangue frio, Covarde, infame, villão, Gosar-te--mentir sem brio, Sem alma, sem dó, sem pejo, Commettendo em cada bejo Um crime... Ai! triste, não chores, Não chores, anjo do ceu, Que o deshonrado sou eu. Perdoar-me tu?... Não mereço. A immundo cerdo voraz Essas perolas de preço Não as deites: é capaz De as desprezar na torpeza De sua bruta natureza. Irada, te hade admirar, Despeitosa, respeitar, Mas indulgente... Oh! o perdão É perdido no villão, Que de ti hade zombar. Vai, vai... para sempre adeus! Para sempre aos olhos meus Sumido seja o clarão De tua divina estrêlla. Faltam-me olhos e razão Para a ver, para intendê-la: Alta está no firmamento Demais, e demais é bella Para o baixo pensamento Com que em má hora a fitei; Falso e vil o incantamento Com que a luz lhe fascinei. Que volte a sua belleza Do azul do ceu á pureza, E que a mim me deixe aqui Nas trevas em que nasci, Trevas negras, densas, feias, Como é negro este aleijão D’onde me vem sangue ás veias, Este que foi coração, Este que amar-te não sabe Porque é só terra--e não cabe N’elle uma idea dos ceus... Oh! vai, vai; deixa-me, adeus! III. QUANDO EU SONHAVA. Quando eu sonhava, era assim Que nos meus sonhos a via; E era assim que me fugia, Apenas eu despertava, Essa imagem fugidia Que nunca pude alcançar. Agora que estou desperto, Agora a vejo fixar... Paraquê?--Quando era vaga, Uma idea, um pensamento, Um raio de estrêlla incerto No immenso firmamento, Uma chymera, um vão sonho, Eu sonhava--mas vivia: Prazer não sabia o que era, Mas dor, não n’a conhecia... ............................. IV. AQUELLA NOITE! Era a noite da loucura, Da seducção, do prazer, Que em sua mantilha escura Costuma tanta ventura, Tantas glórias esconder. Os felizes... e ai! são tantos!... --Eu por tantos os contava! Eu que o signal de meus prantos Do afflicto rosto lavava-- Os felizes presumpçosos Iam nos coches ruidosos Correndo aos salões doirados De mil fogos alumiados, D’onde em torrentes sahia A clamorosa harmonia Que á festa, ao prazer tangia. Eu sentia esse ruido Como o confuso bramar De um mar ao longe movido Que á praia vem rebentar: E disse commigo:--‘Vamos, Os luctos d’alma dispamos, Á festa heide ir tambem eu!’ E fui: e a noite era bella. Mas não vi a minha estrêlla Que eu sempre via no ceu: Cubriu-a de espesso véo Alguma nuvem a ella, Ou era que ja vendado Me levava o negro fado Onde a vida me perdeu? Fui; meu rosto macerado, A funda melancholia Que todo o meu ser revia, Qual o atahude levado A egypcio festim, dizia: --‘Como vós fui eu tambem; Folgae, que a morte ahi vem!’ Dizia-o, sim, meu semblante, Que, onde eu chegava, o prazer Cessava no mesmo instante; E o labio, que ia a dizer Doçuras de amor, gelava; E o riso, que ia a nascer Na face linda, expirava. Era eu--e a morte em mim, Que só ella espanta assim! Quantas mulheres tam bellas Ebrias de amor e desejos, Quantas vi saltar-lhe os bejos Da bôcca ardente e lasciva! E eu, que ia chegar-me a ellas... Para logo a fronte esquiva De recatos se involvia E, toda pudor, tremia. Quantas o seio anhelante, Nu, ardente e palpitante Andavam como intregando Á cubiça mal-desperta, Gasta ja e desdenhosa, Dos que as estavam mirando Com vaga luneta incerta Que diz:--‘Aquella é formosa, Não se me dava de a ter. E esta? É só baroneza, Vale menos que a duqueza: Não sei a qual attender.’ E a isto chamam prazer! A grande ventura é ésta? Vale a pena vir á festa E vale a pena viver. Como então quiz á tristura Do meu viver isolado! Fique-se embora a ventura, Que eu quero ser desgraçado. Levantei alto a cabeça. Senti-me crescer--e a frente Desanuviar-se contente Do feio negrume espesso Que assustava aquella gente. Logo os surrisos cabiam Para o meu lado tambem: Ja como um dos seus me viam, Que em mim não viam ninguem. Eu, de olhos desincantados, A ellas, como as eu via! Meus enthusiasmos passados. Oh! como eu d’elles me ria! Frio o sarcasmo sahia De meus labios descorados, E sem dó e sem pudor A todas fallei de amor... Do amor bruto, degradante Que no seio palpitante, Na espadua nua se accende... Amor lascivo que offende, Que faz corar... Ellas riam E oh que não, não se offendiam! Mas a orchestra bradou alta: --‘Festa, festa! e salta, salta!’ Os seus guizos delirantes Sacode louca a Folia... Adeus, requebros de amantes! Suspiros, quem n’os ouvia? As palavras meias dittas, Meias nos olhos escrittas, Voavam todas perdidas Dispersas, rotas no ar; Que se foram almas, vidas, Tudo se foi a walsar. Quem é ésta que mais voltas Gyra, gyra sem cessar? Como as roupas leves, sôltas, Aerias leva a ondular Emtôrno á fórma graciosa, Tam flexivel, tam airosa, Tam fina!--Agora parou, E tranquilla se assentou. Que rosto! Em linhas severas Se lhe desenha o profil; E a cabeça, tam gentil, Como se fôra devéras A rainha d’essa gente, Como a levanta insolente! Vive Deus! que é ella... aquella, A que eu vi na tal janella, E que triste me surria Quando passando me via Tam pasmado a olhar para ella. A mesma melancholia Nos olhos tristes--de luz Oblíqua, viva mas fria; A mesma alta intelligencia Que da face lhe transluz; E a mesma altiva impaciencia Que de tudo, tudo cança, De tudo o que foi, que é, E na erma vida só vê O raio da vaga espr’ança. --‘Pois isto sim que é mulher’ Disse eu--‘e aqui ha que ver.’ Ja vinha a pallida aurora Annunciando a manhan fria, E eu fallava e eu ouvia O que até áquella hora Nunca disse, nunca ouvi... Toda a memoria perdi Das palavras proferidas... Não eram d’estas sabidas, Nem quaes eram não n’o sei... Sei que a vida era outra em mim, Que era outro ser o meu ser, Que uma alma nova me achei Que eu bem sabia não ter. E d’ahi?--D’ahi, a historia Não deixou outra memoria D’essa noite de loucura, De seducção, de prazer... Que os segredos da ventura Não são para se dizer. V. O ANJO CAHIDO. Era um anjo de Deus Que se perdêra dos ceus E terra a terra voava. A setta que lhe acertava Partira de arco traidor, Porque as pennas que levava Não eram pennas de amor. O anjo cahiu ferido, E se viu aos pés rendido Do tyranno caçador. De aza morta e sem splendor O triste, peregrinando Por estes valles de dor, Andou gemendo e chorando. Vi-o eu, o anjo dos ceus, O abandonado de Deus. Vi-o, n’essa tropelia Que o mundo chama alegria. Vi-o a taça do prazer Pôr ao labio que tremia... E só lagrymas beber. Ninguem mais na terra o via, Era eu só que o conhecia... Eu que ja não posso amar! Quem n’o havia de salvar? Eu, que n’uma sepultura Me fôra vivo interrar? Loucura! ai, cega loucura! Mas entre os anjos dos ceus Faltava um anjo ao seu Deus; E remi-lo e resgatá-lo, D’aquella infamia salvá-lo Só fôrça de amor podia. Quem d’esse amor hade amá-lo, Se ninguem o conhecia? Eu só.--E eu morto, eu descrido, Eu tive o arrôjo atrevido De amar um anjo sem luz. Cravei-a eu n’essa cruz Minha alma que renascia, Que toda em sua alma puz. E o meu ser se dividia, Porque elle outra alma não tinha, Outra alma senão a minha... Tarde, ai! tarde o conheci, Porque eu o meu ser perdi, E elle á vida não volveu... Mas da morte que eu morri Tambem o infeliz morreu. VI. O ALBUM. Minha Julia, um conselho de amigo; Deixa em branco este livro gentil: Uma só das memorias da vida Vale a pena guardar, entre mil. E essa n’alma em silencio gravada Pelas mãos do mysterio hade ser; Que não tem lingua humana palavras, Não tem lettra que a possa escrever. Por mais bello e variado que seja De uma vida o tecido matiz, Um só fio da tella bordada, Um só fio hade ser o feliz. Tudo o mais é illusão, é mentira, Brilho falso que um tempo seduz, Que se apaga, que morre, que é nada Quando o sol verdadeiro reluz. De que serve guardar monumentos Dos inganos que a espr’ança forjou? Vãos reflexos de um sol que tardava Ou vans sombras de um sol que passou! Crê-me, Julia: mil vezes na vida Eu co’a minha ventura sonhei; E uma só, d’entre tantas, o juro, Uma só com verdade a incontrei. Essa entrou-me pela alma tam firme, Tam segura por dentro a fechou, Que o passado fugiu da memoria, Do porvir nem desejo ficou. Toma pois, Julia bella, o conselho; Deixa em branco este livro gentil, Que as memorias da vida são nada, E uma só se conserva entre mil. VII. SAUDADES Leva este ramo, Pepita, De saudades portuguezas; É flor nossa, e tam bonita Não n’a ha n’outras devezas. Seu perfume não seduz, Não tem variado matiz, Vive á sombra, foge á luz, As glórias d’amor não diz; Mas na modesta belleza De sua melancholia É tam suave a tristeza, Inspira tal sympathia!.. E tem um dote ésta flor Que de outra egual se não diz: Não perde viço ou frescor Quando a tiram da raiz. Antes mais e mais floresce Com tudo o que as outras matta; Até ás vezes mais cresce Na terra que é mais ingrata. Só tem um cruel senão, Que te não devo esconder: Plantada no coração, Toda outra flor faz morrer. E, se o quebra e despedaça Com as raizes mofinas, Mais ella tem brilho e graça, É como a flor das ruinas. Não, Pepita, não t’a dou... Fiz mal em dar-te essa flor, Que eu sei o que me custou Trattá-la com tanto amor. VIII. ESTE INFERNO DE AMAR. Este inferno de amar--como eu amo! Quem m’o pôs aqui n’alma... quem foi? Ésta chamma que alenta e consome, Que é a vida--e que a vida destroi-- Como é que se veio a atear, Quando--ai quando se hade ella apagar? Eu não sei, não me lembra: o passado, A outra vida que d’antes vivi Era um sonho talvez...--foi um sonho-- Em que paz tam serena a dormi! Oh! que doce era aquelle sonhar... Quem me veio, ai de mim! despertar? Só me lembra que um dia formoso Eu passei... dava o sol tanta luz! E os meus olhos, que vagos gyravam, Em seus olhos ardentes os puz. Que fez ella? eu que fiz?--Não n’o sei; Mas n’essa hora a viver comecei... IX. DESTINO. Quem disse á estrêlla o caminho Que ella hade seguir no ceu? A fabricar o seu ninho Como é que a ave apprendeu? Quem diz á planta:--‘Florece!’ E ao mudo verme que tece Sua mortalha de seda Os fios quem lh’os inreda? Insinou alguem á abelha Que no prado anda a zumbir Se á flor branca ou se á vermelha O seu mel hade ir pedir? Que eras tu meu ser, querida, Teus olhos a minha vida, Teu amor todo o meu bem... Ai! não m’o disse ninguem. Como a abelha corre ao prado, Como no ceo gyra a estrêlla, Como a todo o ente o seu fado Por instincto se revella, Eu no teu seio divino Vim cumprir o meu destino... Vim, que em ti só sei viver, Só por ti posso morrer. X. GÔSO E DOR. Se estou contente, querida, Com ésta immensa ternura De que me enche o teu amor? --Não. Ai! não; falta-me a vida, Succumbe-me a alma á ventura: O excesso do gôso é dor. Doe-me alma, sim; e a tristeza Vaga, inerte e sem motivo, No coração me poisou. Absorto em tua belleza, Não sei se morro ou se vivo, Porque a vida me parou. É que não ha ser bastante Para este gosar sem fim Que me inunda o coração. Tremo d’elle, e delirante Sinto que se exhaure em mim Ou a vida--ou a razão. XI. PERFUME DA ROSA. Quem bebe, rosa, o perfume Que de teu seio respira? Um anjo, um sylpho? Ou que nume Com esse aroma delira? Qual é o deus que, namorado, De seu throno te ajoelha, E esse nectar incantado Bebe occulto, humilde abelha? --Ninguem?--Mentiste: essa frente Em languidez inclinada, Quem t’a pôs assim pendente? Dize, rosa namorada. E a côr de purpura viva Como assim te desmaiou? E essa pallidez lasciva Nas folhas quem t’a pintou? Os espinhos que tam duros Tinhas na rama lustrosa, Com que magos esconjuros T’os desarmaram, ó rosa? E porquê, na hástea sentida Tremes tanto ao pôr do sol? Porque escutas tam rendida O canto do rouxinol? Que eu não ouvi um suspiro Sussurrar-te na folhagem? Nas aguas d’esse retiro Não espreitei a tua imagem? Não a vi afflicta, anciada... --Era de prazer ou dor?-- Mentiste, rosa, es amada. E também tu amas, flor. Mas ai! se não for um nume O que em teu seio delira, Hade mattá-lo o perfume Que n’esse aroma respira. XII. ROSA SEM ESPINHOS. Para todos tens carinhos, A ninguem mostras rigor! Que rosa es tu sem espinhos? Ai, que não te intendo, flor! Se a borbuleta vaidosa A desdem te vai beijar, O mais que lhe fazes, rosa, É surrir e é corar. E quando a sonsa da abelha, Tam modesta em seu zumbir, Te diz:--‘Ó rosa vermelha, Bem me pódes acudir: Deixa do caliz divino Uma gotta só libar... Deixa, é nectar peregrino, Mel que eu não sei fabricar...’ Tu de lástima rendida, De malditta compaixão, Tu á súpplica atrevida Sabes tu dizer que não? Tanta lástima e carinhos, Tanto dó, nenhum rigor! Es rosa e não tens espinhos! Ai! que não te intendo, flor. XIII. ROSA PALLIDA. Rosa pallida, em meu seio Vem, querida, sem receio Esconder a afflicta côr. Ai! a minha pobre rosa! Cuida que é menos formosa Porque desbotou de amor. Pois sim... quando livre, ao vento, Sôlta de alma e pensamento, Forte de tua isempção, Tinhas na folha incendida O sangue, o calor e a vida Que ora tens no coração. Mas não eras, não, mais bella. Coitada, coitada d’ella, A minha rosa gentil! Coravam-n’a então desejos, Desmaiam-n’a agora os bejos... Vales mais mil vezes, mil. Inveja das outras flores! Inveja de quê, amores? Tu, que vieste dos ceus, Comparar tua belleza Ás filhas da natureza! Rosa, não tentes a Deus. E vergonha!... de quê, vida? Vergonha de ser querida, Vergonha de ser feliz! Porquê?... porquê em teu semblante A pallida côr da amante A minha ventura diz? Pois quando eras tam vermelha Não vinha zangão e abelha Emtôrno de ti zumbir? Não ouvias entre as flores Historias dos mil amores Que não tinhas, repetir? Que hãode elles dizer agora? Que pendente e de quem chora É o teu languido olhar? Que a tez fina e delicada Foi, de ser muito bejada, Que te veio a desbotar? Deixa-os: pallida ou corada, Ou isempta ou namorada, Que brilhe no prado flor. Que fulja no ceo estrêlla, Ainda é ditosa e bella Se lhe dão só um amor. Ai! deixa-os, e no meu seio Vem, querida, sem receio Vem a frente reclinar. Que pallida estás, que linda! Oh! quanto mais te amo ainda Des que te fiz desbotar. XIV. FLOR DE VENTURA. A flor de ventura Que amor me intregou, Tam bella e tam pura Jamais a creou: Não brota na selva De inculto vigor, Não cresce entre a relva De virgem frescor; Jardins de cultura Não póde habitar A flor de ventura Que amor me quiz dar. Semente é divina Que veio dos ceus; Só n’alma germina Ao sôpro de Deus. Tam alva e mimosa Não ha outra flor; Uns longes de rosa Lhe avivam a côr; E o aroma... Ai! delirio Suave e sem fim! É a rosa, é o lirio. É o nardo, o jasmim; É um philtro que apura, Que exalta o viver, E em doce tortura Faz de âncias morrer. Ai! morrer... que sorte Bemditta de amor! Que me leve a morte Bejando-te, flor. XV. BELLA D’AMOR. Pois essa luz scintillante Que brilha no teu semblante D’onde lhe vem o splendor? Não sentes no peito a chamma Que aos meus suspiros se inflamma E toda reluz de amor? Pois a celeste fragancia Que te sentes exhalar, Pois, dize, a ingenua elegancia Com que te ves ondular, Como se baloiça a flor Na primavera em verdor. Dize, dize: a natureza Póde dar tal gentileza? Quem t’a deu senão amor? Vê-te a esse espelho, querida, Ai! vê-te por tua vida, E diz se ha no ceo estrêlla, Diz-me se ha no prado flor Que Deus fizesse tam bella Como te faz meu amor. XVI. OS CINCO SENTIDOS. São bellas--bem o sei, essas estrêllas, Mil côres--divinaes têem essas flores; Mas eu não tenho, amor, olhos para ellas: Em toda a natureza Não vejo outra belleza Senão a ti--a ti! Divina--ai! sim, será a voz que affina Saudosa--na ramagem densa, umbrosa. Será; mas eu do rouxinol que trina Não oiço a mellodia, Nem sinto outra harmonia Senão a ti--a ti! Respira--n’aura que entre as flores gyra, Celeste--incenso de perfume agreste. Sei... não sinto: minha alma não aspira, Não percebe, não toma Senão o doce aroma Que vem de ti--de ti! Formosos--são os pomos saborosos, É um mimo--de nectar o racimo: E eu tenho fome e sêde... sequiosos, Famintos meus desejos Estão... mas é de bejos, E so de ti--de ti! Macia--deve a relva luzidia Do leito--ser porcerto em que me deito. Mas quem, ao pé de ti, quem poderia Sentir outras carícias, Tocar n’outras delicias Senão em ti--em ti! A ti! ai, a ti só os meus sentidos Todos n’um confundidos, Sentem, ouvem, respiram; Em ti, por ti deliram. Em ti a minha sorte, A minha vida em ti; E quando venha a morte, Será morrer por ti. XVII. ROSA E LIRIO. A rosa É formosa; Bem sei. Porque lhe chamam--flor D’amor, Não sei. A flor, Bem de amor É o lirio; Tem mel no aroma,--dor Na côr O lirio. Se o cheiro É fagueiro Na rosa, Se é de belleza... mor Primor A rosa, No lirio O martyrio Que é meu Pintado vejo:--côr E ardor É o meu. A rosa É formosa, Bem sei... E será de outros flor D’amor... Não sei. XVIII. COQUETTE DOS PRADOS. Coquette dos prados, A rosa é uma flor Que inspira e não sente O incanto d’amor. De purpura a vestem Os raios do sol; Suspiram por ella Ais do rouxinol: E as galas que traja Não as agradece, E o amor que accende Não o reconhece. Coquette dos prados Rosa, linda flor, Porquê, se o não sentes, Inspiras amor? XIX. CASCAES Acabava alli a terra Nos derradeiros rochedos, A deserta arida serra Por entre os negros penedos Só deixa viver mesquinho Triste pinheiro maninho. E os ventos despregados Sopravam rijos na rama, E os ceos turvos, annuviados, O mar que incessante brama... Tudo alli era braveza De selvagem natureza. Ahi, na quebra do monte, Entre uns juncos mal-medrados, Sêcco o rio, sêcca a fonte, Hervas e matos queimados, Ahi n’essa bruta serra, Ahi foi um ceo na terra. Alli sós no mundo, sós, Sancto Deus! como vivemos! Como eramos tudo nós E de nada mais soubemos! Como nos folgava a vida De tudo o mais esquecida! Que longos bejos sem fim, Que fallar dos olhos mudo! Como ella vivia em mim, Como eu tinha n’ella tudo, Minha alma em sua razão Meu sangue em seu coração! Os anjos aquelles dias Contaram na eternidade: Que essas horas fugidias, Seculos na intensidade, Por millenios marca Deus Quando as dá aos que são seus. Ai! sim foi a tragos largos, Longos, fundos que a bebi Do prazer a taça:--amargos Depois... depois os senti Os travos que ella deixou... Mas como eu ninguem gosou. Ninguem: que é preciso amar Como eu amei--ser amado Como eu fui; dar, e tomar Do outro ser a quem se ha dado, Toda a razão, toda a vida Que em nós se annulla perdida. Ai, ai! que pesados annos Tardios depois vieram! Oh, que fataes desinganos, Ramo a ramo, a desfizeram A minha choça na serra, Lá onde se acaba a terra! Se o visse... não quero vê-lo Aquelle sítio incantado; Certo estou não conhecê-lo, Tam outro estará mudado, Mudado como eu, como ella, Que a vejo sem conhecê-la! Inda alli acaba a terra, Mas ja o ceo não começa: Que aquella visão da serra Sumiu-se na treva espessa, E deixou nua a bruteza D’essa agreste natureza. XX. ESTES SITIOS! Olha bem estes sitios queridos, Vê-os bem n’este olhar derradeiro... Ai! o negro dos montes erguidos, Ai! o verde do triste pinheiro! Que saudades que d’elles teremos... Que saudade! ai, amor, que saudade! Pois não sentes, n’este ar que bebêmos, No acre cheiro da agreste ramagem, Estar-se alma a tragar liberdade E a crescer de innocencia e vigor! Oh! aqui, aqui só se ingrinalda Da pureza da rosa selvagem, E contente aqui só vive Amor. O ar queimado das salas lhe escalda De suas azas o niveo candor, E na frente arrugada lhe cresta A innocencia infantil do pudor. E oh! deixar taes delicias como ésta! E trocar este ceo de ventura Pelo inferno da escrava cidade! Vender alma e razão á impostura, Ir saudar a mentira em sua côrte, Ajoelhar em seu throno á vaidade, Ter de rir nas angústias da morte, Chamar vida ao terror da verdade... Ai! não, não... nossa vida acabou, Nossa vida aqui toda ficou. Diz-lhe a adeus n’este olhar derradeiro, Dize á sombra dos montes erguidos, Dize-o ao verde do triste pinheiro, Dize-o a todos os sitios queridos D’esta ruda, feroz soledade, Paraizo onde livres vivemos... Oh! saudades que d’elle teremos, Que saudade! ai, amor, que saudade! XXI. NÃO TE AMO. Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma. E eu n’alma--tenho a calma, A calma--do jazigo. Ai! não te amo, não. Não te amo, quero-te: o amor é vida. E a vida--nem sentida A trago eu ja commigo. Ai, não te amo, não! Ai! não te amo, não; e só te quero De um querer bruto e fero Que o sangue me devora, Não chega ao coração. Não te amo. Es bella; e eu não te amo, ó bella. Quem ama a aziaga estrêlla Que lhe luz na má hora Da sua perdição? E quero-te, e não te amo, que é forçado, De mau feitiço azado Este indigno furor. Mas oh! não te amo, não. E infame sou, porque te quero; e tanto Que de mim tenho espanto, De ti medo e terror... Mas amar!... não te amo, não. XXII. NÃO ES TU. Era assim, tinha esse olhar, A mesma graça, o mesmo ar, Corava da mesma côr, Aquella visão que eu vi Quando eu sonhava de amor, Quando em sonhos me perdi. Toda assim; o porte altivo, O semblante pensativo, E uma suave tristeza Que por toda ella descia Como um veo que lhe involvia, Que lhe adoçava a belleza. Era assim; o seu fallar, Ingenuo e quasi vulgar, Tinha o podêr da razão Que penetra, não seduz: Não era fogo, era luz Que mandava ao coração. Nos olhos tinha esse lume, No seio o mesmo perfume, Um cheiro a rosas celestes, Rosas brancas, puras, finas, Viçosas como boninas, Singelas sem ser agrestes. Mas não es tu... ai! não es: Toda a illusão se desfez. Não es aquella que eu vi, Não es a mesma visão, Que essa tinha coração, Tinha, que eu bem lh’o senti. XXIII BELLEZA. Vem do amor a Belleza, Como a luz vem da chamma. É lei da natureza: Queres ser bella?--ama. Fórmas de incantar, Na tella o pincel As póde pintar; No bronze o buril As sabe gravar; E estátua gentil Fazer o cinzel Da pedra mais dura... Mas Belleza é isso?--Não; só formosura. Surrindo entre dores Ao filho que adora Inda antes de o ver, --Qual surri a aurora Chorando nas flores Que estão por nascer-- A mãe é a mais bella das obras de Deus, Se ella ama!--O mais puro do fogo dos ceus Lhe ateia essa chamma de luz crystallina: É a luz divina Que nunca mudou, É luz... é a Belleza Em toda a pureza Que Deus a creou. XXIV. ANJO ES. Anjo es tu, que esse podêr Jamais o teve mulher, Jamais o hade ter em mim. Anjo es, que me domina Teu ser o meu ser sem fim; Minha razão insolente Ao teu capricho se inclina, E minha alma forte, ardente, Que nenhum jugo respeita, Covardemente sujeita Anda humilde a teu podêr. Anjo es tu, não es mulher. Anjo es. Mas que anjo es tu? Em tua frente annuviada Não vejo a c’roa nevada Das alvas rosas do ceo. Em teu seio ardente e nu Não vejo ondear o veo Com que o soffrego pudor Vela os mysterios d’amor. Teus olhos têem negra a côr, Côr de noite sem estrêlla; A chamma é vivaz e é bella, Mas luz não tem.--Que anjo es tu? Em nome de quem vieste? Paz ou guerra me trouxeste De Jehovah ou Belsebú? Não respondes--e em teus braços Com phreneticos abraços Me tens apertado, estreito!... Isto que me cai no peito Que foi?... Lagryma?--Escaldou-me... Queima, abraza, ulcéra... Dou-me, Dou-me a ti, anjo malditto, Que este ardor que me devora É ja fogo de precito, Fogo eterno, que em má hora Trouxeste de lá... De donde? Em que mysterios se esconde Teu fatal, estranho ser! Anjo es tu ou es mulher? XXV. VIBORA. Como a vibora gerado, No coração se formou Este amor amaldiçoado Que á nascença o espedaçou. Para elle nascer morri; E em meu cadaver nutrido, Foi a vida que eu perdi A vida que tem vivido. FOLHAS CAHIDAS. LIVRO SEGUNDO. I. BARCA BELLA. Pescador da barca bella, Onde vas pescar com ella, Que é tam bella, Oh pescador? Não ves que a última estrêlla No ceo nublado se vela? Colhe a vela, Oh pescador! Deita o lanço com cautella, Que a sereia canta bella... Mas cautella, Oh pescador! Não se inrede a rede n’ella, Que perdido é remo e vela Só de vê-la, Oh pescador. Pescador da barca bella, Inda é tempo, foge d’ella, Foge d’ella Oh pescador! II. A COROA. Bem sei que é toda de flores Essa coroa d’amores Que na frente vais cingir. Mas é coroa--é reinado; E a pôsto mais arriscado Não se póde hoje subir. N’esses reinos populosos Os vassallos revoltosos Tarde ou cedo dão a lei. Quem hade conter, domá-los, Se são tantos os vassallos E um só o pobre do rei? Não vejo, rainha bella, Para fugir essa estrella Que os reis persegue sem dó, Mais que um meio--fallo serio: É pôr limites ao imperio E ter um vassallo só. III. SINA. Por todas quantas estrêllas Tem o ceo que possam mais, Pelas flores virginaes De que se c’roam donzellas, Pelas lagrymas singellas Que o primeiro amor derrama, Por aquella etherea chamma Que a mão de Deus accendeu E que na terra allumia Quanto ha na terra do ceu! Por tudo quanto eu queria Quando eu sabia querer, E por tudo quanto eu cria Quando me era dado crer! Bem fadada seja a vida Que por éstas folhas brancas[11] Sua historia hade escrever! Que as dores lhe venham mancas E com azas o prazer! Ésta sina que lhe dou, Bruxa não n’a adivinhou, Nem duende m’a insinou: Li-a eu por meu condão Em seus olhos innocentes, Transparentes--transparentes Até dentro ao coração. NOTAS DE RODAPÉ: [11] As folhas do album em que se escreveram estes versos. IV. AI HELENA! Ai Helena! de amante e de espôso Ja o nome te faz suspirar, Ja tua alma singela presente Esse fogo de amor delicioso Que primeiro nos faz palpitar!... Oh! não vas, donzellinha innocente, Não te vas a esse ingano intregar: É amor que te illude e te mente, É amor que te hade mattar! Quando o sol n’estes montes desertos Deixa a luz derradeira apagar, Com as trevas da noite que espanta Véem os anjos do inferno incubertos A sua victima incauta affagar. Doce é a voz que adormece e quebranta, Mas a mão do traidor... faz gelar. Treme, foge do amor que te incanta, É amor que te hade mattar. V. THE ROSE--A SIGH.[12] If this delicious, grateful flower, Which blows but for a little hour, Should to the sight so lovely be, As from it’s fragrance seems to me, A sigh must then it’s colour show, For that is the softest joy I know. And sure the rose is like a sigh, Borne just to soothe and then--to die. NOTAS DE RODAPÉ: [12] By a young lady born blind. V. A ROSA--UM SUSPIRO[13] Se ésta flor tam bella e pura, Que apenas uma hora dura, Tem pintado no matiz O que o seu perfume diz, Porcerto na linda côr Mostra um suspiro d’amor: Dos que eu chego a conhecer É este o maior prazer. E a rosa como um suspiro Hade ser; bem se discorre: Tem na vida o mesmo gyro, É um gôsto que nasce e--morre. NOTAS DE RODAPÉ: [13] Por uma menina cega de nascença. VI. RETRATTO. (N’UM ALBUM) Ah! despreza o meu retratto Que lhe eu queria aqui pôr! Tem medo que lhe desfeie O seu livro de primor? Pois saiba que por despique Eu sei tambem ser pintor: Co’esta penna por pincel, E a tinta do meu tinteiro, Vou fazer o seu retratto Aqui ja de corpo inteiro. Vamos a isto.--Sentada Na cadeira ‘moyen-âge,’ O cabello en ‘chatellaines,’ As mangas sôltas.--É o traje. Em longas pregas negras Caia o velludo e arraste; De si com desdem regio Com o pésinho o affaste... N’essa attitude! Está bem: Agora mais um geitinho; A airosa cabeça a um lado E o lindo pé no banquinho. Aqui estão os contornos, são estes, Nem Daguerre lh’os tira melhor. Este é o ar, ésta a ‘pose,’ eu lh’o juro, E o trajar que lhe fica melhor. Vamos agora ao difficil: Tirar feição por feição; Intendê-las, que é o ponto, E dar-lhe a justa expressão. Os olhos são côr da noite, Da noite em seu começar, Quando inda é joven, incerta, E o dia vem de acabar; Têem uma luz que vai longe, Que faz gôsto de queimar: É uma especie de lume Que serve só de abrazar. Na bôcca há um surriso amavel. Amavel é... mas queria Saber se é todo bondade Ou se meio é zombaria. Ninguem m’o diz? O retratto Incompleto ficará, Que n’estas duas feições Todo o ser, toda a alma está. Pois fiel como um espelho É tudo o que n’elle fiz; E o que lhe falta--que é muito, Tambem o espelho o não diz. VII. LUCINDA. Ergue a frente, lirio, Ergue a branca frente! O astro do delirio Ja surgiu no oriente. Ves, o sol ardente Lá cahiu no mar; A frente pendente Ergue a respirar! Alvo é o luar, Teu alvor não cresta; A hora de gosar, De viver é ésta. Longa foi a sésta Longo o teu dormir; Ergue a branca testa, Tempo é de surgir! Ja se abre a surrir Tua bôcca linda... Despertar, sentir Ou sonhar é ainda? Sonho que não finda Será o teu sonhar, Se a dormir, Lucinda, Te sentes amar. VIII. AS DUAS ROSAS. Sôbre se era mais formosa A vermelha ou branca rosa, Ardeu seculos a guerra Em Inglaterra. Paz entre as duas, jamais! Reinar ambas as rivais, Tambem não; e uma ceder Como hade ser? Faltei eu lá na Inglaterra Para acabar com a guerra. Ei-las aqui bem eguaes, Mas não rivaes. Atei-as em laço estreito: Que artista fui, com que geito! E oh! que lindas são, que amores As minhas flores! Dirão que é cópia;--bem sei: Que todo inteiro o roubei Meu pensamento brilhante Do teu semblante... Será. Mas se é tam bello Que lhe deem esse modello, Do meu quadro, na verdade, Tenho vaidade. IX. VOZ E AROMA. A brisa vaga no prado, Perfume nem voz não tem; Quem canta é o ramo agitado, O aroma é da flor que vem. A mim, tornem-me essas flores Que uma a uma eu vi murchar, Restituam-me os verdores Aos ramos que eu vi seccar... E em torrentes de harmonia Minha alma se exhalará, Ésta alma que muda e fria Nem sabe se existe ja. X. SEUS OLHOS. Seus olhos--se eu sei pintar O que os meus olhos cegou-- Não tinham luz de brilhar, Era chamma de queimar; E o fogo que a ateou Vivaz, eterno, divino, Como o facho do Destino. Divino, eterno!--e suave Ao mesmo tempo: mas grave E de tam fatal podêr, Que, um só momento que a vi, Queimar toda alma senti... Nem ficou mais de meu ser, Senão a cinza em que ardi. XI. A DÉLIA. Cuidas tu que a rosa chora, Que é tammanha a sua dor, Quando, ja passada a aurora, O sol, ardente de amor, Com seus bejos a devora? --Feche virgineo pudor O que inda é botão agora E ámanhan hade ser flor; Mas ella é rosa n’esta hora. Rosa no aroma e na côr. --Para ámanhan o prazer Deixe o que ámanhan viver. Hoje, Délia, é nossa a vida; Ámanhan... o que hade ser? A hora de amor perdida Quem sabe se hade volver? Não desperdices, querida, A duvidar e a soffrer O que é mal gasto da vida Quando o não gasta o prazer. XII. A JOVEN AMERICANA. Donde é que te eu vi, donzella, E o que eras tu n’esta vida Quando não tinhas vestida A fórma de virgem bella Que ora te vejo trajar? Estrêlla foste no ceo, Serias no prado flor? Ou, no diaphano splendor De que Iris faz o seu veo, Estavas, Silpha, a bordar? Não houve poeta ainda Que te não visse e cantasse, Mulher que não te invejasse, Nem pintor que a face linda Te não fôsse copiar. Seculos tens.--E ah!... ja sei Quem es, quem foste e hasde ser: Bem te eu estava a conhecer Quando primeiro te olhei Sem te podêr estranhar. Com Deus e co’a Liberdade De nossas terras fugiste Quando perdidos nos viste, E te foste á soledade Do novo-mundo acoitar. Pois que ora piedosa vens E nos sentes resurgir, Oh! não tornes a fugir, Que melhor patria não tens Nem que mais te saiba amar. Teu natal celebraremos Hoje e sempre: teus amigos Somos na lealdade antigos, E no ardor novos seremos, No desvéllo em te adorar: Porque tu es o Ideal Da só belleza--do Bem; Não es estranha a ninguem, E de ti só foge o mal Que te não póde incarar. XIII. ADEUS, MÃE! --‘Adeus, mãe! adeus, querida, Que eu ja não posso co’a vida, E os anjos chamam por mim. Adeus, mãe, adeus!... Assim, Juncta os teus labios aos meus, E recebe o último adeus N’este suspiro... Não chores, Não chores: aquellas dores Ja sinto accalmar em mim. Adeus, mãe, adeus!... Assim, Juncta os teus labios aos meus... Um bejo--um último... Adeus!’ E o corpo desanimado No collo da mãe cahia; E ella o corpo... só pesado, Só mais pesado o sentia! Não se lamenta, não chora, E quasi a surrir, dizia: --‘Que tem este filho agora, Que tanto pésa? Não posso...’ E uma a uma, osso por osso, Com a mão trémula tenta As mãosinhas descarnadas, As faces cavas, myrradas, A testa inda morna e lenta. --‘Que febre, que febre!’ diz; E em tudo pensa a infeliz, Tudo que ha mau lhe occorreu, Tudo--menos que morreu. Como nos gelos do norte O somno traidor da morte Ingana o desfallecido Que imagina adormecer, Assim cançado, esvahido De tam longo padecer, Ja não ha no coração Da mãe fôrça de sentir; Não tem ja lume a razão Senão só para a illudir. Acorda, ó mãe desgraçada, Que é tempo de despertar! Anda ver a eça armada, As luzes que ardem no altar. Ouves? É a rouca toada Dos padres a psalmear?... Vamos, que a hora é chegada, É tempo de o amortalhar. E os anjos cantavam: ‘Alleluia!’ E os sanctos clamavam: ‘Hosanna!’ Ao triste cantar da terra Responde o cantar do ceu; Todos lhe bradam:--‘morreu!’ E a todos o ouvido cerra. E os sinos a tocar, E os padres a rezar, E ella ainda a accalentar Nos braços o filho morto, Que ja não tem mais confôrto, Mais socêgo n’este mundo Que o jazigo humido e fundo Onde hade ir a sepultar. Levae, ó anjos de Deus, Levae essa dor aos ceus. Com a alma do innocente Aos pés do Juiz Clemente Ahi fique a sancta dor Rogando á Eterna Bondade Que extenda a immensa piedade A quantos peccam d’amor. XIV. AVE, MARIA! Maria, doce mãe dos desvalidos, A ti clamo, a ti brado! A ti sobem, senhora, os meus gemidos, A ti o hymno sagrado Do coração de um pae voa, ó Maria, Pela filha innocente. Com sua debil voz que balbucia, Piedosa mãe clemente, Ella ja sabe, erguendo as mãos tenrinhas, Pedir ao Pae dos ceos O pão de cada dia. As preces minhas Como irão ao meu Deus, Ao meu Deus que é teu filho e tens nos braços, Se tu, mãe de piedade, Me não tomas por teu? Oh! rompe os laços Da velha humanidade; Despe de mim todo outro pensamento E van tenção da terra; Outra glória, outro amor, outro contento De minha alma desterra. Mãe, oh! mãe, salva o filho que te implora Pela filha querida. Demais tenho vivido, e só agora Sei o preço da vida, D’esta vida, tam mal gasta e prezada Porque minha só era... Salva-a, que a um sancto amor está votada, N’elle se regenera. XV. OS EXILADOS. Á SENHORA ROSSI-CACCIA.[14] Elles tristes, das praias do destêrro, Os olhos longos e arrazados de agua Estendem para aqui... Cravado o ferro Da saudade têem n’alma; e é negra mágua A que lhes ralla os corações afflictos, É a maior da vida--são proscrittos. Dor como outra não ha, é a dor que os matta! Dizer eu: ‘Essa terra é minha... minha, Que nasci n’ella, que a servi, a ingrata! Que lhe dei... dei por ella quanto tinha, Sangue, vida, saude, os bens da sorte... E ella, por galardão, me intrega á morte!’ Morte lenta e cruel--a de Ugolino![15] Bem lhes quizeram dar... Mas não será assim: sôpro divino De bondade e nobreza Não o póde apagar Nos corações da gente portugueza Esse rancor de fera Que em almas negras, negro e vil impera. Tu, genio da Harmonia, Tu sólta a voz em que triumpha a glória, Com que suspira amor! Bella d’enthusiasmo e de fervor, Ergue-te, ó Rossi, tua voz nos guia: A tua voz divina Hoje um echo immortal deixa na historia. Inda no mar d’Egina Soa o hymno d’Alceu; E atravessaram seculos Os cantos de Tyrtheu. Mais poderosa e válida A tua voz será; A tua voz etherea, Tua voz não morrerá. Nós no templo da patria pendurâmos Ésta c’roa singela Que de myrtho e de rosas intrançâmos Para essa fronte bella: Aqui, de voto, ficará pendente, E um culto de saudade Aqui, perennemente, Lhe daremos no altar da Liberdade. NOTAS DE RODAPÉ: [14] Cantando em um baile de subscripção que se deu em Lisboa em 29 de Março de 1845 a favor dos que n’esse anno estavam emigrados por fugir ás perseguições do Govêrno. [15] Foi morto á fome com os filhos. XVI. PREITO. É lei do tempo, Senhora, Que ninguem domine agora E todos queiram reinar. Quanto vale n’esta hora Um vassallo bem sujeito, Leal de homenage e preito E facil de governar? Pois o tal sou eu, Senhora: E aqui juro e firmo agora Que a um despotico reinar Me rendo todo n’esta hora, Que a liberdade sujeito... Não a reis!--outro é meu preito: Anjos me hãode governar. XVII. NO LUMIAR. Era um dia de Abril; a primavera Mostrava apenas seu virgineo seio Entre a folhagem tenra; não vencêra, De todo, o sol o mysterioso inleio Da nevoa rara e fina que extendêra A manhan sôbre as flores; o gorgeio Das aves inda timido e infantil... Era um dia de Abril. E nós iamos lentos passeiando De vergel em vergel, no descuidado Socêgo d’alma que se está lembrando Das luctas do passado, Das vagas incertezas do porvir. E eu não cançava de admirar, de ouvir, Porque era grande, um grande homem devéras Aquelle duque--alli maior ainda, Alli no seu Lumiar, entre as sinceras Bellezas d’esse parque, entre essas flores, A qual mais bella e de mais longe vinda Esmaltar de mil côres Bosque, jardim, e as relvas tam mimosas, Tam suaves ao pé--muito ha cançado De pisar alcatifas ambiciosas, De tropeçar no perigoso estrado Das vaidades da terra. E o velho duque, o velho homem d’Estado, Ao fallar d’essa guerra Distante--e das paixões da humanidade, Surria malicioso D’aquelle surrir fino sem maldade, Que tam seu era, que, entre desdenhoso E benevolo, a quanto lhe sahia Dos labios dava um cunho de nobreza, De razão superior. E então como elle a amava e lhe queria A ésta pobre terra portugueza! Velha tinha a razão, velha a experiencia, Joven só esse amor. Tam joven, que inda cria, inda esperava, Inda tinha a fe viva da innocencia!... Eu, na fôrça da vida, Tristemente de mim me invergonhava. --Passeavamos assim, e em reflectida Meditação tranquilla descuidados Iamos sós, ja sem fallar, descendo Por entre os velhos olmos tam copados, Quando sentimos para nós crescendo Rumor de vozes finas que zumbia Como enxame de abelhas entre as flores, E vimos, qual Diana entre os menores Astros do ceo, a fórma que se erguia. Sôbre todas gentil, d’essa extrangeira Que se esperava alli. Perfeita, inteira No velho amavel renasceu a vida E a graça facil. Cuidei ver o antigo O nobre Portugal que resurgia No venerado amigo; E na formosa dama que surria, O genio da subida, Rara e fina elegancia que a nobreza, O gòsto, o amor do Bello, o instincto da Arte Reune e faz irmãos em toda a parte; Que affere a grandeza Pela medida só dos pensamentos, Do stylo de viver, dos sentimentos, Tudo o mais como futil desprezando. Pensei que a saudar o velho illustre Em seus ultimos dias E a despedir-se, até Deus sabe quando, De nossas praias tristes e sombrias, Vinha esse genio... Tristes e sombrias, Que o sol lhe foge, lhe esmorece o lustre, E onde tudo o que é alto vai baixando... O triste, o que não tem ja sol que o aqueça Sou eu talvez--que, á míngua de fe, sinto O cerebro gelar-me na cabeça Porque no coração o fogo é extincto. Elle não era assim, Ou, sabía fingir melhor do que eu! --Como o nobre corcel que invelheceu Nas guerras, ao sentir o aureo telim E as armas sôbre o dorso descarnado, Remoça o garbo, em juvenil meneio Franja de espuma o freio, E honra os brazões da casa em que foi nado. Nunca me hade esquecer aquelle dia! Nem os olhos, as fallas, e a sincera Admiração da bella dama ingleza Por tudo quanto via; O fructo, a flor, o aroma, o sol que os gera, E ésta vivaz, vehemente natureza, Toda de fogo e luz, Que ama incessante, que de amar não cança, E continua produz Nos fructos o prazer, na flor a esp’rança. Alli as nações todas se junctaram, Alli as várias línguas se fallaram; A Europa convidada Veio ao festim--não ao festim, ao preito. Vassallagem rendida foi prestada Ao talento, á belleza, A quanto n’alma infunde amor, respeito, Porque é devéras grande:--que a grandeza Os homens não a dão; Põe-na por sua mão N’aquelles que são seus, Nos que escolheu--só Deus. Oh! minha pobre terra, que saudades D’aquelle dia! Como se me aperta O coração no peito co’as vaidades, Co’as miserias que ahi vejo andar álerta, Á sôlta, appregoando-se! Na intriga, Na traição, na calúmnia é forte a liga, É fraca em tudo o mais... Tu, socegado Descança no sepulchro; e cerra, cerra Bem os olhos, amigo venerado, Não vejas o que vai por nossa terra. Eu fecho os meus, para trazer mais viva Na memoria a tua imagem E a dessa bella Ingleza que se esquiva De nós entre a folhagem Dos bosques de Parthenope. Cançado, Fito n’esta miragem Os olhos d’alma, em quanto que arrastado, Vai o tardio pé Por este que inda é, Que cedo não será, bem cedo--em mal! O velho Portugal.[16] NOTAS DE RODAPÉ: [16] Estes versos foram inspirados pela visita da celebrada Mrs. Northon á quinta do Lumiar, onde o fallecido duque de Palmella reuniu, para a festejar, alguns poucos amigos escolhidos. Foi nos ultimos tempos de sua vida. Mrs. Northon reside actualmente em Napoles, a Parthenope de que falla o texto. XVIII. A UM AMIGO. Fiel ao costume antigo, Trago ao meu joven amigo Versos proprios d’este dia. E que de os ver tam singelos, Tam simples como eu, não ria Qualquer os fara mais bellos, Ninguem tam d’alma os faria. Que sôbre a flor de seus annos Soprem tarde os desinganos; Que emtôrno os bafeje amor, Amor da espôsa querida, Prolongando a doce vida Fructo que succeda á flor. Recebo este voto, amigo, Que eu, fiel ao uso antigo, Quiz trazer-te n’este dia Em poucos versos singelos, Qualquer os fara mais bellos, Ninguem tam d’alma os faria. XIX. OS LUSIADAS. EPILOGO DE PAGGI. I. Co’a doce voz o cysne lusitano Assim as proprias feras abrandava; Mas nem o Tejo, de seu canto ufano, Nem as ingratas Tagides tocava: De seu impio destino deshumano Nunca as íras fataes, nunca domava; Nem achou entre os seus humanidade Quem moveria as pedras á piedade. II. Ingrata patria, o ingenho sublimado Digno de um capitolio em Roma antiga, Tu não o ergueste d’esse baixo estado Em que só por tua glória se affadiga! O ingenho que te inveja mallogrado Toda a nação de meritos amiga, Tu na vida em miserias o deixaste, E em leito vil á fome o assacinaste! III. Vai! Sua glória é mais hoje a maravilha Das gentes, porque mais o perseguiste; Morre o teu nome quando o seu mais brilha, Despojam delle a tua lingua triste; Iberia o adoptou, França o perfilha, Britannia o quer; e agora eterno existe, Que n’um e n’outro italico idioma Entre os seus vates o colloca Roma. IV. Tu fica-te c’os ossos deshonrados Que te accusam de ingrata ao ceo e á terra; Seu spirito, esse vai onde prezados São virtude e talento, e onde ímpia guerra Stulto o podêr não faz aos mais honrados: Mais de outros ja que teu, ja não se incerra N’um canto do orbe sua altiva fama, Que Augusto a ampara e um Alexandre a acclama V. Lá onde surge de alto monte, e brilha Sôbre a escolhida grey de Deus a estrêlla, E egual áquella antiga maravilha Que os reis guiou a Deus, sôbre os reis véla, Lá onde ao merito o podêr se humilha, Beja a paz da justiça a face bella, E de illustre carvalho á sombra amena Descança Roma no velar de Siena,[18] VI. Lá vai, minha obra, e d’esta luz roubada Tu leva á patria musa esses primores; Em falla ignota estava sepultada, Raios de extranho sol são seus fulgores. Vai, viverás: tambem com luz furtada Deu vida Prometheu. Se mais não fores, Serás reflexo de belleza, lustre, E de eterno splendor émula illustre.[19] XIX. LA LUSIADA. EPILOGO DI PAGGI.[17] I. Cotal cantava il lusitano cigno Molcendo con sue voce anco le fere, Non che l’amato patrio Tago e’l Migno, E le del canto suo Tagide altere: Che pur del suo destino empio e maligno Non puote unqua addolcir l’ire severe; Non trovando fra suoi humanitade Quei ch’i scelsi avria mossi anco a pietade. II. Potesti, ingrata patria, un spirto degno D’un campidoglio in una Roma antica, Non sollevar da basso stato, indegno Di cui fiè per te gloria ogni fatica? Un spirto che t’invidia al maggior segno Ogni altra nazion di mer’ti amica, Veder soffristi vivo egro e scontento Ed in vil letto di disagio spento! III. Ma vanne pur che, quanto iniqua, austera Fusti com lui, tanto fra l’altre genti Sorgerá la sua gloria ove tua pera, Fino a caciarne i tuoi nativi accenti. Adotteranlo la nazione ibera, La franca, use adottar spirti eminenti, L’angla; ed ambe le italiche favelle Vorran che viva fra suoi poeti anch’elle. IV. Tienti pur l’ossa inonorate ancora Che t’accusan d’ingrata anco sepulte; Che lo spirto di lui, gia di te fuora Non errará, ne fien sue pene inulte; Vedrailo accolto ove virtu s’onora: Gia piu d’altri che tuo, fra le piu culte Genti del orbe, e maturar sua speme Sotto un Augusto e un Alessandro insieme V. La ve ad illuminar da eccelso monte Astro di Dio, l’eletta gregia, sorge, Che al par di quel che ad inchinar la fronte Condussi i regi a Dio, i regi scorge, La dove il merto abbatte sforzi ed onte, La giustizia à la pace il labro porge, E di quercia Feretria à l’ombre amena Riposa Roma al vigilar di Siena. VI. Or la vanne, opra, ed à le patrie muse, Quasi terzo cristal le luci rendi Che sotto ignoto dir sepolte e chiuse Da sol che altrove splende or furi e prendi. Vanne, e qual gia Prometteo anima infuse Con le luci non sue, tu vita attendi: Spechio del altrui bello, emulo industre E d’eterno splendor riflesso illustre. NOTAS DE RODAPÉ: [17] Paggi esteve muitos annos em Lisboa, e aqui publicou duas edições da sua traducção dos LUSIADAS, que, se não tem o valor poetico da de Nervi, nem a fidelidade da de Briccolani, é todavia muito apreciavel. Este _epilogo_ foi tirado da seg. edic. de 1659--que é a mais correcta, conservando-se-lhe a propria orthographia. [18] Cidade do gran’-ducado de Toscana, patria do papa Alexandre VII, a quem a versão dos Lusiadas foi dedicada. [19] Publicando-se a primeira vez ésta traducção dos versos de Paggi no 2.º num. do vol. II do jornal, a SEMANA, appareceu com uma introducção, da qual julgâmos dever extractar alguns paragraphos: ‘Um nome illustre e portuguez, germanado pela inspiração e pelas tradicções patrias com a glória de Camões, associa-se hoje á nobre desaffronta que um estrangeiro soube, ha seculo e meio, escrever no fim dos _Lusiadas_ em honra das esquecidas cinzas de Camões. O estrangeiro foi Carlos Antonio Paggi, que na sua traducção italiana dos _Lusiadas_ accrescentou, como epilogo, seis formosas strophes em honra do poeta que a patria, ou antes a côrte do seu tempo, votára á humiliação e á indigencia. O nome glorioso na historia contemporanea das nossas lettras, é o de Almeida Garrett, que em bellissimos versos portuguezes trasladou a elegia melancolica com que o italiano Paggi apostrophou a indifferença, ou o desprêzo que foram em vida de Camões a tença mais avultada que os poderosos lhe destinaram no seu livro de mercês. ‘Quem gravou mais estes versos na loisa de Camões, quem lhe refrescou as cinzas com mais esta saudade, foi o poeta, que resume no seu nome, como n’um traço conciso, toda uma regeneração litteraria, o poeta que marca no stadio das lettras um repoiso ameno depois do servilismo, ou da inanição da poesia nacional; o mesmo que celebrou Camões em versos ungidos de sentimento e de saudade íntima; aquelle que interrogou os portuguezes sobre o logar onde jaziam os ossos do maior genio da nossa terra; foi o proprio que em Portugal, onde só a opulencia tem monumentos, e a nullidade estátuas, levantou o mais clamoroso brado a favor daquella pobre ossada, perdida, profanada, pisada talvez sacrilegamente pelos filhos degenerados d’uma patria invilecida; foi aquelle mesmo que rematou tambem um dos seus mais graciosos e sentidos poemas, com ésta apostrophe, temerosa e solemne, ja tantas vezes citada por nacionaes e extrangeiros: Onde jaz, portuguezes, o moimento Que do immortal cantor as cinzas guarda? Homenagem tardia lhe pagastes No sepulchro siquer? Raça d’ingratos! XX. O TEJO. AO SENHOR VISCONDE DE ALMEIDA-GARRETT. PELO CONDE DE CAMBURZANO. N’essas margens risonhas do Tejo Não ha som que não cante de amor; Em suas ondas azues o lampejo Das estrêllas, no albor, se espelhou. XX. IL TAGO. AL SIGNOR VISCONTE DE ALMEIDA-GARRETT. DAL CONTE DI CAMBURZANO. Sule sponde ridenti del Tago Dice ogni eco canzone d’amore; In que’ flutti d’azzuro sì vago Ogni stella al mattin si spechiò. Essa terra produz a violeta Ao primeiro surrir da manhan, Vago Zephyro a flor indiscreta, Sussurrando, lascivo beijou. É loquaz este bosque sombrio, Cheio ainda do canto dos bardos; Aqui é Tempe, aqui o Menalo frio, E o Meandro que os cysnes produz. Oiço uns echos de magica lyra Pela noite ir ao longo da praia... Quem é esse tam fero que ahi gyra E do dia desdenha da luz? É Catão,[20]--só a este não doma Quem a terra fez muda a seu mando; É Catão--a infamia de Roma Na sua frente jamais não pesou. Quella terra produce la viola Al primiero dell’ alba sorriso, Zefiretto che lene trasvola Susurrando quel fiore baciò. Son loquaci le brune foreste, Piene ancora del canto de’ bardi; Quivi è Tempe, quì Menalo agreste, E’l Meandro che i cigni nutrì. Odo un suono di magica lira Lungo il lido sull’ umida sera... Chi è colui che sì fiero s’aggira E disdegna la luce del di? Egli é Cato[21], lui solo non doma Chi la terra fè muta á suoi cenni; Egli é Cato, l’infamia di Roma Sul suo capo giammai non pesò. Como geme alva pomba ferida, Assim Merope[22] geme e lamenta; Soam trompas guerreira alarida, E a alegria ao seu peito voltou. Nas cumiadas de Herminio[23] nevosas, Que dos horridos gelos se c’roam, Ve a aurora coberta de rosas De belleza em que pompa surgiu! Na hástea debil as tenras florinhas Vão o puro rocio bebendo, Cada gotta do ceo, nas hervinhas, Ricca perola ardente luziu. Mas o Genio do monte, que horrendo Entre as sombras impera da noite, Bate as azas, ja foge e fremendo No profundo do mar mergulhou. Come gemon le bianche colombe, Cosi Merope[24] piange e lamenta; Ma improviso squillare di trombe Alta gioja in suo cuore versò. Su le cime d’Erminio[25] nevose, Cui fan gl’orridi ghiacci corona, Ve’ l’aurora cosparsa di rose Qual fa pompa di rara beltà! I fioretti sul gracile stelo Van bevendo la pura rugiada, Ogni stilla caduta dal cielo Fra l’erbette una perla si fa. Ma lo Spirto del monte, che orrendo Tiene impero fra l’ombre di notte, Bate l’ali, gia fugge e fremendo Nel profondo dei mari piombó. Repentino lá surge um guerreiro, Torvo o cenho, a armadura de ferro... É Viriato... a seus pés--o primeiro!-- Calca as Aguias que o mundo adorou. Da caverna que os ossos lhe incerra Surde a voz... Inclinae as cabeças Ante o livre que impavido á terra --Ou morrer--ou salvá-la jurou... Immudece a harpa.--O nome adorado Da sua Julia[26] as Driades cantem! Sôbre a fronte ao poeta sagrado Phebo proprio os seus loiros poisou. Un guerriero repente si desta, Torvo il ciglio, rachiuso nell’arme, É Viriato... un vessillo calpesta Che tremante la terra mirò. Dallo speco che l’ossa ne serra Una voce si parte--t’inchina A colui che la libera terra O far salva o perire giurò... Tace l’arpa... Di Giulia[27] ripeta Ogni Driade il nome soave!... Su la fronte del sacro poeta Febo istesso l’alloro posò. NOTAS DE RODAPÉ: [20] Allude á tragedia CATÃO do Sr. Garrett. [21] Idem. [22] Allude á tragedia MEROPE do Sr. Garrett. [23] Do mesmo modo allude á CAVERNA DE VIRIATO, publicada ultimamente nas FLORES SEM FRUCTO, com a traducção franceza por M.ˡˡᵉ de Flaugergues. [24] Idem. [25] Idem. [26] Allude egualmente á ode ou canção II do livro primeiro--FLORES SEM FRUCTO. [27] Idem. XXI. CANÇÃO DA DONZELLA FINLANDEZA. Oh! se o meu Bem me volver, Se quem d’antes via, eu vejo, Traga elle a bôcca a escorrer De lobo em sangue, lh’a bejo; E a mão vou-lh’a apertar, Cobras lh’a andem a inroscar. Ah! se o vento alma tivera, Lingua o ar da primavera, Fôra a sua voz bastante: Novas levára e trouxera Entre um e outro amante. Desprézo finos guizados, Deixo ao cura os seus assados; Só quero amar, ser constante A quem o verão me deu E o hinverno affez a ser meu.[28] NOTAS DE RODAPÉ: [28] O original é phenico ou finlandez. Esta pequena Runa, canção em metro runico, é considerada no Norte como um d’esses raros exemplares da litteratura primitiva dos povos, que a characterisam. Como tal tem sido traduzida em muitas linguas com auxílio das versões litteraes, que para isso se publicara em Stokolmo. Por este modo se fez a portugueza: e creio ser a primeira que apparece nas linguas do Sul. Dou com ella as versões todas, poeticas e litteraes, que me chegaram á mão. Muito approveitaria ao estudo das linguas e litteraturas da Europa se os nossos litteratos se dessem com o mesmo impenho ao estudo das runas e sagas do Norte com que alli se dão ao das nossas xacaras e soláos. XXI. EYTON RUNO SUOMALAISEN. Jos mun tuttuni tulisi, Ennen nähtyni näkyisi, Sillen suuta suikkajaisin; Jos olis suu suden weressä; Sillen kättä käppäjäisin, Jospa käärme kämmen-päässä. Olisko tuuli mielellisnä, Ahawainen kielellisnä: Sanan toisi, sanan weisi, Sanan liian liikuttaisi, Kahden kaunihin wälillä. Ennen heitän herkku-ruuat, Paistit pappilan unohdan, Ennenkun heitän herttaseni, Kesän kestyteltyäni, Talwen taiwuteltuani.[A] XXI. CARMEN FENICAE FUELLAE. Ille si meus veniret, Visus ante si veniret; Illitum lupi cruore Os libenter oscularer; Si ter implicaret anguis, At manum manu tenerem. Si qua mens adesset austro, Si qua lingua veris aurae; Ferret aura, ferret auster, Et referret usque verba, Nuntians, amanti amantis. Nil moror dapes opimas, Presbiter nihil quod assat, Dum mihi meum reservem, Quem mihi subegit aestas, Bruma quem dedit domandum. A. HEDNER Praepositus Ydriensis. XXI. ΕΙΔΥΛΛΙΟΝ ΦΕΝΝΙΚΟΝ Ὡς ἴκοιθ’ ὁ προσφιλής μοι, Τὸν πάλαι φανέντ’ ἴδοιμι, Τόνδε κἀκ λύκου φιλοῖμ’ ἄν Αἱματοσταγῆ τὰ χείλη, Ἐν χεροῖν αὐτοῦ δὲ φῦσα Ὄφιος οὐ ταρβοῖμ’ ἑλιγμούς. Εἰ γένοιτ’ ἔμφρων μὲν αὔρα, Εἰ πνοὴ δ’ ἔναυδος ἦρος, Σὺν τάχει πρόσω πάλιν τε, Τοὺς ἂν ἀλλήλων ἐρώντων, Πίστεως λόγους κομίίζοι. Πλὴν λιχνεύματ’ ἂν μεθείην, Ὀπτὰ κρέα θ’ ἱρέως ἔγωγε Μᾶλλον, ἢ τἀνδρὸς λαθοίμην, Τοῦπερ ἐν θέρει δαμέντος, Ἐν κρύει κατεκράτησα. J. SPONGBERG Professor Linguæ Græcæ TRADUCÇÕES LITTERAES. I. ALLEMAN. Oh! wenn mein Geliebter[29] kommen würde, Der früher gesehene, wenn er erschiene (erscheinen würde): Sogleich würde ich einen Kuss auf seinen Mund drücken,[30] Auch wenn er (der Mund) mit Wolfsblut besudelt[31] wäre! Seine Hand würde ich zugleich auch warm (herzlich) fassen,[32] Wenn auch eine Schlange sich um seine Finger schlängelt! Ach! wenn der Wind Verstand hätte,[33] Der frische Lenzeshauche, wenn er einer Sprache mächtig wäre:[34] Ein Wort würde er hinbringen,[35] ein Wort würde er zurückbringen; Mit Nachrichten würde er schnell eilen[36] Zwischen zwei Liebenden.-- Lieber verschmähe ich die kostbarsten Speisen,[37] Vergesse lieber den Braten auf des Priesters Tische,[38] Als dass ich meines Herzens Geliebten verlasse, Den, welchen ich im Sommer mir ergeben machte[39] Den, welchen ich im Winter (an mich) befestigte.[40] NOTAS DE RODAPÉ: [29] Eigentl.: mein Bekannter. [30] Ganz wörtlich: ihm den Mund ich sogleich hinhalten würde, d. h. ihn küssen [31] Ganz wörtl.: wäre auch sein Mund in Wolfsblut, d. h. wäre er mit Wolfsblut befleckt. [32] Wörtlicher: ich würde ihm einen leichten Handschlag geben. [33] Ganz wörtlich: wäre der Wind als Verstand-besitzend. [34] Oder: wäre als sprachmächtig. [35] Eigentl.: holen. [36] Ganz wörtl.: ein Wort zur Genüge, würde er (der Wind, der Hauch) in Bewegung bringen (rege machen), d. h. würde er wechselweise bringen zwischen, etc. (Dieser Vers ist, wie man sieht, an Geist und Sinn, nur ein Parallelism zu dem nächst vorangehenden. Solche findet man nicht selten in der finnischen Runen-Dichtung.) [37] Oberhaupt: Herrenessen. [38] Ganz wörtl.: des Pfarrhauses Braten (Plur.) ich lieber vergesse. [39] Oder: mir anlockte, d. h. machte dass er sich an mich schloss. [40] Oder: bändigte, d. h. nach meinem Sinne lenkte. II. INGLEZA. Oh! If my beloved[41] would come, The before seen, if he would appear; Instantly I should press a kiss on his mouth,[42] Even though it (the mouth) were stained with the blood of a wolf.[43] His hand I should at the same time warmly (cordially) seize,[44] Even though a snake wound round his fingers! Oh! if the wind had understanding,[45] The fresh zephyrs of the spring, if they were capable of speech: A word they would bring hither,[46] a word they would return, With intelligence they would quickly hasten[47] Between two lovers.-- I should sooner give up the nicest dishes[48], Forget rather the roast-meat on the priest’s table[49] Than I forsake my dear beloved, Him, whom in the summer I made attached to me,[50] Him, whom in the winter I captivated.[51] NOTAS DE RODAPÉ: [41] _Or_: intimate; _properly_: well-known. [42] _Literally_: to him I should instantly offer my mouth, _that is to say_: kiss him. [43] _Quite literally_: even though his mouth were in the blood of a wolf; _that is to say_: if it were besmeared with the blood of a wolf. [44] _More literally_: I should give him a light squeezing of the hand. [45] _Quite literally_: if the wind were as if possessing understanding. [46] _Properly_: fetch. [47] _Literally_: a word which were sufficient, they (the winds, the zephyrs) would set a-going, _that is to say_: they would alternatively bring between, etc (This verse forms, as it appears, in sense and thought, a parallelism with the preceeding verse. Such are not seldom met with in the Finlandian rune-poetry) [48] _Very-near_: the gentlemen’s (the lord’s) meat. [49] _Quite literally_: forget rather the roast-meats of the priest’s house. [50] _Or_: attracted to me, _that is to say_: caused him to become attached to me. [51] _Or_: tamed, _that is to say_: made him submit to my mind or will. III. LATINA O, si ille familiaris meus veniret, Antea visus mihi appareret! Statim ei os porrigerem,[52] Etiamsi esset (os) lupi cruore maculatum.[53] Manum ejus calide[54] premerem, Etiamsi anguis digitos cingeret.[55] O! si ventus esset mente praeditus,[56] Si flamen[57] veris alacre[58] linguae esset potens; Verbum huc ferret, verbum referret,[59] Nuntium vicissim motu ageret[60] Inter duos amantes.-- Rejiciam potius lautissimas cupedias, Quin carnis assae de mensa presbyteri[61] obliviscar, Quam meum ex corde amatum deseram; Quem aestate mihi deditum reddidi,[62] Quem hieme satis mansuefeci.[63] NOTAS DE RODAPÉ: [52] Eum mox oscularer. [53] _Proprie_: etiam si in lupi cruore os esset, _i. e._ etiamsi lupi cruor in ore ejus esset. [54] _Proprie_: facile. [55] _Proprie_: etiamsi anguis in extrema manu (esset). [56] _Sive_: O, si ventui esset intellectus! [57] _Sive_: aura. [58] Recreans. [59] _Sive_: verbum adduceret, verbum reportaret. [60] _Proprie_: verbum plus quam sufficiens in motum ageret (moveret). [61] _Proprie_: de villa presbyteri, _i. e._ quae in villa presbyteri solet esse Carnis assae frusta presbyteri mensae apposita. [62] _Sive_: quem aestate ita tractavi, ut ea mihi dederet. [63] _Sive_: quem hieme ita tractavi, ut mihi obediret. IV. FRANCEZA. Ah! si mon bien-aimè[64] voulait venir, Celui que je voyais jadis, voulût-il reparaître! A l’instant je presserais un baiser sur sa bouche,[65] Si même elle était tachée de sang de loup.[66] Je saisirais ardemment sa main[67] Quand même un serpent fût roulé autour de ses doigts. Oh! si le vent avait de la raison,[68] La fraiche haleine du printemps, si elle savait une langue; Elle irait chercher un mot, un mot elle rapporterait; Vite elle se hâterait avec des nouvelles[69] Entre deux amants.-- Plutôt je me passerais des mets les plus delicats,[70] J’oublierais plutôt le rôti sur la table du pasteur,[71] Que je n’abandonne le chéri de mon cœur, Celui qu’en été je m’attachai,[72] Celui que j’enchainai pendant l’hiver.[73] NOTAS DE RODAPÉ: [64] Proprement dit: _mon bien-connu_. [65] Littéralement: _je lui tendrais à l’instant la bouche_, c’est á-dire: _je le baiserais_. [66] Tout-á-fait littér.: _fût même sa bouche dans le sang d’un loup_, c.-a-d.: _fût-elle souillée de sang de loup_. [67] Plus littér.: _je lui donnerais un liger serrement de main_. [68] Tout-á-fait littér.: _si le vent était possédant de la raison_. [69] Plus littér.: _un mot, qui suffirait déjà, elle le mettrait en mouvement_, c.-a-d.: _elle le porterait alternativement entre, etc. (Ce vers ne forme, comme il le parait, qu’un parallélisme d’esprit et de pensée avec le vers précèdent; on en trouve souvent dans la poésie runique finoise)_. [70] A peuprés: _nourriture des Messieurs_. [71] Tout-á-fait littér: _j’oublierais plutôt des rôtis du presbytère_. [72] Ou: _attirai vers moi_, c.-a-d.: _fis qu’il s’attacha à moi_. [73] Ou: _apprivoisai_, c.-a-d. _que je fis plier à ma volonté_. NOTAS. NOTAS ÁS FÁBULAS E CONTOS. NOTA A. Um tal poeta lá da tua terra Que faz Orientes e baptiza Gamas pag 36. Este verso, e um soneto, que é o X na collecção do presente vol., são as duas unicas debilidades em que cahi mostrando má vontade satyrica ao bem conhecido Padre José Augustinho de Macedo, homem de estudo e talento, mas o mais atrabiliario escriptor que ainda creio que tivesse a lingua portugueza. O rancor que toda a vida professou a quantos professaram as lettras no seu tempo, uma inveja impropria de talento tam verdadeiramente superior, o arrastou a desvarios que deslustraram o seu nome e mancharam a sua fama. Nem o furioso e sanguinario que foi em seu partido, nem a perseguição politica de que a mim proprio me fez victima, poderam mover-me a desacatar n’elle o homem de lettras que todavia honro ainda. Sei que no A. do RETRATTO DE VENUS, no redactor principal do PORTUGUEZ, elle perseguia principalmente o ainda mais odioso A. do poema CAMÕES. Todas as suas offensas porém foram só politicas; litterariamente não me aggravou jamais. Perdoe-lhe Deus como lhe perdoei sempre. A posteridade não lhe perdoará decerto a sua stulla rivalidade com o A. dos LUSIADAS: foi a essa que os versos annotados alludiram. Queimava-os se fôra a outra coisa. Metter as lettras nas nossas questões politicas e nas mesquinhas e soezes paixões individuaes que d’ellas nascem, é para a baixa villania dos _insultadores publicos_, despreziveis rans do charco stagnado da intriga que nem siquer para si coaxam, mas para quem os faz coaxar por sua conta. NOTA B. Conto academico pag. 42. Este conto é uma verdadeira gaiatice de estudante de Coimbra que despede chufas á direita e á esquerda como pancadas de cego. Se o diccionario da nossa academia ficou no _azzurrar_, a collecção de suas preciosas memórias cantou bem alto e sonoro: muito receio que fôsse cantar de cysne! NOTA C. O famoso direito de accrescer pag. 61. O direito de _accrescer_ é o que em qualquer sociedade resulta ao todo dos socios da renúncia tacita ou expressa que de seu quinhão faz um d’elles. No meu primeiro anno da Universidade era a explicação d’este romanismo um dos pontos mais graves do curso de direito. NOTA D. O menino e a cobra. pag. 65. É imitação ésta fábula de uma composição alleman do seculo passado, não me lembro de que auctor. NOTA E. A Saude e a Medicina. pag. 69 Imitação, e quasi traducção em muita parte, da fábula de Pignotti do mesmo nome. NOTA F. Fui prêso por Verdeaes pag. 79. Até a côr das fardas dos archeiros da Universidade mudaram os fomentadores de 1834-5. Dizem que os pintaram de azul! Não tenho ânimo de ir a Coimbra, nem olhos com que tal veja. Os verdeaes azues! Que reforma! NOTA G. O Casquilho. pag. 88. Imitação de um apologo ingles, cujo auctor me não lembra tambem. AOS SONETOS. NOTA A. A certa tragedia pag. 110. Vej. a nota A das Fábulas. ÁS FOLHAS CAHIDAS. NOTA A. Coquette dos prados pag. 171. A palavra _coquette_ não é portugueza. Mas não ha remedio senão acceitá-la e dar-lhe a carta de naturalização desde que a coisa se afforou tanto entre nós. NOTA B. Voz e aroma. pag. 219. Parece-me, e quero confessá-lo, que estes versos são uma reminiscencia de Lamartine. NOTA C. No Lumiar. pag 239. Tinha promettido estes versos sôbre a visita de Mrs. Northon ao Lumiar, ha tres para quatro annos, ao nosso commum amigo S. de L. Perdoe-me elle se tam tarde cumpro a minha prometa.--Dezembro. 1851. NOTA D. O Tejo. pag. 256. O Sr. Conde de Camburzano, secretario da Legação de Sardenha em Lisboa, foi aqui mui pouco conhecido da nossa sociedade, nem o sería com vantagem, porque dançar e jogar, jogar e dançar, de verão e de hynverno, nossa occupação exclusiva e unica, não podia ser a de um homem de forte pensar e de vehemente sentir. Manda-lhe aqui éstas saudades um dos poucos Portuguezes que tiveram a fortuna de o conhecer. NOTA E. Deixo ao cura os seus assados. pag. 264. Este pequeno poema foi-me enviado de Stockolmo pelo illustre litterato o Sr. Zetterquist, com as traducções poeticas e litteraes que publíco junctamente com o texto, e que me serviram para fazer a traducção portugueza que com tanta instancia me pediram. Veio tudo acompanhado da seguinte explicação em Francez, que aqui ponho textualmente tambem para melhor esclarecimento do assumpto: REMARQUES DIVERSES SUR CETTE RUNA FINOISE[74] Ce petit poème, que l’on peut appeler une réminiscence de l’état d’innocence primitive des peuples et des langues, fut composé il y a peut-être quelques siècles, par une jeune paysanne finoise. Comme le chant l’indique, elle parait avoir eu un amant auquel elle avait donné son cœur et son premier amour, mais qui, plus tard, pour une cause quelconque, l’abandonna, malgré les promesses de mariage qu’il avait jurées à sa fiancée. Une circonstance pareille n’a jamais été et ne sera jamais rien d’extraordinaire: c’est, nonobstant, le thème de ce chant si simple. Simple, il est vrai; mais il ne manque pas pour cela d’originalité, ni même de poésie, pareil en cela, du reste, à tous les vieux et sublimes chants nationaux du Nord. Je pourrais même à cet égard soutenir sans exagération que celui qui nos occupe est l’un des plus beaux produits de la poésie populaire. Où trouver, par exemple, une pensée plus sublime que celle de la seconde stance, où cette Sapho, quoique n’étant pourtant pas de Lesbos, donne sous l’inspiration du moment, l’essor aux brûlants sentiments de son cœur: “_Oh! si le vent était douè de raison, et la fraîche haleine du printemps, si elle savait une langue: ils porteraient alors un mot d’amour et le rapporteraient entre deux amants_.” Mais que l’on n’oublie pas non plus que c’est l’amour, chez cette poète toute d’inspiration naturelle, née et grandie dans un pays de forêts couvertes de neiges et de glaces, qui lui a mis sur les lèvres ces paroles d’une si douce poésie. Quant à la 3ème ou dernière stance, il me semble aussi nécessaire d’y fixer l’attention plus spéciale du lecteur. On pourrait, par aventure, regarder comme une espèce d’étrangeté les expressions suivantes: “_Plutôt je me passerais des mets les plus délicats, j’oublierais plutôt le rôti sur la table du pasteur, que je n’abandonne le chéri de mon cœur_.” Pour celui qui ne connaît pas les particularités caractéristiques des paysans findandais, et leur appréciation des choses, une image ou un objet concret pareil au _rôti sur la table du pasteur_, pourrait paraître quelque chose d’étonnant en poésie: mais cette pensée ou cette image ne présente par contre rien d’étonnant, lorsque l’on est initié à la vie nationale de la Finlande, et surtout, si l’on sait quelle profonde vénération les paysans finois avaient jadis pour leur prêtre, pour leur instituteur religieux; mais outre cette saint vénération, qui touchait presque à une adoration mystique, ils donnaient à ses biens matériels une valeur et leur montraient un respect non moins grands. La jeune fille, inspirée par le dieu de l’amour, n’aurait donc voulu pour les friandises les plus recherchées au monde, pas même pour les mets les plus délicats que la table du pasteur pût offrir, se départir de l’objet aimé. Cette strophe renferme aussi, en conséquence, une pensée tout aussi raisonnable que belle.--Et quoique ce petit morceau lyrique soit un modèle de style simple et naturel, il ne se fait, on vient de le voir, pas moins remarquer par un sentiment ardent, par sa force, et surtout par de ces images hardies comme des poètes plus exercés et plus instruits en cherchent en vain. J’ose dans tous les cas espérer qu’on ne m’imputera raisonnablement pas à blâme, d’avoir, comme base de mon entreprise choisi de préférence ce simple chant antique, au lieu de prendre un morceau moderne d’une autre tendance. Un original de caractère religieux, n’aurait, par exemple, indubitablement pas convenu; d’autant plus que comme il s’agit ici d’obtenir le plus grand nombre possible de traductions, non seulement en langues écrites mais encore en idiomes provinciaux, le morceau que j’ai choisi me paraît plus que tout autre propre a conduire à ce résultat. Si j’en viens maintenant au but même de mon travail, je crois pouvoir déclarer à ce sujet, qu’à tous égards, une collection polyglotte semblable doit indubitablement être fort intéressante pour les personnes possédant des connaissances philologiques plus ou moins grandes, et surtout pour celles qui s’occupent de linguistique comparée, Un résultat pareil dépend naturellement de la fidélité, de l’exactitude qui sera apportée à chaque traduction. L’on ne doit, en conséquence, pas considérer cette entreprise comme une affaire de curiosité, ni comme un simple amusement, mais comme un travail utile, autant que possible, pour l’histoire générale des langues. Sous le point de vue de la réunion d’un si grand nombre de traductions, tant en dialectes qu’en langues écrites mortes et vivantes, elles seront rangées en ordre systématique basé sur leurs origines et leurs affinités. Le nombre d’idiomes dont cette _carte philologique_ se composera, dépendra naturellement de la quantité de traductions que j’obtiendrai. Cependant, me fondant sur la bienveillance dont j’ai déjà été l’objet pendant le cours de quelques années, j’ose espérer que la collection se composera d’environ 200 ou 300 idiomes, dont je possède déjà un nombre assez considérable. Cet ouvrage sera encore augmenté de quelques appendices de musique, et d’une introduction philologico-historique. Ensuite, les traductions seront autant que possible imprimées avec les caractères particuliers à chaque langue. Enfin, que l’on me permette d’ajouter au sujet de cette Runa finoise, qu’avant moi déjà, diverses personnes l’ont remarquée avec intérêt; je dois nommer entr’autres le Conseiller d’État suédois S. E. Mr. _A. F. de Skjöldebrand_, lequel publia en 1810 à Stockholm une magnifique collection de gravures sur la Suède, la Finlande et la Laponie, suivie d’une description en langue française, et portant le titre de: “_Voyage pittoresque au Cap Nord_.” La Runa que j’ai choisie se trouve dans cet ouvrage, tant en original, qu’en traduction française en prose. L’auteur y annonce qu’elle lui fut communiquée par _Fr. Mich. Franzén_ (alors professeur à l’Academie d’Abo) comme un des meilleurs échantillons de la poésie runique finoise, et l’un des plus propres à montrer à quel riche degré la nation finoise possède l’inspiration poétique. Mais la langue finoise est aussi sous le point de vue grammatical singulièrement flexible, elle est surtout fort mélodieuse, ce que lui donne une certaine ressemblance avec le Grec antique. A peu près vers le même temps que l’ouvrage de Mr. de _Skjöldebrand_, apparut en Anglais, d’un certain _Joseph Arcebi_, une description de Voyage en Suède, en en Finlande et en Laponie, dans laquelle se trouve aussi la même Runa, en traduction anglaise, faite toutefois assez librement. Cette description de Voyage, fort intéressante, a été traduite en Français et en Allemand. Mais ces deux auteurs ne son pas les seuls: le célèbre poète allemand _Göethe_ a fait aussi de ce chant une traduction imprimée dans ses: «_Poetische und Prosaische Werke_.» QUELQUES INDICATIONS PARTICULIÈRES POUR LES TRADUCTEURS DE CE CHANT. 1.º MM. les traducteurs voudront bien suivre, _aussi fidèlement que possible_, l’une des trois traductions verbales ci-dessous. 2.º Quant aux idiomes dans lesquels il serait difficile et peut-être même impossible de faire des traductions en vers, l’on devra, dans un tel cas, se contenter de les faire en prose, plutôt que de n’en point faire du tout. Je désire toutefois que ces traductions soient en _vers blancs_ (non-rimés), como les trois traductions verbales. 3.º Si le traducteur voulait communiquer quelques explications grammaticales sous forme de notes, elles seraient reçues avec la plus grande reconnaissance. 4.º De même, si quelqu’un voulait se charger, en cas que ce fût possible, de procurer de la musique à l’une des traductions; ce serait aussi une chose que je désirerais volontiers. 5.º MM. les traducteurs sont priés d’écrire leurs traductions _aussi distinctement que possible_, pour éviter les fautes typographiques qui pourraient s’y glisser. 6.º L’on ne doit pas oublier de traduire le titre: _Chant d’une jeune paysanne finoise_. 7.º Chaque traducteur voudra bien signer sa traduction. C. G. ZETTERQUIST NOTAS DE RODAPÉ: [74] _Runa_ est un mot finois qui signifie: _Chanson_. Les plus anciens caractères des peuples germaniques et scandinaves, qu’ils employaient surtout dans le style lapidaire, portent, comme l’on sait le nom de _Runas_, d’où le terme _Runagraphie_ pour désigner ce genre d’écriture. INDICE. A QUEM LER pag. V PRIMEIROS VERSOS XXVII ADVERTENCIA XXIX FÁBULAS E CONTOS 33 I. Introducção _ib._ II. Pelo zurro o burro 42 III. Amor e vaidade 48 IV. Esopo e o burro 59 V. O menino e a cobra 65 VI. A saude e a medicina 69 VII. O gallego e o diabo 78 VIII. O casquilho (janota) 88 IX. Os amantes generosos 92 SONETOS 99 I. Porfia d’amor 101 II. Camões náufrago 102 III. A uma feia com linda voz 103 IV. Suffoque as íras, calle e sinta e gema 104 V. É dos olhos gentis da minha amada 105 VI. Nas froixas, debeis azas da saudade 106 VII. O Campo de Sanct’Anna 107 VIII. Virtude sem prazer não é virtude 108 IX. A flor sêcca 109 X. A certa tragedia 110 XI. Maria e Carolina 111 XII. Saudade 112 ULTIMOS VERSOS pag. 113 DOS EDITORES 115 ADVERTENCIA 116 FOLHAS CAHIDAS 123 LIVRO PRIMEIRO _ib._ I. Ignoto Deo _ib._ II. Adeus 126 III. Quando eu sonhava 132 IV. Aquella noite 134 V. O anjo cahido 142 VI. O album 145 VII. Saudades 148 VIII. Este inferno de amar 151 IX. Destino 153 X. Gôso e dor 155 XI. Perfume da rosa 157 XII. Rosa sem espinhos 160 XIII. Rosa pallida 162 XIV. Flor de ventura 166 XV. Bella d’amor 169 XVI. Os cinco sentidos 171 XVII. Rosa e lirio 173 XVIII. Coquette dos prados 177 XIX. Cascaes 179 XX. Estes sitios 184 XXI. Não te amo 187 XXII. Não es tu 190 XXIII. Belleza 193 XXIV. Anjo es 196 XXV. Vibora 199 LIVRO SEGUNDO 201 I. Barca bella _ib._ II. A Coroa 203 III. Sina 205 IV. Ai Helena 208 V. A rosa--um suspiro pag. 210 VI. Retratto 212 VII. Lucinda 213 VIII. As duas rosas 215 IX. Voz e aroma 219 X. Seus olhos 221 XI. A Délia 223 XII. A joven americana 224 XIII. Adeus, mãe! 228 XIV. Ave Maria 232 XV. Os exilados 234 XVI. Preito 237 XVII. No Lumiar 239 XVIII. A um amigo 246 XIX. Os Lusiadas 248 XX. O Tejo 256 XXI. Canção da donzella finlandeza 264 NOTAS 273 *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK FÁBULAS—FOLHAS CAHIDAS *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. 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