Title: Triste Fim de Polycarpo Quaresma
Author: Lima Barreto
Release date: March 1, 2022 [eBook #67535]
Most recently updated: October 18, 2024
Language: Portuguese
Original publication: Brazil: Revista dos Tribunaes
Credits: Laura Natal Rodrigues (Images generously made available by the Biblioteca Nacional do Brasil.)
Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l'homme supérieur, c'est que, si l'on y transporte les principes de l'idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l'homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l'égoisme ou la routine vulgaire.
Renan, Marc-Auréle
Primeira Parte
Capitulo
I. A LIÇÃO DE VIOLÃO
II. REFORMAS RADICAES
III. A NOTICIA DO GENELICIO
IV. DESASTROSAS CONSEQUENCIAS
DE UM REQUERIMENTO
V. O BIBELOT
Segunda Parte
I. NO «SOCEGO»
II. ESPINHOS E FLORES
III. GOLIAS
IV. «PEÇO ENERGIA, SIGO JÁ»
V. O TROVADOR
Terceira Parte
I. PATRIOTAS
II. VOCÊ, QUARESMA, É UM VISIONARIO
III. ...E TORNARAM LOGO SILENCIOSOS...
IV. O BOQUEIRÃO
V. A AFILHADA
Como de habito, Polycarpo Quaresma, mais conhecido por major Quaresma, bateu em casa ás 4 e 15 da tarde. Havia mais de vinte annos que isso acontecia. Sahindo do Arsenal de Guerra, onde era sub-secretario, bongava pelas confeitarias algumas fructas, comprava um queijo, ás vezes, e sempre o pão da padaria franceza.
Não gastava nesses passos nem mesmo uma hora, de fórma que, ás 3 e 40, por ahi assim, tomava o bonde, sem erro de um minuto, ia pizar a soleira da porta de sua casa, numa rua afastada de S. Januario, bem exactamente ás 4 e 15, como se fosse a apparição de um astro, um eclypse, emfim um phenomeno mathematicamente determinado, previsto e predito.
A vizinhança já lhe conhecia os habitos e tanto que, na casa do Capitão Claudio, onde era costume jantar-se ahi pelas quatro e meia, logo que o viam passar, a dona, gritava á criada: «Alice, olha que são horas; o Major Quaresma já passou».
E era assim todos os dias, ha quasi trinta annos. Vivendo em casa propria e tendo outros rendimentos além do seu ordenado, o major Quaresma podia levar um trem de vida superior aos seus recursos burocraticos, gozando, por parte da vizinhança, da consideração e respeito de homem abastado.
Não recebia ninguem, vivia num isolamento monacal, embora fosse cortez com os vizinhos que o julgavam esquisito e misanthropo. Se não tinha amigos na redondeza, não tinha inimigos, e a unica desaffeição que merecera, fôra a do Dr. Segadas, um clinico afamado no lugar, que não podia admittir que Quaresma tivesse livros: «se não era formado, para que? Pedantismo»!
O sub-secretario não mostrava os livros a ninguem, mas acontecia que, quando se abriam as janellas da sala de sua livraria, da rua poder-se-iam ver as estantes pejadas de cima a baixo.
Eram esses os seus habitos; ultimamente, porém, mudara um pouco; e isso provocava commentarios no bairro. Além do compadre e da filha, as unicas pessoas que o visitavam até então, nos ultimos dias, era visto entrar em sua casa, tres vezes por semana e em dias certos, um senhor baixo, magro, pallido, com um violão agasalhado numa bolsa de camurça. Logo pela primeira vez o caso intrigou a vizinhança. Um violão em casa tão respeitavel! que seria?
E, na mesma tarde, uma das mais lindas vizinhas do major convidou uma amiga, e ambas levaram um tempo perdido, de cá p'ra lá, a palmilhar o passeio, esticando a cabeça, quando passavam diante da janella aberta do exquisito sub-secretario.
Não foi inutil a espionagem. Sentado no sofá, tendo ao lado o tal sujeito, empunhando o pinho na posição de tocar, o major, attentamente, ouvia: «Olhe, major, assim». E as cordas vibravam vagarosamente a nota ferida; em seguida, o mestre adduzia: «é ré, aprendeu».
Mais não foi precizo pôr na carta; a vizinhança concluiu logo que o major aprendia a tocar violão. Mas que cousa? Um homem tão sério mettido nessas malandragens!
Uma tarde de sol—sol de Março, forte e implacavel—ahi pelas cercanias das quatro horas, as janellas de uma erma rua de S. Januario povoaram-se rapida e repentinamente, de um e de outro lado. Até da casa do General vieram moças á janella! Que era? Um batalhão? Um incendio? Nada disto: o Major Quaresma, de cabeça, baixa, com pequenos passos de boi de carro, subia a rua, tendo debaixo do braço um violão impudico.
É verdade que a guitarra vinha decentemente embrulhada em papel, mas o vestuario não lhe escondia inteiramente as formas. Á vista de tão escandaloso facto, a consideração e o respeito que o major Polycarpo Quresma merecia nos arredores de sua casa, diminuiram um pouco. Estava perdido, maluco, diziam. Elle, porém, continuou serenamente nos seus estudos, mesmo porque não percebeu essa diminuição.
Quaresma era um homem pequeno, magro, que usava pince-nez, olhava sempre baixo, mas, quando fixava alguem ou alguma cousa, os seus olhos tomavam, por detraz das lentes, um forte brilho de penetração, e era como se elle quizesse ir á alma da pessoa ou da cousa que fixava.
Comtudo, sempre os trazia baixo, como se guiasse pela ponta do cavaignac que lhe enfeitava o queixo. Vestia-se sempre de fraque, preto, azul, ou de cinza, de panno listrado, mas sempre de fraque, e era raro que não se cobrisse com uma cartola de abas curtas e muito alta, feita, segundo um figurino antigo de que elle sabia com precisão a epocha.
Quando entrou em casa, naquelle dia, foi a irmã quem lhe abriu a porta, perguntando:
—Janta já?
—Ainda não. Espere um pouco o Ricardo que vem jantar hoje comnosco.
—Polycarpo, você precisa tomar juizo. Um homem de idade, com posição, respeitavel, como você é, andar mettido com esse seresteiro, um quasi capadocio—não é bonito!
O major descançou o chapéo de sól—um antigo chapéo de sól, com a haste inteiramente de madeira, e um cabo de volta, incrustado de pequenos losangos de madreperola—e respondeu:
—Mas você está muito enganada, mana. É preconceito suppor-se que todo o homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a mais genuina expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ella pede. Nós é que temos abandonado o genero, mas elle já esteve em honra, em Lisboa, no seculo passado, com o padre Caldas, que teve um auditorio de fidalgas. Beckford, um inglez notavel, muito o elogia.
—Mas isso foi em outro tempo,—agora...
—Que tem isso, Adelaide? Convém que nós não deixemos morrer as nossas tradições, os usos genuinamente nacionaes...
—Bem, Polycarpo, eu não quero contrariar você; continue lá com as suas manias.
O major entrou para um aposento proximo, emquanto sua irmã seguia em direitura ao interior da casa. Quaresma despiu-se, lavou-se, enfiou a roupa de casa, veiu para a bibliotheca, sentou-se a uma cadeira de balanço, descançando.
Estava num aposento vasto, com janellas para uma rua lateral, e todo elle era forrado de estantes de ferro.
Havia perto de dez, com quatro prateleiras, fora as pequenas com os livros de maior tomo. Quem examinasse vagarosamente aquella grande collecção de livros havia de espantar-se ao perceber o espirito que presidia a sua reunião.
Na ficção, havia unicamente autores nacionaes ou tidos como taes: o Bento Teixeira, da Prosopopéa; o Gregorio de Mattos, o Basilio da Gama, o Santa Rita de Durão, o José de Alencar (todo), o Macedo, o Gonçalves Dias (todo), além de muitos outros. Podia-se afiançar que nem um dos autores nacionaes ou nacionalizados de oitenta p'ra lá faltava nas estantes do Major.
De Historia do Brasil, era farta a messe: os chronistas, Gabriel Soares, Gandavo; e Rocha Pitta, Frei Vicente Salvador, Armitage, Ayres Casal, Pereira da Silva, Handelmann (Geschitchte von Brasilien), Mello Moraes, Capistrano de Abreu, Southey, Warnhagen, além de outros mais raros ou menos famosos. Então no tocante a viagens e explorações, que riqueza! Lá estavam Hans Stade, o Jean de Lery, o Saint-Hilaire, o Martius, o principe de Neuwied, o John Mawe, o von Eschwege, o Agassis, Couto Magalhães e se encontravam tambem Darwin, Freycinet, Cook, Boungainville e até o famoso Pigafetta, chronista da viagem de Magalhães, é porque todos esses ultimos viajantes tocavam no Brasil, resumida ou amplamente.
Alem destes, havia livros subsidiarios: diccionarios, manuaes, encyclopedias, compendios, em varios idiomas.
Vê-se assim que a sua predilecção pela poetica de Porto Alegre e Magalhães não lhe vinha de uma irremediavel ignorancia das linguas literarias da Europa; ao contrario o major conhecia bem soffrivelmente francez, inglez e allemão; e se não falava taes idiomas, lia-os e traduzia-os correntemente. A razão tinha que ser encontrada numa disposição particular de seu espirito, no forte sentimento que guiava sua vida. Polycarpo era patriota. Desde moço, ahi pelos vinte annos, o amor da patria tomou-o todo inteiro. Não fôra o amor commum, palrador e vasio; fora um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de ambições politicas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remedios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa.
Não se sabia bem onde nascera, mas não fôra de certo em S. Paulo, nem no Rio Grande do Sul, nem no Pará. Errava quem quizesse encontrar nelle qualquer regionalismo; Quaresma era antes de tudo brasileiro. Não tinha predilecção por esta ou aquella parte de seu pai tanto assim que aquillo que o fazia vibrar de paixão não eram só os Pampas do Sul com o seu gado, não era o café de S. Paulo, não eram o ouro e os diamantes de Minas, não era a belleza da Guanabara, não era a altura da Paulo Affonso, não era o estro de Gonçalves Dias ou o impeto de Andrade Neves—era tudo isso junto, fundido, reunido, sob a bandeira estrellada do Cruzeiro.
Logo aos dezoito annos quiz fazer-se militar; mas a junta de saude julgou-o incapaz. Desgostou-se, soffreu, mas não maldisse a Patria. O Ministerio era liberal, elle se fez conservador e continuou mais do que nunca a amar a terra que o viu nascer. Impossibilitado de evoluir-se sob os dourados do Exercito, procurou a administração e dos seus ramos escolheu o militar.
Era onde estava bem. No meio de soldados, de canhões, de veteranos, de papelada inçada de kilos de polvora, de nomes de fuzis e termos technicos de artilharia, aspirava diariamente aquelle halito de guerra, de bravura, de victoria, de triumpho, que é bem o halito da Patria.
Durante os lazeres burocraticos, estudou, mas estudou a Patria, nas suas riquezas naturaes, na sua historia, na sua geographia, na sua literatura e na sua politica. Quaresma sabia as especies de mineraes, vegetaes e animaes, que o Brasil continha; sabia, o valor do ouro, dos diamantes exportados por Minas, as guerras hollandezas, as batalhas do Paraguay, as nascentes e o curso de todos os rios. Defendia com azedume e paixão a proeminencia do Amazonas sobre todos os demais rios do mundo. Para isso ia até ao crime de amputar alguns kilometros ao Nilo e era com este rival do seu rio que elle mais implicava. Ai de quem o citasse na sua frente! Em geral, calmo e delicado, o major ficava agitado e malcriado, quando se discutia a extensão do Amazonas em face da do Nilo.
Havia um anno a esta parte que se dedicava ao tupy-guarany. Todas as manhãs, antes que a «Aurora, com seus dedos rosados abrisse caminho ao louro Phebo», elle se atracava até ao almoço com o Montoya, Arte y diccionario de la lengua guarany ó mâs bien tupy, e estudava o jargão caboclo com afinco e paixão. Na repartição, os pequenos empregados, amanuenses e escreventes, tendo noticia desse seu estudo do idioma tupiniquim, deram não sei sabe porque em chamal-o—Ubirajára. Certa vez, o escrevente Azevedo, ao assignar o ponto, distrahido, sem reparar quem lhe estava ás costas, disse em tom chocareiro: «você já vio que hoje o Ubirajára esta tardando».
Quaresma era considerado no Arsenal: a sua idade, a sua illustração, a modestia e honestidade de seu viver impunham-no ao respeito de todos. Sentindo que o alcunha lhe era dirigido, não perdeu a dignidade, não prorompeu em doestos e insultos. Endireitou-se, concertou o pince-nez, levantou o dedo indicador no ar e respondeu:
—Sr. Azevedo, não seja leviano. Não queira levar ao ridiculo aquelles que trabalham em silencio, para a grandeza e a emancipação da Patria.
Nesse dia, o major pouco conversou. Era costume seu, assim pela hora do café, quando os empregados deixavam as bancas, transmittir aos companheiros o fructo de seus estados, as descobertas que fazia, no seu gabinete de trabalho, de riquezas nacionaes. Um dia era o petroleo que lera em qualquer parte, como sendo encontrado na Bahia; outra vez, era um novo exemplar de arvore de borracha que crescia no rio Pardo, em Matto-Grosso; outra, era um sabio, uma notabilidade, cuja bisavó era brasileira; e quando não tinha descoberta a trazer, entrava pela chorographia, contava o curso dos rios, a sua extensão navegavel, os melhoramentos insignificantes de que careciam para se prestarem a um franco percurso da foz ás nascentes. Elle amava sobremodo os rios; as montanhas lhe eram indifferentes. Pequenas talvez...
Os collegas ouviam-no respeitosos e ninguem, a não ser esse tal Azevedo, se animava na sua frente a lhe fazer a menor objecção, a avançar uma pilheria, um dito. Ao voltar as costas, porém, vingavam-se da cacetada, cobrindo-o de troças: «Este Quaresma! que cacete! Pensa que somos meninos de tico-tico... Arre! Não tem outra conversa».
E desse modo elle ia levando a vida, metade na repartição, sem ser comprehendido, e a outra metade em casa, tambem sem ser comprehendido. No dia em que o chamaram de Ubirajára, Quaresma ficou reservado, taciturno, mudo, e só veiu a falar porque, quando lavavam, as mãos num aposento proximo á secretaria e se preparavam para sahir, alguem suspirando, disse: «Ah! Meu Deus! Quando poderei ir á Europa»! O major não se conteve: levantou o olhar, concertou o pince-nez e falou fraternal e persuasivo: «Ingrato! Tens uma terra tão bella, tão rica, e queres visitar a dos outros! Eu, se algum dia puder, hei de percorrer a minha de principio ao fim!
O outro objectou-lhe que por aqui só havia febres e mosquitos; o major contestou-lhe com estatisticas e até provou exuberantemente que o Amazonas tinha um dos melhores climas da terra. Era um clima calumniado pelos viciosos que de lá vinham doentes...
Era assim o major Polycarpo Quaresma que acabava de chegar á sua residencia, ás 4 e 15 da tarde, sem erro de um minuto, como todas as tardes, excepto aos domingos, exactamente, ao geito da apparição de um astro ou de um eclypse.
No mais, era um homem como todos os outros, a não ser aquelles que têm ambições politicas ou de fortuna, porque Quaresma, não as tinha no minimo grau.
Sentado na cadeira de balanço, bem ao centro de sua bibliotheca, o major abriu um livro e pôz-se a lel-o á espera do conviva. Era o velho Rocha Pitta, o enthusiastico e gongorico Rocha Pitta da Historia da America Portugueza. Quaresma estava lendo aquelle famoso periodo: «Em nenhuma outra região se mostra o céo mais sereno, nem madruga mais bella a aurora; o sol em nenhum outro hemispherio tem os raios mais dourados...» mas não pôde ir ao fim. Batiam á porta. Foi abril-a em pessoa.
—Tardei, major? perguntou o visitante.
—Não. Chegaste á hora.
Acabava de entrar em casa do major Quaresma o Sr. Ricardo Coração dos Outros, homem celebre pela sua habilidade em cantar modinhas e tocar violão. Em começo, a sua fama estivera limitada a um pequeno suburbio da cidade, em cujos saráos elle e seu violão figuravam como Paganini e a sua rabeca em festas de Duques; mas, aos poucos, com o tempo, foi tomando toda a extensão dos suburbios, crescendo, solidificando-se, até ser considerada como cousa propria a elles. Não se julgue, entretanto, que Ricardo fosse um cantor de modinhas ahi qualquer, um capadocio. Não; Ricardo Coração dos Outros era um artista a frequentar e a honrar as melhores familias do Meyer, Piedade e Riachuelo. Rara era a noite em que não recebesse um convite. Fosse na casa do Tenente Marques, do Dr. Bulhões ou do seu Castro, a sua presença era sempre requerida, instada e apreciada. O Dr. Bulhões, até, tinha, pelo Ricardo uma admiração especial, um delirio, um frenesi e, quando o trovador cantava, ficava em extase. Gosto muito de canto, dizia o doutor no trem certa vez, mas só duas pessoas me enchem as medidas: o Tamagno e o Ricardo. Esse doutor tinha uma grande reputação nos suburbios, não como medico, pois que nem oleo de ricino receitava, mas como entendido em legislação telegraphica, por ser chefe de secção da Secretaria dos Telegraphos.
Dessa maneira, Ricardo Coração dos Outros gozava da estima geral da alta sociedade suburbana. É uma alta sociedade muito especial o que só é alta nos suburbios. Compõe-se em geral de funccionarios publicos, de pequenos negociantes, de medicos com alguma clinica, de tenentes de differentes milicias, nata essa que impa pelas ruas esburacadas daquellas distantes regiões, assim como nas festas e nos bailes, com mais força que a burguezia de Petropolis e Botafogo. Isto é só lá, nos bailes, nas festas e nas ruas, onde se algum dos seus representantes vê um typo mais ou menos, olha-o da cabeça aos pés, demoradamente, assim como quem diz: apparece lá em casa que te dou um prato de comida. Porque o orgulho da aristocracia suburbana está em ter todo o dia jantar e almoço, muito feijão, muita carne secca, muito ensopado—ahi, julga ella, e que está a pedra de toque da nobreza, da alta linha, da distincção.
Fóra dos suburbios, na rua do Ouvidor, nos theatros, nas grandes festas centraes, essa gente mingua, apaga-se, desapparece, chegando até as suas mulheres e filhas a perder a belleza com que deslumbram, quasi diariamente, os lindos cavalheiros dos interminaveis bailes diarios daquellas redondezas.
Ricardo, depois de ser poeta e o cantor dessa curiosa aristocracia, extravasou e passou á cidade, propriamente. A sua fama já chegava a S. Christovão e em breve (elle o esperava) Botafogo convidal-o-ia, pois os jornaes já falavam no seu nome e discutiam o alcance de sua obra e da sua poetica...
Mas que vinha elle fazer ali, na casa de pessoa de propositos tão altos e tão severos habitos? Não é difficil atinar. De certo, não vinha auxiliar o major nos seus estudos de geologia, de poetica, de mineralogia e historia brasileiras.
Como bem suppoz a vizinhança, o Coração dos Outros vinha ali tão sómente ensinar o Major a cantar modinhas e a tocar violão. Nada mais, e é simples.
De accôrdo com a sua paixão dominante, Quaresma estivera muito tempo a meditar qual seria a expressão poetico-musical caracteristica da alma nacional. Consultou historiadores, chronistas e philosophos e adquiriu certeza que era a modinha acompanhada pelo violão. Seguro dessa verdade, não teve duvidas: tratou de aprender o instrumento genuinamente brasileiro: e entrar nos segredos da modinha. Estava nisso tudo a quo, mas procurou saber quem era o primeiro executor e cantor da cidade e tomou lições com elle. O seu fim era disciplinar a modinha, e tirar della um forte motivo original de arte.
Ricardo vinha justamente dar-lhe lição, mas, antes disso, por convite especial do discipulo, ia compartilhar o seu jantar; e fôra por isso que o famoso trovador chegou mais cedo á casa do sub-secretario.
—Já sabe dar o ré sustenido, major? perguntou Ricardo logo ao sentar-se.
—Já.
—Vamos ver.
Dizendo isto, foi desencapotar o seu sagrado violão; mas não houve tempo, D. Adelaide, a irmã de Quaresma, entrou e convidou-os a irem jantar. A sopa já esfriava na mesa, que fossem!
—O Sr. Ricardo ha de nos desculpar, disse a velha senhora, a pobreza do nosso jantar. Eu lhe quiz fazer um frango com petit-pois, mas Polycarpo não deixou. Disse-me que esse tal petit-pois é estrangeiro e que eu o substituisse por guando. Onde é que se viu frango com guando?
Coração dos Outros aventou que talvez fosse bom, seria uma novidade e não fazia mal experimentar.
—É uma mania de seu amigo, Sr. Ricardo, esta de só querer cousas nacionaes, e a gente tem que ingerir cada droga, chi!
—Qual, Adelaide, você tem certas ogerizas! A nossa terra, que tem todos os climas do mundo, é capaz de produzir tudo que é necessario para o estomago mais exigente. Você é que deu para implicar.
—Exemplo: a manteiga que fica logo rançosa.
—É porque é de leite, se fosse como essas estrangeiras ahi, fabricadas com gorduras de esgotos, talvez não se estragasse... É isto, Ricardo! Não querem nada da nossa terra...
—Em geral é assim, disse Ricardo.
—Mas é um erro... Não protegem as industrias nacionaes... Commigo não ha disso: de tudo que ha nacional, eu não uso estrangeiro. Visto-me com panno nacional, calço botas nacionaes e assim por diante.
Sentaram-se á mesa. Quaresma agarrou uma pequena garrafa de crystal e serviu dous calices de paraty.
—É do programma nacional, fez a irmã, sorrindo.
—De certo, e é um magnifico aperitivo. Esses vermutes por ahi, drogas! Isto é alcool puro, bom, de canna, não é de batatas ou milho...
Ricardo agarrou o calice com delicadeza e respeito, levou-o aos labios e foi como se todo elle bebesse o licor nacional.
—Está bom, hein? indagou o major.
—Magnifico, fez Ricardo, estalando os labios.
—É de Angra. Agora tu vais ver que magnifico vinho do Rio Grande temos... Qual Borgonha! Qual Bordeaux? Temos no Sul muito melhores...
E o jantar correu assim, nesse tom. Quaresma exaltando os productos nacionaes: a banha, o toucinho e o arroz; a irmã fazia pequenas objecções e Ricardo dizia: «é, é, não, ha duvida»—rolando nas orbitas os olhos pequenos, franzindo a testa diminuta que se sumia no cabello aspero, forçando muito a sua physionomia meuda e dura a adquirir uma expressão sincera de delicadeza e satisfação.
Acabado o jantar foram ver o jardim. Era uma maravilha; não tinha nem uma flôr... Certamente não se podia tomar por tal miseros beijos de frade, palmas de Santa Rita, quaresmas luctulentas, manacás melancolicos e outros bellos exemplares dos nossos campos e prados. Como em tudo o mais, o Major era em jardinagem essencialmente nacional. Nada de rosas, de chrysanthemos, de magnolias—flôres exoticas; ás nossas terras tinham outras mais bellas, mais expressivas, mais olentes, como aquellas que elle tinha ali.
Ricardo ainda uma vez concordou e os dous entraram na sala, quando o crepusculo vinha de vagar, muito vagaroso e lento, como si fosse um longo adeus saudoso do sol ao deixar a terra, pondo nas cousas a sua poesia dolente e a sua deliquescencia.
Mal foi accesso o gaz, o mestre de violão empunhou o instrumento, apertou as cravelhas, correu a escala, abaixando-se sobre elle como se o quizesse beijar. Tirou alguns accordes, para experimentar; e dirigiu-se ao discipulo, que já tinha o seu em posição:
—Vamos ver. Tire a escala, major.
Quaresma preparou os dedos, afinou a viola, mas não havia na sua execução nem a firmeza, nem o dengue com que o mestre fazia a mesma operação.
—Ohe, major, é assim.
E mostrava a posição do instrumento, indo do collo ao braço esquerdo extendido, seguro levemente pelo direito; e em seguida accrescentou:
—Major, o violão é o instrumento da paixão. Preciza de peito para falar... É preciso encostal-o, mas encostal-o com macieza e amor, como se fosse a amada, a noiva, para que diga o que sentimos...
Diante do violão, Ricardo ficava loquaz, cheio de sentenças, todo elle fremindo de paixão pelo instrumento desprezado.
A lição durou uns cincoenta minutos. O major sentiu-se cansado e pediu que o mestre cantasse. Era a primeira vez que Quaresma lhe fazia esse pedido; embora lisongeado, quiz a vaidade profissional que elle, a principio, se negasse.
—Oh! Não tenho nada novo, uma composição minha.
D. Adelaide obtemperou então:
—Cante uma de outro.
—Oh! por Deus, minha senhora! Eu só canto as minhas. O Bilac—conhecem?—quiz fazer-me uma modinha, eu não aceitei; você não entende de violão, seu Bilac. A questão não está em escrever uns versos certos que digam cousas bonitas; o essencial é achar-se as palavras que o violão pede e deseja. Por exemplo: se eu dissesse, como em começo quiz, n'O Pé, uma modinha minha: o teu pé é uma folha de trevo—não ia com o violão. Querem ver? E ensaiou em voz baixa, acompanhando pelo instrumento: o—teu—pé—é—uma—folha—de—tre—vo.
—Vejam, continuou elle, como não dá. Agora reparem: o—teu—pé—é—uma—uma—ro—sa—de—myr—rha. É outra cousa, não acham?
—Não ha duvida, disse a irmã de Quaresma.
—Cante esta, convidou o major.
—Não, objectou Ricardo. Está velha, vou cantar a Promessa, conhecem?
—Não, disseram os dous irmãos.
—Oh! Anda por ahi como as Pombas do Raymundo.
—Cante lá, Sr. Ricardo, pediu D. Adelaide.
Ricardo Coração dos Outros por fim afinou ainda uma vez o violão e começou em voz fraca:
—Vão vendo, disse elle num intervallo, quanta imagem, quanta imagem!
E continuou. As janellas estavam abertas. Moças e rapazes começaram a se amontoar na calçada para ouvir o menestrel. Sentindo que a rua se interessava Coração dos Outros foi apurando a dicção, tomando um ar feroz que elle suppunha ser de ternura e enthusiasmo; e, quando acabou, as palmas soaram do lado de fora e uma moça entrou procurando D. Adelaide.
—Senta-te Ismenia, disse ella.
—A demora é pouca.
Ricardo aprumou-se na cadeira, olhou um pouco moça e continuou a dissertar sobre a modinha. Aproveitando uma pausa, a irmã de Quaresma perguntou á moça:
—Então quando te casas?
Era a pergunta que se lhe fazia sempre. Ella então curvava do lado direito a sua triste cabecinha, coroada de magnificos cabellos castanhos, com tons de ouro, e respondia.
—Não sei... Cavalcanti forma-se no fim do anno e então marcaremos.
Isto era dito arrastado, com uma preguiça de impressionar.
Não era feia a menina, a filha do General, vizinho de Quaresma. Era até bem sympathica, com a sua physionomia de pequenos traços mal desenhados e cobertos de umas tintas de bondade.
Aquelle seu noivado durava ha annos; o noivo, o tal Cavalcanti, estudava para dentista, um curso de dous annos, mas que elle arrastava ha quatro, e Ismenia tinha sempre que responder á famosa pergunta:—«Então quando se casa»?—«Não sei... Cavalcanti forma-se para o anno e...»
Intimamente ella não se incommodava. Na vida, para ella, só havia uma cousa importante: casar-se; mas pressa não tinha, nada nella a pedia. Já agarrara um noivo, o resto era questão de tempo...
Após responder a D. Adelaide, explicou o motivo da visita.
Viera, em nome do pai, convidar Ricardo Coração dos Outros a cantar em casa della.
—Papai, disse D. Ismenia, gosta muito de modinhas... do Norte; a senhora sabe, D. Adelaide, que gente do Norte aprecia muito. Venham.
E para lá foram.
Havia bem dez dias que o major Quaresma não sahia do casa. Na sua meiga, e socegada casa de S. Christovão, enchia os dias da fórma mais util e agradavel ás necessidades do seu espirito, e do seu temperamento. De manhã, depois da toilette, e do café, sentava-se no divan da sala principal e lia os jornaes. Lia diversos, porque sempre esperava encontrar num ou noutro uma noticia curiosa, a suggestão de uma idéa util á sua cara patria. Os seus habitos burocraticos faziam-no almoçar cedo; e, embora estivesse de férias, para os não perder, continuava a tomar a primeira refeição de garfo ás nove e meia da manhã.
Acabado o almoço, dava umas voltas pela chacara, chacara em que predominavam as fruteiras nacionaes, recebendo a pitanga e o camboim os mais cuidadosos tratamentos aconselhados pela pomologia, como se fossem bem cerejas ou figos.
O passeio era demorado e philosophico. Conversando com o preto Anastacio, que lhe servia ha trinta annos, sobre cousas antigas—o casamento das princezas, a quebra do Souto e outras—o Major continuava com o pensamento preso nas problemas que o preoccupavam ultimamente. Após uma hora ou menos, voltara á bibliotheca e mergulhava nas revistas do Instituto Historico, no Fernão Cardim, nas cartas de Nobrega, nos annaes da Bibliotheca, no von den Stein e tomava notas sobre notas, guardando-as numa pequena pasta ao lado. Estudava os indios. Não fica bem dizer estudava, porque já o fizera ha tempos, não só no tocante á lingua, que já quasi falara, como tambem nos simples aspectos ethnographicos e anthropologicos. Recordava (é melhor dizer assim), affirmava certas noções dos seus estudos anteriores, visto estar organizando um systema de ceremonias e festas que se baseasse nos costumes dos nossos selvicolas e abrangesse todas as relações sociaes.
Para bem se comprehender o motivo disso, é precizo não esquecer que o Major, depois de trinta armas de meditação patriotica, de estudos e reflexões, chegava agora ao periodo da fructificação. A convicção que sempre tivera de ser o Brasil o primeiro paiz do mundo e o seu grande amor á patria, eram agora activos e impelliram-no a grandes commettimemtos. Elle sentia dentro de si impulsos imperiosos de agir, de obrar e de concretizar suas idéas. Eram pequenos melhoramentos, simples toques, porque em si mesma (era a sua opinião), a grande patria do Cruzeiro só precizava de tempo para ser superior á Inglaterra.
Tinha todos os climas, todos os fructos, todos os mineraes e animaes uteis, as melhores terras de cultura, a gente mais valente, mais hospitaleira, mais intelligente e mais doce do mundo—o que precizava mais? Tempo e um pouco de originalidade. Portanto, duvidas não fluctuavam mais no seu espirito, mas no que se referia á originalidade de costumes e usanças, não se tinham ellas dissipado, antes se transformaram em certeza após tomar parte na folia do Tangolomango, numa festa que o general dera em casa.
Caso foi que a visita do Ricardo e do seu violão ao bravo militar veiu despertar no general e na familia um gosto pelas festanças, cantigas e habitos genuinamente nacionaes como se diz por ahi. Houve em todos um desejo de sentir, de sonhar, de poetar á maneira popular dos velhos tempos. Albernaz, o general, lembrava-se de ter visto taes cerimonias na sua infancia: D. Maricota, sua mulher, até ainda se lembrava de uns versos de Reis; e os seus filhos, cinco moças e um rapaz, viram na cousa um pretexto de festas e, portanto, applaudiram o enthusiasmo dos progenitores. A modinha era pouco; os seus espiritos pediam cousa mais plebea, mais caracteristica e extravagante.
Quaresma ficou encantado, quando Albernaz falou em organizar uma chegança, á moda do Norte, por occasião do anniversario de sua praça. Em casa do general era assim: qualquer anniversario tinha a sua festa, de fórma que havia bem umas trinta por anno, não contando domingos, dias feriados e santificados em que se dansava tambem.
O major pensara até ali pouco nessas cousas de festas e dansas tradicionaes, entretanto viu logo a significação altamente patriotica do intento. Approvou e animou o vizinho. Mas quem havia de ensaiar, de dar os versos e a musica? Alguem lembrou a tia Maria Rita, uma preta velha, que morava em Bemfica, antiga lavadeira da familia Albernaz. Lá foram os dous, o general Albernaz e o major Quaresma, alegres, apressados, por uma linda e crystallina tarde de Abril.
O general nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não posuisse. Durante toda a sua carreira militar, não viu uma unica batalha, não tivera um commando, nada fizera que tivesse relação com a sua profissão e o seu curso de artilheiro. Fôra sempre ajudante de ordens, assistente, encarregado disso ou daquillo, escripturario, almoxarife, e era secretario do Conselho Supremo Militar, quando, se reformou em general. Os seus habitos eram de um bom chefe de secção e a sua intelligencia não era muito differente dos seus habitos. Nada entendia de guerras, de estrategia, de tactica ou de historia militar; a sua sabedoria a tal respeito estava reduzida ás batalhas do Paraguay, para elle a maior e a mais extraordinaria guerra de todos os tempos.
O altisonante titulo de general, que lembrava cousas sobrehumanas dos Cesares, dos Tuxennes e dos Gustavos Adolphos, ficava mal naquelle homem placido, mediocre, bonachão, cuja unica preoccupação era casar as cinco filhas e arranjar pistolões para fazer passar o filho nos exames do Collegio Militar. Comtudo, não era conveniente que se duvidasse das suas aptidões guerreiras. Elle mesmo, percebendo o seu ar muito civil, de onde em onde, contava um episodio de guerra, uma anedocta militar. «Foi em Lommas Valentinas, dizia elle»... Se alguem perguntava: «O general assistiu a batalha» ?Elle respondia logo: «Não pude. Adoeci e vim para o Brasil, nas vesperas. Mas soube pelo Camisão, pelo Venancio que a cousa esteve preta».
O bonde que os levava até á velha Maria Rita, percorria um dos trechos mais interessantes da cidade. Ia pelo Pedregulho, uma velha porta da cidade, antigo termino de um picadão que ia ter a Minas, se esgalhava para S. Paulo e abria communicações com o Curato de Santa Cruz.
Por ahi em costas de bestas vieram ter ao Rio o ouro e o diamante de Minas e ainda ultimamente os chamados generos do paiz. Não havia ainda cem annos que as carruagens d'El Rey D. João VI, pesadas como naus, a balouçarem-se sobre as quatro rodas muito separadas, passavam por ali para irem ter ao longiquo Santa Cruz. Não se póde crer que a cousa fosse lá muito imponente; a Côrte andava em apuros de dinheiro e o rei era relaxado. Não obstante os soldados remendados, tristemente montados em pangarés desanimados, o prestito devia ter a sua grandeza, não por elle mesmo, mas pelas humilhantes marcas de respeito que todos tinham que dar á sua lamentavel majestade.
Entre nós tudo é inconsistente, provisorio, não dura. Não havia ali nada que lembrasse esse passado. As casas velhas, com grandes janellas, quasi quadradas, e vidraças de pequenos vidros eram de ha bem poucos annos, menos de cincoenta.
Quaresma e Albernaz atravessaram tudo aquillo sem reminiscencias e foram até ao ponto. Antes perlustraram a zona do turfe, uma pequena porção da cidade onde se amontoam cocheiras e coudelarias de animaes e corridas, tendo grandes ferraduras, cabeças de cavallos, panoplias de chicotes e outros emblemas hippicos, nos pilares dos portões, nas almofadas das portas, por toda parte onde taes distinctivos fiquem bem e dêm na vista.
A casa da velha preta ficava além do ponto, para as bandas da estação da estrada de ferro Leopoldina. Lá foram ter. Passaram pela estação. Sobre um largo terreiro, negro de moinha de carvão de pedra, médas de lenha e immensas tulhas de saccos de carvão vegetal se accumulavam; mais adiante um deposito de locomotivas e sobre os trilhos algumas manobravam e outras arfavam sob pressão.
Apanharam afinal o carreiro onde ficava a casa da Maria Rita. O tempo estivera secco e por isso se podia andar por elle. Para além do caminho, extendia-se a vasta região de mangues, uma zona immensa, triste e feia, que vai até ao fundo da bahia e, no horizonte, morre ao sopé das montanhas azues de Petropolis. Chegaram á casa da velha. Era baixa, caiada e coberta com as pesadas telhas portuguezas. Ficava um pouco afastada da estrada. Á direita havia um monturo: restos de cozinha, trapos, conchas de mariscos, pedaços de louça caseira—um sambaqui a fazer-se para gaudio de um archeologo de futuro remoto: á esquerda, crescia um mamoeiro e bem junto á cerca, no mesmo lado, havia um pé de arruda. Bateram. Uma pretinha moça appareceu na janella aberta.
—Que desejam?
Disseram o que queriam e approximaram-se. A moça gritou para o interior da casa:
—Vovó estão ahi dous moços que querem falar com a senhora. Entrem, façam o favor—disse ella depois, dirigindo-se ao General e ao seu companheiro.
A sala era pequena e de telha vã. Pelas paredes, velhos chromos de folinhas, registros de Santos, recortes de illustrações de jornaes baralhavam-se e subiam por ellas acima até dous terços da altura. Ao lado de uma Nossa Senhora da Penha, havia um retrato de Victor Emmanuel com enormes bigodes em desordem; um chromo sentimental de folhinha—uma cabeça de mulher em posição de sonho—parecia olhar um S. João Baptista ao lado. No alto da porta que levava ao interior da casa, uma lamparina, numa cantoneira, enchia de fuligem a Conceição de louça.
Não tardou vir a velha. Entrou em camisa de bicos de rendas, mostrando o peito descamado, enfeitado com um collar de missangas de duas voltas. Capengava de um pé e parecia querer ajudar a marcha, com a mão esquerda pousada na perna correspondente.
—Boas tardes, tia Maria Rita disse o General.
Ella respondeu, mas não deu mostras de ter reconhecido quem lhe falava. O General atalhou:
—Não me conhece mais? Sou o General, o Coronel Albernaz.
—Ah! É sô coroné!... Ha quanto tempo! Como está nhã Maricota?
—Vai bem.
—Minha velha, nós queriamos que você nos ensinasse umas cantigas.
—Quem sou eu, yôyô!
—Ora! Vamos, tia Maria Rita... você não perde nada... você não sabe o Bumba meu boi?
—Quá, yôyô, já mi esqueceu.
—E o Boi espacio?
—Cousa véia, do tempo do captiveiro—p'ra que sô coroné qué sabê isso?
Ella fallava arrastando as syllabas, com um doce sorriso e um olhar vago.
—É para uma festa... Qual é a que você sabe?
A neta que até ali ouvia calada a conversa animou-se a dizer alguma cousa, deixando perceber rapidamente a fiada reluzente de seus dentes immaculados:
—Vovó já não se lembra.
O General, que a velha chamava Coronel, por tel-o conhecido nesse posto, não attendeu a observação da moça e insistiu:
—Qual esquecida, o que! Deve saber ainda alguma cousa, não é, titia?
—Só sei o bicho «Tutu», disse a velha.
—Cante lá!
—Yôyô sabe! Não sabe? quá, sabe!
—Não sei, cante. Se eu soubesse não vinha aqui. Pergunte aqui ao meu amigo, o Major Polycarpo, se sei.
Quaresma fez com a cabeça signal affirmativo e a preta velha, talvez com grandes saudades do tempo em que era escrava e ama de alguma grande casa, farta e rica, ergueu a cabeça, como para melhor recordar-se, e entôou:
—Ora! fez o General com enfado, isso é cousa antiga de emballar crianças. Você não sabe outra?
—Não, sinhô. Já mi esqueceu.
Os dous sahiram tristes. Quaresma vinha desanimado. Como é que o povo não guardava as tradições de trinta annos passados? Com que rapidez morriam assim na sua lembrança os seus folgares e as suas canções? Era bem um signal de fraqueza, uma demonstração de inferioridade diante daquelles povos tenazes que os guardam durante seculos! Tornava-se preciso reagir, desenvolver o culto das tradições, mantel-as sempre vivazes nas memorias e nos costumes...
Albernaz vinha contrariado. Contava arranjar um numero bom para a festa que ia dar, e escapava-lhe. Era quasi a esperança de casamento de uma das quatro filhas que se ia, das quatro, porque uma dellas já estava garantida, graças a Deus!
O crepusculo chegava e elles entraram em casa mergulhados na melancolia da hora.
A decepção, porém, demorou dias. Cavalcanti, o noivo de Ismenia, informou que nas immediações morava um literato, teimoso cultivador dos contos e canções populares do Brasil. Foram a elle. Era um velho poeta que teve sua fama ahi pelos setenta e tantos, homem doce e ingenuo que se deixara esquecer em vida, como poeta, e agora se entretinha em publicar collecções que ninguem lia, de contos, canções, adagios e dictados populares.
Foi grande a sua alegria quando soube o objecta da visita daquelles senhores. Quaresma estava animado e falou com calor; e Albernaz tambem, porque via na sua festa,—com um numero de folk-lore, meio de chamar a attenção sobre sua casa, attrahir gente e... casar as filhas.
A sala em que foram recebidos, era ampla; mas estava tão cheia de mesas, estantes, pejadas de livros, pastas, latas, que mal se podia mover nella. Numa lata lia-se: Santa Anna dos Tócos; numa pasta: S. Bonifácio do Cabresto.
—Os Srs. não sabem, disse o velho poeta, que riqueza é a nossa poesia popular! que surprezas ella reserva!... Ainda ha dias recebi uma carta de Urubu, de Baixo com uma linda canção. Querem ver?
O colleccionador revolveu pastas e afinal trouxe de lá um papel onde leu:
—Não é bonito?... Muito! Se os Srs. conhecessem então o cyclo do macaco, a collecção de historias que o povo tem sobre o simio?... Oh! Uma verdadeira epopéa comica!
Quaresma olhava para o velho poeta com o espanto satisfeito de algum que encontrou um semelhante no deserto; e Albernaz, um momento contagiado pela paixão do foklorista, tinha mais intelligencia no olhar com que o encarava.
O velho poeta guardou, a canção de Urubu de Baixo, numa pasta; e foi logo á outra, donde tirou varias folhas de papel. Veio até junto aos dous visitantes e disse-lhes:
—Vou ler aos senhores uma pequena historia do macaco, das muitas que o nosso povo conta... Só eu já tenho perto de quarenta e pretendo publical-as, sob o titulo Historias do Mestre Simão.
E, sem perguntar se os incommodava ou se estavam dispostos a ouvir, começou:
«O macaco perante o juiz de direito. Andava um bando de macacos em troça, pulando de arvore em arvore, nas bordas de uma gróta. Eis senão quando, um delles vê no fundo uma onça que lá caira. Os macacos se enternecem e resolvem salval-a. Para isso, arrancaram cipós, emendaram-nos bem, amarraram a corda assim feita á cintura de cada um delles e atiraram uma das pontas á onça. Com o esforço reunido de todos, conseguiram içal-a e logo se desamarraram, fugindo. Um delles, porém, não o pôde fazer a tempo e a onça segurou-o immediatamente.
—Compadre Macaco, disse ella, tenha paciencia. Estou com fome e você vai fazer-me o favor de deixar-se comer.
O macaco rogou, instou, chorou; mas a onça parecia inflexivel. Simão então lembrou que a demanda fosse resolvida pelo juiz de direito. Foram a elle; o macaco sempre agarrado pela onça. É juiz de direito entre os animaes, o jaboty, cujas audiencias, são dadas á borda dos rios, collocando-se elle em cima de uma pedra. Os dous chegaram e o macaco expôz as suas razões.
O jaboty ouviu-os e no fim ordenou;
—Bata palmas.
Apezar de seguro pela onça, o macaco pôde assim mesmo bater palmas. Chegou a vez da onça, que tambem expôz as suas razões e motivos. O juiz, como da primeira vez, determinou ao felino:
—Bata palmas.
A onça não teve remedio senão largar o macaco, que se escapou, e tambem o juiz, atirando-se n'agua».
Acabando a leitura, o velho dirigiu-se aos dous:
—Não acham interessante? Muito! Ha no nosso povo muita invenção, muita creação, verdadeiro material para fabliaux interessantes... No dia em que apparecer um literato de genio que o fixe numa forma immortal... Ah! Então!
Dizendo isto, brincava nas suas faces um demorado sorriso de satisfação e nos seus olhos abrolhavam duas lagrimas furtivas.
—Agora, continuou elle, depois de passada a emoção—vamos ao que serve. O boi espacio ou o Bumba meu boi ainda é muita cousa para vocês... É melhor irmos de vagar, começar pelo mais facil... Está ahi o Tangolomango, conhecem?
—Não, disseram os dous.
—É divertido. Arranjem dez crianças, uma mascara de velho, uma roupa estrambolica para um dos Srs. que eu ensaio.
O dia chegou. A casa do General estava cheia. Cavalcanti viera; e elle e a noiva, á parte, no vão de uma janella, pareciam ser os unicos que não tinham interesse pela folia. Elle, falando muito, cheio de trejeitos no olhar; ella, meio fria, deitando de quando em quando, para o noivo, um olhar de gratidão.
Quaresma, foz o Tangolomango, isto é, vestiu uma velha sobrecasaca do General, pôz uma immensa mascara de velho, agarrou-se a um bordão curvo, em forma de baculo, e entrou na sala. As dez crianças cantaram em côro:
Por ahi, o major avançava, batia com o baculo no assoalho, fazia: hu! hu! hu! as crianças fugiam, afinal elle agarrava uma e levava para dentro. Assim ia executando com grande alegria da sala, quando, pela quinta estrophe, lhe faltou o ar, lhe ficou a vista, escura e cahiu. Tiraram-lhe a mascara, deram-lhe algumas sacudidelas e Quaresma voltou a si.
O accidente, entretanto, não lhe deu nenhum desgosto pelo folk-lore. Comprou livros, leu todas as publicações a respeito, mas a decepção lhe veiu ao fim de algumas semanas de estudo.
Quasi todas as tradições e canções eram estrangeiras; o proprio Tangolomango o era tambem. Tornava-se, portanto, precizo arranjar alguma cousa propria, original, uma creação da nossa terra e dos nossos ares.
Essa idéa levou-o a estudar os costumes tupinambás; e, como uma idéa traz outra, logo ampliou o seu proposito e eis a razão porque estava organizando um codigo de relações, de cumprimentos, de cerimonias domesticas e festas, calcado nos preceitos tupys.
Desde dez dias que se entregava a essa ardua tarefa, quando (era domingo) lhe bateram á porta, em meio de seu trabalho. Abriu, mas não apertou a mão. Desandou a chorar, a berrar, a arrancar os cabellos, como se tivesse perdido a mulher ou um filho. A irmã correu lá de dentro, o Anastacio tambem, e o compadre e a filha, pois eram elles, ficaram estupefactos no limiar da porta.
—Mas que é isso, compadre?
—Que é isso, Polycarpo?
—Mas, meu padrinho...
Elle ainda chorou um pouco. Enxugou as lagrimas e, depois, explicou com a maior naturalidade:
—Eis ahi! Vocês não têm a minima noção das cousas da nossa terra. Queriam que eu apertasse a mão... Isto não é nosso! Nosso cumprimento é chorar quando encontramos os amigos, era assim que faziam os tupinambás.
O seu compadre Vicente, a filha e D. Adelaide entreolharam-se, sem saber o que dizer. O homem estaria doido? Que extravagancia!
—Mas, Sr. Polycarpo, disse-lhe o compadre, é possivel que isto seja muito brasileiro, mas é bem triste, compadre.
—De certo, padrinho, accrescentou a moça com vivacidade; parece até agouro...
Este seu compadre era italiano de nascimento. A historia das suas relações vale a pena contar. Quitandeiro ambulante, fôra fornecedor da casa de Quaresma ha vinte e tantos annos. O Major já tinha as suas idéas patrioticas, mas não desdenhava conversar com o quitandeiro e até gostava de vel-o suado, curvado ao peso dos cestos, com duas rosas vermelhas nas faces muito brancas de europeu recem-chegado. Mas um bello dia, ia Quaresma pelo largo do Paço, muito distrahido, a pensar nas maravilhas architectonicas do chafariz do mestre Valentim, quando veio a encontrar-se com o mercador ambulante. Falou-lhe com aquella simplicidade d'alma que era bem sua, e notou que o rapaz tinha alguma preoccupação séria. Não só de onde em onde, soltava exclamações sem ligação com a conversa actual, como tambem, cerrava os labios, rilhava os dentes e crispava raivosamente os punhos. Interrogou-o e veio a saber que tivera uma questão de dinheiro com um seu collega, estando disposto a matal-o, pois perdera o credito e em breve estaria na miseria. Havia na sua affirmação uma tal energia e um grande e extranho accento de ferocidade, que fizeram empregar o Major toda a sua doçura e persuasão para dissuadil-o do proposito. E não ficou nisto só: emprestou-lhe tambem dinheiro. Vicente Coleoni poz uma quitanda, ganhou uns contos de réis, fez-se logo empreiteiro, enriqueceu, casou, veiu a ter aquella filha, que foi levada á pia pelo seu bemfeitor. Inutil é dizer que Quaresma não notou a contradicção entre as suas idéas patrioticas e o seu acto.
É verdade que elle não as tinha ainda muito firmes, mas já fluctuavam na sua cabeça e reagiam sobre a sua consciencia como tenues desejos, veleidades de rapaz de pouco mais de vinte annos, veleidades que não tardariam tomar consistencia, e só esperavam os annos para desabrochar em actos.
Fora, pois, ao seu compadre Vicente e á sua afilhada Olga que elle recebera com o mais legitimo ceremonial guaytacaz, e, se não envergara o traje de rigor de tão interessante povo, motivo não foi o não tel-o. Estava até á mão, mas faltava-lhe tempo para despir-se.
—Lê-se muito, padrinho? perguntou-lhe a afilhada, deitando sobre elle os seus olhos muito luminosos.
Havia entre os dous uma grande affeição. Quaresma era um tanto reservado e o vexame de mostrar os seus sentimentos faziam-no economico nas demonstrações affectuosas. Adivinhava-se, entretanto, que a moça occupava-lhe no coração o logar dos filhos que não tivera nem teria jamais. A menina vivaz, habituada a falar alto e desembaraçadamente, não escondia a sua affeição tanto mais que sentia confusamente nelle alguma cousa da superior, uma ancia de idéal, uma tenacidade em seguir um sonho, uma idéa, um vôo emfim para as altas regiões do espirito que ella não estava habituada a ver em ninguem do mundo que frequentava. Essa admiração não lhe vinha da educação. Recebera a commum ás moças de seu nascimento. Vinha de um pendôr proprio, talvez das proximidades européas do seu nascimento, que a fizeram um pouco differente das nossas moças.
Fora com um olhar luminoso e prescrutador que ella perguntara ao padrinho.
—Então padrinho, lê-se muito?
—Muito, minha filha. Imagina que medito grandes obras, uma reforma, a emancipação de um povo.
Vicente fôra com D. Adelaide para o interior da casa e os dous conversavam a sós na sala dos livros. A afilhada notou que Quaresma tinha alguma cousa de mais. Falava agora com tanta segurança, elle que antigamente era tão modesto, hesitante mesmo no falar—que diabo! Não, não era possivel... Mas, quem sabe? E que singular alegria havia nos seus olhos—uma alegria de mathematico que resolveu um problema, de inventor feliz!
—Não se vá metter em alguma conspiração, disse a moça gracejando.
—Não te assustes por isso. A cousa vai naturalmente, não é preciso violencias...
Nisto Ricardo Coração dos Outros entrou com o seu longo e rabudo fraque de sarja e o seu violão encapotado em camurça. O Major fez as apresentações.
—Já o conhecia de nome, Sr. Ricardo, disse Olga.
Coração dos Outros encheu-se de um alviçareiro contentamento. A sua physionomia minguada dilatou-se ao brilho do seu olhar satisfeito; e a sua cutis que era reseccada e de um tom de velho marmore, como que ficou macia e joven. Aquella moça parecia rica, era fina e bonita, conhecia-o—que satisfação! Elle que era sempre um tanto parvo e atrapalhado, quando se encontrava diante das moças, fossem de que condição fossem, animava-se, soltava a lingua, amaciava a voz e ficava numeroso e eloquente.
—Leu então os meus versos, não é, minha senhora?
—Não tive esse prazer, mas li, ha mezes, uma apreciação sobre um trabalho seu.
—No «Tempo», não foi?
—Foi.
—Muito injusta! accrescentou Ricardo. Todos os criticos se atêm a essa questão de metrificação. Dizem que os meus versos não são versos... São, sim; mas são versos para violão. V. Ex. sabe que os versos para musica têm alguma cousa de differente dos communs, não é? Não ha, portanto, nada a admirar que os meus versos, feitos para violão, sigam outra metrica e outro systema, não acha?
—De certo, disse a moça. Mas parece-me que o Sr. faz versos para a musica e não musica para os versos.
E ella sorriu devagar, enigmaticamente, deixando parado o seu olhar luminoso, emquanto Ricardo, desconfiado, lhe sondava a intenção com os seus olhinhos vivos e meudos de camondongo.
Quaresma, que até ali se conservava calado, interveio:
—O Ricardo, Olga, é um artista... Tenta e trabalha para levantar o violão.
—Eu sei, padrinho. Eu sei...
—Entre nós, minha senhora, falou Coração dos Outros, não se levam a serio essas tentativas nacionaes mas, na Europa, todos respeitam e auxiliam... Como é que se chama, major, aquelle poeta que escreveu em francez popular?
—Mistral, acudiu Quaresma, mas não é francez popular; é o provençal, uma verdadeira lingua.
—Sim, é isso, confirmou Ricardo. Pois o Mistral não é considerado, respeitado? Eu, no tocante ao violão, estou fazendo o mesmo.
Olhou triumphante para um e outro circumstante: e Olga dirigindo-se a elle, disse:
—Continue na tentativa, Sr. Ricardo, que é digno de louvor.
—Obrigado. Fique certa, minha senhora, que o violão é um bello instrumento e tem grandes difficuldades. Por exemplo...
—Qual! interrompeu Quaresma abruptamente. Ha outros mais difficeis.
—O piano? perguntou Ricardo.
—Que piano! O maracá, a inubia.
—Não conheço.
—Não conheces? É boa! Os instrumentos mais nacionaes possiveis, os unicos que o são verdadeiramente; instrumentos dos nossos antepassados, daquella gente valente que se bateu e ainda se bate pela posse desta linda terra. Os caboclos!
—Instrumento de caboclo, ora! disse Ricardo.
—De caboclo! Que é que tem? O Lery diz que são muito sonoros e agradaveis de ouvir... Se é por ser de caboclo, o violão tambem não vale nada—é um instrumento do capadocio.
—De capadocio, major! Não diga isso...
E os dous ainda discutiram acaloradamente diante da moça, surpreza, espantada, sem atinar, som explicação para aquella inopinada transformação de genio do seu padrinho, até ali tão socegado e tão calmo.
—Então quando se casa, D. Ismenia?
—Em Março. Cavalcanti já está formado e...
Afinal a filha do General pôde responder com segurança á pergunta que se lhe vinha fazendo ha quasi cinco annos. O noivo finalmente encontrara o fim do curso de dentista e marcara o casamento para dahi a tres mezes. A alegria foi grande na familia; e, como em tal caso, uma alegria não podia passar sem um baile, uma festa foi annunciada para o sabbado que se seguia ao pedido da pragmatica.
As irmãs da noiva, Quinota, Zizi, Lalá e Vivi, estavam mais contentes que a irmã nubente. Parecia que ella lhes ia deixar o caminho desembaraçada, e fôra a irmã quem até ali tinha impedido que se casassem.
Noiva havia quasi cinco annos, Ismenia já se sentia meio casada. Esse sentimento junto á sua natureza pobre fel-a não sentir um pouco mais de alegria. Ficou no mesmo. Casar, para ella, pão era negocio de paixão, nem se inseria no sentimento ou nos sentidos: era uma idéa, uma pura idéa. Aquella sua intelligencia rudimentar tinha separado da idéa de casar o amor, o prazer dos sentidos, uma tal ou qual liberdade, a maternidade, até o noivo. Desde menina, ouvia a mamãe dizer: «Aprenda a fazer isso, porque quando você se casar»... Ou senão: «Você preciza aprender a pregar botões, porque quando você se casar...»
A todo instante e a toda hora, lá vinha aquelle—«porque, quando você se casar...»—e a menina foi se convencendo de que toda a existencia só tendia para o casamento. A instrucção, as satisfações intimas, a alegria, tudo isso era inutil; a vida se resumia numa cousa: casar.
De resto, não era só dentro do sua familia que ella encontrava aquella preoccupação. No collegio, na rua, em casa das familias conhecidas, só se falava em casar. «Sabe, D. Maricota, a Lili casou-se; não fez grande negocio, pois parece que o noivo não é lá grande cousa»; ou então: «A Zezé está doida para arranjar casamento mas é tão feia, meu Deus!...»
A vida, o mundo, a variedade intensa dos sentimentos, das idéas, o nosso proprio direito á felicidade, foram parecendo ninharias para aquelle cerebrozimho; e, de tal forma casar-se se lhe representou cousa importante, uma especie de dever, que não se casar, ficar solteira, tia, parecia-lhe um crime, uma vergonha.
De natureza muito pobre, sem capacidade para sentir qualquer cousa profunda e intensamente, sem quantidade emocional para a paixão ou para um grande afecto, na sua intelligencia a idéa de casar-se incrustou-se teimosamente como uma obsessão.
Ella não era feia; amorenada, com os seus traços acanhados, o narizinho mal feito, mas galante, não muito baixa nem muito magra e a sua apparencia de bondade passiva, de indolencia de corpo, de idéas e de sentidos era até um bom typo das meninas a que os namorados chamam—bonitinhas. O seu traço de belleza dominante, porém, eram os seus cabellos: uns bastos cabellos castanhos, com tons de ouro, sedosos até ao olhar.
Aos dezenove annos arranjou namoro com o Cavalcanti, e á fraqueza de sua vontade e ao temor de não encontrar marido não foi estranha a facilidade com que o futuro dentista a conquistou.
O pai fez má cara. Elle andava sempre ao par dos namoros das filhas: «Diga-me sempre, Maricota—dizia elle—quem são. Olho vivo!...» É melhor prevenir que curar... Póde ser um valdevinos e...» Sabendo que o pretendente á Ismenia era um dentista, não gostou muito. Que é um dentista? perguntava elle de si para si. Um cidadão semi-formado, uma especie de barbeiro. Preferia um official, tinha montepio e meio soldo; mas a mulher convenceu-o de que os dentistas ganham muito, e elle accedeu.
Começou então Cavalcanti a frequentar a casa na qualidade de noivo paisano isto é, que não pediu, não é ainda official.
No fim do primeiro anno, tendo noticia das difficuldades com que o futuro genro lutava para acabar os estudos, o General foi generosamente em seu soccorro. Pagou-lhe taxas de matriculas, livros e outras cousas. Não era raro que após uma longa conversa com a filha, D. Maricota viesse ao marido e dissesse: «Chico, arranja-me vinte mil réis que o Cavalcanti precisa comprar uma Anatomia».
O General era leal, bom e generoso; a não ser a sua pretenção marcial, não havia no seu caracter a minima falha. Demais, aquella necessidade de casar as filhas ainda o faziam melhor quando se tratava dos interesses dellas.
Elle ouvia a mulher, coçava a cabeça e dava o dinheiro; e até para evitar despezas ao futuro genro, convidou-o a jantar em casa todo o dia; e assim o namoro foi correndo até ali.
Enfim—dizia Albernaz á mulher, na noite do pedido, quando já recolhidos—a cousa vai acabar. Felizmente, respondia-lhe D. Maricota, vamos descontar esta lettra.
A satisfação resignada do General era porém, falsa; ao contrario: elle estava radiante. Na rua, se encontrava um camarada, no primeiro momento azado, lá dizia elle:
—É um inferno, esta vida! imagina tu, Castro, que ainda por cima tenho que casar uma filha!
Ao que Castro interrogava:
—Qual dellas?
—A Ismenia, a segunda, respondia Albernaz e logo accrescentava: tu é que és feliz: só tiveste filhos.
—Ah! meu amigo! falava o outro cheio de malicia, aprendi a receita. Porque não fizeste o mesmo?
Despedindo-se, o velho Albernaz corria aos armazens, ás lojas de louça, comprava mais pratos, mais compoteiras, um centro de mesa, porque a festa devia ser imponente e ter um ar de abundancia e riqueza que traduzisse o seu grande contentamento.
Na manhã do dia da festa commemorativa do pedido, D. Maricota amanheceu cantando. Era raro que o fizesse: mas nos dias de grande alegria, ella cantarolava uma velha aria, uma cousa do seu tempo de moça e as filhas que sentiam nisto signal certo de alegria corriam a ella, pedindo-lhe isto ou aquillo.
Muito activa, muito diligente, não havia dona de casa mais economica, mais poupada e que fizesse render mais o dinheiro do marido e o serviço das criadas. Logo que despertou, pôz tudo em actividade, as criadas e as filhas. Vivi e Quinota fôram para os doces; Lalá e Zizi auxiliaram as raparigas na arrumação das salas e dos quartos, emquanto ella e Ismenia iam arrumar a mesa, dispol-a com muito gosto e esplendor. O movel ficaria assim galhardo desde as primeiras horas do dia. A alegria de D. Maricota era grande; ella não comprehendia que uma mulher pudesse viver sem estar casada. Não eram só os perigos a que se achava exposta, a falta de arrimo; parecia-lhe feio e deshonroso para a familia. A sua satisfação não vinha do simples facto de ter descontado uma letra, como ella dizia. Vinha mais profundamente dos seus sentimentos maternos e de familia.
Ella arrumava a mesa, nervosa e alegre; e a filha fria e indifferente.
—Mas, minha filha, dizia ella, até parece que não é você quem se vai casar! Que cara! Você parece ahi uma mosca morta.
—Mamãe, que quer que eu faça?
—Não é bonito rir-se muito, andar ahi como uma serigaita, mas tambem assim como você está! Eu nunca vi noiva assim.
Durante uma hora, a moça esforçou-se por parecer muito alegre, mas logo lhe tomava toda a pobreza de sua natureza, incapaz de vibração sentimental, e o natural do seu temperamento vencia-a e não tardava em cahir naquelle doentia lassidão que lhe era propria.
Veiu muita gente. Além das moças e as respeitaveis mães, acudiram ao convite do General, o Contra-Almirante Caldas, o Dr. Florencio, engenheiro das Aguas, o Major honorario Innocencio Bustamante, o Sr. Bastos, guarda-livros, ainda parente de D. Maricota, e outras pessoas importantes. Ricardo não fôra convidado porque o General temia a opinião publica sobre a presença delle em festa seria; Quaresma o fôra, mas não viéra; e Cavalcanti jantara com os futuros sogros.
Ás seis horas, a casa já estava cheia. As moças cercavam Ismenia, cumprimentado-a, não sem um pouco de inveja no olhar.
Irene, uma alourada e alta, aconselhava:
—Eu, se fosse você, comprava tudo no Parque.
Tratava-se do enxoval. Todas ellas, embora solteiras, davam conselhos, sabiam as casas barateiras, as peças mais importantes e as que podiam ser dispensadas. Estavam ao par.
A Armanda indicava com um requebro feiticeiro nos olhos:
—Eu, hontem, vi na rua da Constituição um dormitorio de casal, muito bonito, você porque não vai ver, Ismenia? Parece barato.
A Ismenia era a menos enthusiasmada, quasi não respondia ás perguntas; e, se as respondia, ora por monosyllabos. Houve um momento em que sorriu quasi com alegria e abandono. Estephania, a doutora, a normalista, que tinha nos dedos um annel, com tantas pedras que nem uma joalheria, num dado momento, chegou a boca carnuda aos ouvidos da noiva e fez uma confidencia. Quando deixou de segredar-lhe, assim como se quizesse confirmar o dito, dilatou muito os seus olhos maliciosos e quentes, e disse alto:
—Eu quero ver isso... Todas dizem que não... Eu sei...
Ella alludia á resposta que, á sua confidencia, Ismenia tinha dado com parcimonia: qual o que!
Todas ellas, conversando, tinham os olhos no piano. Os rapazes e uma parte dos velhos rodeavam Cavalcanti, muito solenne, dentro de um grande fraque preto.
—Então, Dr. acabou, heim? dizia este a geito de um cumprimento.
—É verdade! Trabalhei. Os senhores não imaginam os tropeços, os embargos—fui de um heroismo!...
—Conhece o Chavantes? perguntava um outro.
—Conheço. Um chronico, um pandego...
—Foi seu collega?
—Foi, isto é, elle é do curso de medicina. Matriculamo-nos no mesmo anno.
Cavalcanti ainda não tinha tido tempo de attender a este e já era obrigado a ouvir a observação de outro.
—É muito bonito ser formado. Se eu tivesse ouvido meu pai, não estava agora a quebrar a cabeça no Dever e Haver. Hoje, torço a orelha e não sai sangue.
—Actualmente, não vale nada, meu caro senhor, dizia modestamente Cavalcanti. Com essas academias livres... Imaginem que já se fala numa Academia Livre de Odontologia! É o cumulo! Um curso difficil e caro, que exige cadaveres, apparelhos, bons professores, como é que particulares poderão mantel-o? Se o Governo mantem mal...
—Pois doutor, acudia um outro, dou-lhe meus parabens. Digo-lhe o que disse ao meu sobrinho, quando se formou: vá furando!
—Ah! Seu sobrinho é formado? inquiria delicadamente Cavalcanti.
—Em engenharia. Está no Maranhão, na Estrada de Caxias.
—Boa carreira.
Nos intervallos da conversa, todos elles olhavam o novel dentista como se fosse um ente sobrenatural.
Para aquella gente toda, Cavalcanti não era mais um simples homem, era homem e mais alguma cousa sagrada e de essencia superior; e não juntavam á imagem que tinham delle actualmente, as cousas que porventura elle pudesse saber ou tivesse aprendido. Isto não entrava nella de modo algum; e aquelle typo, para alguns, continuava a ser vulgar, commum, na apparencia, mas a sua substancia tinha mudado, era outra differente da delles e fora ungido de não sei que cousa vagamente fóra da natureza terrestre, quasi divina.
Para o lado de Cavalcanti, que se achava na sala de visitas, vieram os menos importantes. O General ficara na sala de jantar, fumando, cercado dos mais titulados e dos mais velhos. Estavam com elle o Contra-Almirante Caldas, o Major Innocencio, o Dr. Florencio e o Capitão de Bombeiros Segismundo.
Innocencio aproveitou a occasião para fazer uma consulta a Caldas sobre assumpto de legislação militar. O Contra-Almirante era interessantissimo. Na marinha, por pouco que não fazia pendant com Albernaz no Exercito. Nunca embarcara a não ser na guerra do Paraguay, mas assim mesmo por muito pouco tempo. A culpa, porém, não era delle. Logo que se viu 1° Tenente, Caldas foi aos poucos se mettendo comsigo, abandonando a roda dos camaradas, de forma que, sem empenhos e sem amigos nos altos logares, se esqueciam delle e não lhe davam commissões de embarque. É curiosa essa cousa das administrações militares: as commissões são merecimento, mas só se as dá aos protegidos.
Certa vez, quando era já Capitão Tenente, deram-lhe um embarque em Matto Grosso. Nomearam-no para commandar o couraçado «Lima Barros». Elle lá foi, mas, quando se apresentou ao commandante da flotilha, teve noticia que não existia no rio Paraguay semelhante navio. Indagou daqui e dali e houve quem aventurasse que podia ser que o tal «Lima Barros» fizesse parte da esquadrilha do Alto-Uruguay. Consultou o commandante.
—Eu, no seu caso, disse-lhe o superior, partia immediatamente para a flotilha do Rio Grande.
Eil-o a fazer malas para o Alto-Uruguay, onde chegou emfim, depois de uma penosa e fatigante viagem. Mas ahi tambem não estava o tal «Lima Barros». Onde estaria então? Quiz telegraphar para o Rio de Janeiro, mas teve medo de ser censurado, tanto mais, que não andava em cheiro de santidade. Esteve assim um mez em Itaqui, hesitante, sem receber soldo e sem saber que destino tomar. Um dia lhe veiu a idéa de que o navio bem poderia estar no Amazonas. Embarcou na intenção de ir ao extremo norte e quando passou pelo Rio, conforme a praxe, apresentou-se ás altas autoridades da Marinha. Foi preso e submettido a conselho.
O «Lima Barros» tinha ido a pique, durante a guerra do Paraguay.
Embora absolvido, nunca mais entrou em graça dos ministros e dos seus generaes. Todos o tinham na conta de parvo, de um commandante de opereta que andava á cata do seu navio pelos quatro pontos cardeaes. Deixaram-n'o encostado, como se diz na gyria militar, e elle levou quasi quarenta annos para chegar de Guarda-Marinha a Capitão de Fragata. Reformado no posto immediato, com graduação do seguinte, todo o seu azedume contra a Marinha se concentrou num longo trabalho de estudar leis, decretos, alvarás, avisos, consultas, que se referissem a promoções de officiaes. Comprava repertorios de legislação, armazenava collecções de leis, relatorios, e encheu a casa de toda essa enfadonha e fatigante literatura administrativa. Os requerimentos, pedindo a modificação da sua reforma, choviam sobre os ministros da Marinha. Corriam mezes o infinito rosario de repartições e eram sempre indeferidos, sobre consultas do Conselho Naval ou do Supremo Tribunal Militar. Ultimamente constituira advogado junto á justiça federal e lá andava elle de cartorio em cartorio, acotovelando-se com meirinhos, escrivães, juizes e advogados—esse poviléo rebarbativo do fôro que parece ter contrahido todas as miserias que lhe passam pelas mãos e pelos olhos.
Innocencio Bustamante tambem tinha a mesma mania demandista. Era renitente, teimoso, mas servil e humilde. Antigo voluntario da patria, possuindo honras de Major, não havia dia em que não fosse ao quartel general ver o andamento do seu requerimento e de outros. Num pedia inclusão no Asylo dos Invalidos, noutro honras de Tenente-Coronel, noutro tal ou qual medalha; e, quando não tinha nenhum, ia ver o dos outros.
Não se prezou mesmo de tratar do pedido de um maniaco que, por ser tenente honorario e tambem da Guarda Nacional, requereu lhe fosse passada a patente de major, visto que dous galões mais outros dous fazem quatro—o que quer dizer: Major.
Conhecedor dos estudos meticulosos do Almirante, Bustamante fez a sua consulta.
—Assim de prompto, não sei. Não é a minha especialidade o Exercito, mas vou ver. Isto tambem anda tão atrapalhado!
Acabando de responder coçava um dos seus favoritos brancos que lhe davam um ar de commodoro ou de chacareiro portuguez, pois era forte nelle o typo luzitano.
—Ah! meu tempo, observou Albernaz. Quanta ordem! Quanta disciplina!
—Não ha mais gente que preste, disse Bustamante.
Segismundo por ahi aventurou tambem a sua opinião dizendo:
—Eu não sou militar, mas...
—Como não é militar? fez Albernaz com impeto. Os Srs. é que são os verdadeiros: estão sempre com o inimigo na frente, não acha Caldas?
—De certo, de certo, fez o Almirante cofiando os favoritos.
—Como ia dizendo, continuou Segismundo, apezar de não ser militar, eu me animo, a dizer que a nossa força está muito por baixo. Onde está um Porto Alegre, um Caxias?
—Não ha mais, meu caro, confirmou com voz tenue o Dr. Florencio.
—Não sei porque, pois tudo hoje não vai pela sciencia?
Fôra Caldas quem falara, tentando a ironia. Albernaz indignou-se e retrucou-lhe com certo calor:
—Eu queria ver esses meninos bonitos, cheios de xx e yy, em Curupaity, hein Caldas? hein Innocencio?
O Dr. Florencio era o unico paisano da roda. Engenheiro e empregado publico, os annos e o socego da vida lhe tinham feito perder todo o saber que porventura pudesse ter tido ao sahir da escola. Era mais um guarda de encanamentos do que mesmo um engenheiro. Morando perto de Albernaz, era raro que não viesse roda a tarde jogar o sólo com o General. O Dr. Florencio perguntou:
—O Sr. assistiu, não foi, General?
O General não se deteve, não, se atrapalhou, não gaguejou e disse com a maxima naturalidade:
—Não assisti. Adoeci e vim para o Brasil nas vesperas. Mas tive muitos amigos lá: o Camisão, o Venancio...
Todos se calaram e olharam a noite que chegava. Da janella da sala onde estavam, não se via nem um monte. O horizonte estava circumscripto aos fundos dos quintaes das casas vizinhas com as suas cordas de roupa a lavar, suas chaminés e o piar de pintos. Um tamarineiro sem folhas lembrava tristemente o ar livre, as grandes vistas sem fim. O sol já tinha desapparecido do horizonte e as tenues luzes dos bicos de gaz e dos lampeões familiares começavam a accender-se por detraz das vidraças.
Bustamante quebrou o silencio:
—Este paiz pão vale mais nada. Imaginem que o meu requerimento, pedindo honras de Tenente Coronel, está no ministerio ha seis mezes!
—Uma desordem, exclamaram todos.
Era noite. D. Maricota chegou até onde elles estavam, muito activa, muito diligente e com o rosto aberto de alegria.
—Estão rezando? E logo ajuntou: dão licença que diga uma cousa ao Chico, sim?
Albernaz sahiu fóra da róda dos amigos e foi até a um canto da sala, onde a mulher lhe disse alguma cousa em voz baixa. Ouviu a mulher, depois voltou aos amigos e, no meio do caminho, falou alto, nestes termos:
—Se não dançam é porque não querem. Estou pegando algum?
D. Maricota approximou-se dos amigos do marido e explicou:
—Os senhores sabem: se a gente não animar, ninguem tira par, ninguem, tóca. Estão lá tantas moças, tantos rapazes, é uma pena!
—Bem; eu vou lá, disse Albernaz.
Deixou os amigos e foi á sala de visitas dar começo ao baile.
—Vamos, meninas! Então o que é isso? Zizi, uma valsa!
E elle mesmo em pessoa ia juntando os pares: «Não General, já tenho par, dizia uma moça. Não faz mal, retrucava elle, danse com o Raymundinho; o outro espera». Depois de ter dado inicio ao baile, veio para a roda dos amigos, suado, mas contente.
—Isto de familia! Qual! A gente até parece bôbo, dizia. Você é que fez bem, Caldas; não se quiz casar!
—Mas tenho mais filhos que você. Só sobrinhos, oito; e os primos?
—Vamos jogar o sólo, convidou Albernaz.
—Somos cinco, como ha de ser? observou Florencio.
—Não, eu não jogo, disse Bustamante.
—Então jogamos os quatro de garancho? lembrou Albernaz.
As cartas vieram e tambem uma pequena mesa de tripeça. Os parceiros sentaram-se e tiraram a sorte para ver quem dava. Coube a Florencio dar. Começaram, Albernaz tinha um ar attento quando jogava: a cabeça lhe cahia sobre as costas e os seus olhos tomavam uma grande expressão de reflexão. Caldas aprumava o busto na cadeira e jogava com a serenidade de um Lord Almirante numa partida de «whist». Segismundo jogava com todo o cuidado, com o cigarro no canto da boca e a cabeça do lado para fugir á fumaça. Bustamante fôra á sala ver as dansas.
Tinham começado a partida, quando dona Quinota, uma das filhas do General, atravessou a sala e foi beber agua. Caldas, coçando um dos favoritos, perguntou á moça:
—Então, D. Quinota, que dê o Genelicio?
A moça virou o rosto com faceirice, deu um pequeno muchocho e respondeu com falso máu humor:
—Ué! Sei lá! Ando atrás delle?
—Não precisa zangar-se, D. Quinota; é uma simples pergunta, advertiu Caldas.
O General que examinava attentamente as cartas recebidas, interrompeu a conversa com voz grave:
—Eu passo.
D. Quinota retirou-se. Este Genelicio ora o seu namorado. Parente ainda de Caldas, tinha-se como certo o seu casamento na familia. A sua candidatura era favorecida por todos. D. Maricota e o marido enchiam-n'o de festas. Empregado do Thesouro, já no meio da carreira, moço de menos de trinta annos, ameaçava ter um grande futuro. Não havia ninguem mais bajulador e submisso do que elle. Nenhum pudor, nenhuma vergonha! Enchia os chefes e os superiores de todo o incenso que podia. Quando sahia, remancheava, lavava tres ou quatro vezes as mãos, até poder apanhar o director na porta. Acompanhava-o, conversava com elle sobre o serviço, dava pareceres e opiniões, criticava este ou aquelle collega, e deixava-o no bonde, se o homem ia para casa. Quando entrava um ministro, fazia-se escolher como interprete dos companheiros e deitava um discurso; nos anniversarios de nascimento, era um soneto que começava sempre por—salve—e acabava tambem por—Salve! Tres vezes Salve!
O modelo era sempre o mesmo; elle só mudava o nome do ministro e punha a data.
No dia seguinte, os jornaes falavam do seu nome, e publicavam o soneto.
Em quatro annos, tinha tido duas promoções e agora trabalhava para ser aproveitado no Tribunal de Contas, a se fundar, num posto acima.
Na bajulação e nas manobras para subir, tinha verdadeiramente genio. Não se limitava ao soneto, ao discurso; buscava outros meios, outros processos. Um dos que se servia, eram as publicações nas folhas diarias. No intuito de annunciar nos ministros e directores que tinha uma erudição superior, de quando em quando desovava nos jornaes longos artigos sobre contabilidade publica. Eram meras compilações de bolorentos decretos, salpicadas aqui e ali com citações de autores francezes ou portuguezes.
Interessante é que os companheiros o respeitavam, tinham em grande conta o seu saber e elle vivia na secção cercado do respeito de um genio, um genio do papelorio e das informações. Accresce que Genelicio juntava á sua segura posição administrativa, um curso de direito a acabar; e tantos titulos juntos não podiam deixar de impressionar favoravelmente ás preoccupações casamenteiras do casal Albernaz.
Fóra da repartição, tinha um empertigamento que o seu pobre physico fazia comico, mas que a convicção do alto auxilio que prestava ao Estado, mantinha e sustentava. Um empregado modelo!...
O jogo continuava silenciosamente e a noite avançava. No fim das mãos fazia-se um breve commentario ou outro, e no começo ouviam-se unicamente as falas sacramentaes do jogo; sólo, bólo, melhoro, passo. Feitas ellas jogava-se em silencio; da sala, porém, vinha o ruido festivo das dansas e das conversas.
—Olhem quem está ahi!
—O Genelicio, fez Caldas. Onde estiveste, rapaz?
Deixou o chapéo e a bengala numa cadeira e fez os cumprimentos. Pequeno, já um tanto curvado, chupado de rosto, com um pince-nez azulado, todo elle trahia a profissão, os seus gostos e habitos. Era um escripturario.
—Nada, meus amigos! Estou tratando dos meus negocios.
—Vão bem? perguntou Florencio.
—Quasi garantido. O Ministro prometteu... Não ha nada, estou bem cunhado!
—Estimo muito, disse o General.
—Obrigado. Sabe de uma cousa, General?
—O que é?
—O Quaresma está doido.
—Mas... o que? quem foi que te disse?
—Aquelle homem do violão. Já está na casa de saude...
—Eu logo vi, disse Albernaz, aquelle requerimento era de doido.
—Mas não é só, General, accrescentou Genelicio, Fez um officio em tupy e mandou ao ministro.
—É o que eu dizia, fez Albernaz.
—Quem é? perguntou Florencio.
—Aquelle vizinho, empregado do Arsenal, não conhece?
—Um baixo, de pince-nez?
—Este mesmo, confirmou Caldas?
—Nem se podia esperar outra cousa, disse o Dr. Florencio. Aquelles livros, aquella mania de leitura...
—P'ra que elle lia tanto? indagou Caldas.
—Telha de menos, disse Florencio.
Genelicio atalhou com autoridade:
—Elle não era formado, para que metter-se em livros?
—É verdade, fez Florencio.
—Isto de livros é bom para os sabios, para os doutores, observou Segismundo.
—Devia até ser prohibido, disse Genelicio, a quem não possuisse um titulo academico ter livros. Evitavam-se assim essas desgraças. Não acham?
—De certo, disse Albernaz.
—De certo, fez Caldas.
—De certo, disse tambem Segismundo.
Calaram-se um instante, e as attenções convergiram para o jogo.
—Já sahiram todos os trunfos?
—Contasse, meu amigo.
Albernaz perdeu e lá na sala fez-se silencio. Cavalcanti ia recitar. Atravessou a sala triumphantemente, com um largo sorriso na face e foi postar-se ao lado do piano, Zizi acompanhava. Tossiu e, com a sua voz metallica, apurando muito os finaes em s, começou:
E o piano gemia.
Os acontecimentos a que alludiam os graves personagens reunidos em tomo da mesa de sólo, na tarde memoravel da festa commemorativa do pedido de casamento de Ismenia, se tinham desenrolado com rapidez fulminante. A força de idéas e sentimentos contidos em Quaresma se havia revelado em actos imprevistos com uma sequencia brusca e uma velocidade de turbilhão. O primeiro facto surprehendeu, mas vieram outros e outros, de forma que o que pareceu no começo uma extravagancia, uma pequena mania, se apresentou logo em insania declarada.
Justamente algumas semanas antes do pedido de casamento, ao abrir-se a sessão da Camara, o Secretario teve que proceder á leitura de um requerimento singular e que veiu a ter uma fortuna de publicidade e commentario pouco usual em documentos de tal natureza.
O borborinho e a desordem que caracterizam o recolhimento indispensavel ao elevado trabalho de legislar, não permittiram que os deputados o ouvissem; os jornalistas, porém, que estavam proximo á mesa, ao ouvil-o, proromperam em gargalhadas, certamente inconvenientes á magestade do logar. O riso é contagioso. O Secretario, no meio da leitura, ria-se, discretamente; pelo fim, já ria-se o Presidente, ria se o official da acta, ria-se o continuo—toda a mesa e aquella população que a cerca, riram-se da petição, largamente, querendo sempre conter o riso, havendo em alguns tão franca alegria que as lagrimas vieram.
Quem soubesse o que uma tal folha de papel representava de esforço, de trabalho, de sonho generoso e desinteressado, havia de sentir uma penosa tristeza, ouvindo aquelle rir inoffensivo diante della. Merecia raiva, odio, um deboche de inimigo talvez, o documento que chegava á mesa da Camara, mas não aquelle recebimento hilarico, de uma hilaridade innocente, sem fundo algum, assim como se estivesse a rir de uma palhaçada, de uma sorte de circo de cavallinhos ou de uma careta de clown.
Os que riam, porém, não lhe sabiam a causa e só viam nelle um motivo para riso franco e sem maldade. A sessão daquelle dia fôra fria; e, por ser assim, as secções dos jornaes referentes á Camara, no dia seguinte, publicaram o seguinte requerimento e glosaram-no em todos os tons.
Era assim concebida a petição:
«Polycarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funccionario publico, certo de que a lingua portugueza é emprestada ao Brasil; certo tambem de que, por esse facto, o falar e o escrever em geral, sobretudo no campo das lettras, se vêm na humilhante contigencia de soffrer continuamente censuras asperas dos proprietarios da lingua; sabendo, além, que, dentro do nosso paiz, os autores os escriptores, com especialidade os grammaticos, não se entendem no tocante á correcção grammatical, vendo-se, diariamente, surgir azedas polemicas entre os mais profundos estudiosos do nosso idioma—usando do direito que lhe confere a Constituição, vem pedir que o Congresso Nacional decrete o tupy-guarany, como lingua official e nacional do povo brasileiro.
O supplicante, deixando de parte os armamentos historicos que militam em favor de sua idéa, pede venia para lembrar que a lingua é o mais alta manifestação da intelligencia de um povo, é a sua creação mais viva e original; e, portanto, a emancipação política do paiz requer como complemento e consequencia a sua emancipação idiomatica.
Demais, Srs. Congressistas, o tupy-guarany, lingua originalissima, agglutinante, é verdade, mas que o polysynthetismo dá multiplas feições de riqueza, é a unica capaz de traduzir as nossas bellezas, de pôr-nos em relação com a nossa natureza e adaptar-se perfeitamente aos nossos orgãos vocaes e cerebraes, por ser creação de povos que aqui viveram e ainda vivem, portanto possuidores da organização physiologica e psychologica para que tendemos, evitando-se dessa fórma as estereis controversias grammaticaes, oriundas de uma difficil adaptação de uma lingua de outra região á nossa organização cerebral e ao nosso apparelho vocal—controversias que tanto impecem o progresso da nossa cultura literaria, scientifica e philosophica.
Seguro de que a sabedoria dos legisladores saberá encontrar meios para realizar semelhante medida e conscio de que a Camara e o Senado pezarão o seu alcance e utilidade P. e E. deferimento».
Assignado e devidamente estampilhado, este requerimento do Major foi durante dias assumpto de todas as palestras. Publicado em todos os jornaes, com commentarios facetos, não havia quem não fizesse uma pilheria sobre elle, quem não ensaiasse um espirito á custa da lembrança de Quaresma. Não ficaram nisso; a curiosidade malsã quiz mais. Indagou-se quem era, de que vivia, se era casado, se era solteiro. Uma illustração semanal publicou-lhe a caricatura e o Major foi apontado na rua.
Os pequenos jornaes alegres, esses semanarios de espirito e troça, então! eram «de um encarniçamento atroz com o pobre Major. Como uma abundancia que marcava a felicidade dos redactores em terem encontrado um assumpto facil, o texto vinha cheio delle: o Major Quaresma disse isso; o Major Quaresma fez aquillo.
Um delles, além de outras referencias, occupou uma pagina inteira com o assumpto da semana. Intitulava-se a illustração: «O matadouro de Santa Cruz, segundo o Major Quaresma», e o desenho representava uma fila de homens e mulheres a marchar para o choupo que se via á esquerda. Um outro referia-se ao caso pintando um açougue, «O açougue Quaresma»; legenda: a cozinheira perguntava ao açougueiro:
—O Sr. tem lingua de vacca? O açougueiro respondia: Não, só temos lingua de moça, quer?
Com mais, ou menos espirito, os commentarios não cessavam e a ausencia de relações de Quaresma no meio de que sahiam, fazia com que fossem de uma constancia pouco habitual. Levaram duas semanas com o nome do sub-secretario.
Tudo isto irritava profundamente Quaresma. Vivendo ha trinta annos quasi só, sem se chocar com o mundo, adquirira urna sensibilidade muito viva e capaz de soffrer profundamente com a menor cousa. Nunca soffrera criticas, nunca se atirou, á publicidade, vivia immerso no seu sonho, incubado e mantido vivo pelo calor dos seus livros. Fóra delles, elle não conhecia ninguem; e, com as pessoas com quem falava, trocava pequenas banalidades, ditos de todo o dia, cousas com que a sua alma e o seu coração nada tinham que ver.
Nem mesmo a afilhada o tirava dessa reserva, embora a estimasse mais que a todos.
Esse encerramento em si mesmo deu-lhe não sei que ar de extranho a tudo, ás competições, ás ambições, pois nada dessas cousas que fazem os odios e as lutas tinha entrado no seu temperamento.
Desinteressado de dinheiro, de gloria e posição, vivendo numa reserva de sonho, adquirira a candura e a pureza d'alma que vão habitar esses homens de uma idéa fixa, os grandes estudiosos, os sabios, e os inventores, gente que fica mais terna, mais ingenua, mais innocence que as donzellas das poesias de outras épocas.
É raro encontrar homens assim, mas os ha e, quando se os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais sympathia pela nossa especie, orgulho de ser homem e mais esperança na felicidade da raça.
A continuidade das troças feitas nos jornaes, a maneira com que o olhavam na rua, exasperavam-no e mais forte se enraizava nelle a sua idéa. Á medida que engulia uma troça, uma pilheria, vinha-lhe meditar sobre a sua lembrança, pezar-lhe todos os aspectos, examinal-a detidamente, comparal-a a cousas semelhantes, recordar os autores e autoridades; e, á proporção que fazia isso, a sua propria convicção mostrava a inanidade da critica, a ligeireza da pilheria, e a idéa o tomava, o avassalava, o absorvia cada vez mais.
Se os jornaes tinham recebido o requerimento com facecias de fundo inofensivo e sem odio, a repartição ficou furiosa. Nos meios burocraticos, uma superioridade que nasce fora delles, que é feita e organizada com outros materiaes que não os officios, a sabença de textos de regulamentos e a boa calligrafia, é recebida com a hostilidade de uma pequena inveja.
É como se visse no portador da superioridade um traidor á mediocridade, ao anonimato papeleiro. Não ha só uma questão de promoção, de interesse pecuniario; ha uma questão de amor proprio, de sentimentos feridos, vendo aquelle collega, aquelle galé como elles, sujeito aos regulamentos, aos caprichos dos chefes, ás olhadelas superiores dos ministros, com mais titulos á consideração, com algum direito a infringir as regras e os preceitos.
Olha-se para elle com o odio dissimulado com que assassino plebeu olha para o assassino marquez que matou a mulher e o amante. Ambos são assassinos, mas, mesmo na prisão, ainda o nobre e o burguez trazem o ar do seu mundo, um resto da sua delicadeza e uma inadaptação que ferem o seu humilde collega de desgraça.
Assim, quando surge numa secretaria alguem cujo nome não lembra sempre o titulo de sua nomeação, apparecem as pequeninas perfidias, as maledicencias ditas ao ouvido, as indirectas, todo o arsenal do ciume invejoso de uma mulher que se convenceu de que a vizinha se veste melhor do que ella.
Amam-se ou antes supportam-se melhor aquelles que se fazem celebres nas informações, na redacção, na assiduidade ao trabalho, mesmo os doutores, os bachareis, do que os que têm nomeada e fama. Em geral, a incomprehensão da obra ou do merito do collega é total e nenhum delles se póde capacitar que aquelle typo, aquelle amanuense, como elles, faça qualquer cousa que interesse 06 extranhos e dê que falar a uma cidade inteira.
A brusca popularidade de Quaresma, o seu successo e nomeada ephemera irritaram os seus collegas e superiores. Já se viu! dizia o Secretario. Este tolo dirigir-se ao Congresso e propor alguma cousa! Pretencioso! O director, ao passar pela secretaria, olhava-o de soslaio e sentia que o regulamento não cogitasse do caso para lhe infringir uma censura. O collega archivista era o menos terrivel, mas chamou-o logo de doido.
O Major sentia bem aquelle ambiente falso, aquellas allusões e isso mais augmentava o seu desespero e a teimosia na sua idéa. Não comprehendia que o seu requerimento suscitasse tantas tempestades, essa má vontade geral; era uma cousa innocente, uma lembrança patriotica que merecia e devia ter o assentimento de todo o mundo; e meditava, voltava á idéa, e a examinava com mais attenção.
A extensa publicidade, que o facto tomou, attingiu o palacete de Real Grandeza, onde morava o seu compadre Coleoni. Rico com os lucros das empreitadas de construcções de predios, viuvo, o antigo quitandeiro retirara-se dos negocios e vivia socegado na ampla casa que elle mesmo edificara e tinha todos os seus remates architectonicos do seu gosto predilecto: compoteiras na cimalha, um immenso monogramma sobre a porta da entrada, dous cães de louça, nos pilares do portão da entrada e outros detalhes equivalentes.
A casa ficava ao centro do terreno, elevava-se sobre um porão alto, tinha um razoavel jardim na frente, que avançava pelos lados, pontilhado de bolas multicores; varanda, um viveiro, onde pelo calor os passaros morriam tristemente. Era uma installação burgueza, no gosto nacional, vistosa, cara, pouco de accordo com o clima e sem conforto.
No interior o capricho dominava, tudo obedecia a a uma fantasia baroca, a um ecletismo desesperador. Os moveis se amontoavam, os tapetes, as sanefas, os bibelots e, a fantasia da filha, irregular e indisciplinada, ainda trazia mais desordem áquella collecção de cousas caras.
Viuvo, havia já alguns annos, era uma velha cunhada quem dirigia a casa e a filha, quem o encaminhava nas distracções e nas festas. Coleoni aceitava de bom coração esta doce tyrannia. Queria casar a filha, bem e ao gosto della, não punha, portanto nenhum obstaculo ao programma de Olga.
Em começo, pensou em dal-a a seu ajudante ou contra-mestre, uma especie de architecto que não desenhava, mas projectava casas e grandes edificios. Primeiro sondou a filha. Não encontrou resistencia, mas não encontrou tambem assentimento. Convenceu-se de que aquella vaporosidade da menina, aquelle seu ar distante de heroina, a sua intelligencia, o seu fantastico, não se dariam bem com as rudezas e a simplicidade camponias de seu auxiliar.
Ella quer um doutor—pensava elle—que arranje! Com certeza, não terá ceitil, mas eu tenho e as cousas se accommodam.
Elle se havia habituado a ver no doutor nacional, o marquez ou o barão de sua terra natal. Cada terra tem a sua nobreza; lá, é visconde; aqui, é doutor, bacharel ou dentista; e julgou muito acceitavel comprar a satisfação de ennobrecer a filha com umas meias duzias de contos de réis.
Havia momentos que se aborrecia um tanto com os propositos da menina. Gostando de dormir cedo, tinha que perder noites e noites no Lyrico, nos bailes; amando estar sentado em chinellas a fumar cachimbo, era obrigado a andar horas e horas pelas ruas, saltitando de casa em casa de modas, atraz da filha, para no fim do dia ter comprado meio metro de fita, uns grampos e um frasco de perfume.
Era engraçado vel-o nas lojas de fazendas cheio de complacencia de pai que quer ennobrecer o filho, a dar opinião sobre o tecido, achar este mais bonito, comparar um com outro, com uma falta de sentimento daquellas cousas que se adivinhava até no pagal-as. Mas elle ia, demorava-se e esforçava-se por entrar no segredo, no mysterio, cheio de tenacidade e candura perfeitamente paternaes.
Até ahi elle ia bem e calcava a contrariedade. Só o contrariavam bastante, as visitas, as collegas da filha, suas mães, suas irmães, com seus modos de falsa nobreza, os seus desdens dissimulados, deixando perceber ao velho empreiteiro o quanto estava elle distante da sociedade das amigas e das collegas de Olga.
Não se aborrecia, porém, muito profundamente; elle assim o quizera e a fizera, tinha que se conformar. Quasi sempre, quando chegavam taes visitas, Coleoni afastava-se, ia para o interior da casa. Entretanto, não lhe era sempre possivel fazer isso; nas grandes festas e recepções tinha que estar presente e era quando mais sentia, o velado pouco caso da alta nobreza da terra que o frequentava. Elle ficara sempre empreiteiro, com poucas idéas além do seu officio, hão sabendo fingir, de modo que não se interessava por aquellas tagarelices de casamentos, de bailes, de festas e passeios caros.
Uma vez ou outra um mais delicado propunha-lhe jogar o poker, aceitava e sempre perdia. Chegou mesmo a formar uma roda em casa, de que fazia parte o conhecido advogado Pacheco. Perdeu e muito, mas não foi isso que o fez suspender o jogo. Que perdia? Uns contos—uma ninharia! A questão, porém, é que Pacheco jogava com seis cartas. A primeira vez que Coleoni deu com isso, pareceu-lhe simples distracção do distincto jornalista e do famoso advogado. Um homem honesto não ia fazer aquillo! E na segunda, seria tambem? e na terceira?
Não era possivel tanta distracção. Adquiriu a certeza da trampolinagem, calou-se, conteve-se com uma dignidade não esperada em um antigo quitandeiro, e esperou. Quando vieram a jogar outra vez e o passe foi posto em pratica, Vicente accendeu o charuto e observou com a maior naturalidade deste mundo:
—Os Srs. sabem que ha agora, na Europa, um novo systema de jogar o poker?
—Qual é? perguntou alguém.
—A differença é pequena: joga-se com seis cartas, isto é, um dos parceiros, sómente.
Pacheco deu-se por desentendido, continuou a jogar e a ganhar, despediu-se á meia-noite cheio de delicadeza, fez alguns commentarios sobre a partida e não voltou mais.
Conforme o seu velho habito, Coleoni lia de manhã os jornaes, com o vagar e a lentidão de homem pouco habituado á leitura, quando se lhe deparou o requerimento do seu compadre do Arsenal.
Elle não comprehendeu bem o requerimento, mas os jornaes faziam tanta troça, cahiam tão a fundo sobre a cousa, que imaginou o seu antigo bemfeitor enleiado numa meiada criminosa, tendo praticado, por inadvertencia, alguma falta grave.
Sempre o tivera na conta do homem mais honesto deste mundo e ainda tinha, mais dahi quem sabe? Na ultima vez que o visitou elle não veiu com aquelles modos extranhos? Podia ser uma pilheria...
Apezar de ter enriquecido, Coleoni tinha em grande conta o seu obscuro compadre. Havia nelle não só a gratidão de camponez que recebeu um grande beneficio, como um duplo respeito pelo major, oriundo da sua qualidade de funccionario e de sabio.
Europeu, de origem humilde e aldeã, guardava no fundo de si aquelle sagrado respeito dos camponezes pelos homens que recebem a investidura do Estado; e, como, apezar dos bastos annos de Brasil, ainda não sabia juntar saber aos titulos, tinha em grande consideração a erudição do compadre.
Não é, pois, de extranhar que elle visse com magna o nome de Quaresma envolvido em factos que os jornaes reprovavam. Leu de novo o requerimento, mas não entendeu o que elle queria dizer. Chamou a filha.
—Olga!
Elle pronunciava o nome da filha quasi sem sotaque; mas, quando fallava portuguez, punha nas palavras uma rouquidão singular, e salpicava as phrases de exclamações e pequenas expressões italianas.
—Olga, que quer dizer isto? Non capisco...
A moça sentou-se a uma cadeira proxima e leu no jornal, o requerimento e os commentarios.
—Che! Então?
—O padrinho quer substituir o portuguez pela lingua tupy, entende o senhor?
—Como?
—Hoje, nós não falamos portuguez? Pois bem: elle quer que daqui em diante falemos tupy.
—Tutti?
—Todos os brasileiros, todos.
—Ma che cousa! Não é possivel?
—Póde ser. Os tcheques tem uma lingua propria, e foram obrigados a falar allemão, depois de conquistados pelos austriacos; os lorenos, francezes...
—Per la madona! Allemão é lingua, agora esse acugêlê, ecco!
—Acugêlê é da Africa, papai; tupy é daqui.
—Per Baccho! É o mesmo... Está doido!
—Mas não ha loucura alguma, papai.
—Como? Então é cousa de um homem bene?
—De juizo, talvez não seja; mas de doido, tambem não.
—Non capisco.
—É uma idéa, meu pai, é um plano, talvez á primeira vista absurdo, fóra dos moldes, mas não de todo doido. É ousado, talvez, mas...
Por mais que quizesse, ella não podia julgar o acto do padrinho sob o criterio de seu pai. Neste falava o bom senso e nella o amor ás grandes cousas, aos arrojos e commettimentos ousados. Lembrou-se de que Quaresma lhe falara em emancipação; e se houve no fundo de si um sentimento que não fosse de admiração pelo atrevimento do Major, não foi de certo o de reprovação ou lastima; foi de piedade sympathica por ver mal comprehendido o acto daquelle homem que ella conhecia ha tantos annos, seguindo o seu sonho, isolado, obscuro e tenaz.
—Isto vai causar-lhe transtorno, observou Coleoni.
E elle tinha razão. A sentença do archivista foi vencedora nas discussões dos corredores e a suspeita de que Quaresma estivesse doido foi tomando fóros do certeza. Em principio, o sub-secretario supportou bem a tempestade; mas tendo adivinhado que o suppunham insciente no tupy, irritou-se, encheu-se, de uma raiva surda, que se continha difficilmente. Como eram cegos! Elle que ha trinta annos estudava o Brasil minuciosamente; elle que em virtude desses estudos, fôra obrigado a aprender o rebarbativo allemão, não saber tupy, a lingua brasileira, a unica que o era—que suspeita miseravel!
Que o julgassem doido—vá! Mas que desconfiassem da sinceridade de suas affirmações, não! E elle pensava, procurava meios de se rehabilitar, cahia em distracções, mesmo escrevendo e fazendo a tarefa quotidiana. Vivia dividido em dous: uma parte nas obrigações de todo dia, e a outra, na preoccupação de provar que sabia o tupy.
O Secretario veiu a faltar um dia e o Major lhe ficou fazendo as vezes. O expediente fôra grande e elle mesmo redigira e copiara uma parte. Tinha começado a passar a limpo um officio sobre cousas de Mato-Grosso, onde se falava em Aquidauana e Ponta-Porã, quando o Carmo disse lá do fundo da sala, com acccento escarninho:
—Homero, isto de saber é uma cousa, dizer é outra.
Quaresma nem levantou os olhos do papel. Fosse pelas palavras em tupy que se encontravam na minuta, fosse pela allusão do funccionario Carmo, o certo é que elle insensivelmente foi traduzindo a peça official para o idioma indigena.
Ao acabar, deu com a districção, mas logo vieram outros empregados com o trabalho que fizeram, para que elle examinasse. Novas preoccupações afastaram a primeira, esqueceu-se e o officio em tupy seguiu com os companheiros. O Director não reparou, assignou e o tupinambá foi dar ao ministerio.
Não se imagina o reboliço que tal cousa foi causar lá. Que lingua era? Consultou-se o Dr. Rocha, o homem mais habil da secretaria, a respeito do assumpto. O funccionario limpou o pince-nez, agarrou o papel, voltou-o de traz para diante, pôl-o de pernas para o ar e concluiu que era grego, por causa dos yy.
O doutor Rocha tinha na Secretaria a fama de sabio, porque era bacharel em direito e não dizia cousa alguma.
—Mas, indagou o chefe, officialmente as autoridades se podem communicar em linguas estrangeiras? Creio que ha um aviso de 84... Veja, Sr. Dr. Rocha...
Consultaram-se todos os regulamentos e repertorios de legislação, andou-se de meza em meza pedindo auxilio á memoria de cada um e nada se encontrara a respeito. Enfim, o Dr. Rocha, após tres dias de meditação, foi ao chefe e disse com emphase e segurança:
—O aviso de 84 trata de orthographia.
Ü Director olhou o subalterno com admiração e mais ficou considerando as suas qualidades de empregado zeloso, intelligente e... assiduo. Foi informado que a legislação era omissa no tocante á lingua em que deviam ser escriptos os documentos officiaes; entretanto não parecia regular usar uma que não fosse a do paiz.
O Ministro, tendo em vista esta informação e varias outras consultas, devolveu o officio e censurou o Arsenal.
Que manhã foi essa no Arsenal! Os tympanos soavam furiosamente, os continuos andavam numa doubadoura terrivel e a toda a hora perguntavam pelo secretario que tardava em chegar.
Censurado! monologava o Director. Ia-se por agua a baixo o seu generalato. Viver tantos annos a sonhar com aquellas estrellas e ellas se escapavam assim, talvez por causa da molecagem de um escripturario!
Ainda se a situação mudasse... Mas qual!
O Secretario chegou, foi ao gabinete do Director. Inteirado do motivo, examinou o officio e pela lettra conheceu que fora Quaresma quem o escrevera. Mande-o cá, disse o Coronel. O Major encaminhou-se pensando nuns versos tupys que lera de manhã.
—Então o Sr. leva a divertir-se commigo, não é?
—Como? fez Quaresma espantado.
—Quem escreveu isso?
O Major nem quiz examinar o papel. Viu a letra, lembrou-se da distracção e confessou com firmeza:
—Fui eu.
—Então confessa?
—Pois não. Mas V. Ex. não sabe...
—Não sabe! que diz?
O Director levantou-se da cadeira, com os labios brancos e a mão levantada á altura da cabeça. Tinha sido offendido tres vezes: na sua honra individual, na honra de sua casta e na do estabelecimento de ensino que frequentara, a escola da Praia Vermelha, o primeiro estabelecimento scientifico do mundo. Além disso escrevera no «Prytaneu», a revista da escola, um conto—«A Saudade»—producção muito elogiada pelos collegas. Dessa forma, lendo em todos os exames plenamente e distincção, uma dupla corôa de sabio e artista cingia-lbe a fronte. Tantos titulos valiosos e raros de se encontrarem reunidos mesmo em Descartes ou Shakspeare, transformavam aquelle—não sabe—de um amanuense em offensa profunda, em injuria.
—Não sabe! Como é que o senhor ousa dizer-me isto! Tem o senhor porventura o curso de Benjamin Constant? Sabe o senhor mathematica, astronomia, physica, chimica, sociologia e moral? Como ousa então? Pois o senhor pensa que por ter lido uns romances e saber um francezinho ahi, póde hombrear-se com quem tirou gráu 9 em Calculo, 10 em Mecanica, 8 em Astronomia, 10 em Hydraulica, 9 em Descriptiva? Então?!
E o homem sacudia furiosamente a mão e olhava ferozmente para Quaresma que já se julgava fuzilado.
—Mas, Sr. Coronel...
—Não tem mas, não tem nada! Considere-se suspenso, até segunda ordem.
Quaresma era doce, bom e modesto. Nunca fôra seu proposito duvidar da sabedoria do seu director. Elle não tinha nenhuma pretenção a sabio e pronunciara a phrase para começar a desculpa; mas, quando viu aquella enxurrada de saber, de titulos, a sobrenadar em aguas tão furiosas, perdeu o fio do pensamento, a fala, as idéas e nada mais sôbe nem pôde dizer.
Sahiu abatido, como um criminoso, do gabinete do Coronel, que não deixava de olhal-o furiosamente, indignadamente, ferozmente, como quem foi ferido em todas as fibras do seu ser. Sahiu afinal. Chegando á sala do trabalho nada disse; pegou no chapéo, na bengala e atirou-se pela porta afóra, cambaleando como um bebedo. Deu umas voltas, foi ao livreiro buscar uns livros. Quando ia tomar o bonde encontrou o Ricardo Coração dos Outros.
—Cedo, hein Major?
—É verdade.
E calaram-se ficando um diante do outro num mutismo contrafeito. Ricardo avançou algumas palavras:
—O Major, hoje, parece que tem uma idéa, um pensamento muito forte.
—Tenho, filho, não de hoje, mas de ha muito tempo.
—É bom pensar, sonhar consola.
—Consola, talvez; mas faz-nos tambem differentes dos outros, cava abysmos entre os homens...
—E os dous separaram-se. O Major tomou o bonde e Ricardo desceu descuidado a rua do Ouvidor, com o seu passo acanhado e as calças dobradas nas canellas, sobraçando o violão na sua armadura de camurça.
Não era a primeira vez que ella vinha ali. Mais de uma dezena já subira aquella larga escada de pedra, com grupos de marmores de Lisboa de um lado e do outro, a Caridade e N. S. da Piedade; penetrara por aquelle portico de columnas doricas, atravessara o atrio ladrilhado, deixando á esquerda e á direita, Pinel e Esquirol, meditando sobre o angustioso mysterio da loucura; subira outra escada encerada cuidadosamente e fôra ter com o padrinho lá em cima, triste e absorvido no seu sonho e na sua mania. Seu pai a trazia ás vezes, aos domingos, quando vinha cumprir o piedoso dever de amizade, visitando Quaresma. Ha quanto tempo estava elle ali? Ella não se lembrava ao certo; uns tres ou quatro mezes, se tanto.
Só o nome da casa mettia medo. O Hospicio! É assim como uma sepultura em vida, um semi-enterramento, enterramento do espirito, da razão conductora, de cuja ausencia os corpos raramente se resentem, A saude não depende della e ha muitos que parecem até adquirir mais força de vida, prolongar a existencia, quando ella se evola não se sabe por que orificio do corpo e para onde.
Com que terror, uma especie de pavor de cousa sobrenatural, espanto de inimigo invisivel e omnipresente, não ouvia a gente pobre referir-se ao estabelecimento da praia das Saudades! Antes uma boa morte, diziam.
No primeiro aspecto, não se comprehendia bem esse pasmo, esse espanto, esse terror do povo por aquella casa immensa, severa e grave, meio hospital, meio prisão, com seu alto gradil, suas janellas gradeadas, a se extender por uns centos de metros, em face do mar immenso e verde, lá na entrada da bahia, na praia das Saudades. Entrava-se, viam-se uns homens calmos, pensativos, meditabundos, como monges em recolhimento e prece.
De resto, com aquella entrada silenciosa! clara e respeitavel, perdia-se logo a idéa popular da loucura; o escarcéo, os trejeitos, as furias, o entrechoque de tolices ditas aqui e ali.
Não havia nada disso; era uma calma, um silencio, uma ordem perfeitamente naturaes. No fim, porém, quando se examinavam bem, na sala das visitas, aquellas faces transtornadas, aquelles ares aparvalhados, alguns idiotas e sem expressão, outros como alheiados e mergulhados em um sonho intimo sem fim, e via-se tambem a excitação de uns, mais viva em face á atonia de outros, é que se sentia o horror da loucura, o angustioso mysterio que encerra, feito não sei de que inexplicavel fuga do espirito daquillo que se suppõe o real, para se apossar e viver das apparencias das cousas ou de outras apparencias das mesmas.
Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifravel da nossa propria natureza, fica amedrontado, sentindo que o germen daquillo está depositado em nós e que por qualquer cousa elle nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora comprehensão inversa e absurda, de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não ha mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que elle vem a ser após.
E essa mudança não começa, não se sente quando começa e quasi nunca acaba. Com o seu padrinho, como fôra? A principio, aquelle requerimento... Mas que era aquillo? Um capricho, uma fantasia, cousa sem importancia, uma idéa de velho sem consequencia. Depois, aquelle officio? Não tinha importancia, uma simples distracção, cousa que acontece a cada passo... E emfim? A loucura declarada, a tôrva e ironica loucura que nos tira a nossa alma e põe uma outra, que nos rebaixa... Emfim, a loucura declarada, a exaltação do eu, a mania de não sahir, de se dizer perseguido, de imaginar como inimigos, os amigos, os melhores. Como fôra doloroso aquillo? A primeira phase do seu delirio, aquella agitação desordenada, aquelle falar sem nexo, sem accordo com que se realizava fóra delle e com os actos passados, um falar que não se sabia donde vinha, donde sahia, de que ponto do seu ser tomava nascimento! E o pavor do doce Quaresma? Um pavor de quem viu um cataclysma, que o fazia tremer todo, desde os pés á cabeça, e enchia-o de indifferença para tudo mais que não fosse o seu proprio delirio.
A casa, os livros e os seus interesses de dinheiro andavam á matroca. Para elle, nada disso valia, nada disso tinha existencia e importancia. Eram sombras, apparencias; o real eram os inimigos, os inimigos terriveis cujos nomes o seu delirio não chegava a criar. A velha irmã, atarantada, atordoada, sem direcção, sem saber que alvitre tomar. Educada em casa sempre com um homem ao lado, o pai, depois o irmão, ella não sabia lidar com o mundo, com negocios, com as autoridades e pessoas influentes. Ao mesmo tempo, na sua inexperiencia e ternura de irmã, oscillava entre a crença de que aquillo fosse verdade e a suspeita do que fosse loucura pura e simples.
Se não fosse seu pai (e Olga amava mais por isso o seu rude pai) que se interessava, chamando a si interesses da familia e evitando a demissão de que estava ameaçado, transformando-a em aposentadoria, que seria delle? Como é facil na vida tudo ruir! Aquelle homem pautado, regrado, honesto, com emprego seguro, tinha uma apparencia inabalavel; entretanto bastou um grãosinho de sandice...
Estava ha uns mezes no Hospicio, o seu padrinho, e a irmã não o podia visitar. Era tal o seu abalo de nervos, era tal a emoção ao vel-o ali naquella meia-prisão, decaindo delle mesmo que um ataque se seguia e não podia ser evitado.
Vinham ella e o pai, ás vezes o pai só, algumas vezes Ricardo, e eram só os tres a visital-o.
Aquelle domingo estava particularmente lindo, principalmente em Botafogo, nas proximidades do mar e das montanhas altas que se recortavam num céo de seda. O ar era macio e docemente o sol faiscava nas calçadas.
O pai vinha lendo os jornaes e ella, pensando, de quando em quando folheando as revistas illustradas que trazia para alegrar e distrahir o padrinho.
Elle estava como pensionista; mas, embora assim, no começo, ella teve um certo pudor em se misturar com os visitantes.
Parecia-lhe que a sua fortuna a punha acima de presenciar miserias; recalcou porém, dentro de si esse pensamento egoista, o seu orgulho de classe, e agora entrava naturalmente, pondo em mais destaque a sua elegancia natural. Amava esses sacrificios, essas abnegações, tinha o sentimento da grandeza delles, e ficou contente comsigo mesma.
No bonde vinham outros visitantes e todos não tardaram em saltar no portão do manicomio. Como em todas as portas dos nossos infernos sociaes, havia de toda a gente, de varias condições, nascimentos e fortunas. Não é só a morte que nivela; a loucura, o crime e a molestia passam tambem a sua razoura pelas distincções que inventamos.
Os bem vestidos e os mal vestidos, os elegantes e os pobres, os feios e os bonitos, os intelligentes e os nescios, entravam com respeito, com concentração, com uma ponta de pavor nos olhos como se penetrassem noutro mundo.
Chegavam aos parentes e os embrulhos se desfaziam; eram guloseimas, fumo, meias, chinellas, ás vezes livros e jornaes. Dos doentes uns conversavam com os parentes; outros mantinham-se calados, num mutismo feroz e inexplicavel; outros indifferentes; e era tal a variedade de aspectos dessas recepções que se chegava a esquecer o imperio da doença sobre todos aquelles infelizes, tanto ella variava neste ou naquelle, para se pensar em caprichos pessoaes, em dictames das vontades livres de cada um.
E ella pensava como esta nossa vida é variada e diversa, como ella é mais rica de aspectos tristes que de alegres, e como na variedade da vida a tristeza póde mais variar que a alegria c como que dá o proprio movimento da vida.
Verificando isso, quasi teve satisfação, pois a sua natureza intelligente e curiosa se comprazia nas mais simples descobertas que seu espirito fazia.
Quaresma estava melhor. A exaltação passara e o delirio parecia querer desapparecer completamente. Chocando-se com aquelle meio, houve logo nelle uma reacção salutar e necessaria. Estava doido, pois se o punham ali...
Quando veio a ter com o compadre e a afilhada até trazia um sorriso de satisfação por baixo do bigode já grisalho. Tinha emmagrecido um pouco, os cabellos pretos estavam um pouco brancos, mas o aspecto geral era o mesmo. Não perdera totalmente a mansuetude e a ternura no falar, mas quando a mania lhe tomava ficava um tanto secco e desconfiado. Ao vel-os disse amavelmente:
—Então vieram sempre... Estava a espera...
Cumprimentaram-se e elle deu mesmo um largo abraço na afilhada.
—Como está Adelaide?
—Bem. Mandou lembranças e não veiu porque... adiantou Coleoni.
—Coitada! disse elle, e pendeu a cabeça como se quizesse afastar uma recordação triste; em seguida, perguntou:
—E o Ricardo?
A afilhada apressou-se em responder ao padrinho, com alvoroço e alegria. Via-o já escapo á semi-sepultura da insania.
—Está bom, padrinho. Procurou papai ha dias e disse que a sua aposentadoria já está quasi acabada.
Coleoni tinha-se sentado. Quaresma tambem e a moça estava de pé, para melhor olhar o padrinho com os seus olhos muito luminosos e firmes no encarar. Guardas, internos e medicos passavam pelas portas com a indifferença profissional. Os visitantes, não se olhavam, pareciam que não queriam conhecer-se na rua. Lá fóra, era o dia lindo, os ares macios, o mar infinito e melancolico, as montanhas a se recortar num céo de seda—a belleza da natureza imponente e indecifravel. Coleoni, embora mais assiduo nas visitas, notava as melhoras do compadre com satisfação que errava na sua physionomia, num ligeiro sorriso. Num dado momento aventurou:
—O Major já está muito melhor; quer sahir?
Quaresma não respondeu logo; pensou um pouco e respondeu firme e vagarosamente:
—É melhor esperar um pouco. Vou melhor... Sinto incommodar-te tanto, mas vocês que têm sido tão bons, hão de levar tudo isso para conta da propria bondade. Quem tem inimigos deve ter tambem bons amigos...
O pai e a filha entreolharam-se; o Major levantou a cabeça e parecia que as lagrimas queriam rebentar. A moça interveio de prompto:
—Sabe, padrinho, vou casar-me.
—É verdade, confirmou o pai. A Olga vai casar-se e nós vínhamos prevenil-o.
—Quem é teu noivo? perguntou Quaresma.
—É um rapaz...
—De certo, interrompeu o padrinho sorrindo.
E os dous acompanharam-n'o com familiaridade e contentamento. Era um bom signal.
—É o Sr. Armando Borges, doutorando. Está satisfeito, padrinho? fez Olga gentilmente.
—Então é para depois do fim do anno.
—Esperamos que seja por ahi, disse o italiano.
—Gostas muito delle? indagou o padrinho.
Ella não sabia responder aquella pergunta. Queria sentir que gostava, mas estava que não. E porque casava? Não sabia... Um impulso do seu meio, uma cousa que não vinha della—não sabia... Gostava de outro? Tambem não. Todos os rapazes que ella conhecia, não possuiam relevo que a ferisse, não tinham o que, ainda indeterminado na sua emoção e na sua intelligencia, que a fascinasse ou subjugasse. Ella não sabia bem o que era, não chegava a extremar na percepção das suas inclinações a qualidade que ella queria ver dominante no homem. Era o heroico, era o fóra do commum, era a força de projecção para as grandes cousas; mas nessa confusão mental dos nossos primeiros annos, quando as idéas e os desejos se entrelaçam e se embaralham, Olga não podia colher e registrar esse anhelo, esse modo de se representar e de amar o individuo masculino.
E tinha razão em se casar sem obedecer á sua concepção. É tão difficil ver nitidamente num homem, de 20 a 30 annos, o que ella sonhara que era bem possivel tomasse a nuvem por Juno... Casava por habito de sociedade, um pouco por curiosidade e para alargar o campo de sua vida e aguçar a sensibilidade. Lembrou-se disso tudo rapidamente e respondeu sem convicção ao padrinho:
—Gosto.
A visita não se demorou muito mais. Era conveniente que fosse rapida, não convinha fatigar a attenção do convalescente. Os dous sahiram sem esconder que iam esperançados e satisfeitos.
Na porta ja havia alguns visitantes á espera do bonde. Como não estivesse o vehiculo no ponto, foram indo ao longo da fachada do manicomio até lá. Em meio do caminho, encontraram, encostada ao gradil, uma velha preta a chorar. Coleoni, sempre bom, chegou-se a ella:
—Que tem, minha velha?
A pobre mulher deitou sobre elle um demorado olhar, humido e doce, cheio de uma irremediavel tristeza, e respondeu:
—Ah! meu sinhô!... É triste... Um filho, tão bom, coitado!
E continuou a chorar. Coleoni começou a commover-se; a filha olhou-a com interesse e perguntou no fim de um instante:
—Morreu?
—Antes fosse sinhasinha.
E por entre lagrimas e soluços contou que o filho não a conhecia mais, não lhe respondia ás perguntas; era como um extranho. Enxugou as lagrimas e concluiu:
—Foi cousa feita.
Os dous afastaram-se tristes, levando n'alma um pouco daquella humilde dôr.
O dia estava fresco e a viração, que começava a soprar, enrugava a face do mar em pequenas ondas brancas. O Pão de Assucar erguia-se negro, hirto, solemne, das ondas espumejantes, e como que punha uma sombra no dia muito claro.
No Instituto dos Cégos, tocavam violino: e a voz plangente e demorada do instrumento parecia sahir daquellas cousas todas, da sua tristeza e da sua solemnidade.
O bonde tardou um pouco. Chegou. Tomaram. Desceram no largo da Carioca. É bom ver-se a cidade nos dias de descanço, com as suas lojas fechadas, as suas estreitas ruas desertas, onde os passos resoam como em claustros silenciosos. A cidade é como um esqueleto, faltam-lhes as carnes, que são a agitação, o movimento de carros, de carroças e gente. Na porta de uma loja ou outra, os filhos do negociante brincam em velocipedes, atiram bolas e ainda mais se sente a differença da cidade do dia anterior.
Não havia ainda o habito de procurar os arrabaldes pittorescos e só encontravam, por vezes, casaes que iam apressadamente a visitas, como elles agora. O largo de S. Francisco estava silencioso e a estatua, no centro daquelle pequeno jardim que desappareceu, parecia um simples enfeite. Os bondes chegavam preguiçosamente ao largo com poucos passageiros. Coleoni e sua filha tomaram um que os levasse á casa de Quaresma. Lá foram. A tarde se approximava e as toilettes domingueiras já appareciam nas janellas. Pretos com roupas claras e grandes charutos ou cigarros; grupos de caixeiros com flores estardalhantes; meninas em cassas bem engomadas; cartolas anti-deluvianas ao lado de vestidos pesados de setim negro, envergados em corpos fartos de matronas sedentarias; e o domingo apparecia assim decorado com a simplicidade dos humildes, com a riqueza dos pobres e a ostentação dos tolos.
D. Adelaide não estava só. Ricardo viera visital-a e conversavam. Quando o compadre de seu irmão bateu no portão, elle contava á velha senhora o seu ultimo triumpho:
—Não sei como ha de ser, D. Adelaide. Eu não guardo as minhas musicas, não escrevo—é um inferno!
O caso era de pôr um autor em maus lençóes. O Sr. Paysandon, de Cordova (Republica Argentina), autor muito conhecido na mesma cidade, lhe tinha escripto, pedindo exemplares de suas musicas e canções. Ricardo estava atrapalhado. Tinha os versos escriptos, mas a musica não. É verdade que as sabia de cór, porém, escrevel-as de uma hora para outra era trabalho acima de sua força.
—É o diabo! continuou elle. Não é por mim; a questão é que se perde uma occasião de fazer o Brasil conhecido no estrangeiro.
A velha irmã de Quaresma não tinha grande interesse pelo violão. A sua educação que se fizera, vendo semelhante instrumento entregue a escravos ou gente parecida, não podia admittir que elle preoccupasse a attenção de pessoas de certa ordem. Delicada, entretanto, supportava a mania de Ricardo, mesmo porque já começava a ter uma ponta de estima pelo famoso trovador dos suburbanos. Nasceu-lhe essa estima pela dedicação com que elle se houve no seu drama familiar. Os pequenos serviços e trabalhos, os passos para ali e para aqui, ficaram a cargo de Ricardo, que os desempenhara com boa vontade e diligencia.
Actualmente era elle o encarregado de tratar da aposentadoria do seu antigo discipulo. É um trabalho arduo, esse de liquidar uma aposentadoria, como se diz na gyria burocratica. Aposentado o sujeito, solemnemente por um decreto, a cousa corre uma dezena de repartições e funccionarios para ser ultimada. Nada ha mais grave do que a gravidade com que o empregado nos diz: ainda estou fazendo o calculo; e a cousa demora um mez, mais até, como se tratasse de mecanica celeste.
Coleoni era o procurador do Major, mas não sendo entendido em cousas officiaes, entregou ao Coração dos Outros aquella parte do seu mandato.
Graças á popularidade de Ricardo, e da sua lhaneza, vencera a resistencia da machina burocratica e a liquidação estava annunciada para breve.
Foi isso que elle annunciou a Coleoni, quando este entrou seguido da filha. Pediram, tanto elle como D. Adelaide, noticias do amigo e do irmão.
A irmã nunca entendera direito o irmão, com a crise não o ficou comprehendendo melhor; mas a sentira profundamente com o sentimento simples de irmã e desejava ardentemente a sua cura.
Ricardo Coração dos Outros gostava do Major, encontrara nelle certo apoio moral e intellectual de que precisava. Os outros gostavam de ouvir o seu canto, apreciavam como simples dilletantes: mas o Major era o unico que ia ao fundo da sua tentativa e comprehendia o alcance patriotico do sua obra.
De resto, elle agora soffria particularmente—soffria na sua gloria, producto de um lenço e seguido trabalho de annos. É que apparecera um creoulo a cantar modinhas e cujo nome começava a tomar força e já era citado ao lado do seu.
Aborrecia-se com o rival, por dous fatos: primeiro: pelo sujeito ser preto; e segundo: por causa das suas theorias.
Não é que elle tivesse ogeriza particular aos pretos. O que elle via no facto de haver um preto famoso tocar violão, era que tal cousa ia diminuir ainda mais o prestigio do instrumento. Se o seu rival tocasse piano e por isso ficasse celebre, não havia mal algum; ao contrario: o talento do rapaz levantava a sua pessoa, por intermedio do instrumento considerado; mas, tocando violão, era o inverso: o preconceito que lhe cercava a pessoa, desmoralisava o mysterioso violão que elle tanto estimava. E além disso com aquellas theorias! Ora! querer que a modinha diga alguma cousa e tenha versos certos! Que tolice!
E Ricardo levava a pensar nesse rival inesperado que se punha assim diante delle como um obstaculo imprevisto na subida maravilhosa para a sua gloria. Precisava afastal-o, esmagal-o, mostrar a sua superioridade indiscutivel; mas como?
A reclame já não bastava; o rival a empregava tambem. Se elle tivesse um homem notavel, um grande literato, que escrevesse um artigo sobre elle e a sua obra, a victoria estava certa. Era difficil encontrar. Esses nossos literatos eram tão tolos e viviam tão absorvidos em cousas francezas... Pensou num jornal, «O Violão», em que elle desafiasse o rival e o esmagasse numa polemica.
Era isso que precisava obter e a esperança estava em Quaresma, actualmente recolhido ao Hospicio, mas felizmente em via de cura. A sua alegria foi justamente grande quando soube que o amigo estava melhor.
—Não pude ir hoje, disse elle, mas irei domingo. Está mais gordo?
—Pouca cousa, disse a moça.
—Conversou bem, accrescentou Coleoni. Até ficou contente quando soube que Olga ia casar-se.
—Vai casar-se, D. Olga? Parabens.
—Obrigada, fez ella.
—Quando é Olga? perguntou D. Adelaide.
—Lá para o fim do anno... Tem tempo...
E logo choveram perguntas sobre o noivo e afloraram as considerações sobre o casamento.
E ella se sentia vexada; julgava, tanto as perguntas como as considerações, impudentes e irritantes; queria fugir á conversa, mas voltavam ao mesmo assumpto, não só Ricardo, mas a velha Adelaide, mais loquaz e curiosa que commumente. Esse supplicio que se repetia em todas as visitas, quasi a fazia arrepender-se de ter acceitado o pedido. Por fim achou um subterfugio, perguntando:
—Como vai o General?
—Não o tenho visto, mas a filha sempre vem aqui. Elle deve andar bem, a Ismenia é que anda triste, desolada coitadinha!
D. Adelaide contou então o drama que agitava a pequenina alma da filha do General. Cavalcanti, aquelle Jacob de cinco annos, embarcara para o interior, ha tres ou quatro mezes e não mandara nem uma carta nem um cartão. A menina tinha aquillo como um rompimento; e ella, tão incapaz de um sentimento mais profundo, de uma applicação mais seria de energia mental e physica, sentia-o muito, como cousa irremediavel que absorvia toda a sua attenção.
Para Ismenia, era como se todos os rapazes casadoiros tivessem deixado de existir. Arranjar outro era problema insoluvel, era trabalho acima de suas forças. Cousa difficil! Namorar, escrever cartinhas, fazer acenos, dançar, ir a passeios—ella não podia mais com isso. Decididamente, estava condemnada a não se casar, a ser tia, a supportar durante toda a existencia esse estado de solteira que a apavorava. Quasi não se lembrava das feições do noivo, dos seus olhos esgazeados, do seu nariz duro e fortemente osseo; independente da memoria delle, vinha-lhe sempre á consciencia, quando, de manhã, o estafeta não lhe entregava carta, essa outra idéa: não casar. Era um castigo... A Quinota ia casar-se, o Genelicio já estava tratando dos papeis; e ella que esperam tanto, e fôra a primeira a noivar-se ia ficar maldita, rebaixada diante de todas. Parecia até que ambos estavam contentes com aquella fuga inexplicavel de Cavalcanti. Como elles se riam durante o Carnaval! Como elles atiraram aos seus olhos aquella sua viuvez prematura, durante os folguedos carnavalescos! Punham tanta furia no jogo de confetes e bisnagas, de modo a deixar bem claro a felicidade de ambos, aquella marcha gloriosa e invejava para o casamento, em face do seu abandono.
Ella disfarçava bem a impressão da alegria delles que lhe parecia indecente e hostil; mas o escarneo da irmã que lhe dizia constantemente: «Brinca, Ismenia! Elle está longe, vai aproveitando»—metia-lhe raiva, a raiva terrivel de gente fraca, que corróe interiormente, por não poder arrebentar de qualquer forma.
Então, para espantar os máus pensamentos, ella se punha a olhar o aspecto pueril da rua, marchetada de papeluchos multicores, e as serpentinas irisadas pendentes nas sacadas; mas o que fazia bem á sua natureza pobre, comprimida, eram os cordões, aquelle ruido de atabaques, e adufes, de tambores e pratos. Mergulhando nessa barulheira, o seu pensamento repousava e como que a idéa que a perseguia desde tanto tempo ficava impedida de lhe entrar na cabeça.
De resto, aquelles vestuarios extravagantes de indios, aquelles adornos de uma mythologia francamente selvagem, jacarés, cobras, jabotys, vivos, bem vivos, traziam á pobreza de sua imaginação imagens risonhas de rios claros, florestas immensas, logares de socego e pureza que a reconfortavam.
Tambem aquellas cantigas gritadas, berradas, num rytmo duro e de uma grande indigencia melodica, vinham como reprimir a magua que ia nella, abafada, comprimida, contida, que pedia uma explosão de gritos, mas para o que não lhe sobrava força bastante e sufficiente.
O noivo partira um mez antes do Carnaval e depois do grande festejo carioca a sua tortura foi maior. Sem habito de leitura e de conversa, sem actividade domestica qualquer, ella passava os dias deitada, sentada, a girar em torno de um mesmo pensamento: não casar. Era-lhe doce chorar.
Nas horas da entrega da correspondencia, tinha ainda uma alegre esperança. Talvez? Mas a carta não vinha, e, voltava ao seu pensamento: não casar.
D. Adelaide, acabando de contar o desastre da triste Ismenia, commentou:
—Merecia um castigo isso, não acham?
Coleoni interveio com brandura e boa vontade.
—Não ha razão para desesperar. Ha muita gente que tem preguiça de escrever...
—Qual! fez D. Adelaide. Ha tres mezes, sr. Vicente!
—Não volta, disse Ricardo sentenciosamente.
—E ella ainda o espera, D. ADelaide? perguntou Olga.
—Não sei, minha filha. Ninguem entende essa moça. Fala pouco, se fala diz meias-palavras... É mesmo uma natureza que parece sem sangue nem nervos. Sente-se a sua tristeza, mas não fala.
—É orgulho? perguntou ainda Olga.
—Não, não... Se fosse orgulho, ella não se referia de vez em quando ao noivo. É antes molleza, preguiça... Parece que ella tem medo de falar para que as cousas não venham acontecer.
—E os paes que dizem a isso? indagou Coleoni.
Não sei bem. Mas pelo que pude perceber, o incommodo do General não é grande e D. Maricota julga que ella deve arranjar outro.
—Era o melhor, disse Ricardo.
—Eu creio que ella não tem mais pratica, disse sorrindo D. Adelaide. Levou tanto tempo noiva...
E a conversa já tinha virado para outros assumptos, quando a Ismenia veiu fazer a sua visita diaria á irmã de Quaresma.
Cumprimentou todos e todos sentiram que ella penava. O soffrimento dava-lhe mais actividade á physionomia.
As palpebras estavam roxas e até os seus pequenos olhos pardos tinham mais brilho e expansão. Indagou da saude de Quaresma e depois calaram-se um instante. Por fim D. Adelaide lhe perguntou:
—Recebeste carta, Ismenia?
—Ainda não, respondeu ella com grande economia de voz.
Ricardo moveu-se na cadeira. Batendo com o braço num dunkerque, veiu atirar ao chão uma figurinha de biscuit, que se esphacelou em innumeros fragmentos, quasi sem ruido.
Não era feio o logar, mas não era bello. Tinha, entretanto, o aspecto tranquillo e satisfeito de quem se julga bem com a sua sorte.
A casa erguia-se sobre um socalco, uma especie de degrau, formando a subida para, a maior altura de uma pequena collina que lhe corria nos fundos. Em frente, por entre os bambús da cerca, olhava uma planicie a morrer nas montanhas que se viam ao longe; um regalo de aguas paradas e sujas cortava-a parallemente á testada da casa; mais adeante, o trem passava vincando a planicie com a fita clara de sua linha capinada; um carreiro, com casas, de um e do outro lado, sahia da esquerda e ia ter á estação, atravessando o regato e serpeando pelo plaino. A habitação de Quaresma tinha assim um amplo horizonte, olhando para o levante, a noruega, e era tambem risonha e graciosa nos seus muros caiados. Edificada com a desoladora indigencia architectonica das nossas casas de campo, possuia, porém, vastas salas, amplos quartos, todos com janella, e uma varanda com uma columnata heterodoxa. Além desta principal, o sitio do «Socego», como se chamava, tinha outras construcções: a velha casa da farinha, que ainda tinha o forno intacto e a roda desmontada, e uma estrebaria coberta de sapê.
Não havia tres mezes que viera habitar aquella casa, naquelle ermo logar, a duas horas do Rio, por estrada de ferro, após ter passado seis mezes no Hospicio da praia das Saudades. Sahira curado? Quem sabe lá? Parecia: não delirava e os seus gestos e propositos eram do homem commum embora, sob tal apparencia, se pudesse sempre crer que não se lhe despedira de todo, já não se dirá a loucura, mas o sonho que cevara durante tantos annos. Foram mais seis mezes de repouzo e util sequestração que mesmo de uso de uma therapeutica psychiatrica.
Quaresma viveu lá, no manicomio, resignadamente, conversando com os seus companheiros, onde via ricos que se diziam pobres, pobres que se queriam ricos, sabios a mal dizer da sabedoria, ignorantes a se proclamarem sabios; mas, delles todos, daquelle que mais se admirou, foi de um velho e placido negociante da rua dos Pescadores que se suppunha Attila. Eu, dizia o pacato velho, sou Attila, sabe? Sou Attila. Tinha fracas noticias da personagem, sabia o nome e nada mais. Sou Attila, matei muita gente—e era só.
Sahiu o Major mais triste ainda do que vivera toda a vida. De todas as cousas tristes de ver, no mundo, a mais triste é a loucura; é a mais depressora e pungente.
Aquella continuação da nossa vida tal e qual, com um desarranjo imperceptivel, mas profundo e quasi sempre insondavel, que a inutiliza inteiramente, faz pensar em alguma cousa mais forte que nós, que nos guia, que nos impelle e em cujas mãos somos simples joguetes. Em varios tempos e lugares, a loucura foi considerada sagrada, e deve haver razão nisso no sentimento que se apodera de nós quando, ao vermos um louco desarrazoar, pensamos logo que já não é elle quem fala, é alguém, alguém que vê por elle, interpreta as cousas por elle, está atraz delle, invisivel!...
Quaresma sahiu envolvido, penetrado da tristeza do manicomio. Voltou á sua casa, mas a vista das suas cousas familiares não lhe tirou a forte impressão de que vinha impregnado. Embora nunca tivesse sido alegre, a sua physionomia apresentara mais desgosto que antes, muito abatimento moral, e foi para levantar o animo que se recolheu áquella risonha casa de roça, onde se dedicava a modestas culturas.
Não fora elle, porém, quem se lembrara; fora a afilhada que lhe trouxe á idéa aquelle doce acabar para a sua vida. Vendo-o naquelle estado de abatimento, triste e taciturno, sem coragem de sahir, enclausurado em sua casa de São Cristovam, Olga dirigiu-se um dia ao padrinho meiga e filialmente:
—O padrinho porque não compra um sitio? Seria tão bom fazer as suas culturas, ter o seu pomar, a sua horta... não acha?
Tão taciturno que elle estivesse, não pôde deixar de modificar immediatamente a sua physionomia á lembrança da moça. Era um velho desejo seu, esse de tirar da terra o alimento, a alegria e a fortuna; e foi lembrando dos seus antigos projectos que respondeu á afilhada:
—É verdade, minha filha. Que magnifica idéa, tens tu! Ha por ahi tantas terras ferteis sem emprego... A nossa terra tem os terrenos mais ferteis do mundo... O milho póde dar até duas colheitas e quatrocentos por um...
A moça esteve quasi arrependida da sua lembrança. Pareceu-lhe que ia atêar no espirito do padrinho manias já extinctas.
—Em toda a parte—não acha, meu padrinho?—ha terras ferteis.
—Mas como no Brasil, apressou-se elle em dizer, ha poucos paizes que as tenham. Vou fazer o que tu dizes: plantar, criar, cultivar o milho, o feijão, a batata ingleza... Tu irás ver as minhas culturas, a minha horta, o meu pomar—então é que te convencerás como são fecundas as nossas terras!
A idéa cahiu-lhe na cabeça e germinou logo. O terreno estava amanhado e só estirava uma bôa semente. Não lhe voltou a alegria que jamais teve, mas a taciturnidade foi-se com o abatimento moral, e veiu-lhe a actividade mental cerebrina, por assim dizer, de outros tempos. Indagou dos preços correntes das fructas, dos legumes, das batatas, dos aipins; calculou que cincoenta laranjeiras, trinta abacateiras, oitenta pecegueiros, outras arvores fruticferas, além dos abacaxis (que mina!) das aboboras e outros productos menos importantes, podiam dar o rendimento annual de mais de quatro contos, tirando as despezas. Seria ocioso trazer para aqui os detalhes dos seus calculos, baseados em tudo no que vem estabelecido nos boletins da Associação de Agricultura Nacional. Levou em linha de conta a producção média de cada pé de fructeira, de hectare cultivado, e tambem os salarios, as perdia inevitaveis; e, quanto aos preços, elle foi em pessoa no mercado buscal-os.
Planejou a sua vida agricola com a exactidão e meticulosidade que punha em todos os seus projectos. Encarou-a por todas as faces, pezou as vantagens e onus; e muito contente ficou em vel-a monetariamente attrahente, não por ambição de fazer fortuna, mas por haver nisso mais uma demonstração das excellencias do Brasil.
E foi obedecendo a essa ordem de idéas que comprou aquelle sitio, cujo nome—«Socego»—cabia tão bem á nova vida que adoptara, após a tempestade que o sacudira durante quasi um anno. Não ficava longe do Rio e elle o escolhera assim mesmo maltratado, abandonado, para melhor demonstrar a força e o poder da tenacidade, do carinho, no trabalho agricola. Esperava grandes colheitas de fructas, de grãos, de legumes; e do seu exemplo, nasceriam mil outros cultivadores, estando em breve a grande capital cercada de um verdadeiro celleiro, virente e abundante a dispensar os argentinos e europeus.
Com que alegria elle foi para lá! Quasi não teve saudades de sua velha casa de S. Januario, agora propriedade de outras mãos, talvez destinada ao mercenario mister de lar de aluguel... Não sentiu que aquella vasta sala, abrigo calmo dos seus livros durante tantos annos, fosse servir para salão de baile futil, fosse testemunhar talvez rixas de casaes desentendidos, odios de familia—ella tão boa, tão doce, tão sympathica, com o seu tecto alto e as suas paredes lisas, em que se tinham encrustado os desejos de sua alma e toda ella penetrada da exhalação dos seus sonhos!...
Elle foi contente. Como era tão simples viver na nossa terra! Quatro contos de réis por anno, tirados da terra, facilmente, docemente, alegremente! Oh! terra abençoada! Como é que toda a gente queria ser empregado publico, apodrecer numa banca, soffrer na sua independencia e no seu orgulho? Como é que se preferia viver em casas apertadas, sem ar, sem luz, respirar um ambiente epidemico, sustentar-se de maus alimentos, quando se podia tão facilmente obter uma vida feliz, farta, livre, alegre e saudavel?
E era agora que elle chegava a essa conclusão, depois de ter soffrido a miseria da cidade e o emasculamento da repartição publica, durante tanto tempo! Chegara tarde, mas não a ponto de que não pudesse antes da morte travar conhecimento com a doce vida campestre e a feracidade das terras brasileiras. Então pensou que foram vãos aquelles seus desejos de reformas capitaes nas instituições e costumes: o que era principal á grandeza da patria estremecida, era uma forte base agricola, um culto pelo seu solo uberrimo, para alicerçar fortemente todos os outros destinos que ella tinha de preencher.
Demais, com terras tão ferteis, climas variados, a permittir uma agricultura facil e rendosa, este caminho estava naturalmente indicado.
E ele viu então diante dos seus olhos as laranjeiras, em flôr, olentes, muito brancas, a se enfileirar pelas encostas das collinas, como theorias de noivas; os abacateiros, de troncos rugosos, a sopesar com esforço os grandes pomos verdes; as jabuticabas negras a estalar dos caules rijos; os abacaxis coroados que nem reis, recebendo a uncção quente do sol; as abobreiras a se arrastarem com flores carnudas cheias de pollen; as melancias de um verde tão fixo que parecia pintado; os pecegos veludosos, as jacas monstruosas, os jambos, as mangas capitosas; e dentre tudo aquillo surgia uma linda mulher, com o regaço cheio de fructos e um dos hombros nu, a lhe sorrir agradecida, com um imaterial sorriso demorado de deusa—era Pomona, a deusa dos vergeis e dos jardins!...
As primeiras semanas que passou no «Socego», Quaresma as empregou numa exploração em regra da sua nova propriedade. Havia nella terra bastante, velhas arvores fructiferas, um capoeirão grosso com camarás, bacurubús, tinguacibas, tibibuyas, munjólos, e outros specimens. Anastacio que o acompanhara, appelava para as suas recordações de antigo escravo de fazenda, e era quem ensinava os nomes dos individuos da mata a Quaresma muito lido e sabido em cousas brasileiras.
O Major logo organizou um museu dos productos naturaes do «Socego». As especies florestaes e campezinas foram etiquetadas com os seus nomes vulgares, e quando era possivel com os scientificos. Os arbustos, em herbario e as madeiras, em pequenos tocos, seccionados longitudinal e transversalmente.
Os azares de leituras tinham-no levado a estudar as sciencias naturaes e o furor auto-didacta dera a Quaresma solidas noções de botanica, zoologia, mineralogia e geologia.
Não foram só os vegetaes que mereceram as honras de um inventario; os animaes tambem, mas como elle não tinha espaço sufficiente e a conservação dos exemplares exigia mais cuidado, Quaresma limitou-se a fazer o seu museu no papel, por onde sabia que as terras eram povoadas de tatús, cotias, preás, cobras variadas, saracuras, sanãs, avinhados, colleiros, tyês, etc. A parte mineral era pobre, argillas, arêa e, aqui e ali, uns blocos de granito exfoliando-se.
Acabado esse inventario, passou duas semanas a organizar a sua bibliotheca agricola e uma relação de instrumentos metereologicos para auxiliar os trabalhos da lavoura.
Encommendou livros nacionaes, francezes, portuguezes; comprou thermometros, barometros, pluviometros, hygrometros, anemometros. Vieram estes e foram arrumados e collocados convenientemente.
Anastacio assistia a todos esses preparativos com assombro. Para que tanta cousa, tanto livro, tanto vidro? Estaria o seu amigo patrão dando para pharmaceutico? A duvida do preto velho não durou muito. Estando certa vez Quaresma a ler o pluviometro, Anastacio, ao lado, olhava-o espantado, como quem assiste a um passe de feitiçaria. O patrão notou o espanto do criado, e disse:
—Sabes o que estou fazendo, Anastacio?
—Não sinhô.
—Estou vendo se choveu muito.
—Para que isso, patrão? A gente sabe logo de olho quando chove muito ou pouco... Isso de plantar é capim; pôr a semente na terra, deixar crescer e apanhar...
Elle falava com a sua voz molle de africano, sem rr fortes, com lentidão e convicção.
Quaresma, sem abandonar o instrumento, tomou em consideração o conselho de seu empregado. O capim e o matto cobriam as suas terras. As larangeiras, os abacateiros, as mangueiras estavam sujos, cheios de galhos mortos, e cobertos de uma medusina cabelleira de herva de passarinho; mas, como não fosse época propria á póda e ao corte dos galhos, Quaresma limitou-se a capinar por entre os pés das fruteiras. De manhã, logo ao amanhecer, elle mais o Anastacio, lá iam, de enxada ao hombro, para o trabalho do campo. O sol era forte e rijo; o verão, estava no auge, mas Quaresma era inflexível e corajoso. Lá ia.
Era de vel-o, coberto com um chapéo de palha de côco, atracado a um grande enxadão de cabo nodoso, elle, muito pequeno, myope, a dar golpes sobre golpes para arrancar um teimoso pé de guaximba. A sua enxada mais parecia uma draga, um escavador, que um pequeno instrumento agricola. Anastacio, junto ao patrão, olhava-o com piedade e espanto. Por gosto andar naquelle sól a capinar sem saber?... Ha cada cousa neste mundo!
E os dous iam continuando. O velho preto, ligeiro, rapido, raspando o matto rasteiro, com a mão habituada, a cujo impulso a enxada resvalava sem obstaculo pelo solo, destruindo a herva má; Quaresma, furioso, a arrancar torrões de terra daqui, dali, demorando-se muito em cada arbusto; e, ás vezes, quando o golpe falhava e a lamina do instrumento roçava a terra, a força era tanta que se erguia uma poeira infernal, fazendo suppor que por aquellas paragens passara um pelotão de cavallaria. Anastacio, então, intervinha humildemente, mas em tom professoral:
—Não é assim, seu majó. Não se mette a enxada pela terra a dentro. É de leve, assim.
E ensinava ao Cincinato inexperiente o geito de servir-se do velho instrumento de trabalho.
Quaresma agarrava-o, punha-se em posição e procurava com toda a boa vontade usal-o da maneira ensinada. Era em vão. O flange batia na herva, a enxada saltava e ouvia-se um passaro ao alto soltar uma piada ironica: Bemtevi! O Major enfurecia-se, tentava outra vez, fatigava-se, suava, enchia-se de raiva e batia com toda a força; e houve varias vezes que a enxada, batendo em falso, escapando do chão, fel-o perder o equilibrio, cahir, e beijar a terra, mãe dos fructos e dos homens. O pince-nez saltava, partia-se de encontro a um seixo.
O Major ficava todo enfurecido e voltava com mais rigor e energia á tarefa que se impuzera; mas, tanto é em nossos musclos firme a memoria ancestral desse sagrado trabalho de tirar da terra o sustento de nossa vida, que não foi impossivel a Quaresma acordar nos seus o geito, a maneira de empregar a enxada vetusta.
Ao fim de um mez, elle capinava razoavelmente, não seguido, de sol a sol, mas com grandes repousos de hora em hora que a sua idade e falta de habito requeriam.
Ás vezes, o fiel Anastacio seguia-o no descanço e ambos, lado a lado, á sombra de uma fructeira mais copada, ficavam a ver o ar pesado daquelles dias de verão que enrodilhava as folhas das arvores e punha nas cousas um forte accento de resignação morbida. Então, ahi por depois do meio dia, quando o calor parecia narcotizar tudo e mergulhar em silencio a vida inteira, é que o velho Major percebia bem a alma dos tropicos, feita de desencontros como aquelle que se via agora, de um sol alto, claro, olympico a brilhar sobre um torpor de morte, que elle mesmo provocava.
Almoçavam mesmo no eito, comidas do dia anterior, aquecidas rapidamente sobre um improvisado fogão de calháos, e o trabalho ia assim ate á hora do jantar. Havia em Quaresma um enthusiasmo sincero, enthusiasmo de ideologo que quer pôr em pratica a sua idéa. Não se agastou com as primeiras ingratidões da terra, aquelle seu morbido amor pelas hervas damninhas e o incomprehensivel odio pela enxada fecundante. Capinava, e capinava sempre até vir jantar.
Esta refeição elle fazia mais demorada. Conversava um pouco com a irmã, contava-lhe a tarefa do dia, consistindo sempre em avaliar a area já limpa.
—Sabes, Adelaide, amanhã estarão as laranjeiras limpas, não ficará nem mais uma touceira de matto.
A irmã, mais velha que elle, não partilhava aquelle seu enthusiasmo pelas cousas da roça. Considerava-o silenciosa, e, se viera viver com elle, não foi senão pelo habito de acompanhal-o. De certo, ella o estimava, mas não o comprehendia. Não chegava a entender nem os seus gestos nem a sua agitação interna. Porque não seguira elle o caminho dos outros? Não se formara e se fizera deputado? Era tão bonito... Andar com livros, annos e annos, para não ser nada, que doideira! Scguira-o ao «Socego» e, para entreter-se, criava gallinhas, com grande alegria do irmão cultivador.
—Está direito, dizia ella, quando o irmão lhe contava as cousas do seu trabalho. Não vá ficares doente... Neste sol todo o dia...
—Qual, doente, Adelaide! Não estas vendo como essa gente tem tanta saude por ahi... Se adoecem, é porque não trabalham.
Acabado o jantar. Quaresma chegava á janella que dava para o gallinheiro e atirava migalhas de pão ás aves.
Elle gostava desse espectaculo, daquella luta encarniçada entre patos, ganços, gallinhas, pequenos e grandes. Dava-lhe uma imagem reduzida da vida e dos premios que ella comporta. Depois, fazia indagações sobre a vida do gallinheiro:
—Já, nasceram os patos, Adelaide?
—Ainda não. Faltam oito dias ainda.
E logo a irmã accrescentava:
—Tua afilhada deve casar-se sabbado, tu não vaes?
—Não. Não posso... Vou encommodar-me, luxo... Mando um leitão e um perú.
—Ora, tu! Que presente!
—Que é que tem? É da tradição.
Justamente estavam nesse dia assim a conversar os dous irmãos na sala de jantar da velha casa roceira, quando Anastacio veiu avisar-lhes que se achava um cavalheiro na porteira.
Desde que ali se installara, nenhuma visita batera á porta de Quaresma, a não ser a gente pobre do logar, a pedir isso ou aquillo, esmolando disfarçadamente. Elle mesmo não travara conhecimento com ninguem, de modo que foi com surpreza que recebeu o aviso do velho preto.
Apressou-se em ir receber o visitante na sala principal. Elle já subia a pequena escada da frente e penetrava pela varanda a dentro.
—Boas tardes, Major.
—Boas tardes. Faça o favor de entrar.
O desconhecido entrou e sentou-se. Era um typo commum, mas o que havia nelle de extranho, era a gordura. Não era desmedida ou grotesca, mas tinha um aspecto deshonesto. Parecia que a fizera de repente e comia, a mais não poder, com medo de a perder de um dia para outro. Era assim como a de um lagarto que enthezoura enxundia para o inverno ingrato. Atravez da gordura de suas bochechas, via-se perfeitamente a sua magreza natural, normal, e se devia ser gordo não era naquella idade, com pouco mais de trinta annos, sem dar tempo que todo elle engordasse; porque, se as suas faces eram gordas, as suas mãos continuavam magras com longos dedos fusiformes e ageis. O visitante falou:
—Eu sou o Tenente Antonino Dutra escrivão da collectoria.
—Alguma formalidade? indagou medroso Quaresma.
—Nenhuma, Major. Já sabemos quem o senhor é; não ha novidade nem nenhuma exigencia legal.
O escrivão tossiu, tirou um cigarro, offereceu outro a Quaresma e continuou:
—Sabendo que o Major vem estabelecer-se aqui, tomei a iniciativa de vir incommodal-o... Não é cousa de importancia... Creio que o Major...
—Oh! Por Deus, Tenente!
—Venho pedir-lhe um pequeno auxilio, um obulo, para a festa da Conceição, a nossa padroeira, de cuja irmandade sou thesoureiro.
—Perfeitamente. É muito justo. Apezar de não ser religioso, estou...
—Uma cousa nada tem com a outra. É uma tradição do logar que devemos manter.
—É justo.
—O senhor sabe, continuou o escrivão, a gente daqui é muito pobre e a irmandade tambem, de forma que somos obrigados a appellar para a boa vontade dos moradores mais remediados. Desde já, portanto, Major...
—Não. Espere um pouco...
—Oh! Major, não se incommode. Não é p'ra já.
Enxugou o suor, guardou o lenço, olhou um pouco lá fóra e accrescentou:
—Que calor! Um verão como este nunca vi aqui. Tem-se dado bem, Major?
—Muito bem.
—Pretende dedicar-se á agricultura?
—Pretendo, e foi mesmo por isso que vim para a roça.
—Isto hoje não presta, mas noutro tempo!... Este sitio já foi uma lindeza, Major! Quanta fructa! Quanta farinha! As terras estão cançadas e...
—Que cançadas, seu Antonino! Não ha terras cançadas.... A Europa é cultivada ha milhares de annos, entretanto...
—Mas lá se trabalha.
—Porque não se ha de trabalhar aqui tambem?
—Lá isso é verdade; mas ha tantas contrariedades na nossa terra que...
—Qual, meu caro Tenente! Não ha nada que não se vença.
—O Sr. verá com o tempo, Major. Na nossa terra não se vive senão de politica, fóra disso, ba-báo! Agora mesmo anda tudo brigado por causa da questão da eleição de deputados...
Ao dizer isto, o escrivão lançou por baixo das suas palpebras gordas um olhar pesquizador sobre a ingenua physionomia de Quaresma.
—Que questão é? indagou Quaresma.
O Tenente parecia que esperava a pergunta e logo fez com alegria:
—Então não sabe?
—Não.
—Eu lhe explico: o candidato do Governo é o Dr. Castrioto, moço honesto, bom orador; mas entenderam aqui certos presidentes de Camaras Municipaes do Districto que se hão de sobrepor ao Governo, só porque o Senador Guaryba rompeu com o Governador: e—zás—apresentaram um tal Neves que não tem serviço algum ao partido e nenhuma influencia... Que pensa o Senhor?
—Eu... Nada!
O serventuario do fisco ficou espantado. Havia no mundo um homem que, sabendo e morando no Municipio de Curuzú, não se incommodasse com a briga ao Senador Guaryba com o Governador do Estado! Não era possivel! Pensou e sorriu levemente. Com certeza, disse elle consigo, este malandro quer ficar bem com os dous, para depois arranjar-se sem difficuldade. Estava tirando sardinha com mão de gato... Aquillo devia ser um ambicioso matreiro; era preciso cortar as azas daquelle estrangeiro, que vinha não se sabe donde!
—O Major é um philosopho, disse elle com malicia.
—Quem me dera? fez com ingenuidade Quaresma.
Antonino ainda fez rodar um pouco a conversa sobre a grave questão, mas, desanimado de penetrar nas tenções occultas do Major, apagou a physionomia e disse em ar de despedida:
—Então o Major não se recusa a concorrer para a nossa festa, não é?
—De certo.
Os dous se despediram. Debruçado na varanda, Quaresma ficou a vel-o montar no seu pequeno castanho, luzidio de suor, gordo e vivo. O escrivão afastou-se, desappareceu na estrada, e o Major ficou a pensar no interesse extranho que essa gente punha nas lutas politicas, nessas tricas eleitoraes, como se nellas houvesse qualquer cousa de vital e importante. Não atinara porque uma resinga entre dous figurões importantes vinha pôr desharmonia entre tanta gente, cuja vida estava tão fóra da esphera daquelles. Não estava ali a terra boa para cultivar e criar: Não exigia ella uma ardua luta diaria? Porque não se empregava o esforço que se punha naquelles barulhos de votos, de actas, no trabalho de fecundal-a, de tirar della seres, vidas—trabalho igual ao de Deus e dos artistas? Era tolo estar a pensar em governadores e guarybas, quando a nossa vida pede tudo à terra e ella quer carinho, luta, trabalho e amor...
O suffrageo universal pareceu-lhe um flagello.
O trem apitou e elle demorou-se a vel-o chegar. É uma emoção especial de quem mora longe, essa de ver chegar os meios de transporte que nos põem em communicação com o resto do mundo. Ha uma mescla de medo e de alegria. Ao mesmo tempo que se pensa em boas novas, pensam-se tambem más. A alternativa angustia...
O trem ou o vapor como que vem do indeterminado, do Mysterio, e traz, além de noticias geraes, bôas ou más tambem o gosto, um sorriso, a voz das pessoas que amamos e estão longe.
Quaresma esperou o trem. Elle chegou arfando e se extirando como um reptil pela estação afóra á luz forte do sol no poente. Não se demorou muito. Apitou de novo e sahiu a levar noticias, amigos, riquezas, tristezas por outras estações além. O Major pensou ainda um pouco como aquillo era bruto e feio, e como as invenções do nosso tempo se afastam tanto da linha imaginaria da belleza que os nossos educadores de dous mil annos atrás nos legaram. Olhou a estrada que levava á estação. Vinha um sujeito... Dirigia-se para a sua casa... Quem podia ser? Limpou o pince-nez e assestou-o para o homem que caminhava com pressa... Quem era? Aquelle chapéo dobrado, como um morrião... Aquelle fraque comprido... Passo miudo... Um violão! Era elle!
—Adelaide está ahi o Ricardo.
Os suburbios do Rio de Janeiro são a mais curiosa cousa em materia de edificação de cidade. A topographia do local, caprichosamente montuosa, influiu de certo para tal aspecto, mais influiram, porém, os azares das construcções.
Nada mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode ser imaginado. As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e, conforme as casas, as ruas se fizeram. Ha algumas dellas que começam largas como «boulevards» e acabam estreitas que nem viellas; dão voltas, circuitos inuteis e parecem fugir ao alinhamento recto com um odio tenaz e sagrado.
Ás vezes se succedem na mesma direcção com uma frequencia irritante, outras se afastam, e deixam de permeio um longo intervallo coheso e fechado de casas. Num trecho, ha casas amontoadas umas sobre outras numa angustia de espaço desoladora, logo adiante um vasto campo abre ao nosso olhar uma ampla perspectiva.
Marcham assim ao acaso as edificações e conseguintemente o arruamento. Ha casas de todos os gostos e construidas de todas as formas.
Vai-se por uma rua a ver um correr de «chalets», de porta e janella, parede de frontal, humildes e acanhados, de repente se nos depara uma casa burgueza, dessas de compoteiras na cimalha rendilhada, a se erguer sobre um porão alto com mezzaninos gradeados. Passada essa surpreza, olha-se acolá e dá-se com uma choupana de pau a pique, coberta de zinco ou mesmo palha, em torno da qual formiga uma população; adiante, é uma velha casa de roça, com varanda e columnas de estylo pouco classificavel, que parece vexada e querer occultar-se, diante daquella onda de edificios disparatados e novos.
Não ha nos nossos suburbios cousa alguma que nos lembre os famosos das grandes cidades européas, com as suas villas de ar repousado e satisfeito, as suas estradas e ruas macadamisadas e cuidadas, nem mesmo se encontram aquelles jardins, cuidadinhos, aparadinhos, penteados, porque os nossos, se os ha, são em geral pobres, feios e desleixados.
Os cuidados municipaes tambem são variaveis e caprichosos. Ás vezes, nas ruas, ha passeios, em certas partes e outras não; algumas vias de communicação são calçadas e outras da mesma importancia estão ainda em estado de natureza. Encontra-se aqui um pontilhão bem cuidado sobre um rio secco e passos além temos que atravessar um ribeirão sobre uma pinguella de trilhos mal juntos.
Ha pelas ruas damas elegantes, com sedas e brocados, evitando a custo que a lama ou o pó lhes empanem o brilho do vestido; ha operarios de tamancos; ha peralvilhos á ultima moda: ha mulheres de chita; e assim pela tarde, quando essa gente volta do trabalho ou do passeio, a mescla se faz numa mesma rua, num quarteirão, e quasi sempre o mais bem posto não é que entra na melhor casa.
Alem disto, os suburbios têm mais aspectos interessantes, sem falar no namoro epidemico e no espiritismo endemico; as casas de commodos (quem as supporia lá!) constituem um delles bem inedito. Casas que mal dariam para uma pequena familia, são divididas, subdivididas, e os minusculos aposentos assim obtidos, alugados á população miseravel da cidade. Ahi, nesses caixotins humanos, é que se encontra a fauna menos observada da nossa vida, sobre a qual a miseria paira com um rigor londrino.
Não se podem imaginar profissões mais tristes e mais inopinadas da gente que habita taes caixinhas. Além dos serventes de repartições, continuos de escriptorios, podemos deparar velhas fabricantes de rendas de bilros, compradores de garrafas vasias, castradores de gatos, cães e gallos, mandingueiros, catadores de hervas medicinaes, emfim, uma variedade de profissões miseraveis que as nossas pequena e grande burguezias não podem adivinhar. Ás vezes num cubiculo desses se amontoa uma familia, e ha occasiões que os seus chefes vão a pé para a cidade por falta da nickel do trem.
Ricardo Coração dos Outros morava em uma pobre casa de commodos de um dos suburbios. Não era das sordidas, mas era uma casa de commodos dos suburbios.
Desde annos que elle a habitava e gostava da casa que ficava trepada sobre uma collina, olhando a janella do seu quarto para uma ampla extensão edificada que ia da Piedade a Todos os Santos. Vistos assim do alto, os suburbios têm a sua graça. As casas pequeninas, pintadas de azul, de branco, de óca, engastadas nas comas verde-negras das mangueiras, tendo de permeio, aqui e ali, um coqueiro ou uma palmeira, alta e soberba, fazem a vista boa e a falta de percepção do desenho das ruas põe no panorama um sabor do confusão democratica, de solidariedade perfeita entre as gentes que as habitam; e o trem minusculo, rapido, atravessa tudo aquillo, dobrando d esquerda, inclinando-se para a direita, muito flexivel nas suas grandes vertebras de carros, como uma cobra entre pedrouços.
Era daquella janella que Ricardo, espraiava as suas alegrias, as suas satisfações, os seus triumphos e tambem os seus soffrimentos e maguas.
Ainda agora estava elle lá, debruçado no peitoril, com a mão em concha no queixo, colhendo com a vista uma grande parte daquella bella, grande e original cidade, capital de um grande paiz de que elle a modos que era e se sentia ser, a alma, consubstanciando os seus tenues sonhos e desejos em versos discutiveis, mas que a plangencia do violão, se não lhes dava sentido, dava um que de balbucio, de queixume dorido da patria criança ainda, ainda na sua formação...
Em que pensava elle? Não pensava só, soffria tambem. Aquelle tal preto continuava na sua mania de querer fazer a modinha dizer alguma cousa, e tinha adeptos. Alguns já o citavam como rival delle, Ricardo; outros já affirmavam que o tal rapaz deixava longe o Coração dos Outros, e alguns mais—ingratos!—já esqueciam os trabalhos, o tenaz trabalhar de Ricardo Coração dos Outros em pról do levantamento da modinha e do violão, e nem nomeavam o abnegado obreiro.
Com o olhar perdido, Ricardo lembrava-se de sua infancia, daquella sua aldeia sertaneja, da casinha dos seus pais, com seu curral e o mugido dos vitellos. E o queijo? Aquelle queijo tão substancial, tão forte, feio como aquella terra, mas feraz como ella tanto que bastava comer delle uma pequena fatia para se sentir almoçado... E as festas? Saudades... E o violão, como aprendeu? O seu mestre, o Maneco Borges, não lhe predissera o futuro: «Irás longe, Ricardo. A viola quer teu coração».
Por que então aquelle encarniçamento, aquelle odio contra elle—elle que trouxera para esta terra de estrangeiros a alma, o suco, a substancia do paiz!
E as lagrimas lhe saltaram quentes dos olhos afóra. Olhou um pouco as montanhas, farejou o mar lá longe... Era bella a terra, era linda, era magestosa, mas parecia ingrata e aspera no seu granito omnipresente que se fazia negro e mau quando não era amaciado pela verdura das arvores.
E elle estava ali só, só com a sua gloria e o seu tormento, sem amor, sem confidente, sem amigo, só como um deus ou como um apostolo em terra ingrata que não lhe quer ouvir a boa nova.
Soffria em não ter um peito amado, amigo em que derramasse aquellas lagrimas que iam cahir no solo indifferente. Por ahi, lembrou-se dos famosos versos: Se choro... bebe o pranto a areia ardente...
Com a lembrança, elle baixou um pouco o olhar á terra e viu que no tanque da casa, um tanto escondida delle, uma rapariga preta lavava. Ella abaixava o corpo sobre a roupa, carregava todo o seu peso, ensaboava-a ligeira, batia-a de encontro á pedra, e recomeçava. Teve pena daquella pobre mulher, duas vezes triste na sua condição e na sua côr. Veiu-lhe um afflux de ternura e, depois, poz-se a pensar no mundo, nas desgraças, ficando um instante enleiado no enigma do nosso miseravel destino humano.
A rapariga não o viu, distrahida com o trabalho; e se pôz a cantar:
Era delle. Ricardo sorriu satisfeito e teve vontade de ir beijar aquella pobre mulher, abraçal-a...
E como eram as cousas? Elle recebia lenitivo daquella rapariga; era a sua humilde e dorida voz que vinha afagar o seu tormento! Vieram-lhe então á memoria aquelles versos do padre Caldas, esse seu antecessor feliz que teve um auditorio de fidalgas:
Enfim era uma missão!... A rapariga acabou de cantar e Ricardo não se pôde conter:
—Vai bem, D. Alice, vai bem! Se não fosse porque eu lhe pedia bis.
A rapariga estendeu a cabeça, reconheceu quem falava e disse:
—Não sabia que o senhor estava ahi, senão não cantava na vista do senhor.
—Qual o que! Posso garantir-lhe que está bom, muito bom. Cante.
—Deus me livre! Para o senhor me criticar...
Embora insistisse muito, a rapariga não quiz continuar. As maguas pareciam ter passado do pensamento de Ricardo. Veiu ao interior do quarto e pôz-se á meza na tenção de escrever.
O seu quarto tinha o mobiliario mais reduzido possivel. Havia uma rede com franjas de rendas, uma mesa de pinho, sobre ella objectos de escrever; uma cadeira, uma estante com livros, e, pendurado a uma parede o violão na sua armadura de camurça. Havia tambem uma machina para fazer café.
Sentou-se e quiz começar uma modinha sobre a Gloria, essa cousa fugace, que se tem e se pensa que não se tem, alguma cousa impalpavel, incolhivel como um sopro, que nos alancêa, queima, inquieta e abraza como o Amor.
Tentou começar, dispoz o papel, mas não pôde. A emoção tinha sido forte, toda a sua natureza tinha sido lavrada, baralhada, com a idéa daquelle furto que se queria fazer ao seu merito. Não conseguiu assentar o pensamento, apanhar as palavras no ar, sentir a musica zumbir no ouvido.
A manhã ia alta. As ciganas defronte chilreavam no tamarineiro desfolhado; começava a esquentar e o céo estava de um azul ligeiro, tenue, fino. Quiz sahir, procurar um amigo, espairecer com elle, mas quem? Ainda, se o Quaresma... Ah! O Quaresma! Esse, sim, trazia-lhe conforto e consolo.
É verdade que ultimamente esse seu amigo achava-se pouco interessado pela modinha; mas assim mesmo comprehendia o seu proposito, os fins e o alcance da obra a que elle, Ricardo, se propunha. Ainda se o Major estivesse perto, mas tão longe! Consultou as algibeiras. Não chegava a dous mil réis a sua fortuna. Como ir? Arranjaria um passe e iria. Bateram á porta. Traziam-lhe uma carta. Não reconheceu a letra; rasgou o envelope com emoção. Que seria? Leu:
«Meu caro Ricardo—Saude—Minha filha Quinota casa-se depois de amanhã, quinta-feira. Ella e o noivo fazem muito gosto que V. appareça. Se o amigo não estiver compromettido com alguem, agarre o violão e venha até cá tomar uma chavena de chá comnosco—Seu amigo Albernaz».
O trovador, á proporção que lia, ia mudando de physionomia. Até então estava carregada e dura: quando acabou de ler o bilhete, um sorriso brincava por toda ella, descia e subia, ia de uma face a outra. O General não o abandonara; para o respeitavel milhar, Ricardo Coração dos Outros ainda era o rei do violão. Iria e arranjaria passagem com o antigo vizinho de Quaresma. Contemplou um pouco o violão, demoradamente, ternamente, agradecidamente como se fosse um idolo bemfazejo.
Quando Ricardo penetrou em casa do General Albernaz, o ultimo brinde havia sido levantado e todos se dirigiam para a sala de visitas em pequenos grupos. D. Maricota vestia seda malva e o seu busto curto parecia ainda mais abafado, mais socado, naquelle tecido caro que parece requerer corpos elegantes e flexiveis. Quinota estava radiante no vestido de noiva. Ella era alta, de feições mais regulares que a irmã Ismenia, mas menos interessante e mais commum de temperamento e alma, embora faceira. Lalá a terceira filha do General, que já se ageitava a moça, tinha muito pó de arroz, estava sempre a concertar o penteado e a sorrir para o Tenente Fontes. Um casamento bem cotado e esperado. Genelicio dava o braço á noiva, encasacado numa casaca mal talhada, que punha bem á mostra a sua gibosidade, e caminhava todo atrapalhado nos apertados sapatos de verniz.
Ricardo não os viu passar, pois ao entrar, a fila estava no General, mettido num segundo uniforme dos grandes dias, que lhe ia mal como a farda de um guarda nacional endomingado; mas, quem tinha um ar importante, marcial e navegado, ao mesmo tempo palaciano, era o Contra-Almirante Caldas. Fôra padrinho e estava irreprehensivel na sua casaca do uniforme. As ancoras reluziam como metaes de bordo em hora de revista e os seus favoritos, muito penteados, alargavam a sua face e pareciam desejar com ardôr os grandes ventos do vasto oceano sem fim. Ismenia estava de rosa e andava pelas salas com o seu ar dolente, com o seu vagar, com os seus gestos lentos, dando providencias. O Lulú, o unico filho do General, impava no seu uniforme do Collegio Militar, cheio de dourados e cabellos, tanto mais que passara de anno, graças aos empenhos do pai.
O General não tardou em vir falar com Ricardo; e os noivos, quando o trovador os cumprimentou, agradeceram-lhe muito, e até Quinota disse um—sou muito feliz...—deitando a cabeça de lado e sorrindo para o chão, sorriso que encheu de immenso transporte a candida alma do menestrel.
Deram começo as dansas e o General, o Almirante, o Major Innocencio Bustamante, que tambem viera de uniforme, com a sua banda roxa de honorario, o Dr. Florencio, Ricardo e dous convidados outros foram para a sala de jantar palestrar um pouco.
O General estava satisfeito. Sonhava ha tantos annos uma cerimonia daquellas em sua casa e emfim pela primeira vez via realizado esse anceio.
A Ismenia foi aquella desgraça... O ingrato?... Mas para que recordar?
Os cumprimentos se repetiram.
—É um rapagão, o seu novo genro, disse um dos convidados novos.
O General tirou o pince-nez que era preso por um trancelim de ouro, e emquanto o limpava, respondeu, olhando com aquelle geito dos myopes:
—Estou muito contente.
Por ahi pôz o pince-nez, endireitou o truncelim e continuou:
Creio que casei bem minha filha: rapaz formado bem encaminhando e intelligente.
O Almirante acudiu:
—E que carreira! Não é por ser meu parente, mas com trinta e dous annos escripturario do Thezouro, é cousa nunca vista.
—O Genelicio não está no Tribunal de Contas, não passou? perguntou Florencio.
—Passou, mas é a mesma cousa, replicou o outro convidado novo, que era da amizade do recem-casado.
De facto, Genelicio tinha arranjado a transferencia e não fôra só isso que o decidira a casar-se. Tendo escripto uma—«Synthese de Contabilidade Publica Scientifica»—viu-se, sem saber como, cumulado de elogios pela imprensa desta capital. O Ministro, attendendo ao merito excepcional da obra, mandou-lhe dar dous contos de premio, tendo sido a edição feita á custa do Estado, na Imprensa Nacional. Era um grosso volume de 400 paginas, typo dôze, escripto em estylo de officio, com uma basta documentação de decretos, e portarias, occupando dous terços do livro.
A primeira phrase da primeira parte, o quinhão do livro verdadeiramente synthetico e scientifico, fôra até muito notada e gabada pelos criticos, não só pela novidade da idéa, conto tambem pela belleza da expressão.
Dizia assim: «A Contabilidade Publica é a arte ou sciencia de escripturar convenientemente a despeza e receita do Estado».
Além do premio e da transferencia, elle já tinha promessa de ser sub-director na primeira vaga.
Ouvindo tudo isso que tinham dito o Almirante, o General e os convidados novos, o Major não pôde deixar de observar:
—Depois da militar, a melhor carreira é a de Fazenda, não acham?
—Sim... Bem entendido, fez o Dr. Florencio.
—Eu não quero falar dos formados, apressou-se o Major. Esses...
Ricardo sentia-se na obrigação de dizer qualquer cousa e foi soltando a primeira phrase que lhe veiu aos labios:
—Quando se prospera, todas as profissões são boas.
—Não é assim tanto, obtemperou o Almirante, alisando um dos favoritos. Não é para desfazer nas outras, mas a nossa, hein Albernaz? hein Innocencio?
Albernaz levantou a cabeça como se quizesse apanhar no ar uma lembrança e depois replicou:
—É, mas tem os seus percalços. Quando se está numa trapalhada, fogo daqui, tiro dali, morre um, grita outro como em Curupaity, então...
—O Sr. esteve lá, General? perguntou o convidado amigo de Genelicio.
—Não estive. Adoeci e vim para o Brasil. Mas o Camisão... Não imaginam o que foi—Você sabe, não é Innocencio?
—Se estive lá...
—Polydoro tinha ordem de atacar Sauce, Flores a esquerda e nós cahimos sobre os Paraguayos. Mas os malandros estavam bem entrincheirados, tinham aproveitado o tempo...
—Foi seu Mitre, disse Innocencio.
—Foi. Atacamos com furia. Era um ribombar de canhões que mettia medo, bala por todo o canto, os homens morriam como moscas... Um inferno!
—Quem venceu? perguntou um dos convidados novos.
Todos se entreolharam admirados, excepto o General que julgava a sabedoria do Paraguay excepcional.
—Foram os paraguayos, isto é, repeliram o nosso ataque. É por isso que eu digo que a nossa profissão é bella, mas tem as suas cousas...
—Isso não quer dizer nada. Tambem na passagem de Humaytá... ia dizendo o Almirante.
—O senhor estava a bordo?
—Não, eu fui mais tarde. Perseguições fizeram com que eu não fosse designado, porque o embarque equivalia a uma promoção... Mas, na passagem de Humaytá...
Na sala de visitas as dansas continuavam com animação. Era raro que alguém viesse lá de dentro até onde elles estavam. Os risos, a musica, e o mais que se adivinhava não distrahiam aquelles homens das suas preoccupações bellicosas.
O General, o Almirante e o Major enchiam de pasmo aquelles burguezes pacificos, contando batalhas em que não estiveram e pugnas valorosas que não pelejaram.
Não ha como um cidadão pacato, bem comido, tendo tomado alguns vinhos generosos, para apreciar as narrações de guerra. Elle só vê a parte pittoresca, a parte por assim dizer espiritual das batalhas, dos encontros; os tiros são os de salva e se matam é cousa de sómenos. A Morte mesmo, nas narrações feitas assim, perde a sua importancia tragica: 3.000 mortos, só!!!
De resto, contadas pelo General Albernaz, que nunca tinha visto a guerra, a cousa ficava edulcorada, uma guerra «bibliothèque rose», guerra de estampa popular, em que não apparecem a carniçaria, a brutalidade e a ferocidade normaes.
Estavam Ricardo, o Dr. Florencio, o exacto empregado como engenheiro das Aguas, aquelles dous recentes conhecimentos de Albernaz, embevecidos, boquiabertos e invejosos diante das proezas imaginarias daquelles tres militares, um honorario, talvez o menos pacifico dos tres, o unico que tivesse mesmo tomado parte em alguma cousa guerreira—quando D. Maricota chegou, sempre diligente, activa, dando movimento e vida á festa. Era mais moça que o marido, tinha ainda inteiramente pretos os cabellos na sua cabeça pequena, que contrastava tanto com o seu corpo enorme. Ella vinha offegante e dirigiu-se ao marido:
—Então, Chico, que é isso? Ficam ahi e eu que faça sala, que anime as moças... P'ra sala todos!
—Já vamos D. Maricota, disse alguém.
—Não, fez com rapidez a dona da casa, é já. Vamos, seu Caldas, seu Ricardo, os senhores!
E foi empurrando um a um pelo hombro.
—Depressa, depressa, que a filha do Lemos vai cantar; e depois é o senhor... Está ouvindo, seu Ricardo!
—Pois não, minha senhora. É uma ordem...
E foram. No caminho o General parou um pouco, chegou-se a Coração dos Outros e perguntou:
—Diga-me uma cousa: como vai o nosso amigo Quaresma?
—Vai bem.
—Tem-lhe escripto?
—Ás vezes. Eu queria, General...
O General suspendeu a cabeça, levantou um pouco o pince-nez que começava a cahir, e perguntou:
—O que?
Ricardo ficou intimidado com o ar marcial com que Albernaz lhe fez a pergunta. Depois de uma ligeira, hesitação, respondeu de um jacto, com medo de perder a s palavras:
—Eu queria que o senhor me arranjasse uma passagem, um passe, para ir vel-o.
O General esteve uns instantes de cabeça baixa, coçou o cabello e disse:
—Isso é difficil, mas você appareça lá, na repartição, amanhã.
E continuaram a andar. Ainda andando, Coração dos Outros accrescentou:
—Estou com saudades delle, depois tenho certos desgostos... O senhor sabe: um homem que tem nome...
—Vá lá amanhã.
D. Maricota appareceu na frente e falou agastada:
—Vocês não vêm!
—Já vamos, fez o General.
E depois, dirigindo-se a Ricardo, ajuntou:
—Aquelle Quaresma podia estar bem, mas foi metter-se com livros... É isto! Eu, ha bem quarenta annos, que não pego em livro...
Chegaram á sala. Era vasta. Tinha dous grandes retratos em pesadas molduras douradas, furiosos retratos a oleo de Albernaz e da mulher; um espelho oval e alguns quadrinhos, e a decoração estava completa. Da mobilia não se podia julgar, tinha sido retirada, para dar mais espaço aos dansantes. A noiva e o noivo estavam no sofá sentados a presidir a festa. Havia um ou outro decote, poucas casacas, algumas sobrecasacas e muitos fraques. Por entre as cortinas de uma janella, Ricardo pôde ver a rua. A calçada defronte estava cheia. A casa era alta e tinha jardim; só de lá os curiosos, os serenos, podiam ver alguma cousa da festa. Lalá, no vão de uma sacada, conversava com o Tenente Fontes. O General contemplou-os e abençoou-os com um olhar aprovador...
A moça, a famosa filha do Lemos, dispoz-se a cantar. Foi ao piano, collocou a partitura e começou. Era uma romanza italiana que ella cantou com a perfeição e o mau gosto de uma moça bem educada. Acabou. Palmas geraes, mas frias, soaram.
O Dr. Florencio que ficara atraz do General, commentou:
—Tem uma bella voz esta moça. Quem é?
—É a filha do Lemos, do Dr. Lemos da Hygiene, respondeu o General.
—Canta muito bem.
—Está no ultimo anno do Conservatorio, observou ainda Albernaz.
Chegou a vez de Ricardo. Elle occupou um canto da sala, agarrou o violão, afinou-o, correu a escala; em seguida, tomou o ar tragico de quem vai representar o Oedipo-Rei e falou com voz grossa: «Senhoritas, senhores e senhoras». Parou. Concertou a voz e continuou: «Vou cantar «Os teus braços», modinha de minha composição, musica e versos. É uma composição terna, decente e de uma poesia exaltada». Seus olhos, por ahi, quasi lhe sabiam das orbitas. Emendou: «Espero que nenhum ruido se ouça, porque senão a inspiração se evola. É o violão instrumento muito... mui...to dê li ca do. Bem».
A attenção era geral. Deu começo. Principiou brando, gemebuado, macio e longo, como um soluço de onda; depois, houve uma parte rapida, saltitante, em que o violão estalava. Alternando um andamento e outro, a modinha acabou.
Aquillo tinha ido ao fundo de todos, tinha acudido ao sonho das moças e aos desejos dos homens. As palmas foram ininterruptas. O General abraçou-o, Genelicio levantou-se e deu-lhe a mão, Quinota, no seu immaculado vestido de noiva, tambem.
Para fugir aos cumprimentos, Ricardo correu á sala de jantar. No corredor chamaram-n'o: Sr. Ricardo, Sr. Ricardo! Voltou-se. Que ordena minha senhora? Era uma moca que lhe pedia uma copia da modinha.
—Não se esqueça, dizia ella com meiguice, não se esqueça. Gosto tanto das suas modinhas... São tão ternas tão delicadas... Olhe: dê aqui a Ismenia para me entregar.
A noiva de Cavalcanti approximava-se e, ouvindo falar em seu nome, perguntou:
—Que é, Dulce?
A outra explicou-lhe. Ella aceitou a incumbencia: e, por sua vez, perguntou a Ricardo com a sua voz dolente:
—Seu Ricardo, quando é que o Sr. pretende estar com D. Adelaide.
—Depois de amanhã, espero eu.
—Vai lá.
—Vou.
—Pois então diga-lhe que me escreva. Eu queria tanto receber uma carta...
E limpou os olhos furtivamente, com o seu pequenino lenço rendado.
No sabbado da semana seguinte áquella em que a filha do General recebera como marido o grave e giboso Genelicio, gloria e orgulho do nosso funccionalismo publico, Olga casara-se. A cerimonia correra com a pompa e a riqueza acostumadas em pessoas de sua camada. Houve uns arremedos parisienses de corbeille de noiva e outros pequenos detalhes chics, que não a aborreceram, mas que não a encheram lá de satisfação maior que as noivas communs. Talvez nem mesmo essa ella tivesse.
Não foi para a igreja em virtude de uma determinação certa de sua vontade. Continuava a não encontrar dentro de si motivo para aquelle acto, mas, apparentemente, nenhuma vontade extranha á sua influira para isso. O marido é que estava contente. Não seria muito com a noiva, mas com a volta que a sua vida ia tomar. Ficando rico e sendo medico, cheio de talento nas notas e recompensas escolares, via diante de si uma larga estrada de triumphos nas posições e na industria clinica. Não tinha fortuna alguma, mas julgava o seu banal titulo um fóral de nobreza, equivalente áquelles com que os authenticos fidalgos da Europa brunem o nascimento das filhas dos salchicheiros yankees. Apezar de ser seu pai um importante fazendeiro por ahi, em algum logar deste Brasil, o sogro lhe dera tudo e tudo elle aceitara sem pejo, com o desprezo de um duque, duque de plenamentes e medalhas, a receber homenagens de um villão que não roçou os bancos de uma Academia.
Julgava que a noiva o aceitara pelo seu maravilhoso titulo, o pergaminho; é verdade que foi, não tanto pelo titulo, mas pela sua simulação de intelligencia, de amor á sciencia, de desmedidos sonhos de sabio. Tal imagem que delle fizera, durara instantes em Olga; depois foi a inercia da sociedade, a sua tyrannia e a timidez natural da moça em romper que a levaram ao casamento. Tanto mais que ella, de si para si, pensava que se não fosse este, seria outro a elle igual, e o melhor era não adiar.
Era por isso que ella não ia para a igreja, em virtude de uma determinação certa de sua vontade, embora sem perceber o constrangimento de um commando fora della.
Apezar da pompa, esteve longe de ser uma noiva magestosa. Não obstante as origens puramente européas, era pequena, muito mesmo, ao lado do noivo, alto, erecto, com uma physionomia irradiante de felicidade; e, desse modo, ella desapparecia dentro do vestido, dos véos e daquelles atavios obsoletos com que se arreiam as moças que se vão casar, De resto, a tua belleza não era a grande belleza—aquella que nós exigimos das noivas ricas, segundo o modelo das estampas classicas.
No seu rosto, nada de grego, desse grego authentico on de pacotilha, ou tambem dessa magestade de opera lyrica. Havia nos seus traços muita irregularidade, mas a sua physionomia era profunda e propria. Não só a luz dos seus grandes olhos negros, que quasi cobriam toda a cavidade orbitaria, fazia fulgurar o seu rosto mobil, como a sua pequena boca, de um desenho fino, exprimia bondade, malicia e o seu ar geral era de reflexão e curiosidade.
Ao contrario do costume, não sahiram da cidade e foram morar em casa do antigo empreiteiro.
Quaresma não fora á festa, mandara o leitão e o perú da tradição e escrevera uma longa carta. O sitio empolgara-o, o calor ia passar, vinha a época das chuvas, das semeaduras, e não queria afastar-se de suas terras. A viagem seria breve, mas mesmo assim, perdendo um dia ou dous, era como se começasse a desertar da batalha.
O pomar estava todo limpo e já estavam preparados os canteiros da horta. A visita de Ricardo veiu distrail-o um pouco, sem desvial-o comtudo, de seus afazeres agricolas.
Passou um mez com o Major, e foi um triumpho. A fama do seu nome precedia-o, de forma que todo o municipio o disputava e festejava.
O seu primeiro trabalho foi ir á villa. Ficava a quatro kilometros adiante da casa de Quaresma e a estrada de ferro tinha uma estação lá. Ricardo dispensou a estrada e foi a pé, pela estrada de rodagem, se assim se póde chamar um trilho, cheio de caldeirões, que subia e descia morros, cortava planicies e rios em toscas pontes. A villa!... Tinha duas ruas principaes: a antiga, determinada pelo velho caminho de tropas, e a nova, cuja origem veiu da ligação da velha com a estrada de ferro. Ellas se encontravam em T, sendo o braço vertical o caminho da estação. As outras partiam dellas, as casas juntavam-se urbanamente no começo, depois iam espaçando, espaçando, até acabar em mato, em campo. A antiga chamava-se Marechal Deodoro, ex-Imperador; e a nova, Marechal Floriano, ex-Imperatriz. De uma das extremidades da rua Marechal Deodoro, partia a da Matriz, ia ter á igreja, ao alto de uma collina, feia e pobre no seu estylo jesuitico. Á esquerda da estação, num campo, a praça da Republica, a que ia dar uma rua mal esboçada por espaçadas casas, ficava a Camara Municipal.
Em um grande parallepipeto de tijolo, cimalha, janella com sacadas de grade de ferro, puro estylo mestre de obras. Compungia essa pobreza de gosto a quem se lembrasse dos edificios da mesma natureza das pequenas communas francezas e belgas da idade média.
Ricardo entrou num barbeiro da rua Marechal Deodoro, salão Rio de Janeiro, e fez a barba. O figaro deu-lhe informações a villa e elle se deu a conhecer. Havia certos circumstantes, um delles tomou-o a seu cargo e dahi em pouco estava relacionado.
Quando voltou para a casa do Major já tinha convite para o baile do Dr. Campos, presidente da Camara, festa que teria logar na quarta-feira proxima.
Chegara sabbado e fora passeiar á villa domingo.
Tinha havido missa e o trovador assistiu a sahida. A concurrencia nunca é grande na roça, mas Ricardo pôde ver algumas daquellas moças do interior, lymphaticas e tristes, ataviadinhas, cheias de laços, descendo silenciosas a collina em que se erguia a igreja, espalhando-se pela rua e logo entrando para as casas, onde iriam passar uma semana de reclusão e tedio. Foi na sahida da missa que lhe apresentaram o Dr. Campos.
Era o medico do lugar, morava, porém, fora, na sua fazenda, e viera de «aranha» com a sua filha, Nair, assistir o officio religioso.
O trovador e o medico estiveram um instante conversando, emquanto a filha, muito magra, pallida, com uns longos braços descarnados, olhava com um vexame fingido o solo poeirento da rua. Quando elles partiram, ainda Ricardo considerou um pouco aquelle rebento dos ares livres do Brasil.
Á festa do Dr. Campos, seguiram-se outras a que Ricardo deu a honra de sua presença e a alegria da sua voz. Quaresma não o acompanhava, mas gozava a sua victoria. Se bem que o Major tivesse abandonado o violão, ainda continuava a prezar aquelle instrumento essencialmente nacional. As consequencias desastrosas do seu requerimento em nada tinham abalado as suas convicções patrioticas. Continuavam as suas idéas profundamente arraigadas, tão sómente elle as escondia, para não soffrer com a incomprehensão e maldade dos homens.
Gozava, portanto, a fulminante victoria de Ricardo, que indicava bem naquella população a existencia de um residuo forte da nossa nacionalidade a resistir ás invasões das modas e gostos estrangeiros.
Ricardo recebia todas as honras, todos os favores, por parte de todos os partidos. O Dr. Campos, presidente da Camara, era quem mais o cumulava de homenagens. Naquella manhã até esperava um dos cavallos do edil, para dar um passeio ao Carico; e, esperando, foi dizendo a Quaresma, que ainda não tinha partido para o eito:
—Major, foi uma boa idéa vir para a roça. Vive-se bem e pode-se subir...
—Não tenho nenhum desejo disso. Você sabe como me são extranhas todas essas cousas.
—Sei... É... Não digo que se peça, mas, quando nos offerecem, não devemos rejeitar, não acha?
—Conforme, meu caro Ricardo. Eu não podia aceitar encargo de commandar uma esquadra.
—Até ahi não vou. Olhe, Major: eu gosto muito de violão, mesmo dedico a minha vida ao seu levantamento moral a intellectual, entretanto, se amanhã o Presidente dissesse: «Seu Ricardo, Você vai ser deputado», o senhor pensa que eu não aceitava, sabendo perfeitamente que não podia mais desferir os threnos do instrumento? Ora, se não! Não se deve perder vasa, Major.
—Cada um tem as suas theorias.
—De certo. Outra cousa. Major: conhece o Dr. Campos?
—De nome.
—Sabe que elle é presidente da Camara.
Quaresma olhou um instante para Ricardo com uma ligeira desconfiança, O menestrél não notou o gesto do amigo e emendou.
—Móra daqui a uma legua. Já lhe toquei em casa e hoje vou a cavallo passeiar com elle.
—Fazes bem.
—Elle quer conhecel-o. Posso trazel-o aqui?
—Pódes.
Um camarada do Dr. Campos, neste instante, entrava pela porteira trazendo o cavallo promettido. Ricardo montou e Quaresma seguiu para a roça ao encontro dos seus dous empregados. Eram agora dous, pois, além do Anastacio, que não era bem um empregado, mas aggregado, admittira o Felizardo.
Era manhã de verão, mas as chuvas continuadas dos dias anteriores tinham attenuado a temperatura.
Havia uma grande profusão de luz e os ares estavam doces. Quaresma foi caminhando por entre aquelle rumor de vida, rumor que vinha do farfalhar do mato e do piar das aves e passaros. Esvoaçavam tyês vermelhos, bandos de colleiros; anuns voavam e punham pequenas manchas negras no verdor das arvores. Até as flores, essas tristes flores dos nossos campos, no momento, parece que tinham sahindo á luz, não sómente para a fecundação vegetal mas tambem para a belleza.
Quaresma e seus empregados trabalhavam agora longe, faziam um roçado, e fôra para auxiliar esse serviço que contratou o Felizardo. Era este um camarada magro, alto, de longos braços, longas pernas, como um simio. Tinha a face cor de cobre, a barba rala e, sob uma apparencia de fraqueza muscular, não havia ninguem mais valente que elle a roçar. Com isto era um tagarella incansavel. De manhã, quando chegava, ahi pelas seis horas, já sabia todas as intriguinhas do municipio.
O roçado tinha por fim ganhar terreno ao mato, no lado do norte do sitio, que o capão invadira. Obtido elle, o Major plantaria obra de meio alqueire ou pouco mais de milho, e nos intervallos batatas inglezas, cultura nova em que depositava grandes esperanças. Já se fizera a derrubada e o aceiro estava aberto; Quaresma, porém, não lhe quizera atear fogo. Evitava assim calcinar o terreno, eliminando delle os principios volateis ao fogo. Agora o seu trabalho era separar os paus mais grossos, para aproveitar como lenha; os galhos miudos e folhas, elle removia para longe, onde então queimaria em coiváras pequenas.
Isso levava tempo, custava tombos ao seu corpo mal habituado aos cipós e tocos; mas promettia dar um rendimento maior ao plantio.
Durante o trabalho, Felizardo ia contando as suas novidades para se distrahir. Ha quem cante, elle falava e pouco se incommodava que lhe dessem ou não attençâo.
—Essa gente anda accesa por ahi, disse Felizardo logo que o Major chegou.
Certas vezes Quaresma fazia-lhe perguntas, attendia-lhe a conversa, raras não. Anastacio era silencioso e grave. Nada dizia: trabalhava e, de quando em quando, parava, considerava, numa postura hieratica de uma pintura mural thebana. O Major perguntou ao Felizardo:
—Que é que ha, Felizardo?
O camarada descançou o grosso tronco de camará no monte, limpou o suor com os dedos e respondeu com a sua fala branda e chiante:
—Negocio de politica... Seu Tenente Antonino quasi briga hontem com seu dotô Campo.
—Onde?
—Na estação.
—Porque?
—Negocio de partido. Pelo que ouvi: seu Tenente-Antonino é pelo governadô e seu dodô Campo é pelo senadô... Um sarcêro, patrão!
—E você, por quem é?
Felizardo não respondeu logo. Apanhou a foice e acabou de cortar um galho que enleiava o tronco a remover. Anastacio estava de pé e considerou um instante a figura do companheiro palrador. Respondeu afinal:
—Eu! sei lá... Urubu pellado não se mette no meio dos coroados. Isso é bom p'r'o sinhô.
—Eu sou como você, Felizardo.
—Quem me dera, meu sinhô. Inda traz-antonte ouvi dizê que o patrão é amigo do marechá...
Afastou-se com o pau; e, quando voltou Quaresma indagou assustado:
—Quem disse?
—Não sei, não sinhô. Ouvi a modo de dizê lá na venda do hespanhol, tanto assim que doutô Campo tá inchado que nem sapo com a sua amizade.
—Mas é falso, Felizardo. Eu não sou amigo cousa alguma... Conheci-o... E nunca disse isso aqui a ninguem... Qual amigo!
—Quá! fez Felizardo com um riso largo e duro. O patrão tá é varrendo a testada.
Apezar de todo o esforço de Quaresma, não houve meio de tirar daquella cabeça infantil a idéa de que elle fosse amigo do Marechal Floriano. «Conheci-o no meu emprego»—dizia o Major: Felizardo sorria grosso e por uma vez dizia: «Quá! o patrão é fino que nem cobra».
Tal teimosia não deixou de impressionar Quaresma. Que queria dizer aquillo? Demais, as palavras de Ricardo, as suas insinuações pela manhã... Elle tinha o trovador em conta de homem leal e amigo fiel, incapaz de lhe estar armando laços para passar máos momentos; os enthusiasmos delle, entretanto, junto á vontade de ser bom amigo, podiam illudil-o e fazel-o instrumento de algum perverso. Quaresma ficou um instante pensativo, deixando de remover os galhos cortados; em breve, porém, esqueceu-se e a preoccupação dissipou-se. Á tarde, quando foi jantar, já nem mais se lembrava da conversa e a refeição correu natural, nem muito alegre, nem muito triste, mas sem sombra alguma de cogitações por parte delle.
D. Adelaide, sempre com a sua matinée creme e saia preta, sentava-se á cabeceira; Quaresma á direita e á esquerda, Ricardo. Era a velha quem sempre puxava a lingua do trovador.
—Gostou muito do passeio, Sr. Ricardo?
Não havia meio della dizer seu. A sua educacão de senhora de outros tempos, não lhe permittia usar esse plebeismo generalizado. Vira os pais, gente ainda fortemente portugueza, dizer senhor e continuava a dizer, sem fingimento, naturalmente.
—Muito. Que logar! Uma catadupa... Que maravilha! Aqui, na roça, é que se tem inspiração.
—E elle tomava aquella altitude de arroubo: uma physionomia de mascara de tragico grego e uma voz cavernosa que rolava como uma trovoada abafada.
—Tens composto muito, Ricardo? indagou Quaresma.
—Hoje acabei uma modinha.
—Como se chama? indagou D. Adelaide.
—«Os labios da Carola».
—Bonito! Já fez a musica?
Era ainda a irmã da Quaresma a perguntar. Ricardo levava agora o garfo a boca; deixou-o suspenso entre os lábios e o prato e respondeu com toda a convicção:
—A musica, minha senhora, é a primeira coesa que faço.
—Has de nol-a cantar logo.
—Pois não, Major.
Após o jantar, Quaresma e Coração dos Outros sahiram a passeiar no sitio. Fôra essa a unica concessão que ao amigo fizera Polycarpo, no tocante ao regimen de seus trabalhos agricolas. Levava sempre o pedaço de pão, esfarelava em migalhas no gallinheiro, para ver a atroz disputa entre as aves. Acabando, ficava um instante a considerar aquellas vidas, criadas, mantidas e protegidas para sustento da sua. Sorria para os frangos, agarrava os pintinhos, ainda implumes, muito vivos e avidos, e demorava-se a apreciar a estupidez do perú, imponente, fazendo roda, a dar estouros presumpçosos. Em seguida, ia ao chiqueiro; assistia Anastacio dar a ração, despejando-a nos cochos. O enorme cevado de grandes orelhas pendentes levantava-se difficilmente e solemnemente vinha mergulhar a cabeça na caldeira; noutro compartimento os bacurinhos grunhiam e grunhindo vinham com a mãe charfurdar-se na comida.
A avidez daquelles animaes era deveras repugnante mas os seus olhos tinham uma longa doçura bem humana que os fazia sympathicos.
Ricardo apreciava pouco aquellas formas inferiores de vida, mas Quaresma ficava minutos esquecido a contemplal-as numa demorada interrogação muda. Sentavam-se a um tronco de arvore; e Quaresma olhava o céo alto emquanto Coração dos Outros contava qualquer historia.
A tarde ia adiantada, A terra já começava a amollecer, pelo fim daquelle beijo ardente e demorado do sol. Os bambús suspiravam; as cigarras ciciavam; as rolas gemiam amorosamente. Ouvindo passos o Major voltou-se. Padrinho! Olga!
Mal se viram, abraçaram-se, e quando se separaram ficaram ainda a olhar um para o outro, com as mãos presas. E vieram aquellas estupidas e tocantes phrases dos encontros satisfeitos: quando chegaste? Não esperava... É longe... Ricardo olhava embevecido com a ternura dos dous; Anastacio tirara o chapéo e olhava a «sinhasinha», com o o seu terno e vasio olhar de africano.
Passada a emoção, a moça se debruçou sobre o chiqueiro, depois passeou a vista pelos quatro pontos e Quaresma perguntou:
—Que dê teu marido?
—O doutor?... Está lá dentro.
O marido tinha resistido muito em acompanhal-a até ali. Não lhe parecia bem aquella intimidade com um sujeito sem titulo, sem posição brilhante e sem fortuna. Elle não comprehendia como o seu sogro, apezar de tudo um homem rico, de outra esphera, tinha podido manter e estreitar relações com um pequeno empregado de uma repartição secundaria, e até fazel-o seu compadre! Que o contrario se desse, era justo; mas como estava a cousa parecia que abalava toda a hierarquia da sociedade nacional. Mas, em definitivo, quando D. Adelaide o recebeu cheia de um immenso respeito, de uma particular consideração, ele ficou desarmado e todas as suas pequenas vaidades foram tocadas e satisfeitas.
D. Adelaide, mulher velha, do tempo em que o imperio armava essa nobreza escolar, possuia em si uma particular reverencia, um culto pelo doutorado; e não lhe foi, pois, difficil demonstral-o quando se viu diante do Dr. Armando Borges, de cujas notas e premios ella tinha exacta noticia.
Quaresma mesmo recebeu-o com as maiores marcas de admiração e o doutor, gozando aquelle seu sobrehumano prestigio, ia conversando pausadamente, sentenciosamente, dogmaticamente; e, á proporção que conversava, talvez para que o effeito não se dissipasse, virava com a mão direita o grande annelão symbolico, o talisman, que cobria a phalange do dedo indicador esquerdo, ao geito de marquise.
Conversaram muito. O joven par contou a agitação politica do Rio, a revolta da fortaleza de Santa Cruz; D. Adelaide a epopéa da mudança, moveis quebrados, objectos partidos. Pela meia noite todos foram dormir com uma alegria particular, emquanto os sapos levantavam no riacho defronte o seu grave hymno á transcendente belleza do céo negro, profundo e estrellado.
Acordaram cedo. Quaresma não foi logo para o trabalho. Tomou café e esteve conversando com o doutor. O correio chegou e trouxe-lhe um jornal. Rasgou a cinta e leu o titulo. Era o «O Municipio», orgão local, hebdomadario, filiado ao partido situacionista. O doutor se havia afastado; elle aproveitou a occasião para ler o jornaleco. Pôz o pince-nez, recostou-se na cadeira de balanço e desdobrou o jornal. Estava na varanda; o terral soprava nos bambus que se inclinavam mollemente. Começou a leitura. O artigo de fundo intitulava-se «Intrusos» e consistia em uma tremenda descompostura aos não nascidos no logar que moravam nelle—verdadeiros estrangeiros que se vinham intrometter na vida particular e politica da familia curuzuense, perturbando-lhe a paz e a tranquillidade.
Que diabo queria dizer aquillo? Ia deitar fóra o jornaleco, quando lhe pareceu ler seu nome entre versos. Procurou o logar e deu com estas quadrinhas:
O Major ficou estuporado. Que vinha ser aquillo? Porque? Quem era? Não atinava, não achava o motivo o fundo de semelhante ataque. A irmã approximara-se acompanhada da afilhada. Quaresma estendeu-lhe o jornal com o braço tremendo: «Lê isto, Adelaide».
A velha senhora viu logo a perturbação do irmão e leu com pressa c solicitude. Ella tinha aquella ampla maternidade das solteironas; pois parece que a falta de filhos reforça e alarga o interesse da mulher pelas dores do outros. Emquanto ella lia, Quaresma dizia: mas que fiz eu? que tenho com politica? E coçava os cabellos já tanto encanecidos.
D. Adelaide disse então docemente:
—Socega, Polycarpo. Por isso só?... Ora!
A afilhada leu tambem os versos e perguntou ao padrinho:
—O Sr. se metteu algum dia nessa politica daqui?
—Eu nunca!... Vou até declarar que...
—Está doido! exclamaram as duas mulheres a um tempo, ajuntando a irmã:
—Isto seria uma covardia... Uma satisfação... Nunca!
O doutor e Ricardo chegavam de fóra e encontraram os tres nessas considerações. Notaram a alteração de Quaresma. Estava pallido, tinha os olhos humidos e coçava successivamente a cabeça.
—Que ha, Major? indagou o troveiro.
As senhoras explicaram o caso e deram-lhe as quadrinhas a ler. Ricardo depois contou o que ouvira na villa. Acreditavam todos que o Major viera para ali no intuito de fazer politica, tanto assim que dava esmolas, deixava o povo fazer lenha no seu mato, distribuia remedios homeopathicos... O Antonino affirmara que havia de desmascarar semelhante tartufo.
—E não desmentiste? perguntou Quaresma.
Ricardo affirmou que sim, mas o escrivão não quizera acreditar nelle e reiterara os seus propositos de ataque.
O Major ficou profundamente impressionado com tudo; mas, de accordo com seu genio, incubou nos primeiros tempos a impressão, e, emquanto estiveram com elle os seus amigos, não demonstrou preoccupação.
Olga e o marido passaram no «Socego» cerca de quinze dias. O marido, ao fim de uma semana, já parecia cançado. Os passeios não eram muitos. Em geral, os nossos logarejos são de uma grande pobreza do pittoresco; ha um ou dous logares celebres, assim como na Europa cada aldeia tem a sua curiosidade historica.
Em Curuzú, o passeio afamado era o Carico, uma cachoeira distante duas leguas da casa de Quaresma, para as bandas das montanhas que lhe barravam o horizonte fronteiro. O Dr. Campos já travara relações com o Major e, graças a elle, houve cavallos e silhão que tambem permitisse á moça ir á cachoeira.
Foram de manhã, o Presidente da Camara, o doutor, sua mulher e a filha de Campos. O logar não era feio. Uma pequena cachoeira, de uns quinze metros de altura, despenhava-se em tres partes, pelo flanco da montanha abaixo. A agua estremecia na quéda, como que se enrodilhava e vinha pulverizar-se numa grande bacia de pedra, mugindo e roncando. Havia muita verdura e como que toda a cascata vivia sob uma aboboda de arvores. O sol coava-se difficilmente e vinha faiscar sobre a agua ou sobre as pedras em pequenas manchas, redondas ou oblongas. Os periquitos, de um verde mais claro, pousados nos galhos eram como as incrustações daquelle salão fantastico.
Olga pôde ver tudo isso bem á vontade, andando de um para outro lado, porque a filha do presidente era de um silencio de tumulo e o pae desta tomava com o sou marido informações sobre novidades medicinaes: Como se cura hoje erysipela? Ainda se usa muito o tartaro emetico?
O que mais a impressionou no passeio foi a miseria geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre. Educada na cidade, ella tinha dos roceiros idéa de que eram felizes saudaveis e alegres. Havendo tanto barro, tanta agua, porque as casas não eram de tijolos e não tinham telhas? Era sempre aquelle sapê sinistro e aquelle «sopapo» que deixava ver a trama de varas, como o esqueleto de um doente. Porque ao redor dessas casas, não havia culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão facil, trabalho de horas. E não havia gado, nem grande nem pequeno. Era raro uma cabra, um carneiro. Porque? Mesmo nas fazendas, o espectaculo não era mais animador. Todas soturnas, baixas, quasi sem o pomar olente e a horta succulenta. A não ser o café e um milharal, aqui e ali, ella não pôde ver outra lavoura, outra industria agricola. Não podia ser preguiça só ou indolencia. Para o seu gasto, para uso proprio, o homem tem sempre energia para trabalhar. As populações mais accusadas de preguiça, trabalham relativamente. Na Africa, na India, na Cochinchina, em toda parte, os casaes, as familias, as tribos, plantam um pouco, algumas cousas para elles. Seria a terra? Que seria? E todas essas questões desafiavam a sua curiosidade, o seu desejo de saber, e tambem a sua piedade e sympathia por aquelles parias, maltrapilhos, mal alojados, talvez com fome, sorumbaticos!...
Pensou em ser homem. Se o fosse passaria ali e em outras localidades mezes e annos, indagaria, observaria e com certeza havia de encontrar o motivo e o remedio. Aquillo era uma situação do camponez da idade média e começo da nossa; era o famoso animal de La Bruyére que tinha face humana e voz articulada...
Como no dia seguinte fosse passeiar ao roçado do padrinho, aproveitou a occasião para interrogar a respeito o tagarella Felizardo. A faina do roçado ia quasi no fim; o grande trato da terra estava quasi inteiramente limpo e subia um pouco em ladeira a collina que formava a lombada do sitio.
Olga encontrou o camarada cá em baixo, cortando a machado as madeiras mais grossas; Anastacio estava no alto, na orla do mato, juntando, a ancinho, as folhas caidas. Ella lhe falou.
—Bons dias, sá dona.
—Então trabalha-se muito, Felizardo?
—O que se póde.
—Estive hontem no Carico, bonito logar... Onde é que você mora, Felizardo?
—É d'outra banda, na estrada da villa.
—É grande o sitio de você?
—Tem alguma terra, sim, senhora, sá dona.
—Você porque não planta para você?
—Quá sá dona! O que é que a gente come?
—O que plantar ou aquillo que a plantação der em dinheiro.
—Sá dona tá pensando uma cousa e a cousa é outra. Emquanto planta cresce, e então? Quá, sá dona, não é assim...
Deu uma machadada; o tronco escapou: collocou-o melhor no picador e, antes de desferir o machado, ainda disse:
—Terra não é nossa... E frumiga?... Nós não tem ferramenta... isso é bom para italiano ou allamão, que Governo dá tudo... Governo não gosta de nós...
Desferiu o machado, firme, seguro; e o rugoso tronco se abriu em duas partes, quasi iguaes, de um claro amarellado, onde o cérne escuro começava a apparecer.
Ella voltou querendo afastar do espirito aquelle desacordo que o camarada indicara, mas não pôde. Era certo. Pela primeira vez notava que o self-help do Governo era só para os nacionaes; para os outros todos os auxilios e facilidades, não contando com a sua anterior educação e apoio dos patricios.
E a terra não era delle? Mas de quem era então, tanta terra abandonada que se encontrava por ahi? Ella vira até fazendas fechadas, com as casas em ruinas... Porque esse acaparamento, esses latifundios inuteis e improductivos?
A fraqueza de attenção não lhe permittiu pensar mais no problema. Foi vindo para casa, tanto mais que era hora de jantar e a fome lhe chegava.
Encontrou o marido e o padrinho a conversar. Aquelle perdera um pouco da sua morgue; havia mesmo occasião em que era até natural. Quando ella chegou, o padrinho exclamava:
—Adubos! É lá possivel que um brasileiro tenha tal idéa! Pois se temos as terras mais ferteis do mundo!
—Mas se esgotam, Major, observou o doutor
D. Adelaide, calada, seguia com attenção o crochet que estava fazendo; Ricardo ouvia, com os olhos arregalados; e Olga intrometteu-se na conversa:
—Que zanga é essa, padrinho?
—É teu marido que quer convencer-me que as nossas terras precisam de adubos... Isto é até uma injuria!
—Pois fique certo, Major, se eu fosse o senhor, adduziu o doutor, ensaiava uns phosphatos...
—De certo, Major, obtemperou Ricardo. Eu, quando comecei a tocar violão não queria aprender musica... Qual musica! Qual nada! A inspiração basta!... Hoje veio que é preciso... É assim, resumia elle.
Todos se entreolharam, excepto Quaresma que logo disse com toda a força d'alma:
—Sr. doutor, o Brasil é o paiz mais fertil do mundo, é o mais bem dotado e as suas terras não precisam emprestimos para dar sustento ao homem. Fique certo!
—Ha mais ferteis, Major, avançou o doutor.
—Onde?
—Na Europa.
—Na Europa!
—Sim, na Europa. As terras negras da Russia, por exemplo.
O Major considerou o rapaz durante algum tempo e exclamou triumphante:
—O Sr. não é patriota! Esses moços...
O jantar correu mais calmo. Ricardo fez ainda algumas considerações sobre o violão. Á noite, o menestrel cantou a sua ultima producção: «Os labios da Carola». Suspeitava-se que Carola fosse uma criada do Dr. Campos; mas ninguem alludiu a isso. Ouviram-mo com interesse e elle foi muito acclamado. Olga tocou no velho piano de D. Adelaide; e, antes das onze horas, estavam todos recolhidos.
Quaresma chegou a seu quarto, despiu-se, enfiou a camisa de dormir e, deitado, poz-se a ler um velho elogio das riquezas e opulencias do Brasil.
A casa estava em silencio; do lado de fora, não havia a minima bulha. Os sapos tinham suspendido um instante a sua orchestra nocturna. Quaresma lia; e lembrava-se que Darwin escutava com prazer esse concerto dos charcos. Tudo na nossa terra é extraordinario! pensou. Da despensa, que ficava junto a seu aposento, vinha um ruido extranho. Apurou o ouvido e prestou attenção. Os sapos recomeçaram o seu hymno. Havia vozes baixas, outras mais altas e estridentes; uma se seguia á outra, num dado instante todas se juntaram num unisono sustentado. Suspenderam um instante a musica. O Major apurou o ouvido; o ruido continuava. Que era? Eram uns estalos tenues; pareciam que quebravam gravetos, que deixavam outros cahir ao chão... Os sapos recomeçaram; o regente deu uma martellada e logo vieram os baixos e os tenores. Demoraram muito; Quaresma pôde ler umas cinco paginas. Os batrachios pararam; a bulha continuava. O Major levantou-se, agarrou o castiçal e foi á dependencia da casa donde partia o ruido, assim mesmo como estava, em camisa de dormir.
Abriu a porta; nada viu. Ia procurar nos cantos, quando sentiu uma ferroada no peito do pé. Quasi gritou. Abaixou a vela para ver melhor e deu com uma enorme sauva agarrada com toda a furia á sua pelle magra. Descobriu a origem da bulha. Eram formigas que, por um buraco no assoalho, lhe tinham invadido a despensa e carregavam as suas reservas de milho e feijão, cujos recipientes tinham sido deixados abertos por inadvertencia. O chão estava negro, e carregadas com os grãos, ellas, em pelotões cerrados, mergulhavam no solo em busca da sua cidade subterranea.
Quiz afugental-as. Matou uma, duas, dez, vinte, cem; mas eram milhares e cada vez mais o exercito augmentava. Veiu uma mordeu-o, depois outra, e o foram mordendo pelas pernas, pelos pés, subindo pelo seu corpo. Não poude aguentar, gritou, sapateou e deixou a vela cahir.
Estava no escuro. Debatia-se para encontrar a porta; achou e correu daquelle infimo inimigo que, talvez, nem mesmo á luz radiante do sól, o visse distinctamente...
D. Adelaide, a irmã de Quaresma, tinha uns quatro annos mais que elle. Era uma bella velha, com um corpo médio, uma tez que começava a adquirir aquella patina da grande velhice, uma espessa cabelleira já inteiramente amarellada e um olhar tranquillo, calmo e doce. Fria, sem imaginação, de intelligencia lucida e positiva, em tudo formava um grande contraste com o irmão; comtudo, nunca houve entre elles uma separação profunda nem tampouco uma penetração perfeita. Ella não entendia nem procurava entender a substancia do irmão, e sobre elle em nada reagia aquelle ser methodico, ordenado e organizado, de idéas simples, medias e claras.
Ella já attingira aos cincoenta e elle para lá marchava; mas ambos tinham ar saudavel, poucos achaques, e promettiam ainda muita vida. A existencia calma, doce e regrada que tinham levado até ali, concorrera muito para a boa saude de ambos. Quaresma incubou as suas manias até depois dos quarenta e ella nunca tivera qualquer.
Para D. Adelaide, a vida era cousa simples, era viver, isto é, ter uma casa, jantar e almoço, vestuario, tudo modesto, medio. Não tinha ambições, paixões, desejos. Moça, não sonhara principes, bellezas, triumphos, nem mesmo um marido. Se não casou foi porque não sentiu necessidade disso; o sexo não lhe pesava e de alma e corpo ella sempre se sentiu completa.
O seu aspecto tranquillo e o socego dos seus olhos verdes, de um brilho lunar de esmeralda, emolduravam e realçavam naquelle interior familiar a agitação e a inquietude, o alanceado do irmão.
Não se vá suppor que Quaresma andasse transtornado como um doido. Felizmente não. Na apparencia até poder-se-ia imaginar que nada conturbava sua alma; porém, se mais vagarosamente se examinassem os seus habitos, gestos e attitudes logo se havia de ver que o socego e a placidez não moravam no seu pensamento.
Occasiões havia em que ficava a olhar, durante minutos seguidos, ao longe o horizonte, perdido em scisma; outras, isso quando no trabalho da roça, em que suspendia todos os movimentos, fincava o olhar no chão, demorava-se assim um instante, coçando uma mão com a outra, dava depois um muchocho, continuava o trabalho; e mesmo momentos surgiam em que não reprimia uma exclamação ou uma phrase.
Anastacio em taes instantes, olhava por baixo dos olhos o patrão. O antigo escravo não os sabia mais fixar, e nada dizia; Felizardo continuava a contar a fuga da filha do Custodio com o Manduca da venda; e o trabalho marchava.
Inutil é dizer que a irmã não fazia reparo nisso, mesmo porque, a não ser no jantar e nas primeiras horas do dia elles viviam separados. Quaresma na roça, nas plantações, e ella superintendendo o serviço domestico.
As outras pessoas de suas relações não podiam tambem notar as preoccupações absorventes do Major, pelo simples motivo de que estavam longe.
Ricardo havia seis mezes que não lhe visitava e da afilhada e do compadre as ultimas cartas que recebera, datavam de uma semana, não vendo aquella ha tanto tempo, quanto ao trovador e aquelle desde quasi um anno, isto é, o tempo em que estava no «Socego».
Durante esse tempo, Quaresma não cessou de se interessar pelo approveitamento de suas terras. Os seus habitos não foram mudados e a sua actividade continuava sempre a mesma. É verdade que deixara de parte os instrumentos de meteorologia.
O hygrometro, o barometro e os outros companheiros não eram mais consultados e as observações registradas num caderno. Dera-se mal com elles. Fosse inexperiencia e ignorancia das bases theoricas delles, fosse porque fosse, o certo é que toda a previsão que Quaresma fazia baseado em combinações dos seus dados, sahiam erradas. Se esperava tempo seguro, lá vinha chuva; se esperava chuva, lá vinha secca.
Assim perdeu muita semente e Felizardo mesmo sorria dos seus apparelhos, com aquelle grosso e cavernoso sorriso de troglodyta:
—Quá patrão! Isso de chuva vem quando Deus qué.
O barometro aneroide continuava a um canto a dansar o seu ponteiro sem ser percebido; o thermometro de maxima e minima, legitimo Casella, jazia dependurado na varanda sem receber um olhar amigo; a caçamba do pluviometro estava no gallinheiro e servia de bebedouro ás aves; só o anemometro continuava teimosamente a rodar, a rodar, já sem fio, no alto do mastro, como se protestasse contra aquelle desprezo pela sciencia que Quaresma representava.
Quaresma vivia assim, sentindo que a campanha que lhe tinham movido, embora tendo deixado de ser publica, lavrava occultamente. Havia no seu espirito e no seu caracter uma vontade de acabal-a de vez, mas como? Se não o accusavam, se não articulavam nada contra elle directamente? Era um combate com sombras, com apparencias, que seria ridiculo acceitar.
De resto, a situação geral que o cercava, aquella miseria da população campestre que nunca suspeitara, aquelle abandono de terras á improductividade, encaminhavam sua alma de patriota meditativo a preoccupações angustiosas.
Via o Major com tristeza não existir naquella gente humilde sentimento de solidariedade, de apoio mutuo. Não se associavam para cousa alguma e viviam separados, isolados, em familias geralmente irregulares, sem sentir a necessidade de união para o trabalho da terra. Entretanto, tinham bem perto o exemplo dos portuguezes que, unidos aos seis e mais, conseguiam em sociedade cultivar a arado roças de certa importancia, lucrar e viver. Mesmo o velho costume do moitirão já se havia apagado.
Como remediar isso?
Quaresma desesperava...
A tal affirmação de falta de braços pareceu-lhe uma affirmação de má fé ou estupida, e estupido ou de má fé era o Governo que os andava importando aos milhares, sem se preoccupar com os que já existiam. Era como se no campo em que pastavam mal meia duzia de cabeças de gado, fossem introduzidas mais tres, para augmenter o estrume!...
Pelo seu caso, elle via bem as difficuldades, os obices de toda a sorte que havia para fazer a terra productiva e remunerada. Um facto veiu mostrar-lhe com eloquencia um dos aspectos da questão. Vencendo a herva de passarinho, os maus tratos e o abandono de tantos annos, os abacateiros de suas terras conseguiram fructificar, fracamente é verdade, mas de forma superior ás necessidades de sua casa.
A sua alegria foi grande. Pela primeira vez, ia passar-lhe pelas mãos dinheiro que lhe dava a terra, sempre mãe e sempre virgem. Tratou de vender, mas como? a quem? No lugar havia um ou outro que os queria comprar por preços infimos. Com decisão foi ao Rio procurar comprador. Andou de porta em porta. Não queriam, eram muitos. Ensinaram-lhe que procurasse um tal Sr. Azevedo no Mercado, o rei das fructas. Lá foi.
—Abacates! Ora! Tenho muitos... Estão muito baratos!
—Entretanto, disse Quaresma, ainda hoje indaguei em uma confeitaria e pediram-me pela duzia cinco mil réis.
—Em porção, o Sr. sabe que...
—É isso... Emfim, se quer mande-os...
Depois, tilintou a pesada corrente de ouro, pôz uma das mãos na cava do collete e quasi de costas para o Major:
—É preciso vel-os... O tamanho influe...
Quaresma os mandou e, quando lhe veiu o dinheiro, teve a satisfação orgulhosa, de quem acaba de ganhar uma grande batalha immortal. Acariciou uma por uma aquellas notas encardidas, leu-lhes bem o numero e a estampa, arrumou-as todas uma ao lado da outra sobre uma meza e muito tempo levou sem animo de trocal-as.
Para avaliar o lucro, descontou o frete, de estrada de ferro e carroça, o custo dos caixões, o salario dos auxiliares e, após esse calculo que não era laborioso, teve a evidencia de que ganhara 1$500, mil e quinhentos réis, nem mais nem menos. O Sr. Azevedo tinha-lhe pago pelo cento a quantia com que se compra uma duzia.
Assim mesmo o seu orgulho não diminuiu e elle viu naquelle ridiculo lucro objecto para maior contentamento do que se recebesse um avultado ordenado.
Foi, portanto, com redobrada actividade que se poz ao trabalho. Para o anno, o lucro seria maior. Tratava-se agora de limpar as fructeiras. Anastacio e Felizardo continuavam occupados nas grandes plantações; contratou um outro empregado para ajudal-o no tratamento das velhas arvores fructiferas.
Foi, pois, com o Mané Candieiro que elle se pôz a serrar os galhos das arvores, os galhos mortos e aquelles em que a herva damninha segurava as suas raizes. Era arduo e difficil o trabalho. Tinham ás vezes que subir ás grimpas para a extirparão do galho attingido; os espinhos rasgavam as roupas e feriam as carnes; e em muitas occasiões estiveram em risco de vir ao chão serrote e Quaresma ou o camarada.
Mané Candieiro falava pouco, a não ser que se tratasse de cousas de caça; mas cantava que nem passarinho. Estava a serrar, estava a cantar trovas roceiras, ingenuas, onde com surpreza o Major não via entrar a fauna, a flora locaes, os costumes das profissões roceiras. Eram vaporosamente sensuaes e muito ternas, mellosas até; por acaso lá vinha uma em que um passaro local entrara; então o Major escutava.
Este bacuráo que entrava ahi satisfazia particularmente ás aspirações de Quaresma. A observação popular já começava a interessar-se pelo espectaculo ambiente, já se emocionava com elle e a nossa raça deitava, portanto, raizes na grande terra que habitara. Elle a copiou e mandou ao velho poeta de S. Christovão. Felizardo dizia que Mané Candieiro era um mentiroso, pois todas aquellas caçadas do caitetus, jacus, onças eram patranhas; mas, respeitava o seu talento poetico, principalmente no desafio: o moleque é bom!
Elle era claro e tinha umas feições regulares, cesarianas, duras e fortes, um tanto amollecidas pelo sangue africano.
Quaresma procurou descobrir nelle aquella odiosa catadura que Darwin achou nos mestiços; mas, sinceramente, não a encontrou.
Com auxilio de Mané Candieiro, foi que Quaresma conseguiu acabar de limpar as fructeiras daquelle velho sitio abandonado ha quasi dez annos. Quando o serviço ficou prompto, elle viu com tristeza aquellas velhas arvores amputadas, mutiladas, com folhas aqui e sem folhas ali... Pareciam soffrer e elle se lembrou das mãos que as tinham plantado ha vinte ou trinta annos, escravos, talvez, banzeiros e desesperançados!...
Mas não tardou que os botões rebentassem e tudo reverdescesse, e o renascimento das arvores como que trouxe o contentamento das aves e do passaredo solto. De manhã, esvoaçavam os tyês vermelhos, com o seu pio pobre, especie de ave tão inutil e tão bella de plumas que parece ter nascido para os chapéos das damas; as rolas pardas e caboclas em bando, mariscando, no chão capinado; pelo correr do dia, eram os sanhassús a cantar nos galhos altos, os papa-capins, as nuvens de colleiros; e de tarde como que todos elles se reuniam, piando, cantando, chilreando, pelas altas mangueiras, pelos cajueiros, pelos abacateiros, entoando louvores ao trabalho tenaz e fecundo do velho Major Quaresma.
Não durou muito essa alegria. Um inimigo appareceu inopinadamente, com a rapidez ousadissima de um general consumado. Até ali elle se mostrara timido, parecia que sómente mandava esclarecedores.
Desde aquelle ataque ás provisões de Quaresma, logo afugentadas, não mais as formigas reappareceram; mas, naquella manhã, quando contemplou o seu milharal, foi como se lhe tirassem a alma, e ficou sem acção e as lagrimas lhe vieram aos olhos.
O milho que já tinha repontado, muito verde, pequenino, com uma timidez de criança, crescera cerca de meio palmo acima da terra; o Major até mandara buscar o sulphato de cobre para a solução em que ia lavar a batata ingleza a plantar nos intervallos dos pés.
Toda a manhã, elle ia lá e já via o milharal crescido com o seu pendão branco e as suas espigas de coma cor de vinho, oscillando ao vento: naquella, elle não viu nada mais. Até os tenros colmos tinham sido cortados e levados para longe! A modo que e obra de gente, disse Felizardo; entretanto, tinham sido as saúvas, os terriveis hymhopteros, piratas infimos que lhe cahiam em cima do trabalho com uma rapacidade turca... Era preciso combatel-os. Quaresma poz-se logo em campo, descobriu as aberturas principaes do formigueiro e em cada uma queimou a formicida mortal. Passaram-se dias: os inimigos pareciam derrotados; mas, certa noite, indo ao pomar para melhor apreciar a noite estrellada, Quaresma ouviu uma bulha exquisita, como se alguem esmagasse as folhas mortas das arvores... Um estalido... E era perto... Accendeu um phosphoro e o que viu, meu Deus! Quasi todas as larangeiras estavam negras de iminensas saúvas. Havia dellas ás centenas, pelos troncos e pelos galhos acima e agitavam-se, moviam-se, andavam como em ruas transitadas e vigiadas a população de uma grande cidade: umas subiam, outras desciam; nada de atropellos, de confusão, de desordem. O trabalho como que era regulado a toques de corneta. Lá em cima umas cortavam as folhas pelo peciolo; cá em baixo, outras serravam-nas em pedaços e afinal eram carregadas por terceiros, levantando-as acima da descomunal cabeça, era longas fileiras pelo trilho limpo, aberto entre a herva rasteira.
Houve um instante de desanimo na alma do Major. Não tinha contado com aquelle obstaculo nem o suppuzera tão forte. Agora via bem que era a uma sociedade intelligente, organizada, ouzada e tenaz com quem se tinha de haver. Veio-lhe então á lembrança aquella phrase de Saint-Hilaire: se nós não expulsássemos as formigas ellas nos expulsariam.
O Major não estava lembrado ao certo se eram essas palavras, mas o sentido era, e ficou admirado que só agora ella lhe ocorresse.
No dia seguinte, tinha recobrado o amino. Comprou ingredientes e eil-o mais o Mané Candieiro, a abrir picadas a fazer esforços de sagacidade, para descobrir os reductos centraes, as panellas dos insectos terriveis. Então era como se os bombardeassem: o sulpheto queimava, estourava em tiros seguidos, mortiferos, lethaes!
E dahi em diante, foi uma batalha sem treguas. Se apparecia uma abertura, um olho, logo se lhe applicava a formicida, pois do contrario, nenhuma plantação era possivel, tanto mais que extinctos os das suas terras, não tardariam os formigueiros das visinhanças ou dos logradouros publicos a deitar caniculos para o seu terreno.
Era um supplicio, um castigo, uma especie de vigilancia a dique hollandez e Quaresma viu bem que só uma autoridade central, um governo qualquer, ou um accôrdo entre os cultivadores, podia levar a effeito a extincção daquelle flagello, peor que a saraiva, que a geada, que a secca, sempre presente, inverno ou verão, outomno ou primavera.
Não obstante essa luta diaria, o Major não desanimou e pôde colher alguns productos das plantações que tinha feito. Se por occasião das fructas, a sua alegria foi grande, mais expressiva e mais profunda ella foi, quando viu partir para a estação em successivas carretas, as aboboras, os aipins, as batatas doces, em cestos cobertos com saccos cozidos. Os fructos, em parte, eram de outras mãos; as arvores não tinham sido plantadas por elle; mas aquillo não, vinha do seu suor, da sua iniciativa, do seu trabalho!
Elle ainda foi ver aquelles cestos na estação, com a ternura de um pai que vê partir seu filho para a gloria, e para a victoria. Recebeu o dinheiro dias depois, contou o e esteve deduzindo os lucros.
Não foi á roça nesse dia; o trabalho de guarda livros roubou o de cultivador. A sua attenção, já um tanto gasta, não lhe favorecia a tarefa das cifras, e só pelo meio do dia, pôde dizer a irmã:
—Sabes qual foi o lucro, Adelaide?
—Não, menor do que o dos abacates?
—Um pouco mais.
—Então... Quanto?
—Dous mil quinhentos e setenta réis, respondeu Quaresma, destacando syllaba por syllaba.
—O que?
—Foi isso. Só de frete paguei cento e quarenta e dous mil quinhentos.
D. Adelaide esteve algum tempo com os olhos baixos, seguindo a costura que fazia, depois, levantando o olhar:
—Homem, Polycarpo, o melhor é deixares isso... Tens gasto muito dinheiro... Só com as formigas!
—Ora, Adelaide! Pensas que quero fazer fortuna? Faço isso para dar exemplo, levantar a agricultura, aproveitar as nossas terras feracissimas...
—É isto... Queres sempre ser a abelha mestra... Já viste os grandes fazerem esses sacrificios... Vê lá se fazem! Historias... Mettem-se no café que tem todas as protecções...
—Mas, faço eu.
A irmã prestou mais attenção a costura, Polycarpo levantou-se, foi até á janella que dava para o gallinheiro. Fazia um dia fosco e irritante. Elle concertou o pince-nez, esteve olhando e de lá falou:
—Oh! Adelaide! Aquillo não é uma gallinha morta...
A velha senhora ergueu-se com a costura, foi até á janella e verificou com a vista:
—É... É já a segunda que morre hoje.
Após esta leve conversa, Quaresma voltou á sua sala de estudos. Meditava grandes reformas agricolas. Mandara buscar catalogos e ia examinal-os. Tinha já em mente uma charrúa dupla, um capinador mecanico, um semeador, um deslocador, grades, tudo americano, de aço, dando o rendimento effectivo de 20 homens. Até então, não quizera essas innovações; as terras mais ricas do mundo, não precisaram desse processos que lhe pareciam artificiaes, para produzir; estava, porém, agora disposto a empregal-os como experiencia. Aos adubos, no entretanto, o seu espirito resistia. Terra virada, dizia Felizardo, terra estrumada; parecia o Quaresma uma profanação estar a empregar nitratos, phosphatos ou mesmo estrume commum, numa terra brasileira... Uma injuria!
Quando se convencesse de que eram necessarios, parecia-lhe que todo o seu systema de idéas ia por terra e os moveis de sua vida desappareceriam. Estava assim a escolher arados e outros «Planets», «Bajacs» e «Brabants» de varios feitios, quando o seu pequeno copeiro lhe annunciou a visita do dr. Campos.
O edil entrou com a sua jovialidade, a sua mansidão, e o seu grande corpo. Era alto e gordo, pançudo um pouco, tinha os olhos castanhos, quasi á flôr do rosto, uma testa média e recta: o nariz, mal feito. Um tanto trigueiro, cabellos corridos e já grisalhos, era o que se chama por ahi um caboclo, embora o seu bigode fosse crespo. Não nascera em Curuzú, era da Bahia ou de Sergipe, habitava, porém, o logar ha mais de vinte annos, onde casara e prosperara, graças ao dote da mulher e á sua actividade clinica. Com esta, não gastava grande energia, mental: tendo de côr uma meia duzia de receitas, elle, desde muito, conseguira enquadrar as molestias locaes no seu reduzido formulario.
Presidente da Camara, era das pessoas mais consideraveis da Curuzú, e Quaresma o estimava particularmente pela sua familiaridade, pela sua affabilidade e simplicidade.
—Ora, viva Major! Como vai isto por ahi? muita formiga? Lá em casa já não ha mais.
Quaresma respondeu com menor enthusiasmo e jovialidade, mas comente com a alegria communicativa do doutor. Elle continuava a falar com desembaraço e naturalidade:
—Sabe o que me traz aqui, Major? Não sabe, não é? Preciso de um pequeno obsequio seu.
O Major não se espantou; sympathizava com o homem e abriu-se em offerecimentos.
—Como o Major sabe...
Agora a sua voz era doce, flexivel, subtil; as palavras cahiam-lhe da boca adocicadas, dobravam-se, colleavam-se:
—Como o Major sabe, as eleições se devem realizar por estes dias. A victoria é nossa. Todas as mezas estão comnosco, excepto uma... Ahi mesmo, se o Major quizer...
—Mas, como? se eu não sou eleitor, não me metto, nem quero metter-me em politica? perguntou Quaresma ingenuamente.
—Exactamente por isso, disse o doutor com voz forte: e em seguida brandamente: a secção funcciona na sua vizinhança, é ali, na escola, se...
—E dahi?
—Tenho aqui uma carta do Neves, dirigida ao senhor. Se o Major quer responder (é melhor já) que não houve eleição... Quer?
Quaresma olhou o doutor com firmeza, coçou um instante o cavaignac e respondeu claramente, firmemente:
—Absolutamente não.
O doutor não se zangou. Pôz mais uncção e maciez a na voz, adduziu argumentos: que era para o partido, o unico que pugnava pelo levantamento da lavoura. Quaresma foi inflexivel; disse que não, que lhe eram absolutamente antipathicas taes disputas, que não tinha partido e mesmo que tivesse não iria affirmar uma cousa que elle não sabia ainda se era mentira ou verdade.
Campos não deu mostras de aborrecimento, conversou um pouco sobre cousas banaes e despediu-se com o ar amavel, com a jovialidade mais sua que era possivel.
Isto se passou na terça-feira, naquelle dia de luz fosca e irritante. Á tarde houve trovoada, choveu muito. O tempo só levantou na quinta-feira, dia em que o Major foi surprehendido com a visita de um sujeito com um uniforme velho e lamentavel, portador de um papel official para elle, proprietario do «Socego», conforme mesmo disse o tal homem fardado.
Em virtude das posturas e leis municipaes, rezava o papel, O Sr. Polycarpo Quaresma, proprietario do sitio «Socego» era intimado, sob as penas das mesmas posturas e leis, a roçar e capinar as testadas do referido sitio que confrontavam com as vias publicas.
O Major ficou um tempo pensando. Julgava impossivel uma tal intimação. Seria mesmo? Brincadeira... Leu de novo o papel, viu a assignatura do Dr. Campos. Era certo... Mas que absurda intimação esta de capinar e limpar estradas na extensão de mil duzentos metros, pois seu sitio dava de frente para um caminho e de um dos lados acompanhava outro na extensão de oitocentos metros—era possivel!?
A antiga corvéa!... Um absurdo! Antes confiscassem-lhe o sitio. Consultando a irmã, ella lhe aconselhou que falasse ao Dr. Campos. Contou-lhe então Quaresma a conversa que tivera com elle dias antes.
—Mas és tolo, Polycarpo. Foi elle mesmo...
A luz se lhe fez no pensamento... Aquella rede de leis, de posturas, de codigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de taes caciques, se transformava em pôtro, em polé, em instrumento de supplicios para torturar os inimigos, opprimir as populações, crestar-lhes a iniciativa e a independencia, abatendo-as e desmoralizando-as.
Pelos seus olhos passaram num instante aquellas faces amarelladas e chupadas que se encostavam nos portaes das vendas preguiçosamente; viu tambem aquellas crianças maltrapilhas e sujas, d'olhos baixos, a esmolar disfarçadamente pelas estradas; viu aquellas terras abandonadas, improductivas, entregues ás hervas e insectos damninhos; viu ainda o desespero de Felizardo, homem bom, activo e trabalhador, sem animo de plantar um grão de milho em casa e bebendo todo o dinheiro que lhe passava pelas mãos—este quadro passou-lhe pelos olhos com a rapidez e o brilho sinistro do relampago; e só se apagou de todo, quando teve que ler a carta que a sua afilhada lhe mandara.
Vinha viva e alegre. Contava pequenas historias de sua vida, a viagem proxima do papai, á Europa, o desespero do marido no dia em que sahiu sem annel, pedia noticias do padrinho, de D. Adelaide e, sem desrespeito, recommendava á irmã de Quaresma que tivesse muito cuidado com o manto de arminho da «Duqueza».
A «Duqueza» era uma grande pata branca, de penas alvas a macias ao olhar, que, pela lentidão e magestade do andar, com o pescoço alto e o passo firme, merecera de Olga esse appellido nobre. O animal tinha morrido havia dias. E que morte! Uma peste que lhe levara duas duzias de patos, levara a «Duqueza» tambem. Era uma especie de paralysia que tomava as pernas, depois o resto do corpo. Tres dias levou a agonizar. Deitada sobre o peito, com o bico collado ao chão, atacada pelas formigas, o animal só dava signal de vida por uma lenta oscillação do pescoço em torno do bico, espantando as moscas que a importunavam na sua ultima hora.
Era de ver como aquella vida tão extranha á nossa, naquelle instante penetrava em nós e sentiamo-lhe o soffrimento, a agonia e a dôr.
O gallinheiro ficou como uma aldeia devastada; a peste atacou gallinhas, perús, patos; ora sobre uma forma, ora sobre outra, foi ceifando, matando, até reduzir a sua população a menos de metade.
E não havia quem soubesse curar. Numa terra, cujo Governo tinha tantas escolas que produziam tantos sabios, não havia um só homem que pudesse reduzir, com as suas drogas ou receitas aquelle consideravel prejuizo.
Esses contratempos, essas contrariedades abateram muito o cultivador enthusiastico dos primeiros mezes; entretanto não passara pela mente de Quaresma abandonar os seus propositos. Adquiriu compendios de veterinaria e até já tratava de comprar as machinas agricolas descriptas nos catalogos.
Uma tarde, porém, estava á espera da junta de bois que encommendara para o trabalho do arado, quando lhe appareceu á porta um soldado de policia com um papel official. Elle se lembrou da intimação municipal. Estava disposto a resistir, não se incommodou muito.
Recebeu o papel e leu. Não vinha mais da municipalidade, mas da collectoria, cujo escrivão, Antonio Dutra, conforme estava no papel, intimava o Sr. Polycarpo Quaresma a pagar quinhentos mil réis de multa, por ter enviado productos de sua lavoura sem pagamento dos respectivos impostos.
Viu bem o que havia nisso de vingança mesquinha; mas o seu pensamento voou logo para as cousas geraes, levado pelo seu patriotismo profundo.
A quarenta kilometros do Rio, pagavam-se impostos para se mandar ao mercado umas batatas? Depois de Turgot da Revolução, ainda havia alfandegas interiores?
Como era possivel fazer prosperar a agricultura, com tantas barreiras e impostos? Se ao monopolio dos atravessadores do Rio se juntavam as exacções do Estado, como era possivel tirar da terra a remuneração consoladora?
E o quadro que já lhe passara pelos olhos, quando recebeu a intimação da municipalidade, voltou-lhe de novo, mais tetrico, mais sombrio, mais lugubre; e anteviu a epoca em que aquella gente teria de comer sapo, cobras, animaes mortos, como em França os camponezes, em tempos de grandes reis.
Quaresma veiu a recordar-se do seu tupy, do seu folk-lore, das modinhas, das suas tentativas agricolas—tudo isso lhe pareceu insignificante, pueril, infantil.
Era preciso trabalhos maiores, mais profundos; tornava-se necessario refazer a administração. Imaginava um Governo forte, respeitado, intelligente, removendo todos esses obices, esses entraves, Sully e Henrique IV, espalhando sabias leis agrarias, levantando o cultivador... Então sim! O celleiro surgiria e a patria seria feliz.
Felizardo entregou-lhe o jornal que toda a manhã mandava comprar á estação, e lhe disse:
—Seu patrão, amanhã não venho trabaiá.
—Por certo; é dia feriado... A Independencia.
—Não é por isso.
—Porque então?
—Ha baruio na Côrte e dizem que vão arrecutá. Vou p'r'o mato... Nada!
—Que barulho?
—Tá nas foias, sim sinhô.
Abriu o jornal e logo deu com a noticia de que os navios da esquadra se haviam insurgido e intimado ao Presidente a sahir do poder. Lembrou-se das suas reflexões de instantes atrás; um Governo forte, até á tyrannia... Medidas agrarias... Sully e Henrique IV...
Os seus olhos brilhavam de esperança. Despediu o empregado. Foi ao interior da casa, nada disse á irmã, tomou o chapéo, e dirigiu-se á estação.
Chegou ao telegrapho e escreveu: «Marechal Floriano, Rio. Peço energia. Sigo já.—Quaresma».
—De certo, Albernaz, não é possivel continuar assim... Então, mette-se um sujeito num navio, assesta os canhões p'ra terra e diz: sai d'ahi seu presidente; e o homem vai sahindo?... Não! É preciso um exemplo....
—Eu penso tambem da mesma maneira, Caldas. A Republica precisa ficar forte, consolidada... Esta terra necessita de Governo que se faça respeitar... É incrivel! Um paiz como este, tão rico, talvez o mais rico do mundo, é, no emtanto, pobre, deve a todo o mundo... Porque? Por causa dos Governos que temos tido que não têm prestigio, força... É por isso.
Vinham andando, á sombra das grandes e magestosas arvores do parque abandonado; ambos fardados e de espada. Albernaz, depois de um curto intervallo, continuou:
—Você viu o imperador, o Pedro II... Não havia jornaleco, pasquim por ahi, que o não chamasse de «banana» e outras cousas... Sahia no Carnaval... Um desrespeito sem nome! Que aconteceu? Foi-se como um intruso.
—E era um bom homem, observou o Almirante. Amava o seu paiz... Deodoro nunca soube o que fez.
Continuavam a andar. O Almirante coçou um dos favoritos e Albernaz olhou um instante para todos os lados, accendeu o cigarro de palha e retomou a conversa:
—Morreu arrependido... Nem com a farda quiz ir para a cóva!... Aqui para nós que ninguem nos ouve: foi um ingrato; o Imperador tinha feito tanto por toda a familia, não acha?
—Não ha duvida nenhuma!... Albernaz, você quer saber de uma cousa: estavamos melhor naquelle tempo, digam lá o que disserem...
—Quem diz o contrario? Havia mais moralidade... Onde está um Caxias? um Rio Branco?
—E mais justiça mesmo, disse com firmeza o Almirante. O que eu soffri, não foi por causa do velho, foi a canalha... Demais, tudo barato...
—Eu não sei, disse Albernaz com particular accento, como ha ainda quem se case... Anda tudo pela hora da morte!
Elles olharam um instante as velhas arvores da Quinta Imperial, por onde vinham atravessando. Nunca as tinham contemplado; e, agora parecia-lhes que jamais tinham pousado os olhos sobre amores tão soberbas, tão bellas, tão tranquillas e seguras de si, como aquellas que espalhavam sob os seus grandes ramos uma vasta sombra, deliciosa e macia. Pareciam que medravam sentindo-se em terra propria, dellas, da qual nunca sahiriam desalojadas a machado, para edificação de casebres; e esse sentimento lhes havia dado muita força de vegetar e uma ampla vontade de se expandirem. O sólo sobre a qual cresciam, era dellas e agradeciam á terra extendendo muito os seus ramos, cerrando e tecendo a folhagem, para dar á boa mãe, frescura e protecção contra a inclemencia do sol.
As mangueiras eram as mais gratas; os ramos longos e cheios de folhas, quasi beijavam o chão. As jaqueiras se espreguiçavam; os bambus se inclinavam, de um lado e outro da aléa, e cobriam a terra com uma ogiva verde...
O velho edificio imperial se erguia sobre a pequena collina. Elles lhe viam o fundo, aquella parte de construcção mais antiga, joannina, com a torre do relogio um pouco afastada e separada do corpo do edificio.
Não era bello o palacio, não tinha mesmo nenhum traço de belleza, era até pobre e monotono. As janellas acanhadas daquella fachada velha, os andares de pequena altura impressionavam mal; todo elle, porém, tinha uma tal ou qual segurança de si, um ar de confiança pouco commum nas nossas habitações, uma certa dignidade, alguma cousa de quem se sente viver, não para um instante, mas para annos, para seculos... As palmeiras cercavam-n'o, erectas, firmes, com es seus grandes penachos verdes, muito altos, alongados para o céo...
Eram como que a guarda da antiga moradia imperial, guarda orgulhosa do seu mister e funcção.
Albernaz interrompeu o silencio:
—Em que dará isto tudo, Caldas?
—Sei lá.
—O homem deve estar atrapalhado... Já tinha o Rio Grande, agora o Custodio... hum!
—O poder é o poder, Albernaz.
Vinham andando em demanda á estação de S. Christovão. Atravessaram o velho parque imperial transversalmente, desde o portão da Cancella até á linha da Estrada de Ferro. Era de manhã, e o dia estava limpido e fresco.
Caminhavam com pequenos passos seguros, mas sem pressa. Pouco antes de sahirem da Quinta, deram com um soldado a dormir numa moita. Albernaz teve vontade de acordal-o: camarada! camarada! O soldado levantou-se estremunhado: e, dando com aquelles dous officiaes superiores, concertou-se rapidamente, fez a continencia que lhes era devida e ficou com a mão no bonet, um instante firme, mas logo bambeou.
—Abaixe a mão, fez o General. Que faz você aqui?
Albernaz falou em tom rispido e de commando. A praça, falando a medo, explicou que tinha estado de ronda ao litoral toda a noite. A força se recolhera aos quarteis; elle obtivera licença para ir em casa, mas o somno fôra muito e descançava ali um pouco.
—Então como vão as cousas? perguntou o General.
—Não sei, não sinhô.
—Os homens desistem ou não?
O General esteve um instante examinando o soldado, Era branco e tinha os cabellos alourados, de um louro sujo e degradado; as feições eram feias: mallares salientes, testa ossea e todo elle anguloso e desconjuntado.
—Donde você é? perguntou-lhe ainda Albernaz.
—Do Piauhy, sim sinhô.
—Da capital?
—Do sertão, de Paranaguá, sim sinhô.
O Almirante até ali não interrogara o soldado que continuava amedrontado, respondendo tropegamente. Caldas, para acalmal-o, resolveu falar-lhe com doçura.
—Você não sabe, camarada, quaes são os navios que elles têm?
—O «Aquidaban»... A «Lucy».
—A «Lucy» não é navio.
—É verdade, sim; sinhô. O «Aquidaban»... Um bandão delles, sim, sinhô.
O General interveio então. Falou-lhe com brandura, quasi paternal, mudando o tratamento de você para tu, que parece mais doce e intimo quando se fala aos inferiores:
—Bem, descança, meu filho. É melhor ires para casa... Podem furtar-te o sabre e estás na ignacia.
Os dous generaes continuaram o seu caminho e, em breve, estavam na plataforma, da estação. A pequena estação tinha um razoavel movimento. Um grande numero de officiaes, activos, reformados, honorarios moravam-lhe nas cercanias e os editaes chamavam todos a se apresentar ás autoridades competentes. Albernaz e Caldas atravessaram a plataforma no meio de continencias. O General, era mais conhecido em virtude de seu emprego; o Almirante, não. Quando passavam, ouviam perguntar: «quem é este Almirante»? Caldas ficava contente e orgulhava-se um pouco do seu posto e do seu incognito.
Havia uma unica mulher na estação, uma moça. Albernaz olhou-a e lembrou-se um instante de sua filha Ismenia... Coitada!... Ficaria boa?
Aquellas manias? Onde iria parar? Vieram-lhe as lagrimas, mas elle as reteve com força.
Já a levara a uma meia duzia de medicos e nenhum fazia parar aquelle escapamento do juizo que parecia fugir aos poucos do cerebro da moça.
A bulha de um expresso, chocalhando ferragens com estrepido, apitando com furia e deixando fumaça pesada, pelos ares que rompia, afastou-o de pensar na filha. Passou o monstro, pejado de soldados, de uniformes e os trilhos, depois de ter passado, ainda estremeciam.
Bustamante appareceu; morava nos arredores e vinha tomar o trem, para apresentar-se. Trazia o seu velho uniforme do Paraguay, talhado segundo os moldes dos guerreiros da Criméa. A barretina era um tronco de cône que avançava para a frente; e, com aquella banda roxa e casaquinha curta, parecia ter sahido, fugido, saltado de uma téla de Victor Meirelles.
—Então por aqui?... Que é isto? indagou o honorario.
—Viemos pela Quinta, disse o Almirante.
—Nada, meus amigos, esses bondes andam muito perto do mar... Não me importa morrer, mas quero morrer combatendo; isso de morrer por ahi, á toa, sem saber como, não vai commigo...
O General falara um pouco alto e os jovens officiaes que estavam proximo, olharam-n'o com mal disfarçada censura. Albernaz percebeu e ajuntou immmediatamente:
—Conheço bem esse negocio de balas... Já vi muito fogo... Você sabe, Bustamante, que, em Curuzú...
—A cousa foi terrivel, accrescentou Bustamante.
O trem atracava na estação. Veiu chegando manso, vagaroso, a locomotiva, muito negra, bufando, sumido gordurosamente, com a sua grande lanterna na frente, um olho de cyclope, avançava que nem uma apparição sobrenattural. Foi chegando; o comboio estremeceu todo e parou por fim.
Estava repleto, muitas fardas de officiaes, a avaliar por ali o Rio devia ter uma guarnição de cem mil homens. Os militares palravam alegres, e os civis vinham calados e abatidos, e mesmo apavorados. Se falavam, era cochichando, olhando com precaução para os bancos de traz.
A cidade andava inçada de secretas, familiares do Santo Officio Republicano, e as delações eram moedas com que se obtinham postos e recompensas.
Bastava a minima critica, para se perder o emprego, a liberdade,—quem sabe?—a vida tambem. Ainda estavamos no começo da revolta, mas o regimen já publicara o seu prologo e todos estavam avisados. O chefe de policia organizara a lista dos suspeitos. Não havia distincção de posição e talentos. Mereciam as mesmas perseguições do Governo um pobre continuo e um influente senador; um lente e um simples empregado de escriptorio. Demais surgiam as vinganças! mesquinhas, a revide de pequenas implicancias... Todos mandavam: a autoridade estava em todas as mãos.
Em nome do Marechal Floriano, qualquer official, ou mesmo cidadão, sem funcção publica alguma, prendia e ai de quem cahia na prisão, lá ficava esquecido, soffrendo angustiosos supplicios de uma imaginação dominicana. Os funccionarios disputavam-se em bajulação, em servilismo... Era um terror, um terror baço, sem coragem, sangrento, ás occultas, sem grandeza, sem desculpa, sem razão e sem responsabilidades... Houve execuções; mas não houve nunca um Fouquier Tinville.
Os militares estavam contentes, especialmente os pequenos, os alferes, os tenentes e os capitães. Para a maioria a satisfação vinha da convicção de que iam estender a sua autoridade sobre o pelotão e a companhia, a todos esse rebanho de civis; mas, em outros muitos havia sentimento mais puro, desinteresse e sinceridade. Eram os adeptos desse nefasto o hypocrita positivismo, um pedantismo tyrannico, limitado e estreito, que justificava todas as violencias, todos os assassinios todas as ferocidades em nome da manutenção da ordem, condição necessaria, lá diz elle, ao progresso e tambem ao advento do regimen normal, a religião da humanidade, a adoração do grão-fetiche, com fanhosas musicas de cornetins e versos detestaveis, o paraizo emfim, com inscripções em escriptura phonetica e eleitos calçados com sapatos de sola de borracha!...
Os positivistas discutiam e citavam theoremas de mecanica para justificar as suas idéas de Governo, em tudo semelhantes aos khanatos e emirados orientaes.
A mathematica do positivismo foi sempre um puro falatorio que, naquelles tempos, amedrontava toda a gente. Havia mesmo quem estivesse convencido que a mathematica tinha sido feita e criada para o positivismo, como se a Biblia estivesse sido criada unicamente para a Igreja Catholica e não tambem para a Anglicana. O prestigio delle era, portanto, enorme.
O trem correu, parou ainda em uma estação e foi ter á praça da Republica. O Almirante, cozido com as paredes, seguiu para o Arsenal de Marinha; Albernaz e Bustamante entraram no Quartel General. Penetraram no grande casarão, no meio do retinir de espadas, de tiques de cornetas; o grande pateo estava cheio de soldados, bandeiras, canhões, feixes de armas ensarilhadas, bayonetas reluzindo ao sol obliquo...
No sobrado, nas proximidades do gabinete do ministro, havia um vai-e-vem de fardas, dourados, fazendas multicores, uniformes de varias corporações e milicias, no meio dos quaes os trages escuros dos civis eram importunos como moscas. Misturavam-se officiaes da guarda nacional, da policia, da armada, do exercito, de bombeiros e de batalhões patrioticos que começavam a surgir.
Apresentaram-se e, depois de tel-o feito ao Ajudante General e Ministro da Guerra, a um só tempo, ficaram a conversar nos corredores, com bastante prazer, pois que tinham encontrado o Tenente Fontes e ambos gostavam de ouvil-o.
O General porque já era noivo de sua filha Lalá, e Bustamante porque aprendia com elle alguma cousa de nomenclatura dos armamentos modernos.
Fontes estava indignado, todo elle era horror, maldição contra os insurrectos, e propunha os peores castigos.
—Hão de ver o resultado... Piratas! Bandidos! Eu, no caso do Marechal, se os pegasse... ai delles!
O Tenente não era feroz nem mau, antes bom e até generoso, mas era positivista e tinha da sua Republica uma idéa religiosa e transcendente. Fazia repousar nella toda a felicidade humana e não admittia que a quizessem de outra forma que não aquella que imaginava boa. Fóra dahi não havia boa fé, sinceriddae; eram hereticos interesseiros, e, dominicano do seu barrete phrygio, raivoso por não poder queimal-os em autos de fé, congesto, via passar por seus olhos uma serie enorme de réos confitentes, relapsos, contumazes, falsos, simulados, fictos e confictos, sem samarra, soltos por ahi...
Albernaz não tinha tanta furia contra os adversarios. No fundo d'alma, elle os queria até, tinha amigos lá, e essas divergencias nada significavam para a sua idade e experiencia.
Depositava, entretanto, uma certa esperança na acção do Marechal. Estando em apuros financeiros, não lhe dando o bastante a sua reforma e a gratificação de organizador do archivo do largo do Moura, esperava obter uma outra commissão, que lhe permitisse mais folgadamente adquirir o enxoval de Lalá.
O Almirante, tambem, tinha grande confiança nos talentos guerreiros e de estadista de Floriano. A sua causa não ia lá muito bem. Perdera-a em primeira instancia, estava gastando muito dinheiro... O Governo precisava de officiais de marinha, quasi todos estavam na revolta; talvez lhe dessem uma esquadra a commandar... É verdade que... Mas, que diabo! Se fosse um navio, então sim: mas uma esquadra a cousa não era difficil: bastava coragem para combater.
Bustamante cria com força na capacidade do General Peixoto, tanto assim que, para apoial-o e defender o seu Governo, imaginava organizar um batalhão patriotico, de que já tinha o nome «Cruzeiro do Sul» e naturalmente seria o seu commandante, com todas as vantagens do posto de coronel.
Genelicio, cuja actividade nada tinha de guerreira, esperava muito da energia e da decisão do Governo de Floriano: esperava ser sub-director e não podia um Governo sério, honesto e energico, fazer outra cousa, desde que quizesse pôr ordem na sua secção.
Essas secretas esperanças eram mais geraes do que se pode suppor. Nós vivemos do Governo e a revolta representava uma confusão nos empregos, nas honrarias e nas posições que o Estado espalha. Os suspeitos abririam vagas e as dedicações suppririam os titulos e habilitações para occupal-as; além disso, o Governo, precisando de sympathias e homens, tinha que nomear, espalhar, prodigalizar, inventar, criar e distribuir empregos, ordenados, promoções e gratificações.
O proprio Dr. Armando Borges, o marido de Olga e sabio sereno e dedicado quando estudante, collocava na revolta a realização de risonhos anhelos.
Medico e rico, pela fortuna da mulher, elle não andava satisfeito. A ambição de dinheiro e o desejo de nomeada esporeavam-n'o. Já era medico do Hospital Syrio, onde ia tres vezes por semana e, em meia hora, via trinta e mais doentes. Chegava, o enfermeiro, dava-lhe informações, o doutor ia de cama em cama, perguntando: como vai? Vou melhor seu doutor, respondia o syrio com voz gutural. Na seguinte, indagava: Já está melhor? E assim passava a visita; chegando ao gabinete receitava: doente n. 1, repita a receita; doente 5... quem é?... Quem é aquelle barbado... Ahn! E receitava.
Mas medico de um hospital particular não dá fama a ninguem: o indispensavel é ser do Governo, senão elle não passava, de um simples pratico. Queria ter um cargo official, medico, director ou mesmo lente da Faculdade.
E isso não era difficil, desde que arranjasse boas recommendações, pois já tinha certo nome, graças á sua actividade e fertilidade de recursos.
De quando em quando, publicava um folheto «O cobreiro, Etiologia, Prophylaxia e tratamento» ou «Contribuição para o estudo da sarna no Brasil»; e mandava o folheto, quarenta e sessenta paginas, aos jornaes que se occupavam delle duas ou tres vezes por anno; o operoso, Dr. Armando Borges, o illustre clinico, o proficiente medico da nossos hospitaes, etc. etc.
Obtinha isso graças á precaução que tomara em estudante de se relacionar com os rapazes da imprensa.
Não contente com isso escrevia artigos, estiradas compilações, em que não havia nada de proprio, mas ricos de citações em francez, inglez e allemão.
O logar de lente é que o tentava mais; o concurso porém, mettia-lhe medo. Tinha elementos, estava bem relacionado e cotado na Congregação, mas aquella historia de arguição apavorava-o.
Não havia dia em que não comprasse livros, em francez, inglez e italiano; tomara até um professor de allemão para entrar na sciencia germanica; mas faltava-lhe energia para o estudo prolongado e a sua felicidade pessoal fizera evolar-se a pequena que tivera quando estudante.
A sala da frente do alto porão tinha sido transformada em bibliotheca. As paredes estavam forradas de estantes que gemiam ao peso dos grandes tratados. Ar noite, elle abria as janellas das venezianas, accendia todos os bicos de gaz e se punha á meza, todo de branco com um livro aberto sob os olhos.
O somno não tardava a vir ao fim da quinta pagina... isso era o diabo! Deu em procurar os livros da mulher. Eram romances francezes, Goncourt, Anatole France, Daudet, Maupassant, que o faziam dormir da mesma maneira que os tratados. Elle não comprehendia a grandeza daquellas analyses, daquellas descripções, o interesse e o valor dellas, revelando a todos, á sociedade, a vida, os sentimentos, as dores daquelles personagens, um mundo! O seu pedantismo, a sua falsa sciencia e a pobreza de sua instrucção geral faziam-n'o ver naquillo tudo, brinquedos, passatempos, falatorios, tanto mais que elle dormia á leitura, de taes livros.
Precisava, porém, illudir-se, a si mesmo e á mulher. De resto, da rua, viam-n'o e se dessem com elle a dormir sobre os livros?!... Tratou de encommendar algumas novelas de Paulo de Kock em lombadas com titulos trocados e afastou o somno.
A sua clinica, entretanto, prosperava. De commandita com o tutor, chegou a ganhar uns seis contos, tratando de um febrão de uma orphã rica.
Desde muito que a mulher lhe entrara na sua simulação de intelligencia, mas aquella manobra indecorosa, indignou-a. Que necessidade tinha elle disso? Não era já rico? Não era moço? Não tinha o privilegio de um titulo universitario? Tal acto pareceu á moça mais vil, mais baixo, que a usura de um judeu, que o aluguel de uma penna...
Não foi desprezo, nojo que ella teve pelo marido; foi um sentimento mais calmo, menos activo; desinteressou-se delle, destacou-se de sua pessoa. Ella sentiu que tinham cortado todos os laços de affeição, de sympathia, que prendiam ambos, toda a ligação moral, emfim.
Mesmo quando noiva, verificara que aquellas cousas de amor ao estudo, de interesse pela sciencia, de ambições de descobertas, nelle, eram superficiaes, estavam á flor da pelle; mas desculpou. Muitas vezes nós nos enganamos sobre as nossas proprias forças e capacidades; sonhamos ser Shakespeare e sahimos Mal dos Vinhas. Era perdoavel, mas charlatão? Era de mais!
Passou-lhe um pensamento mau, mas de que valeria essa quasi indignidade?... Todos os homens deviam ser iguaes, era inutil mudar deste para aquelle...
Quando chegou a esta conclusão, sentiu um grande allivio, e a sua physionomia se illuminou de novo como se já estivesse de todo passada a nuvem que empanava o sol dos seus olhos.
Naquella carreira atropellada para o nome facil, elle não deu pelas modificações da mulher. Ella dissimulava os seus sentimentos, mais por dignidade e delicadeza, que mesmo por qualquer outro motivo; e a elle faltavam a sagacidade e finura necessarias para descobril-os sob o seu esconderijo.
Continuavam a viver como se nada houvesse, mas quando estavam longe um do outro!...
A revolta veiu encontral-os assim; e o doutor, desde tres dias, pois ha tanto ella rebentara, meditava a sua ascenção social e monetaria.
O sogro suspendera a viagem á Europa, e, naquella manhã, após o almoço, conforme o seu habito, lia recostado numa cadeira de viagem os jornaes do dia. O genro vestia-se e a filha; occupava-se com sua correspondencia, escrevendo á cabeceira da meza de jantar. Ella tinha um gabinete, com todo o luxo, livros, secretaria, estantes, mas gostava pela manhã, de escrever ali, ao lado do pai. A sala lhe parecia mais clara, a vista para a montanha, feia e esmagadora, dava mais seriedade ao pensamento e a vastidão da sala mais liberdade no escrever.
Ella escrevia e o pai lia; num dado momento elle disse:
—Sabes quem vem ahi, minha filha?
—Quem é?
—Teu padrinho. Telegraphou ao Floriano, dizendo que vinha... Está aqui, n'«O Paiz».
A moça adivinhou logo o motivo, o modo de agir e reagir do facto sobre as idéas e sentimentos de Quaresma. Quiz desapprovar, censurar; sentiu-o, porém, tão coherente com elle mesmo, tão de accordo com a substancia da vida que elle mesmo fabricara, que se limitou a sorrir complacente:
—O padrinho...
—Está doido, disse Coleoni. Per la madona! Pois um homem que está quieto, socegado, vem metter-se nesta barafunda, neste inferno...
O doutor voltava já inteiramente vestido, com a sobrecasaca funebre e a cartola reluzente na mão. Vinha irradiante e o seu rosto redondo reluzia, excepto onde o grande bigode punha sombras. Ainda ouviu as ultimas palavras do sogro, pronunciadas com aquelle seu portuguez rouco.
—Que ha? perguntou elle.
Coleoni explicou a repetiu os commentarios que já fizera:
—Mas não ha tal, disse o doutor. É o dever de todo o patriota... Que tem a idade? Quarenta e poucos annos, não é lá velho... Póde ainda bater-se pela Republica...
—Mas não tem interesse nisso, objectou o velho.
—E ha de ser só quem tem interesse que se deve bater pela Republica? interrogou o doutor.
A moça que acabava de ler a carta que tinha escripto, mesmo sem levantar a cabeça, disse:
—De certo.
—É vêm você com as suas theorias, filhinha. O patriotismo não está na barriga...
E sorriu com um falso sorriso que o brilho morto dos seus dentes postiços mais falsificava.
—Mas vocês só falam em patriotismo? E os outros! É monopolio de vocês o patriotismo? fez Olga.
—De certo. Se elles fossem patriotas não estariam a despejar balas para a cidade, a entorpecer e desmoralisar a acção da autoridade constituida.
—Deviam continuar a presenciar as prisões, as deportações, os fuzilamentos, toda a serie de violencias que se vêm commettendo, aqui e no Sul?
—Você, no fundo, é uma revoltosa, disse o doutor fechando a discussão.
Ella não deixava de ser. A sympathia dos desinteressados, da população. inteira era pelos insurgentes. Não só isso sempre acontece em toda a parte, como particularmente, no Brasil, devido a multiplos factores, ha de ser assim normalmente.
Os Governos, com os seus inevitaveis processos de violencia e hypocrisias, ficam alheiados da sympathia dos que acreditam nelle; e demais, esquecidos de sua vital impotencia e inutilidade, levam a prometter o que não podem fazer, de forma a criar desesperados, que pedem sempre mudanças e mudanças.
Não era, pois, de admirar que a moça tendesse para os revoltosos; e Coleoni, estrangeiro e conhecendo, graças á sua vida, as nossas autoridades, calasse as suas sympathias num mutismo prudente.
—Não me vá comprometter, hein Olga?
Ella se tinha levantado para acompanhar o marido. Parou um pouco, deitou-lhe o seu grande olhar luminoso e com os finos labios um pouco franzidos:
—Você sabe bem que eu não te comprometto.
O doutor desceu a escada da varanda, atravessou o jardim e ainda do portão disse adeus a mulher, que lhe seguiu a sahida, debruçada na varanda, conforme o ritual dos bem ou mal casados.
Por esse tempo, Coração dos Outros sonhava desligado das contingencias terrenas.
Ricardo vivia ainda na sua casa de commodos dos suburbios, cuja vista ia de Todos os Santos á Piedade, abrangendo um grande trato de area edificada, um panorama de casas e arvores.
Já não se falava mais no seu rival e a sua magua tinha assentado.
Por esses dias o seu triumpho desfilava sem contestação. Toda a cidade o tinha na consideração devida e elle quasi se julgava ao termo da sua carreira. Faltava o assentimento de Botafogo, mas estava certo de obter.
Já publicara mais de um volume de canções; e, agora pensava em publicar mais outro.
Ha dias vivia em casa, pouco sahindo, organizando o seu livro. Passava confinado no seu quarto, almoçando café, que elle mesmo fazia, e pão, indo á tarde jantar a uma tasca proximo á estação.
Notara que sempre que chegava, os carroceiros e trabalhadores, que jantavam nas mezas sujas, abaixavam a voz e olhavam-n'o desconfiados; mas não deu importancia...
Apezar de popular no logar, não encontrara pessoa alguma conhecida durante os tres ultimos dias; elle mesmo evitava falar e, em sua casa, limitava-se ao «bom dia» e á «boa tarde» trocados com os vizinhos.
Gostava de passar assim dias, mettido em si mesmo e ouvindo o seu coração. Não lia jornaes para não distrahir a attenção do seu trabalho. Vivia a pensar nas suas modinhas e no seu livro que havia de ser mais uma victoria para elle e para o violão estremecido.
Naquella tarde estava sentado á meza, corrigindo um dos seus trabalhos, um dos ultimos, aquelle que compuzera no sitio de Quaresma—«Os lábios de Carola».
Primeiro, leu toda a producção, cantarolando: voltou a lel-a, agarrou o violão para melhor apanhar o effeito e empacou nestes:
Nisto ouviu um tiro, depois outro, outro... Que diabo? pensou. Hão de ser salvas a algum navio estrangeiro. Repinicou o violão e continuou a cantar os labios de Carola, onde encontrava a illusão que adoça a vida...
Havia mais do uma hora que elle estava ali, num grande salão do palacio, vendo o Marechal, mas sem lhe poder falar. Quasi não se encontravam difficuldades para se chegar á sua presença, mas falar-lhe, a cousa não era tão facil.
O palacio tinha um ar de intimidade, de quasi relaxamento, representativo o eloquente. Não era raro ver-se pelos divans, em outras salas, ajudantes de ordens, ordenanças, continuos, cochilando, meio deitados e desabotoados. Tudo nelle era desleixo e molleza. Os cantos dos tectos tinham teias de aranha; dos tapetes, quando pisados com mais força, subia uma poeira do rua mal varrida.
Quaresma não pudera vir logo, como annunciara no telegramma. Fôra preciso por em ordem os seus negocios, arranjar quem fizesse companhia á irmã. Fizera D. Adelaide mil objecções á sua partida; mostrara-lhe os riscos da luta, da guerra, incompativeis com a sua idade e superiores á sua força; elle, porém, não se deixara abater, fizera pé firme, pois sentia, indispensavel, necessario que toda a sua vontade, que toda a sua intelligencia, que tudo o que elle tinha de vida e actividade fosse posto á disposição do Governo, para então!... oh!
Aproveitava os dias até para redigir um memorial que ia entregar a Floriano. Nelle expunham-se as medidas necessarias para o levantamento da agricultura e mostravam-se todos os entraves, oriundos da grande propriedade, das exacções fiscaes, da carestia de fretes, da estreiteza dos mercados e das violencias politicas.
O Major apertava o manuscripto na mão e lembrava-se da sua casa, lá longe, no canto daquella planicie feia, olhando, no poente, as montanhas que se alongavam, se afilavam nos dias claros e transparentes; lembrava-se de sua irmã, dos seus olhos verdes e placidos que o viram partir com uma impassibilidade que não era natural; mas do que se lembrava mais, naquelle momento, era do Anastacio, o seu preto velho, do seu longo olhar, não mais com aquella ternura passiva de animal domestico, mas cheio de assombro, de espanto e piedade, rolando muito nas orbitas as escleroticas muito brancas, quando o viu penetrar no vagão da estrada de ferro. Parecia que farejava desgraça... Não lhe era commum tal attitude e como que a tomava por ter descoberto nas cousas signaes de dolorosos acontecimentos a vir... Ora!...
Ficara Quaresma a um canto vendo entrar um e outro á espera que o Presidente o chamasse. Era cedo, pouco devia faltar para o meio-dia e Floriano tinha ainda, como signal do almoço, o palito na boca.
Falou em primeiro logar a uma commissão de senhoras que vinham offerecer o seu braço e o seu sangue em defeza das instituições e da patria. A oradora era uma mulher baixa, de busto curto, gorda, com grandes seios altos e falava agitando o leque fechado na mão direita.
Não se podia dizer bem qual a sua cor, sua raça, ao menos: andavam tantas nella que uma escondia a outra, furtando toda ella a uma classificação honesta.
Emquanto falava, a mulhersinha deitava sobre o Marechal os grandes olhos que despediam chispas. Floriano parecia incommodado com aquelle chammejar; era como se temesse derreter-se ao calor daquelle olhar que queimava mais seducção que patriotismo. Fugia encaral-a, abaixava o rosto como um adolescente, batia com os dedos na meza...
Quando lhe chegou a vez de falar, levantou um pouco o rosto, mas sem encarar a mulher, e, com um grosso e difficil sorriso do roceiro, declinou da offerta, visto a Republica ainda dispor de bastante força para vencer.
A ultima phrase, elle a disse com mais vagar e quasi ironicamente. As damas despediram-se; o Marechal gyrou o olhar em torno do salão e deu com Quaresma: Então, Quaresma? fez elle familiarmente.
O Major ia approximar-se, mas logo estacou no logar em que estava. Uma chusma de officiaes subalternos e cadetes cercou o dictador e a sua attenção convergiu para elles. Não se ouvia o que diziam. Falavam ao ouvido de Floriano, cochichavam, batiam-lhe nas espaduas. O Marechal quasi não falava: movia com a cabeça ou pronunciava um monossylabo, cousa que Quaresma percebia pela articulação dos labios.
Começaram a sahir. Apertavam a mão do dictador e, um delles, mais jovial, mais familiar, ao despedir-se, apertou-lhe com força a mão molle, bateu-lhe no hombro com intimidade, e disse alto e com emphase; energia, Marechal!
Aquillo tudo parecia tão natural, normal, tendo entrado no novo ceremonial da Republica, que ninguem, nem o proprio Floriano, teve a minima surpreza, ao contrario alguns até sorriram alegres por ver o califado khan, o emir, transmittir um pouco do que tinha de sagrado ao subalterno desabusado. Não se foram todos immediatamente. Um delles demorou-se mais a segredar cousas á suprema autoridade do paiz. Era um cadete da Escola Militar, com a sua farda azul turqueza, talim e sabre de praça de pret.
Os cadetes da Escola Militar formavam a phalange sagrada.
Tinham todos os privilegios e todos os direitos; precediam ministros nas entrevistas com o dictador e abusavam dessa situação de esteio do sylla, para opprimir e vexar a cidade inteira.
Uns trapos do positivismo se tinham collado naquellas intelligencias e uma religiosidade especial brotara-lhes no sentimento, transformando a autoridade, especialmente Floriano e vagamente a Republica, em artigo de fé, em feitiço, em idolo mexicano, em cujo altar todas as violencias e crimes eram oblatas dignas e offerendas uteis para a sua satisfação e eternidade.
O cadete lá estava...
Quaresma pôde então ver melhor a physionomia do homem que ia enfeixar em suas mãos, durante quasi um anno, tão fortes poderes, poderes de imperador Romano pairando sobre tudo, limitando tudo, sem encontrar obstaculo algum aos seus caprichos, ás suas fraquezas e vontades, nem mas leis, nem nos costumes, nem na piedade universal e humana.
Era vulgar e desoladora. O bigode cahido; o labio inferior pendente e molle a que se agarrava uma grande mosca; os traços flacidos e grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse propria, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo elle era gelatinoso, parecia não ter nervos.
Não quiz o Major ver em taes signaes nada que lhe denotasse o caracter, a intelligencia e o temperamento. Essas cousas não vogam, disse elle de si para si.
O seu enthusiasmo por aquelle idolo politico era forte, sincero e desinteressado. Tinha-o na conta de energico, de fino e supervidente, tenaz e conhecedor das necessidades do paiz, manhoso talvez um pouco, uma especie de Luiz XI forrado de um Bismarck. Entretanto, não era assim. Com uma ausencia total de qualidades intellectuaes, havia no caracter do Marechal Floriano uma qualidade predominante: tristeza de animo; e no seu temperamento, muita preguiça. Não a preguiça commum, essa preguiça de nós todos; era uma preguiça morbida, como que uma pobreza de irrigação nervosa, provinda de uma insufficiente quantidade de irrigação no seu organismo. Pelos logares que passou, tornou-se notavel pela indolencia e desamor ás obrigações dos seus cargos.
Quando director do Arsenal de Pernambuco, nem energia tinha para assignar o expediente respectivo; e durante o tempo em que foi ministro da guerra, passava mezes e mezes sem lá ir, deixando tudo por assignar, pelo que legou ao seu substituto um trabalho avultadissimo.
Quem conhece a actividade papeleira de um Colbert, de um Napoleão, de um Philippe II, de um Guilherme I, da Allemanha, em geral de todos os grandes homens de Estado, não comprehende o descaso florianesco pela expedição de ordens, explicações aos subalternos, de suas vontades, de suas vistas, certamente necessarias deviam ser taes transmissões para que o seu senso superior se fizesse sentir e influisse na marcha das cousas governamentaes e administrativas.
Dessa sua preguiça de pensar e de agir, vinha o seu mutismo, os seus mysteriosos monosyllabos, levados á altura de ditos sybillinos, as famosas encruzilhadas dos tal vezes, que tanto reagiram sobre a intelligencia e imaginação nacionaes, mendigas de heroes e grandes homens.
Essa doentia preguiça, fazia-o andar de chinellos e deu-lhe aquelle aspecto de calma superior, calma de grande homem de estado ou de guerreiro extraordinario.
Toda a gente ainda se lembra como foram os seus primeiros mezes de governo. A braços com o levante de presos, praças e inferiores da fortaleza de Santa Cruz, tendo mandado fazer um inquerito, abafou-o com medo que as pessoas indicadas como instigadoras não fizessem outra sedicção, e, não contente com isto, deu a essas pessoas as melhores e mais altas recompensas.
Demais, ninguem póde admittir um homem forte, um Cesar, um Napoleão, que permitta aos subalternos aquellas intimidades deprimentes e tenha com elles as condescendencias que elle tinha, consentindo que o seu nome servisse de labaro para uma vasta serie de crimes de toda a especie.
Uma recordação basta. Sabe-se bem sob que atomosphera de má vontade Napoleão assumiu o commando do exercito da Italia. Augereau que o chamava «general de rua», disse a alguem, após lhe ter falado: «o homem metteu-me medo»; e o corso estava senhor do exercito, sem balidellas no hombro, sem delegar tacita ou explicitamente a sua autoridade a subalternos irresponsaveis.
De resto, a lentidão com que suffocou a revolta de 6 de Setembro mostra bem a incerteza, a vacillação de vontade de um homem que dispunha daquelles extraordinarios recursos que estavam ás suas ordens.
Ha uma outra face do Marechal Floriano que muito explica os seus movimentos, actos e gestos. Era o seu amor á familia, um amor entranhado, alguma cousa de patriarchal, de antigo que já se vai esvaindo com a marcha da civilização.
Em virtude de insuccessos na exploração agricola de duas das suas propriedades, a sua situação particular era precaria, e não queria morrer sem deixar á familia as suas propriedades agricolas desoneradas do peso das dividas.
Honesto e probo como era, a unica esperança que lhe restava, repousava nas economias sobre os seus ordenados. Dahi lhe veiu essa dubiedade, esse jogo com pau de dous bicos, jogo indispensavel para conservar os rendosos logares que teve e o fez atarrachar-se tenazmente á presidencia da Republica. A hypotheca do «Brejão» e do «Duarte» foi o seu nariz de Cleopatra...
A sua preguiça, a sua tistreza de animo e o seu amor fervoroso pelo lar deram em resultado esse homem-talvez que, refractado nas necessidades mentaes e sociaes dos homens do tempo, foi transformado em estadista, em Richelieu, e pôde resistir a uma séria revolta com mais teimosia que vigor, obtendo vidas, dinheiro e despertando até enthusiasmo e fanatismo.
Esse enthusiasmo e esse fanatismo, que o ampararam, que o animaram, que o sustentaram, só teriam sido possiveis, depois de ter elle sido ajudante general do Imperio, senador, ministro, isto após se ter fabricado á vista de todos o chrystalizado a lenda na mente de todos.
A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia, nem a aristocracia; era a de uma tyrannia domestica. O bêbê portou-se mal, castiga-se. Levada a cousa ao grande o portar-se mal em fazer-lhe opposição, ter opiniões contrarias ás suas e o castigo não eram mais palmadas, sim, porém, prisão e morte. Não ha dinheiro no Thesouro; ponham-se as notas recolhidas em circulação, assim como se faz em casa quando chegam visitas e a sopa é pouca: põe-se mais agua.
Demais, a sua educação militar e a sua fraca cultura deram mais realce a essa concepção infantil, raiando-a de violencia, não tanto por elle em si, pela sua perversidade natural, pelo seu desprezo pela vida humana, mas pela fraqueza com que acobertou e não reprimiu a ferocidade dos seus auxiliares e asseclas.
Quaresma estava longe de pensar nisso tudo; elle com muitos homens honestas e sinceros do tempo, foram tomados pelo enthusiasmo contagioso que Floriano conseguira despertar. Pensava na grande obra que o Destino reservava aquella figura placida e triste; na reforma radical que elle ia levar organismo anniquilado da patria, que o Major se habituara a crer a mais rica do mundo, embora, de uns tempos para cá, já tivesse duvidas a certos respeitos.
De certo, elle não negaria taes esperanças e a sua acção poderosa havia de se fazer sentir pelos oito milhões de kilometros quadrados do Brasil, levando-lhes estradas, segurança, protecção aos fracos, assegurando o trabalho e promovendo a riqueza.
Não se demorou muito nessa ordem de pensamentos. Um seu companheiro de espera, desde que o Marechal lhe falou familiarmente, começou a considerar aquelle homem pequenino, taciturno, de pince-nez e foi-se chegando, se approximando e, quando já perto, disse a Quaresma, quasi como um terrivel segredo:
—Elles vão ver o caboclo... O Major ha muito que o conhece?
Respondeu-lhe o Major e o outro ainda lhe fez uma outra pergunta; o presidente, porém, ficara só e Quaresma avançou.
—Então, Quaresma? fez Floriano.
—Venho offerecer á V. Ex. os meus fracos prestimos.
O presidente considerou um instante aquella pequenez de homem, sorriu com difficuldade, mas, levemente, com um pouco de satisfação. Sentiu por ahi a força de sua popularidade e senão a razão boa de sua causa.
—Agradeço-te muito... Onde tens andado? Sei que deixaste o Arsenal.
Floriano tinha essa capacidade de guardar physionomias, nomes, empregos, situações dos subalternos com quem lidava. Tinha alguma cousa de asiatico; era cruel e paternal ao mesmo tempo.
Quaresma explicou-lhe a sua vida e aproveitou a occasião para lhe falar em leis agrarias, medidas tendentes a desafogar e dar novas bases á nossa vida agricola. O Marechal ouviu-o distrahido, com uma dobra de aborrecimento no canto dos labios.
—Trazia á V. Ex. até este memorial...
O presidente teve um gesto de mau humor, um quasi «não me amole» e disse com preguiça a Quaresma:
—Deixa ahi...
Depositou o manuscripto sobre meza e logo o dictador dirigiu-se ao interlocutor de ainda agora:
—Que ha, Bustamante? e o batalhão, vai?
O homem approximou-se mais, um tanto amedrontado!
—Vai bem, Marechal. Precisamos de um quartel... Se V. Ex. desse ordem...
—É exacto. Fala ao Rufino em meu nome que elle póde arranjar... Ou antes: leva-lhe este bilhete.
Rasgou um pedaço de uma das primeiras paginas do manuscripto de Quaresma, e assim mesmo, sobre aquella ponta de papel, a lapiz azul, escreveu algumas palavras ao seu ministro da guerra. Ao acabar é que deu com a desconsideração:
—Ora! Quaresma! rasguei o teu escripto... Não faz mal... Era a parte de cima, não tinha nada escripto.
O Major confirmou e o presidente, em seguida, voltando-se para Bustamante:
—Aproveita Quaresma no teu batalhão. Que posto queres?
—Eu! foz Quaresma estupidamente.
—Bem. Vocês lá se entendam.
Os dous se despediram do presidente e desceram vagarosamente as escadas do Itamaraty. Até á rua nada disseram um ao outro. Quaresma vinha um pouco frio. O dia estava claro e quente; o movimento da cidade parecia não ter soffrido alteração apreciavel. Havia a mesma agitação de bondes, carros e carroças; mas nas physionomias, um terror, um espanto, alguma cousa de tremendo ameaçava, todos e parecia estar suspenso no ar.
Bustamante deu-se a conhecer. Era o Major Bustamante, agora Tenente-Coronel, velho amigo do Marechal, seu companheiro no Paraguay.
—Mas nós nos conhecemos! exclamou elle.
Quaresma esteve olhando aquelle velho mulato escuro, com uma grande barba mosaica e olhos espertos, mas não se lembrou de tel-o já encontrado algum dia.
—Não me recordo... Donde?
—Da casa do General Albernaz... Não se lembra?
Polycarpo então teve uma vaga recordação e o outro explicou-lhe a formação do seu batalhão patriotico «Cruzeiro do Sul».
—O Sr. quer fazer parte?
—Pois não, fez Quaresma.
—Estamos em difficuldades... Fardamento, calçado para as praças... Nas primeiras despezas devemos auxiliar o Governo... Não convém sangrar o Thesouro, não acha?
—Certamente, disse com enthusiasmo Quaresma.
—Folgo muito que o senhor concorde comigo... Vejo que é um patriota... Resolvi por isso fazer um rateio pelos officiaes, em proporção ao posto: um alferes concorre com cem mil réis, um tenente com duzentos... O senhor que patente quer? Ah! É verdade! O senhor é major, não é?
Quaresma então explicou por que o tratavam por Major. Um amigo, influencia no Ministerio do Interior, lhe tinha mettido o nome numa lista de guardas nacionaes, com esse posto. Nunca tendo pago os emolumentos, viu-se, entretanto, sempre tratado Major, e a cousa pegou. A principio, protestou, mas como teimassem deixou.
—Bem, fez Bustamante. O senhor fica mesmo sendo Major.
—Qual é a minha quota?
—Quatrocentos mil réis. Um pouco forte, mas... O senhor sabe; é um posto importante... Aceita?
—Pois não.
Bustamante tirou a carteira, tomou nota com uma pontinha do lapiz e despediu-se jovialmente.
—Então, Major, ás seis, no quartel provisorio.
A conversa se havia passado na esquina da rua Larga com o Campo de Sant'Anna. Quaresma pretendia tomar um bonde que o levasse ao centro da cidade. Tencionava visitar o compadre em Botafogo, fazendo, assim, horas para a sua iniciação militar.
A praça estava pouco transitada; os bondes passavam ao chouto compassado das mulas; de quando em quando ou via-se um toque de corneta, rufos de tambor, e do portão central do Quartel General sahia uma força, armas ao hombro, bayonetas caladas, dansando nos hombros dos recrutas, faiscando com um brilho duro e máu.
Ia tomar o bonde, quando se ouviram alguns disparos de artilharia e o secco espoucar dos fuzis. Não durou muito; antes que o bonde attingisse á rua da Constituição, todos os rumores guerreiros tinham cessado, e quem não estivesse avisado havia de suppor-se em tempos normaes.
Quaresma chegou-se para o centro do banco e ia ler o jornal que comprara. Desdobrou-o vagarosamente, mas foi logo interrompido; bateram-lhe no hombro. Voltou-se.
—Oh! General!
O encontro foi cordial. O General Albernaz gostava dessas cerimonias e tinha mesmo um prazer, uma deliciosa emoção em reatar conhecimentos que se tinham enfraquecido por uma separação qualquer. Estava fardado, com aquelle seu uniforme mal tratado; não trazia espada e o pince-nez continuava preso por um trancelim de ouro que lhe passava por detraz da orelha esquerda.
—Então vem ver a cousa?
—Vim. Já me apresentei ao Marechal.
—Elles vão ver com quem se metteram. Pensam que tratam com o Deodoro, enganam-se!... A Republica, graças a Deus, tem agora um homem na sua frente... O caboclo é de ferro... No Paraguay...
—O Sr. conheceu-o lá, não, General?
—Isto é... Não chegamos a nos encontrar, mas o Camisão... É duro, o homem. Estou como encarregado das munições... É fino o caboclo; não me quiz no litoral. Sabe muito bem quem sou e que munição que saia das minhas mãos, é munição... Lá, no deposito, não me sai um caixote que eu não examine... É necessario... No Paraguay, houve muita desordem e comilança: mandou-se muita cal por polvora—não sabia?
—Não.
Pois foi. O meu gasto era ir para as praias, para o combate: mas o homem quer que eu fique com as munições... Capitão manda marinheiro faz... Elle sabe lá...
Deu de hombros, concertou o trancelim que já cahia da orelha e esteve calado um instante. Quaresma perguntou:
—Como vai a familia?
—Bem. Sabe que Quinota casou-se?
—Sabia, o Ricardo me disse. E D. Ismenia, como vai?
A physionomia do General toldou-se e respondeu como a contragosto:
—Vai no mesmo.
O pudor de pai tinha-o impedido de dizer toda a verdade. A filha enlouquecera de uma loucura mansa e infantil. Passava dias inteiros calada, a um canto, olhando estupidamente tudo, com um olhar morto de estatua, numa atonia de inanimado, como que cahira em imbecilidade; mas vinha uma hora, porém, em que se penteava toda, enfeitava-se e corria á mãe, dizendo: «Aprompta-me, mamãe. O meu noivo não deve tardar... é hoje o meu casamento». Outras vezes recortava papel, em forma de participações, e escrevia: Ismenia de Albernaz e Fulano (variava) participam o seu casamento.
O General já consultara uma duzia de medicos, o espiritismo e agora andava ás voltas com um feiticeiro milagroso; a filha, porém, não sarava, não perdia a mania e cada vez mais se embrenhava o seu espirito naquella obsessão de casamento, alvo que fizeram ser da sua vida, a que não attingira, aniquilando-se, porém, o seu espirito e a sua mocidade em pleno verdor.
Entristecia o seu estado aquella casa outr'ora tão alegre, tão festiva. Os bailes tinham diminuido: e, quando eram obrigados a dar um, nas datas principaes, a moça, com todos os cuidados, á custa de todas as promessas, era levada para casa da irmã casada, e lá ficava, emquanto as outras dansavam, um instante esquecidas da irmã que soffria.
Albernaz não quis revelar aquella dôr de sua velhice: reprimiu a emoção e continuou no tom mais natural, naquelle seu tom familiar e intimo que usava com todos:
—Isto é uma infamia, Sr. Quaresma. Que atrazo para o paiz! E os prejuizos? Um porto destes fechado ao commercio nacional, quantos annos de retardamento não representa!
O Major concordou e mostrou a necessidade de prestigiar o Governo, de forma a tornar impossivel a reproducção de levantes e insurreições.
—De certo, adduziu o General. Assim não progredimos, não nos adiantamos. E no estrangeiro que mau effeito!
O bonde chegara ao largo de S. Francisco e os dous se separaram. Quaresma foi direitinho ao largo da Carioca e Albernaz seguiu para a rua do Rosario.
Olga viu entrar seu padrinho sem aquella alegria expansiva de sempre. Não foi indifferença que sentiu, foi espanto, assombro, quasi modo, embora soubesse perfeitamente que elle estava a chegar. Entretanto, não havia mudança na physionomia de Quaresma, no seu corpo, em todo elle. Era o mesmo homem baixo, pallido, com aquelle cavaignac apontado e o olhar agudo por detraz do pince-nez... Nem mesmo estava mais queimado e o geito de apertar os labios era o mesmo que ella conhecia ha tantos annos. Mas, parecia-lhe mudado e ter entrado impellido, empurrado por uma força extranha, por um turbilhão; bem examinando, entretanto, verificou que lhe entrara naturalmente, com o seu passo meudo e firme. Donde lhe vinha então essa cousa que a acanhava, que lhe tirava sua alegria de ver pessoa tão amada? Não atinou. Estava lendo na sala de jantar e Quaresma não se fazia annunciar; ia entrando conforme o velho habito. Respondeu ao padrinho ainda sob a dolorosa impressão da sua entrada:
—Papae saiu; e o Armando está lá em baixo escrevendo.
De facto, elle estava escrevendo ou mais particularmente: traduzia para o classico um grande artigo sobre «Ferimentos por arma de fogo». O seu ultimo truc intellectual era este do classico. Buscava nisto uma distincção, uma separação intellectual desses meninos por ahi que escrevem contos e romances nos jornaes. Elle, um sabio, e sobretudo, um doutor, não podia escrever da mesma forma que elles. A sua sabedoria superior e o seu titulo academico não podia usar da mesma lingua, dos mesmos modismos, da mesma syntaxe que esses poetastros e literatecos. Veio-lhe então a idéa do classico. O processo era simples: escrevia do modo commum, com as palavras e o jeito de hoje, em seguida invertia as orações, picava o periodo com virgulas e substituia incomodar por molestar, ao redor por derredor, isto por esto, quão grande ou tão grande por quammanho, sarapintava tudo de ao invez, empós, e assim obtinha o seu estylo classico que começava a causar admiração aos seus pares e ao publico em geral.
Gostava muito da expressão—ás rebatinhas; usava-a a todo o momento e, guando a punha no branco do papel, imaginava que dera ao seu estylo uma força e um brilho pascalinos e ás suas idéas unia sufficiencia transcendente. De noite, lia o padre Vieira, mas logo ás primeiras linhas o somno lhe vinha e dormia sonhando-se physico, tratado de mestre, em pleno seiscentos, prescrevendo sangria e agua quente, tal e qual o Dr. Sangrado.
A sua traducção estava quasi no fim, já estava bastante pratico, pois com o tempo adquirira um vocabulario sufficiente e a versão era feita mentalmente, em quasi metade, logo na primeira escripta. Recebeu o recado da mulher, annunciando-lhe a visita, com um pequeno aborrecimento, mas, como teimasse em não encontrar um equivalente classico para orificio, julgou util a interrupção. Queria pôr buraco, mas era plebeu; orificio, se bem que muito usado, era, entretanto, mais digno. Na volta talvez encontrasse, pensou: e subiu á sala de jantar. Elle entrou prazenteiro, com o seu grande bigode esfarelado, o seu rosto redondo e encontrou padrinho e afilhada empenhados em uma discussão sobre autoridade.
Dizia ella:
—Eu não posso comprehender esse tom divino com que os senhores falam da autoridade. Não se governa mais em nome de Deus, por que então esse respeito, essa veneração de que querem cercar os governantes?
O doutor, que ouvira toda a phrase, não pôde deixar de objetar:
—Mas é preciso, indispensavel... Nós sabemos bem que elles são homens como nós, mas, se não for assim tudo vai por agua abaixo.
Quaresma acrescentou:
—É em virtude das proprias necessidades internas e externas da nossa sociedade que ella existe... Nas formigas, nas abelhas...
—Admitto. Mas ha revoltas entre as abelhas e formigas, e a autoridade se mantem lá á custa de assassinios, exacções e violencias?
—Não se sabe... Quem sabe? Talvez... fez evasivamente Quaresma.
O doutor não teve duvidas e foi logo dizendo:
—Que temos nós com as abelhas? Então nós, os homens, o pinaculo da escala zoologica iremos buscar normas de vida entre insectos?
—Não, é isso, meu caro doutor; buscamos nos exemplos delles a certeza da generalidade do phenomeno, da sua immanencia, por assim dizer, disse Quaresma com doçura.
Elle não tinha acabado a explicação e já Olga reflectia:
—Ainda se essa tal autoridade trouxesse felicidade—vá; mas não; de que vale?
—Ha de trazer, affirmou categoricamente Quaresma. A questão é consolidal-a.
Conversaram ainda muito tempo. O Major contou a sua visita a Floriano, a sua proxima incorporação ao batalhão «Cruzeiro do Sul». O doutor teve uma ponta de inveja, quando elle se referiu ao modo familiar por que Floriano o tratara. Fizeram um pequeno lunch e Quaresma saiu.
Sentia necessidade de rever aquellas ruas estreitas, com as suas lojas profundas e escuras, onde os empregados se moviam como em um subterraneo. A tortuosa Rua dos Ourives, a esburacada Rua da Assembléa, a casquilha rua do Ouvidor davam-lhe saudades.
A vida continuava a mesma. Havia grupos parados e moças a passeio; no Café do Rio, uma multidão. Eram os avançados, os jacobinos, a guarda abnegada da Republica, os intransigentes, a cujos olhos, a moderação, a tolerancia e o respeito pela liberdade e a vida alheias eram crimes de lesa-patria, sintomas de monarquismo criminoso e abdicação desonesta diante do estrangeiro. O estrangeiro era sobretudo o portuguez, o que não impedia de haver jornaes jacobinissimos redigidos por portuguezes da mais bella agua.
A não ser esse grupo gesticulante e apaixonado, a rua do Ouvidor era a mesma. Os namoros se faziam e as moças iam e vinham. Se uma bala zunia no alto céo azul, luminoso, as moças davam gritinhos de gata, corriam para dentro das lojas, esperavam um pouco e logo voltavam sorridentes, o sangue a subir ás faces pouco e pouco, depois da pallidez do medo.
Quaresma jantou num restaurant e dirigiu-se ao quartel, que funccionava provisoriamente num velho cortiço condemnado pela hygiene, lá pelos lados da cidade Nova. Tinha o tal cortiço andar terreo e sobrado, ambos divididos em cubiculos do tamanho de camarotes de navio. No sobrado, havia uma varanda de grade de páu e uma escada de madeira levava até lá, escada tosca e oscillante, que gemia á menor passada. A casa da ordem funccionava no primeiro quartinho do sobrado e o pateo, já sem as cordas de seccar ao sol a roupa, mas com as pedras manchadas das barrélas e da agua de sabão, servia para a instrucção dos recrutas. O instructor era um sargento reformado, um tanto coxo, e admittido no batalhão com o posto de alferes, que gritava com uma demora majestosa: hom—brô... armas!
O Major entregou a sua quota ao coronel e este esteve a mostrar-lhe o modelo do fardamento.
Era muito singular essa fantasia de seringueiro: o dolman era verde-garrafa e tinha uns vivos azul ferrete, alamares dourados e quatro estrellas prateadas, em cruz, na góla.
Uma gritaria fel-os vir até á varanda. Entre soldados entrava um homem, a se debater, a chorar e a implorar, ao mesmo tempo, levando de quando em quando uma reflada.
—É o Ricardo! exclamou Quaresma. O senhor não o conhece, Coronel? continuou ele com interesse e piedade.
Bustamante estava impassivel na varanda e só respondeu depois de algum tempo:
—Conheço... É um voluntario recalcitrante, um patriota rebelde.
Os soldados subiram com o voluntario e Ricardo logo que deu com o major, suplicou-lhe:
—Salve-me major!
Quaresma chamou de parte o Coronel, rogou-lhe e supplicou-lhe, mas foi inutil... Ha necessidade de gente... Enfim, fazia-o cabo.
Ricardo, de longe, seguia a conversa dos dous: adivinhou a recusa e exclamou:
—Eu sirvo sim, sim, mas dêm-me o meu violão.
Bustamante perfilou-se e gritou aos soldados:
—Restituam o violão ao cabo Ricardo!
Oito horas da manhã. A cerração ainda envolve tudo. Do lado de terra, mal se enxergam as partes baixas dos edificios proximos; para o lado do mar, então, a vista é impotente contra aquella treva esbranquiçada e fluctuante, contra aquella muralha de flócos e opaca, que se condensa ali e aqui em apparições, em semelhanças de cousas. O mar está silencioso: ha grandes intervallos entre o seu fraco marulho. Vê-se da praia um pequeno trecho, sujo, coberto de algas, e o odôr da maresia parece mais forte com a neblina. Para a esquerda e para a direita, é o desconhecido, o Mysterio. Entretanto, aquella pasta espessa, de uma claridade diffusa, está povoada de ruidos. O chiar das serras vizinhas, os apitos de fabricas e locomotivas, os guinchos do guindastes dos navios enchem aquella manhã indecifravel e taciturna; e ouve-se mesmo a bulha compassada de remos que ferem o mar. Accredita-se, dentro daquelle decoro, que é Charonte que traz a sua barca para uma das margens do Styge...
Attenção! Todos prescrutam a cortina de nevoa pastosa. Os rostos estão alterados; parece que, do seio da bruma, vão surgir demonios...
Não se ouve mais a bulha: o escaler afastou-se. As physionomias respiram aliviadas...
Não é noite, não é dia; não é o diluculo, não é o crepusculo: é a hora da angustia, é a luz da incerteza. No mar, não ha estrellas nem sol que guiem; na terra, as aves morrem de encontro ás paredes brancas das casas. A nossa miseria é mais completa e a falta daquelles mudos marcos da nossa actividade dá mais forte percepção do nosso isolamento no seio da natureza grandiosa.
Os ruidos continuam, e, como nada se vê, parece que vêm do fundo da terra ou são allucinações auditivas. A realidade só nos vem do pedaço de mar que se avista, marulhando com grandes intervallos, fracamente, tenuemente, a medo, de encontro a areia da praia, suja de bodelhas, algas e sargaços.
Aos grupos, após o rumor dos remos, os soldados deitaram-se pela relva que continua a praia. Alguns já cochilam; outros procuram com os olhos o céo atravez do nevoeiro que lhes humedece o rosto.
O cabo Ricardo Coração dos Outros, de rifle á cintura e gorro á cabeça, sentado numa pedra, está de parte, sósinho, e olha aquella manhã angustiosa.
Era a primeira vez que via a cerração assim perto do mar, onde ella faz sentir toda a sua força de desesperar. Em geral, elle só tinha olhos para as alvoradas claras e purpurinas, macias e fragrantes; aquelle amanhecer brumoso e feio, era uma novidade para elle.
Sob o fardamento de cabo, o menestrel não se aborrece. Aquella vida solta da caserna vai-lhe bem n'alma: o violão está lá dentro e, em horas de folga, elle o experimenta, cantarolando em voz baixa. É preciso não enferrujar os dedos... O seu pequeno aborrecimento é não poder, de quando em quando, soltar o peito.
O commandante do destacamento é Quaresma que, talvez, consentisse...
O Major está no interior da casa que serve de quartel, lendo. O seu estudo predilecto é agora artilharia. Comprou compendios; mas, como sua instrucção é insufficiente, da artilharia vai á balistica, da balistica á mecanica, da mecanica ao calculo e á geometria analytica; desce mais a escada; vai á trigonometria, á geometria e á algebra e á arithmetica. Elle percorre essa cadeia de sciencias entrelaçadas com uma fé de inventor. Aprende uma noção elementarissima após um rosario de consultas, de compendio em compendio; e leva assim aquelles dias de ocio guerreiro enfronhado na mathematica, nessa mathematica rebarbativa e hostil aos cerebros que já não são mais moços.
Ha no destacamento um canhão Krupp, mas elle nada tem a ver com o mortifero apparelho: comtudo, estuda artilharia. É encarregado delle o Tenente Fontes, que não dá obediencia alguma ao patriota Major. Quaresma não se incommoda com isso; vai aprendendo lentamente a servir-se da boca de fogo e submete-se á arrogancia do subalterno.
O Commandante do «Cruzeiro do Sul», o Bustamante da barba mosaica, continua no quartel, superintendendo a vida do batalhão, A unidade tem poucos officiaes e muito poucas praças; mas o Estado paga o pret de quatrocentas. Ha falta de capitães, o numero de alferes está justo, o de tenentes quasi, más já ha um major, que é Quaresma, e o commandante, Bustamante, que por modestia, se fez simplesmente Tenente-Coronel.
Tem quarenta praças o destacamento que Quaresma commanda, tres alferes, dous tenentes; mas os officiaes pouco apparecem. Estão doentes ou licenciados e só elle, o antigo agricultor do «Socego», e um alferes, Polydoro, este mesmo só á noite, estão a postos. Um soldado entrou:
—Sr. Commandante, posso ir almoçar?
—Póde. Chama-me o cabo Ricardo.
A praça sahiu capengando em cima de grandes botinas: o pobre homem usava aquella peça protectora como um castigo. Assim que se viu no matto, que levava á casa, tirou-as e sentiu pelo rosto o sopro da liberdade.
O commandante chegou á janella. A cerração se ia dissipando. Já se via o sol que brilhava como um disco de ouro fosco.
Ricardo Coração dos Outros appareceu. Estava engraçado dentro do seu fardamento de caporal. A blusa era curtissima, sungada; os punhos lhe apareciam inteiramente: e as calças eram compridissimas e arrastavam no chão.
—Como vaes Ricardo?
—Bem. E o Sr. Major?
—Assim.
Quaresma deitou sobre o inferior e amigo, aquelle seu olhar agudo e demorado:
—Andas aborrecido, não é?
O trovador sentiu-se alegre com o interesse do commandante:
—Não... Para que dizer, Major, que sim... Se a cousa for assim até ao fim, não é mau... O diabo é quando ha tiro... Uma cousa, Major; não se poderia, assim, ahi pelas horas em que não ha que fazer, ir nas mangueiras, cantar um pouco...
O Major coçou a cabeça, alisou o cavaignac e disse:
—Eu, não sei... É..
—O Sr. sabe que isso de cantar baixo é remar em secco... Dizem que no Paraguay...
—Bem. Cante lá; mas não grite, hein?
Calaram-se um pouco; Ricardo ia partir quando o Major recommendou:
—Manda-me trazer o almoço.
Quaresma jantava e almoçava ali mesmo. Não era raro tambem dormir. As refeições eram-lhe fornecidas por um frege proximo e elle dormia em um quarto daquella edificação imperial. Porque a casa em que se acantonara o destacamento, era o pavilhão do Imperador, situado na antiga Quinta da Ponta do Cajú. Ficavam nella tambem a estação da estrada de ferro do Rio Douro e uma grande e bulhenta serraria. Quaresma veiu até á porta, olhou a praia suja e ficou admirado que o Imperador a quizesse para banhos. A cerração se ia dissipando inteiramente.
As formas das cousas sahiam modeladas do seio daquella massa de nevoa pesada; e, satisfeitas, como se o pesadello tivesse passado. Primeiro surgiam as partes baixas, lentamente: e por fim, quasi repentinamente, as altas.
Á direita, havia a Saude, a Gamboa, os navios de commercio: galeras de tres mastros, cargueiros a vapor, altaneiros barcos á vela—que iam sahindo da bruma, e, por instantes aquillo tudo tinha um ar de paysagem hollandeza, á esquerda, era o sacco da Raposa, o Retiro Saudoso, a Sapucaia horrenda, a ilha do Governador, os Orgãos Azues, altos de tocar no céo; em frente, a ilha dos Ferreiros, com os seus depositos de carvão; e, alongando a vista pelo mar socegado, Nictheroy, cujas montanhas acabavam de recortar-se no céo azul, á luz daquella manhã atrazada.
A neblina foi se e um gallo cantou. Era como se a alegria voltasse á terra: era uma alleluia. Aquelles chiados, aquelles apitos, os guinchos tinham um accento festivo de contentamento.
Chegou o almoço e o sargento veiu dizer a Quaresma que havia duas deserções.
—Mais duas? fez admirado o Major.
—Sim, senhor. O 125 e o 320 não responderam hoje a revista.
—Faça a parte.
Quaresma almoçava. O Tenente Fontes, o homem do canhão, chegou. Quasi nunca dormia ali; pernoitava em casa, e, durante o dia, vinha ver as cousas como iam.
Uma madrugada, elle não estava. A treva ainda era profunda. O soldado de vigia viu lá, ao longe, um vulto que se movia dentro da sombra, resvalando sobre as aguas do mar. Não trazia luz alguma; só o movimento daquella mancha escura, revelava uma embarcação, e tambem a ligeira phosphorescencia das aguas. O soldado deu rebate; o pequeno destacamento poz-se a postos e Quaresma appareceu.
—O canhão! Já! Avante! ordenou o commandante.
E, em seguida, nervoso, recommendou:
—Esperem um pouco.
Correu á casa e foi consultar os seus compendios e tabellas. Demorou-se e a lancha avançava, os soldados estavam tontos e um delles tomou a iniciativa: carregou a peça e disparou-a.
Quaresma reappareceu correndo, assustado, e disse, entrecortado pelo resfolegar:
—Viram bem... a distancia... a alça... o angulo... É preciso ter sempre em vista a efficiencia do fogo.
Fontes veiu e sabendo do caso no dia seguinte riu-se muito:
—Ora, Major, você pensa que está em um polygno, fazendo estudos praticos... Fogo para diante!
E assim era. Quasi todas as tardes havia bombardeio, do mar para as fortalezas, e das fortalezas para o mar; e, tanto os navios como os fortes, sahiam incolumes de tão terriveis armas.
Lá vinha uma occasião, porém, que acertavam, então os jornaes noticiavam: «Hontem, o forte Academico, fez um maravilhoso disparo. Com o canhão tal, metteu uma bala no «Guanabara». No dia seguinte, o mesmo jornal rectificava, a pedido da bateria do cáes Pharoux que era a que tinha feito o disparo certeiro. Passavam-se dias e a cousa já estava esquecida, quando apparecia uma carta de Nictheroy, reclamando as honras do tiro para a fortaleza de Santa Cruz.
O Tenente Fontes chegou e esteve examinando o canhão com o faro de entendedor. Havia uma trincheira de fardos de alfafa e a boca da peça sabia por entre os fiapos da palha, como as guellas de um animal feroz occulto entre hervas.
Olhava o horizonte, depois de exame attento ao canhão, e considerava a ilha das Cobras, quando ouviu o gemer do violão e uma voz que dizia:
Dirigiu-se para o local donde partiam os sons e se lhe deparou este lindissimo quadro: á sombra de uma grande arvore, os soldados deitados ou sentados em circulo, em torno de Ricardo Coração dos Outros, que entoava endeixas magoadas.
As praças tinham acabado de almoçar e beber a pinga, e estavam tão embevecidas na canção de Ricardo que não deram pela chegada do joven official.
—Que é isto? disse elle severamente.
Os soldados levantaram-se todos, em continencia; e Ricardo, com a mão direita no gorro, perfilada, e a esquerda, segurando o violão, que repousava no chão, desculpou-se:
—Seu Tenente, foi o Major quem permittiu, V. S. sabe que se nós não tivéssemos ordem, não iriamos brincar.
—Bem. Não quero mais isto, disse o official.
—Mas, objectou Ricardo, o Sr. Major Quaresma...
—Não temos aqui Major Quaresma. Não quero, já disse!
Os soldados debandaram e o Tenente Fontes seguiu para a velha casa imperial, ao encontro do Major do «Cruzeiro do Sul». Quaresma continuava no seu estudo, um rolar de Sysipho, mas voluntario, para a grandeza da patria. Fontes foi entrando e dizendo:
—Que é isto, seu Quaresma! Então o senhor permitte cantorias no destacamento?
O Major não se lembrava mais da cousa e ficou espantado com o ar severo e rispido do moço. Elle repetiu:
—Então o senhor permitte que os inferiores cantem modinhas e toquem violão, em pleno serviço?
—Mas que mal faz? Ouvi dizer que em campanha...
—E a disciplina? e o respeito?
—Bem, vou prohibir, disse Quaresma.
—Não é preciso. Já prohibi.
Quaresma não se deu por agastado, não percebeu motivo para agastamento e disse com doçura:
—Fez bem.
Em seguida perguntou ao official o modo de extrahir a raiz quadrada de uma fracção decimal; o rapaz ensinou-lhe e elles estiveram cordialmente conversando sobre cousas vulgares. Fontes era noivo de Lalá, a terceira filha do General Albernaz, e esperava acabar a revolta para effectuar o casamento. Durante uma hora a conversa entre os dous versou sobre este pequenino facto familiar a que estavam ligados aquelles estrondos, aquelles tiros, aquella solemne disputa entre duas ambições. Subitamente, a corneta feriu o ar com a sua voz metallica. Fontes assestou o ouvido; o Major perguntou:
—Que toque é?
—Sentido.
Os dous sahiram. Fontes perfeitamente fardado; e o Major apertando o talim, sem encontrar geito, tropeçando na espada veneravel que teimava em se lhe metter entre as pernas curtas. Os soldados já estavam nas trincheiras, armas á mão; o canhão tinha ao lado a munição necessaria. Uma lancha avançava lentamente, com a prôa alta assestada para o posto. De repente, sahiu de sua borda um golfão de fumaça espessa: Queimou!—gritou uma voz. Todos se abaixaram, a bala passou alto, zunindo, cantando, inoffensiva. A lancha continuava a avançar impavida. Além dos soldados, havia curiosos, garotos, a assistir o tiroteio, e fôra um destes que gritara: queimou!
E assim sempre. Ás vezes elles chegavam bem perto á tropa, ás trincheiras, atrapalhando o serviço: em outras, um cidadão qualquer, chegava ao official e muito delicadamente pedia: o senhor dá licença que dê um tiro. O official accedia, os serventes carregavam a peça e o homem fazia a pontaria e um tiro partia.
Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da cidade... Quando se annunciava um bombardeio, num segundo, o terraço do Passeio Publico se enchia. Era como se fosse uma noite de luar, no tempo em que era do tom aprecial-as no velho jardim de D. Luiz de Vasconcellos, vendo o astro solitario pratear a agua e encher o céo.
Alugavam-se binoculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes como as velhas, seguiam o bombardeio como uma representação de theatro: «queimou Santa Cruz! Agora é o «Aquidaban»! Lá vai»! E dessa maneira a revolvia correndo familiarmente, entrando nos habitos e nos costumes da cidade.
No cáes Pharoux, os pequenos garotos, vendedores de jornaes, engraxates, quitandeiros ficavam atrás das portadas, dos urinarios, das arvores, a ver, a esperar a quéda das balas; e quando acontecia cahir uma, corriam todos em bôlo, a apanhal-a como se fosse uma moeda ou guloseima.
As balas ficaram na moda. Eram alfinetes de gravata, berloques de relogio, lapizeiras, feitas com as pequenas balas de fuzis: faziam-se tambem collecções das medias e com os seus estojos de metal, areados, polidos, lixados, ornavam consolos, os dunkerques das casas médias; as grandes, os melões e as aboboras, como chamavam, guarneciam os jardins, como vasos de faiança ou estatuas.
A lancha continuava a atirar: Fontes fez um disparo. O canhão vomitou o projectil, recuou um pouco e logo foi posto em posição. A embarcação respondeu e o rapazote gritou: queimou!
Eram sempre esses garotos que a anunciavam os tiros do inimigo. Mal viam o fuzilar breve e a fumaça, lá longe, no navio, jorrar de vagar, muito pesada, gritavam queimou!
Houve um em Nictheroy que teve o seu quarto de hora de celebridade. Chamavam-n'o trinta réis; os jornaes do tempo occuparam-se com elle, fizeram-se subscripções a seu favor. Um heroi! Passou a revolta e foi esquecido, tanto elle como a «Lucy», uma lancha que chegou a fazer-se entidade na imaginação da urbs, a interessal-a, a criar inimigos e admiradores.
A embarcação deixou de provocar a furia do posto do Cajú, e Fontes deu instrucções ao seu chefe da peça, e foi-se embora.
Quaresma recolheu-se ao seu quarto e continuou os seus estudos guerreiros. Os mais dias que passou naquelle extremo da cidade não eram differentes deste. Os acontecimentos eram os mesmos e a guerra cahia na banalidade da repetição dos mesmos episodios.
A espaços, quando o aborrecimento lhe vinha, sahia. Descia a cidade e deixava o posto entregue a Polydoro ou a Fontes, se estava.
Raras vezes o fazia, de dia, porque Polydoro, o mais assiduo, marcineiro de profissão e em actividade numa fabrica de moveis, só vinha á noite.
No centro da cidade, a noite era alegre e jovial. Havia muito dinheiro, o Governo pagava soldos dobrados, e, ás vezes, gratificações, além do que havia tambem a morte sempre presente; e tudo isso estimulava o divertir-se. Os theatros eram frequentados e os restaurants nocturnos tambem.
Quaresma, porém, não se mettia naquelle ruido de praça semi-sitiada. Ia ás vezes ao theatro, á paisana, e, logo acabado o espectaculo, voltava para o quarto da cidade ou para o posto.
Em outras tardes, logo que Polydoro chegava, sahia a pé, pelas ruas dos arredores, pelas praias até ao campo de São Christovão.
Ia vendo aquella successão de cemiterios, com as suas campas alvas que sobem montanhas, como carneiros tosqueados e limpos a pastar; aquelles cyprestes meditativos que as vigiam; e como que se lhe representava que aquella parte da cidade era feudo e senhorio da morte.
As casas tinham um aspecto funebre, recolhidas e concentradas; o mar marulhava lugubremente na ribanceira lodosa; as palmeiras ciciavam doridas; e até o tilintar da campainha dos bondes era triste e lugubre.
A paysagem se impregnara da Morte e o pensamento de quem passava ali mais ainda, para fazer sentir nella tão forte aspecto funereo.
Foi vindo ate ao Campo; ahi deu-lhe vontade de ver a sua antiga casa e afinal entrou na residencia do General Albernaz. Devia-lhe aquella visita e aproveitou o ensejo.
Acabavam de jantar e jantara com o General, além do Tenente Fontes e o Almirante Caldas, o commandante de Quaresma, o Tenente Coronel Innocencio Bustamante.
Bustamante era um commandante activo, mas dentro do quartel. Não havia quem como elle se interessasse pelos livros, pela boa calligraphia, com que eram escriptos os livros mestres, as relações de mostra, os mappas de companhia e outros documentos. Com auxilio delles, a organização do seu batalhão era irreprehensivel; e, para não deixar de vigiar a escripturação, apparecia de onde em onde nos destacamentos do seu corpo.
Havia dez dias que Quaresma o não via. Após os cumprimentos, elle logo perguntou ao Major:
—Quantas deserções?
—Até hoje, nove, disse Quaresma.
Bustamante coçou a cabeça desesperado e reflectiu:
—Eu não sei o que tem essa gente... É um desertar sem nome... Falta-lhes patriotismo!
—Fazem muito bem... Ora! disse o Almirante.
Caldas andava aborrecido, pessimista. O seu processo ia mal e até agora o Governo não lhe tinha dado cousa alguma. O seu patriotismo se enfraquecia com o diluir-se da esperança de ser algum dia Vice-Almirante. É verdade que o Governo ainda não organizara a sua esquadra; entretanto, pelo rumor que corria, elle não commandaria nem uma divisão. Uma inquidade! Era velho um pouco, é verdade; mas, por não ter nunca commandado, nessa materia elle podia despender toda uma energia moça.
—O Almirante não deve falar assim... A patria está logo abaixo da humanidade.
Meu caro Tenente, o senhor é moço... Eu sei o que são essas cousas...
—Não se deve desesperar... Não trabalhamos para nós, mas para os outros e para os vindouros, continuou Fontes persuasivo.
—Que tenho eu com elles? fez agastado Caldas.
Bustamante, o General e Quaresma assistiam a pequena discussão calados e os dous primeiros um tanto sorridentes com a furia de Caldas, que não se cansava de dansar a perna e alizar os longos favoritos brancos. O Tenente respondeu:
—Muito, Almirante. Nós todos devemos trabalhar para que surjam épocas melhores, de ordem, de felicidade e elevação moral.
—Nunca houve e nunca haverá! disse de um jacto Caldas.
—Eu tambem penso assim, accrescentou Albernaz.
—Isto ha de sempre ser o mesmo, adduziu scepticamente Bustamante.
O Major nada disse; parecia desinteressado da conversa. Fontes, em face daquellas contestações, ao contrario dos seus congeneres da seita, não se agastou. Elle era magro e chupado, moreno carregado e a oval do seu rosto estava amassada aqui e ali.
Com a sua voz arrastada e nazal, agitando a mão direita no geito favorito dos sermonarios, depois de ouvir todos, falou com uncção:
—Houve já um esboço: a idade média.
Ninguem ali lhe podia contestar. Quaresma só sabia historia do Brasil e os outros nenhuma.
E a sua affirmação fez calar todos, embora no intimo duvidosos. É uma curiosa idade média, essa de elevação moral, que a gente não sabe onde fica, em que anno? Se a gente diz: no tempo de Clotario, elle proprio, com suas mãos, atacou fogo na palhoça em que encerrava o seu filho Chrame mais a mulher deste e filhos—o positivista, objecta: ainda não estava perfeitamente estabelecido o ascendente da igreja. S. Luís, diremos logo nós, quis executar um senhor feudal porque mandou enforcar tres crianças que tinham morto um coelho nas suas mattas. Objecta o fiel: Você não sabe que a nossa idade media vai até o apparecimento da Divina Comedia? S. Luís já era a decadencia... Citam-se as epidemias de molestias nervosas, a miseria dos camponios, as ladroagens á mão armada dos barões, as allucinações do milenio, as crueis matanças que Carlos Magno fez aos saxões; elles respondem: uma hora que ainda não estava perfeitamente estabelecido o ascendente moral da igreja; outra que elle já tinha desapparecido.
Nada disso foi objectado ao positivista e a conversa, resvalou para a revolta. O Almirante criticava severamente o Governo.
Não tinha plano algum, levava a dar tiros á toa; na sua opinião, já devia ter feito todo o esforço para occupar a ilha das Cobras, embora isso custasse rios de sangue. Bustamante não tinha opinião assentada; mas Quaresma e Fontes julgavam que não: seria uma aventura arriscada e de uma improficuidade patente. Albernaz, ainda não tinha dado o seu aviso, e veiu a fazel-o assim:
—Mas nós reconhecemos Humaytá, e por pouco!
—Entretanto, não a tomaram, disse Fontes. As condições naturaes eram outras e assim mesmo o reconhecimento foi perfeitamente inutil... O Sr. sabe, esteve lá!
—Isto é... Adoeci e vim um pouco antes para o Brasil, mas o Camisão disse-me que foi arriscado.
Quaresma voltara ao silencio. Elle procurava ver Ismenia. Fontes lhe tinha inteirado do seu estado e o Major se sentia por qualquer cousa preso á molestia da moça. Viu todos: D. Maricota, sempre activa e diligente; Lalá, a arrancar, com o olhar, o noivo da conversa interminavel, e as outras que vinham, de quando em quando, da sala de visitas á sala de jantar onde elle estava. Porfim, não se conteve, perguntou. Soube que estava em casa da irmã casada e ia peor, cada vez mais abysmada na sua mania, enfraquecendo-se de corpo. O General contou tudo com franqueza a Quaresma e quando acabou de narrar aquella sua desgraça intima, disse com um longo suspiro:
—Não sei, Quaresma... Não sei.
Eram dez horas quando o Major se despediu. Voltou de bonde para a Ponta do Cajú. Saltou e recolheu-se logo a seu quarto. Vinha cheio da perturbação, especial que põe em nós o luar que estava lindo, terno e leitoso, naquella noite. É uma emoção de desafogo do corpo, de deliquio; parece que nos tiram o envoltorio material e ficamos só alma, envolvidos numa branda athmosphera de sonhos e chimeras. O Major não colhia bem a sensação transcendente, mas soffria sem perceber o effeito da luz pallida e fria do luar. Deitou-se um pouco, vestido, não por somno, mas em virtude daquella doce embriaguez que o astro lhe tinha posto nos sentidos.
Dentro em pouco Ricardo veiu chamal-o: o Marechal estava ahi. Era seu habito sahir á noite, ás vezes, de madrugada, e ir de posto em posto. O facto se espalhou pelo publico que o apreciava extraordinariamente, e o Presidente teve mais esse documento para firmar a sua fama de estadista consumado.
Quaresma veiu ao seu encontro. Floriano vestia chapéo de feltro molle, abas largas, e uma curta sobrecasaca surrada. Tinha um ar de malfeitor ou de exemplar chefe de familia em aventuras extra-conjugaes.
O Maior cumprimentou-o e esteve a dar-lhe noticias do ataque que fora feito ao seu posto, ha dias passados. O Marechal respondia por monosyllabos preguiçosos e olhava ao redor. Quasi ao despedir-se, falou mais, dizendo vagarosamente, lentamente:
—Hei de mandar pôr um holophote aqui.
Quaresma veiu acompanhal-o até ao bonde. Atravessavam o velho sitio de recreio dos Imperadores. Um pouco afastada da estação uma locomotiva, semi-accesa, resfolegava. Semelhava roncar, dormindo; os carros, pequenos, banhados pelo luar, muito quietos, socegados como que dormiam. As annosas mangueiras, com falta de galhos aqui e ali, pareciam polvilhadas preciosamente de prata. O luar estava magnifico. Os dous andavam, o marechal perguntou:
—Quantos homens tem você?
—Quarenta.
O Marechal mastigou um: não é muito; e voltou ao mutismo. Num dado momento, Quaresma viu-lhe o rosto inundado pela luz da lua. Pareceu-lhe mais sympatica a do dictador. Se lhe falasse...
Preparou a pergunta; mas não teve coragem de pronuncial-a. Continuaram a andar. O Major pensou; que é que tem? não ha desrespeito algum. Approximavam-se do portão. Num dado momento como que houve uma bulha atrás. Quaresma voltou-se, mas Floriano quasi não o fez.
Os edificios da serraria pareciam cobertos de neve, tanto era o branco luar. O Major continuou a mastigar a sua pergunta; urgia, era indispensavel; o portão estava a dous passos. Tomou coragem, ousou e falou:
—V. Ex. já leu o meu memorial, Marechal?
Floriano respondeu lentamente, quasi sem levantar o labio inferior pendente:
—Li.
Quaresma enthusiasmou-se:
—Vê V. Ex. como é facil erguer este paiz. Desde que se cortem todos aquelles empecilhos que eu apontei, no memorial que V. Ex. teve a bondade de ler; desde que se corrijam os erros de uma legislação defeituosa e inadaptavel ás condições do paiz, V. Ex. verá que tudo isto muda, que, em vez de tributarios, ficaremos com a nossa independencia feita... Se V. Ex. quisesse...
Á proporção que falava, mais Quaresma se enthusiasmava. Elle não podia ver bem a physionomia do dictador, encoberto agora como lhe estava o rosto pelas abas do chapéo de feltro; mas, se a visse, teria de esfriar, pois havia na sua mascara sinaes do aborrecimento mais mortal. Aquelle falatorio de Quaresma, aquelle apelo á legislação, a medidas governamentaes, iam mover-lhe o pensamento, por mais que não quizesse. O presidente aborrecia-se. Num dado momento, disse:
—Mas, pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada na mão de cada um desses vadios?! Não havia exercito que chegasse...
Quaresma espantou-se, titubeou, mas retorquiu:
—Mas, mão é isso, Marechal. V. Ex. com o seu prestigio e poder, está capaz de favorecer, com medidas energicas e adequadas, o apparecimento de iniciativas, de encaminhar o trabalho, de favorecel-o e tornal-o remunerador... Bastava, por exemplo...
Atravessavam o portão da velha quinta de Pedro I. O luar continuava lindo, plastico e opalescente. Um grande edificio inacabado que havia na rua, parecia terminado, com vidraças e portas feitas com a luz da lua. Era um palacio de sonho.
Floriano já ouvia Quaresma muito aborrecido. O bonde chegou; elle se despediu do Major, dizendo com aquella sua placidez de voz:
—Você, Quaresma, é um visionario...
O bonde partiu. A lua povoava os espaços, dava physionomia ás cousas, fazia nascer soalhos em nossa alma, enchia a vida, enfim, com a sua luz emprestada...
—Eu tenho experimentado tudo, Quaresma, mas não sei... não ha meio!
—Já a levou a um medico especialista?
—Já. Tenho corrido medicos, espiritas até feiticeiros, Quaresma!
E os olhos do velho se orvalhavam por baixo do pince-nez. Os dous se haviam encontrado na pagadoria da guerra e vinham pelo campo de Sant'Anna, a pé, andando pequenos passos e conversando. O General era mais alto que Quaresma, e emquanto este tinha a cabeça sobre um pescoço alto, aquelle a tinha mettida entre os hombros proeminentes, como cotos de azas. Albernaz reatou:
—E remedios! Cada medico receita uma cousa; os espiritas são os melhores, dão homœpathia; os feiticeiros, tizanas, rezas e defumações... Eu não sei. Quaresma!
E levantou os olhos para o céo, que estava um tanto plumbeo. Não se demorou, porém, muito nessa postura; o pince-nez não permittia, já começava a cahir.
Quaresma abaixou a cabeça e andou assim um pouco olhando as granulações do granito do passeio. Levantou o olhar ao fim de algum tempo, e disse:
—Por que não a recolhe a uma casa de saude, General?
—Meu medico já me aconselhou isso... A mulher não quer e agora mesmo, no estado em que a menina está, não vale a pena...
Falava da filha, da Ismenia, que, naquelles ultimos mezes, péorara sensivelmente, não tanto da sua molestia mental, mas da saude commum, vivendo de cama, sempre febril, enlanguescendo, definhando, marchando a passos largos para o abraço frio da morte.
Albernaz dizia a verdade; para, cural-a tanto de sua loucura conto da actual molestia intercorrente, lançara mão de todos os recursos, de todos os conselhos apontados por quem quer que fosse.
Era de fazer reflectir ver aquelle homem, General, marcado com um curso governamental, procurar mediuns e feiticeiros, para sarar a filha.
Ás vezes até levava-os em casa. Os mediuns chegavam perto da moça, davam um estremeção, ficavam com uns olhos desvairados, fixos, gritavam: sai, irmão!—e sacudiam as mãos, do peito para a moça, de lá para cá, rapidamente, nervosamente, no intuito de descarregar sobre ella os fluidos milagrosos.
Os feiticeiros tinham outros passes e as ceremonias para entrar no conhecimento das forças occultas que nos cercam, eram demoradas, lentas e acabadas. Em geral, eram pretos africanos. Chegavam, accendiam um fogareiro no quarto, tiravam de um cesto um sapo empalhado ou outra cousa exquisita, batiam com feixes de hervas, ensaiavam passos de dança e pronunciavam palavras inintelligiveis. O ritual era complicado e tinha a sua demora.
Na sahida, a pobre D. Maricota, um tanto já diminuida da sua actividade e diligencia, olhando, ternamente aquelle grande rosto negro do mandigueiro, onde a barba branca punha mais veneração e certa grandeza, perguntava:
—Então, titio?
O preto considerava um instante, como se estivesse recebendo as ultimas communicações do que não se vê nem se percebe, e dizia com a sua magestade de africano:
—Vó vê, nhã nhã... Tô crôtando mandinga...
Ella e o General tinham assistido a ceremonia e o amor de paes e tambem esse fundo de superstição que ha em todos nós, levavam a olhal-a com respeito, quasi com fé.
—Então foi feitiço que fizeram á minha filha? perguntava a senhora.
—Foi, sim, nhãnhã.
—Quem?
—Santo não qué dizê.
E o preto obscuro, velho escravo, arrancado ha um meio seculo dos confins da Africa, sahia arrastando a sua velhice e deixando naquelles dous corações uma esperança fugaz.
Era uma singular situação, a daquelle preto africano, ainda certamente pouco esquecido das dores do seu longo captiveiro, lançando mão dos residuos de suas ingenuas crenças tribaes, residuos que tão a custo tinham resistido ao seu transplante forçado para terras de outros deuses—e empregando-os na consolação dos seus senhores de outro tempo. Como que os deuses de sua infancia e de sua raça; aquelles sanguinarios manipanços da Africa indecifravel, quizessem vingal-o á legendaria maneira do Christo dos Evangelios...
A doente assistia tudo aquillo sem comprehender e se interessar por aquelles trejeitos e passes de tão poderosos homens que se communicavam, que tinham ás suas ordens os seres immateriaes, as existencias fora e acima da nossa.
Andando, ao lado de Quaresma, o General lembrava-se de tudo isso e teve um pensamento amargo contra a sciencia, contra os espiritos, contra os feitiços, contra Deus que lhe ia tirando a filha aos poucos, sem piedade e commiseração.
O Major não sabia o que dizer diante daquella immensa dor de pai e parecia-lhe toda o qualquer palavra de consolo parva e idiota. Afinal disse:
—General, o Sr. permitte que eu a faça ver por um medico?
—Quem é?
—É o marido de minha afilhada... o Sr. conhece... É moço, quem sabe lá! Não acha? Póde ser, não é?
O General consentiu e a esperança de ver curada a filha lhe afagou as faces enrugadas. Cada medico que consultava, cada espirita, cada feiticeiro reanimava-o, pois de todos elle esperava o milagre. Nesse mesmo dia, Quaresma foi procurar o Dr. Armando.
A revolta já tinha mais de quatro mezes de vida e as vantagens do Governo eram problematicas. No Sul, a insurreição chegava ás portas de S. Paulo, e só a Lapa resistia tenazmente, uma das poucas paginas dignas e limpas de todo aquelle enxurro de paixões. A pequena cidade tinha dentro de suas trincheiras o Coronel Gomes Carneiro, uma energia, uma vontade, verdadeiramente isso, porque era sereno, confiante e justo. Não se desmanchou em violencias de apavorado e soube tornar verdade a gasta phrase grandiloquente: resistir até á morte.
A ilha do Governador tinha sido occupada e Magé tomado, os revoltosos, porém, tinham a vasta bahia e a barra apertada, por onde sahiam e entravam, sem temer o estorvo das fortalezas.
As violencias, os crimes que tinham assignalado esses dous marcos de actividade guerreira do Governo, chegavam ao ouvido de Quaresma e elle soffria.
Da ilha do Governador fez-se uma verdadeira mudança de moveis, roupas e outros haveres. O que não podia ser transportado, era destruido pelo fogo e pelo machado.
A occupação deixou lá a mais execranda memoria, e até hoje os seus habitantes ainda se recordam dolorosamente de um Capitão, patriotico ou da guarda nacional, Ortiz, pela sua ferocidade e insoffrido gosto pelo saque e outras vexações. Passava um pescador, com uma tampa de peixe, e o Capitão chamava o pobre homem:
—Venha cá!
O homem approximava-se amedrontado e Ortiz perguntava.
—Quanto quer por isso?
—Tres mil réis, capitão.
Elle sorria diabolicamente e familiarmente regateava:
—Você não deixa por menos... Está caro... Isso é peixe ordinario... Carapebas! Ora!
—Bem, Capitão, vá lá por dous e quinhentos.
—Leve isso lá dentro.
Elle falava na porta de casa. O pescador voltava e ficava um tempo em pé, demonstrando que esperava o dinheiro. Ortiz balançava a cabeça e dizia escarninho:
—Dinheiro! hein? Vá cobrar ao Floriano.
Entretanto, Moreira Cesar deixou boas recordações de e ainda hoje ha lá quem se lembre delle, agradecido por este ou aquelle beneficio que o famoso Coronel lhe prestou.
As forças revoltosas parceiam não ter enfraquecido; tinham, porém, perdido dous navios, sendo um destes o «Javary», cuja reputação na revolta era das mais altas e consideradas. As forças de terra detestavam-n'o particularmente. Era um monitor, chato, razo com a agua, uma especie de saurio ou chelonio de ferro, de construcção franceza. A sua artilharia era temida; o que sobremodo enraivecia os adversarios, era elle não ter quasi borda acima d'agua, ficar quasi ao nivel do mar e fugir assim aos tiros incertos de terra. As suas machinas não funccionavam, e a grande tartaruga vinha collocar-se em posição de combate com auxilio de um rebocador.
Um dia em que estava nas proximidades de Villegagnon, foi a pique. Não se soube e até hoje não foi esclarecido, porque foi. Os legalistas affirmaram que foi uma bala de Gragoatá; mas os revoltosos asseguraram que foi a abertura de uma valvula ou um outro accidente qualquer.
Como o do seu irmão, o «Solimões», que desappareceu nas costas do cabo Polonio, o fim do «Javary» ainda está envolvido no mysterio.
Quaresma permanecia de guarnição no Cajú, e viera receber dinheiro. Deixara lá Polydoro, pois os outros officiaes estavam doentes ou licenciados, e Fontes, que, sendo uma especie de inspector geral, ao contrario de seus habitos, dormira aquella noite no pequeno pavilhão imperial e ia ficar até á tarde.
Ricardo Coração dos Outros, desde o dia da prohibição de tocar violão, andava macambuzio. Tinham-lhe tirado o sangue, o motivo de viver, e passava os dias taciturno, encostado a um tronco de arvore, maldizendo no fundo de si a incomprehensão dos homens e os caprichos do destino. Fontes notara a sua tristeza; e, para minorar-lhe o desgosto, obrigara a Bustamante a fazel-o sargento. Não foi sem custo, porque o antigo veterano do Paraguay encarecia muito essa graduação e só a dava como recompensa excepcional ou quando requerida por pessoas importantes.
A vida do pobre menestrel era assim a de um melro engaiolado; e, de quando em quando, elle se afastava um pouco e ensaiava a voz, para ver se ainda a tinha e não fugira com o fumo dos disparos.
Quaresma sabendo que dessa maneira o posto estava bem entregue, resolveu demorar-se mais, e, após despedir-se de Albernaz, encaminhou-se para a casa do seu compadre, afim de cumprir a promessa que fizera ao general.
Coleoni ainda não decidira a sua viagem á Europa. Hesitava, esperando o fim da rebellião que não parecia estar proximo. Elle nada tinha com ella; até ali, não dissera a ninguem a sua opinião; e, se era muito instado, appelava para a sua condição de estrangeiro e mettia-se numa reserva prudente. Mas, aquella exigencia do passaporte, tirado na chefatura de policia, dava-lhe susto. Naquelles tempos, toda a gente tinha medo de tratar com autoridades. Havia tanta má vontade com os estrangeiros, tanta arrogancia nos funccionarios que elle não se animava a ir obter o documento, temendo que uma palavra, que um olhar, que um gesto, interpretados por qualquer funccionario zeloso e dedicado, não o levassem a soffrer maus quartos de hora.
Verdade é que elle era italiano e a Italia já fizera ver ao dictador que era uma grande potencia, mas no caso de que se lembrava, tratava-se de um marinheiro, por cuja vida, extincta por uma descarga das forças legaes, Floriano pagara a quantia de cem contos. Elle, Coleoni, porém, não era marinheiro, e não sabia, caso fosse preso, se os representantes diplomaticos de seu paiz tomariam interesse pela sua liberdade.
De resto, não tendo protestado manter a sua nacionalidade quando o Governo provisorio expediu o famoso decreto de naturalização, era bem possivel que uma ou outra parte se ativessem a isso, para desinteressar-se delle ou mantel-o na famosa galeria 7, da Casa de Correição, transformada, por uma pennada magica, em prisão de Estado.
A época era de susto e temor, e todos esses que elle sentia, só os communicava a filha, porque o genro cada vez mais se fazia florianista e jacobino, de cuja boca muita vez ouvia duras invectivas aos estrangeiros.
E o doutor tinha razão; já obtivera uma graça governamental. Fôra nomeado medico do Hospital de Santa Barbara, na vaga de um collega, demittido a bem do serviço publico como suspeito por ter ido visitar um amigo na prisão. Como o hospital, porém, ficasse no ilhéo do mesmo nome, dentro da bahia, em frente á Saude e a Guanabara ainda estivesse em mão dos revoltosos, elle nada tinha que fazer, pois até agora o Governo não aceitara, os seus offerecimentos de auxiliar o tratamento dos feridos.
O Major foi encontrar pai e filha em casa; o doutor tinha sahido, ido dar uma volta pela cidade, dar arrhas de sua dedicação á causa legal, conversando com os mais exaltados jacobinos do Café do Rio, não esquecendo tambem de passear pelos corredores do Itamaraty, fazendo-se ver pelos ajudantes de ordens, secretarios e outras pessoas influentes no animo de Floriano.
A moça viu entrar Quaresma com aquelle sentimento extranho que o seu padrinho lhe causava ultimamente, e esse sentimento mais agudo se tornava quando o via contar os casos guerreiros do seu destacamento, a passagem de balas, as descargas das lanchas, naturalmente, simplesmente, como se fossem feições de uma festa, de uma justa, de um divertimento qualquer em que a morte não estivesse presente.
Tanto mais que o via apprehensivo, deixando perceber numa phrase e noutra desanimo e desesperança.
Na verdade o Major tinha um espinho n'alma. Aquella recepção de Floriano ás suas lembranças de reformas não esperavam nem o seu enthusiasmo e sinceridade nem tão pouco a idéa que elle fazia do dictador. Sahira ao encontro de Henrique IV e de Sully e vinha esbarrar com um presidente que o chamava de visionario, que não avaliava o alcance dos seus projectos, que os não examinava sequer, desinteressado daquellas altas cousas de governo como só não o fosse!... Era pois para sustentar tal homem que deixara o socego de sua casa e se arriscava nas trincheiras? Era, pois, por esse homem que tanta gente morria? Que direito tinha elle de vida e de morte sobre os seus concidadãos, se não se interessava pela sorte delles, pela sua vida feliz e abundante, pelo enriquecimento do paiz, o progresso de sua lavoura e o bem estar de sua população rural?
Pensando assim, havia instantes que lhe vinha um mortal desespero, uma raiva de si mesmo; mas em seguida considerava: o homem está atrapalhado, não póde agora; mais tarde com certeza elle fará a cousa...
Vivia nessa alternativa dolorosa e era ella que lhe trazia apprehensões, desanimo e desesperança, notados por sua afilhada na sua physionomia já um pouco acabrunhada.
Não tardou, porém, que, abandonando os episodios da sua vida militar, Quaresma explicasse o motivo de sua visita.
—Mas qual dellas? perguntou a afilhada.
—A segunda, a Ismenia.
—Aquella que estava para casar com o dentista?
—Esta mesmo.
—Ahn!...
Ella pronunciou este ahn muito longo e profundo, como se puzesse nelle tudo que queria dizer sobre o caso. Via bem o que fazia o desespero da moça, mas via melhor a causa, naquella obrigação que incrustam no espirito das meninas, que ellas se devem casar a todo o custo, fazendo do casamento o pólo e fim da vida, a ponto de parecer uma deshonra, uma injuria, ficar solteira.
O casamento já não é mais amor, não é maternidade, não é nada disso: é simplesmente casamento, uma cousa vasia, sem fundamento nem na nossa natureza nem nas nossas necessidades.
Graças á frouxidão, á pobreza intellectual e fraqueza de energia vital de Ismenia, aquella fuga do noivo se transformou em certeza de não casar mais e tudo nella se abysmou nessa idéa desesperada.
Coleoni enterneceu-se muito e interessou-se. Sendo bom de fundo, quando lutava pela fortuna se fez duro e aspero, mas logo que se viu rico, perdeu a dureza de que se revestira, pois percebia bem que só se póde ser bom quando se é forte de algum modo.
Ultimamente o Major tinha diminuido um pouco o interesse pela moça; andava atormentado com o seu caso de consciencia; entretanto, se não tinha um constante e particular pensamento pela desdita da filha de Albernaz, abrangia-a ainda na sua bondade geral, larga e humana.
Não se demorou muito na casa do compadre; elle queria, antes de voltar ao Cajú, passar pelo quartel do seu batalhão. Ia ver se arranjava uma pequena licença, para visitar a irmã que deixara lá, no «Socego», e de quem tinha noticias, por carta, tres vezes por semana. Eram ellas satisfatorias, comtudo elle tinha necessidade de ver tanto ella como o Anastacio, physionomias com quem se encontrava diariamente ha tantos annos e cuja contemplação lhe fazia falta e talvez lhe restituisse a calma e a paz de espirito.
A ultima carta que recebera de D. Adelaide, havia uma phrase de que, no momento, se lembrava sorrindo: «Não te exponhas muito, Polycarpo. Toma muita cautela». Pobre Adelaide! Estava a pensar que esse negocio de balas é assim como a chuva?!...
O quartel ainda ficava tio velho cortiço condemnado pela hygiene, lá para as bandas da cidade nova. Assim que Quaresma apontou na esquina, a sentinella deu um grande berro, fez uma immensa bulha com a arma e elle entrou, tirando o chapéo da cabeça baixa, pois estava á paisana e tinha abandonado a cartola com medo de que esse traje fosse ferir as susceptibilidades republicanas dos jacobinos.
No pateo, o instructor côxo adestrava novos voluntarios e os seus magestosos e demorados gritos: hom-broôô... armas! Mei-ããã volta... volver! subiam ao céo e ecoavam longamente pelos muros da antiga estalagem.
Bustamante estava no seu cubiculo, mais conhecido por gabinete, irreprehensivel no seu uniforme verde garrafa, alamares dourados e vivos azul ferrete. Com auxilio de um sargento, examinava a escripta de um livro quarteleiro.
—Tinta vermelha, Sargento! É como mandam as instrucções de 1864.
Tratava-se de uma emenda ou de cousa semelhante.
Logo que viu Quaresma entrar, o commandante exclamou radiante:
—O Major adivinhou!
Quaresma descançou placidamente o chapéo, bebeu um pouco d'agua, e o Coronel Innocencio explicou a alegria:
—Sabe que temos de marchar?
—Para onde?
—Não sei... Recebi ordem do Itamaraty.
Elle não dizia nunca do Quartel-General, nem mesmo do Ministro da Guerra: era do Itamaraty, do Presidente, do chefe supremo. Parecia que assim dava mais importancia a si mesmo e ao seu batalhão, fazia-o uma especie de batalhão da guarda, favorito e amado do dictador.
Quaresma não se espantou, nem se aborreceu. Percebeu que era impossivel obter a licença e tambem necessario mudar os seus estudos: da artilharia, tinha que passar para a infantaria.
—O Major é que vai commandar o corpo, sabia?
—Não, Coronel. E o senhor não vai?
—Não, disse Bustamante, alisando o cavaignac mosaico e abrindo a bocca para o lado esquerdo. Tenho que acabar a organização da unidade e não posso... Não se assuste, mais tarde irei lá ter...
Começava a tarde, quando Quaresma sahiu do quartel. O instructor côxo continuava, com força, magestade e demora, a gritar: hom-brôôô... armas! A sentinella não pôde fazer a bulha da entrada, porque só viu o Major, quando já ia longe. Elle desceu até á cidade e foi ao Correio. Havia alguns tiros espaçados; no Café do Rio, os levitas continuavam a trocar idéas para a consolidação definitiva da Republica.
Antes de chegar ao Correio, Quaresma lembrou-se de sua partida. Correu a uma livraria e comprou livros sobre infantaria; precisava tambem dos regulamentos: arranjaria no quartel-general.
Para onde ia? Para o Sul, para Magé, para Nictheroy? Não sabia... Não sabia... Ah! se isso fosse para realização dos seus desejos e sonhos! Mas quem sabe?... Podia ser... talvez... Mais tarde...
E passou o dia atormentado pela duvida do bom emprego de sua vida e de suas energias.
O marido de Olga não fez nenhuma questão em ir ver a filha do General. Elle levava a intima convicção de que a sua sciencia toda nova pudesse fazer alguma cousa; mas assim não se deu.
A moça continuou a definhar, e, se a mania parecia um pouco attenuada, o seu organismo cahia. Estava magra e fraca, a ponto de quasi não poder sentar-se na cama. Era sua mãe quem mais junto a ella vivia; as irmãs se desinteressavam um pouco, pois as exigencias de sua mocidade levavam-n'as para outros lados.
D. Maricota, tendo perdido todo aquelle antigo fervor pelas festas e bailes, estava sempre no quarto da filha, a consolal-a, animal-a, e, ás vezes, quando a olhava muito, como que se sentia um tanto culpada pela sua infelicidade.
A molestia tinha posto mais firmeza nos traços de Ismenia, tinha-lhe diminuido a lassidão, tirado o mortiço dos olhos e os seus lindos cabellos castanhos, com reflexos de ouro, mais bellos se faziam quando cercavam a pallidez de sua face.
Raro era falar muito; e assim foi que, naquelle dia, se espantou muito D. Maricota com a loquacidade da filha.
—Mamãe, quando se casa Lalá?
—Quando se acabar a revolta.
—A revolta ainda não acabou?
A mãe respondeu-lhe e ella esteve um instante calada, olhando o tecto, e, após essa contemplação disse á mãe:
—Mamãe... Eu vou morrer...
As palavras sairam-lhe dos labios, seguras, doces e naturaes.
—Não diga isso, minha filha, adiantou-se D. Maricota. Qual morrer! Você vai ficar boa; seu pai vai levar você para Minas; você engorda, toma forças...
A mãe dizia-lhe tudo isso devagar, alisando-lhe a face com a mão, como se tratasse de uma criança. Ella ouvia tudo com paciencia e voltou por sua vez serenamente:
—Qual, mamãe! Eu sei: vou morrer e peço uma cousa a senhora...
A mãe ficou espantada com a seriedade e firmeza da filha. Olhou em redor, deu com a porta semi-cerrada e levantou-se para fechal-a. Quiz ainda ver se a dissuadia daquelle pensamento; Ismenia, porém, continuava a repetil-o pacientemente docemente, serenamente:
—Eu sei, mamãe.
—Bem. Supponho que é verdade: o que é que você quer?
—Eu quero, mamãe, ir vestida de noiva.
D. Maricota ainda quiz brincar, troçar; a filha, porém, voltou-se para o outro lado, poz-se a dormir, com um leve respirar espaçado. A mãe saiu do quarto, commovida, com lagrimas nos olhos e a secreta certeza de que a filha, falava a verdade.
Não tardou muito a se verificar. O Dr. Armando a tinha visitado naquella manhã pela quarta vez; ella parecia melhor, desde alguns dias, falava com discernimento, sentava-se á cama e conversava com prazer.
D. Maricota teve que fazer uma visita e deixou a doente entregue ás irmãs. Ellas foram lá ao quarto varias vezes e parecia dormir. Distrahiram-se.
Ismenia despertou: viu, por entre a porta do guarda-vestidos meio aberto, o seu traje de noiva. Teve vontade de vel-o mais de perto. Levantou-se descalça e estendeu-o na cama para contemplal-o. Chegou-lhe o desejo de vestil-o. Poz a saia: e, por ahi, vieram recordações do seu casamento falhado. Lembrou-se do seu noivo, do nariz fortemente osseo e dos olhos esgazeados de Cavalcanti; mas não se recordou com odio, antes como se fosse um logar visto ha muito tempo, e que a tivesse impressionado.
De quem ella se lembrava com raiva era da cartomante. Illudindo sua mãe, acompanhada por uma criada, tinha conseguido consultar Mme. Sinhá. Com que indifferença ella lhe respondeu: não volta! Aquillo doeu-lhe... Que mulher má! Desde esse dia... Ah!... Acabou de abotoar a saia em cima do corpinho, pois não encontrara collete; e foi ao espelho. Viu os seus hombros nús, o seu collo muito branco... Surprehendeu-se. Era della aquillo tudo? Apalpou-se um pouco e depois collocou a corôa. O véo afagou-lhe as espaduas carinhosamente, como um adejo de borboleta. Teve uma fraqueja, uma cousa, deu um ai e cahiu de costas na cama, com as pernas para fóra... Quando a vieram ver, estava morta. Tinha ainda a corda na cabeça e um seio, muito branco e redondo, saltava-lhe do corpinho.
O enterro foi feito no dia immediato e a casa de Albernaz esteve os dous dias cheia, como nos dias de suas melhores festas.
Quaresma foi ao enterro; elle não gostava muito dessa cerimonia; mas veiu, e foi ver a pobre moça, no caixão, coberta de flores, vestida de noiva, com um ar immaculado de imagem. Pouco mudara, entretanto. Era ella mesma ali; era a Ismenia dolente e pobre de nervos, com os seus traços meudos e os seus lindos cabellos, que estava dentro daquellas quatro taboas. A morte tinha fixado a sua pequena belleza e o seu aspecto pueril; e ella ia para a cova com a insignificancia, com a innocencia e a falta de accento proprio que tinha tido em vida.
Contemplando aquelles tristes restos, Quaresma viu caixão do coche parar na porta do cemiterio, atravessar pelas ruas de tumulos—uma multidão que trepava, se tocava, lutava por espaço, na estreiteza da varzea e nas encostas das collinas. Algumas sepulturas como se olhavam com affecto e se queriam approximar; em outras, transparecia repugnancia por estarem perto. Havia ali, naquelle mudo laboratorio de decomposições, solicitações incomprehensiveis, repulsões, sympathias e antipathias; havia tumulos arrogantes, vaidosos, orgulhosos, humildes, alegres e tristes; e de muitos, recumava o esforço, um esforço extraordinario, para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que ella traz ás condições e ás fortunas.
Quaresma ainda contemplava o cadaver da moça e o cemiterio surgia aos seus olhos com as esculpturas que se amontoavam, com vasos, cruzes e inscripções, em alguns tumulos; noutros, eram pyramides de pedra tosca, retratos, caramanchões extravagantes, complicações de ornatos, cousas barôcas e delirantes, para fugir ao anonymato do tumulo, ao fim dos fins.
As inscripções exuberantes são longas, são breves: têm nomes, têm datas, sobrenomes, filiações, toda a certidão de idade do morto que, lá em baixo, não se póde mais conhecer e é lama putrida.
E se sente um desespero em não se deparar com um nome conhecido, nem uma celebridade, uma notabilidade, um desses nomes que enchem decadas e, ás vezes mesmo, já mortos, parece que continuam a viver. Tudo é desconhecido; todas aquelles que querem fugir do tumulo para a memoria dos vivos, são anodynos felizes e mediocres existencias que passaram pelo mundo sem ser notadas.
E lá ia aquella moça por ali afóra para o buraco escuro, para o fim, sem deixar na vida um traço mais fundo de sua pessoa, de seus sentimentos, de sua alma!
Quaresma quiz afastar essa visão triste e encaminhou-se para o interior da casa. Elle estivera na sala de visitas, onde D. Maricota tambem estava, cercada de outras senhoras amigas que nada lhe diziam. O Lulú, fardado do Collegio, com fumo no braço, cochilava a uma cadeira. As irmãs iam e vinham. Na sala de jantar, estava o General silencioso, tendo ao lado Fontes e outros amigos.
Caldas e Bustamante conversavam baixo, afastados; e quando Quaresma passou, pôde ouvir o Almirante dizer:
—Qual! Os homens estão dentro em pouco aqui... O Governo está exhausto.
O Major ficou na janella que dava para o quintal. O tecido do céo se tinha adelgaçado; o azul estava sedoso e fino; e tudo tranquillo, sereno e calmo.
A Estephania, a doutora, a de olhos maliciosos e quentes, passou, tendo ao lado Lalá, que levava, de quando em quando, o lenço aos olhos já seccos, a quem aquella dizia:
—Eu, se fosse você, não comprava lá... É caro! Vai ao «Bonheur des Dames»... Dizem que tem cousas boas e é pechincheiro.
O Major voltou de novo a contemplar o céo que cobriu o quintal. Tinha uma tranquillidade quasi indifferente. Genelicio appareceu demasiadamente funebre. Todo de preto, elle tinha afivelado ao rosto a mais profunda mascara de tristeza. O seu pince-nez azulado tambem parecia de luto.
Não lhe fôra possivel deixar de ir trabalhar; um serviço urgente, fizera-o indispensavel na repartição.
—É isto, General, disse elle, não esta lá o Dr. Genelicio, nada se faz... Não ha meio da «Marinha» mandar os processos certos... É um relaxamento...
O General não respondeu; estava deveras combalido. Bustamante e Caldas continuavam a conversar baixo. Ouviu-se o rodar de uma carruagem na rua. Quinota chegou á sala de jantar:
—Papae, está ahi o coche.
O velho levantou-se a custo e foi para a sala de visitas. Falou á mulher que se ergueu com a face contrahida, exprimindo uma grande contensão. Os seus cabellos já tinham muitos fios de prata. Não deu um passo; esteve um instante parada e logo caiu na cadeira, chorando. Todos estavam vendo sem saber o que fazer; alguns choravam; Genelicio tomou um partido: foi retirando os cirios de ao redor do caixão. A mãe levantou-se, veiu até ao esquife, beijou o cadaver: minha filha!
Quaresma adiantou-se, foi sahindo com o chapéo na mão. No corredor, ainda ouviu Estephania dizer a alguem: o coche é bonito.
Saiu. Na rua parecia que havia testa. As crianças da visinhança cercavam-o carro funebre e faziam innocentes commentarios sobre os dourados e enfeites. As grinaldas foram apparecendo e sendo dependuradas nas extremidades das columnas do coche: «Á minha querida filha», «Á minha irmã». As fitas rôxas e pretas, com lettras douradas, moviam-se lentamente ao leve vento que soprava.
Appareceu o caixão, todo roxo, com guarnições do galões dourados, muito brilhantes. Tudo aquillo ia p'ra terra. As janellas se povoaram, de um lado e d'outro da rua; um menino na casa proxima, gritou da rua para o interior: «mamãe, lá vai o enterro da moça»!
O caixão foi afinal amarrado fortemente no carro mortuario, cujos cavallos, russos, cobertos com uma rede preta, escarvavam o chão cheios de impaciencia.
Aquelles que iam acompanhar até ao cemiterio, procuravam os seus carros. Embarcaram todos, e o enterro rodou.
A esse tempo, na visinhança, alguns pombos immaculadamente brancos, as aves de Venus, ergueram o vôo, ergueram o vôo, ruflando estrepitosamente; deram volta por cima do coche e tornaram logo silenciosos, quasi sem bater azas, para o pombal que se occultava nos quintaes burguezes...
O sitio de Quaresma, em Curuzú, voltava aos poucos ao estado de abandono em que elle o encontrara. A herva damninha crescia e cobria tudo. As plantações que fizera, tinham desapparecido na invasão do capim, do carrapicho, das ortigas e outros arbustos. Os arredores da casa offereciam um aspecto desolador, apezar dos esforços de Anastacio, sempre vigoroso e trabalhador na sua forte velhice africana, mas baldo de iniciativa, de methodo, de continuidade no esforço.
Um dia capinava aqui, outro dia ali, outro pedaço; assim ia saltando de trecho em trecho, sem fazer trabalho que se visse, permittindo que as terras e os arredores da casa adquirissem um aspecto de desleixo que não condizia como seu trabalho effectivo.
As formigas voltaram tambem, mais terriveis e depredadoras, vencendo obstaculos, devastando tudo, restos de seara, brotos de fructeiras, até os araçazeiros depenavam com uma energia e bravura que sorriam nos fracos expedientes da intelligencia crestada do antigo escravo, incapaz de achar meios efficazes de batel-as ou afugenta-las.
Entretanto elle cultivava. Era a sua mania, o seu vicio, uma teimosia de caduco. Tinha uma horta que disputava diariamente ás saúvas; e, como os animaes da visinhança a tivessem um dia invadido, elle a protegeu pacientemente com uma cerca de materiaes mais inconcebiveis: latas de kerozene desdobradas, caibros bons, folhas de coqueiros, taboas de caixão, não obstante ter á mão bambus á vontade.
Na sua intelligencia havia uma necessidade do tortuoso; do apparentemente facil; e, em tudo elle punha esse geito de sua psyche, tanto no falar, com grandes rodeios, como nos canteiros que traçava, irregulares, maiores aqui, menores ali, fugindo á regularidade, ao parallelismo, á symetria, com um horror artistico.
A revolta tinha tido sobre a politica local effeito pacificador. Todos os partidos se fizeram dedicadamente governistas, de forma que, entre os dous poderosos contendores, o Dr. Campos e o Tenente Antonino, houve um traço de união que os reconciliou e os fez entenderem-se. Ao osso que ambos disputavam encarniçadamente, chegou um outro mais forte que poz em perigo a segurança de ambos e elles se puzeram em expectativa, um instante unidos.
O candidato foi imposto pelo Governo Central e as eleições chegaram. É um momento bem curioso esse das eleições na roça. Não se sabe bem donde sabem tantos typos exoticos. De tal forma são elles esquesitos que se póde mesmo esperar que appareçam calções e bofes de renda, espadins e gibão. Ha sobrecasacas de cintura, ha calças boca de sino, ha chapéos de seda—todo um museu de indumentaria que aquelles roceiros vestem e por um instante fazem viver por entre as ruas esburacadas e estradas poeirentas das villas e logarejos. Não faltam tambem os valentões, com calças bombachas e grandes bengalões de piquiá, á espera do que der e vier.
Para a monotona vida que levava D. Adelaide, esse desfile de manequins de museu, por sua porteira, em direcção á secção eleitoral que lhe ficava nas proximidades, foi um divertimento. Ella passava longo e tristes dias naquelle isolamento. Fazia-lhe companhia desde muito a mulher de Felizardo, a sinhá Chica, uma velha cafusa, especie de Medéa esqueletica, cuja fama de rezadeira pairava por sobre todo o municipio. Não havia quem como ella soubesse rezar dores, cortar febres, curar cobreiros e conhecesse os effeitos das hervas medicinaes: a lingua de vacca, a silvina, o cipó chumbo—toda aquella drogaria que crescia pelos campos, pelas capoeiras, e pelos troncos de arvores.
Além desse saber que a fazia estimada e respeitavel, tinha tambem a habilidade de assistir partos. Na redondeza, entre a gente pobre e mesmo remediada, todos os nascimentos se faziam aos cuidados de suas luzes.
Era de ver como pegava uma faca e agitava o pequeno instrumento domestico em cruz, repetidas vezes, sobre a séde da dor ou da tarefa, rezando em voz baixa, balbuciando preces que afugentavam o espirito maligno que estava ali. Contavam-se della milagres, victorias extraordinarias, denunciadoras do seu extranho poder quasi magico, sobre as forças occultas, que nos perseguem ou nos auxiliam.
Um dos mais curiosos, e era contado em toda a parte e á toda a hora, consistia no afastamento das lagartas. Os vermes haviam dado num feijoal, aos milheiros, cobrindo as folhas e os colmos; o proprietario já desesperava e tinha tudo por perdido quando se lembrou dos maravilhosos poderes de Sinhá Chica. A velha lá foi. Pôz cruzes de gravetos pelas bordas da roça, assim como se fizesse uma cerca de invisivel material que nellas se apoiasse; deixou uma extremidade aberta e collocou-se na opposta a rezar. Não tardou o milagre a verificar-se. Os vermes, num rebanho moroso e serpejante, como se fossem tocados pela vara de um pastor, foram sahindo na sua frente, de vagar, aos dous, aos quatros, aos cinco, aos dez, aos vinte, e um só não ficou.
O doutor Campos não linha absolutamente nenhuma especie de ciume dessa rival. Armou-se de um pequeno desdem pelo poder sobrehumano da mulher, mas não appellou nunca para o arsenal de leis, que vedava o exercicio de sua transcedente medicina. Seria a impopularidade; elle era politico...
No interior, e não é preciso afastar-se muito do Rio de Janeiro, as duas medicinas coexistem sem raiva e ambas attendem ás necessidades mentaes e economicas da população.
A da Sinhá Chica, quasi gratis, ia ao encontro da população pobre, daquella em cujos cerebros, por contagio ou herança, ainda vivem os manitus e manipanços, sujeitos a fugirem aos exorcismos, benzeduras e fumigações. A sua clientela, entretanto, não se resumia só na gente pobre da terra, ali nascida ou criada; havia mesmo recem-chegados de outros ares, italianos, portuguezes e hespanhoes, que se socorriam da sua força sobrenatural, não tanto pelo preço ou contagio das crenças ambientes, mas tambem por aquella estranha superstição européa de que todo o negro ou gente colorida penetra e é sagaz para descobrir as coisas malignas e exercer a feitiçaria.
Emquanto a therapeutica fluidica ou herbacea de Sinhá Chica attendia aos miseraveis, aos pobretões, a do doutor Campos era requerida pelos mais cultos e ricos, cuja evolução mental exigia a medicina regular e official.
Ás vezes, um de um grupo passava para o outro; era nas molestias graves, nas complicadas, nas incuraveis, quando as hervas e as rezas da milagrosa nada podiam ou os xaropes e pillulas do doutor eram impotentes.
Sinhá Chica não era lá uma companheira muito agradavel. Vivia sempre mergulhada no seu sonho divino, abysmada nos mysteriosos poderes dos feitiços, sentada sobre as pernas cruzadas, olhos baixos, fixos, de fraco brilho, parecendo esmalte de olhos de mumia, tanto ella era encarquilhada e secca.
Não esquecia tambem os santos, a santa madre igreja, os mandamentos, as orações orthodoxas; embora não soubesse ler, era forte no cathecismo e conhecia a historia sagrada aos pedaços, adduzindo a elles interpretações suas e interpelações pittorescas.
Com o Appolinario, o famoso capellão das ladainhas, era ella o forte poder espiritual da terra. O vigario ficava relegado a um papel de funccionario, especie de official de registro civil, encarregado dos baptisados e casamentos, pois toda a communicação com Deus e o Invisivel se fazia por intermedio de Sinhá Chica ou do Appolinario. É de dever falar em casamentos, mas bem podiam ser esquecidos, porque a nossa gente pobre faz um reduzido de tal sacramento e a simples mancebia, por toda a parte, substitue a solemne instituição catholica.
Felizardo, o marido della, apparecia pouco em casa de Quaresma; e, se apparecia, era á noite passando os dias pelos mattos com medo do recrutamento e logo que chegava indagava da mulher se o barulho já tinha acabado.
Vivia num constante pavor; dormia vestido, galgando a janella e embrenhando-se na capoeira, á menor bulha ou vida.
Tinham dous filhos, mas que tristeza de gente! Ajuntavam á depressão moral dos paes uma pobreza de vigor physico e uma indolencia repugnante. Eram dous rapazes; o mais velho, José, orçava pelos 20 annos; ambos inertes, molles, sem força e sem crenças, nem mesmo a da feitiçaria, das rezas e benzeduras, que fazia o encanto da mãe e merecia o respeito do pae.
Não houve quem os fizesse aprender qualquer cousa e os sujeitasse a um trabalho continuo. De quando em quando, assim de quinze em quinze dias, faziam uma talha de lenha e vendiam ao primeiro taverneiro pela metade do valor; voltavam para casa alegres, satisfeitos, com um lenço de cores vivas, um vidro de agua da Colonia, um espelho, bugigangas que denunciavam ainda nelles gostos bastante selvagens.
Passavam então uma semana em casa, a dormir ou á perambular pelas estradas e vendas; á noite, quasi sempre nos dias de festas e domingos, sahiam com a harmonica a tocar peças, no que eram eximios, sendo a presença delles muito requesitada nos bailes da visinhança.
Embora seus paes vivessem em casa de Quaresma, raramente lá appareciam; e, se o faziam, era porque de todo não tinham que comer. Levavam o descuido da vida, a imprevidencia, a ponto de não terem medo do recrutamento. Eram, entretanto, capazes de dedicação, de lealdade e bondade, mas o trabalho continuado, todo o dia, repugnava-lhes á natureza, como uma pena ou um castigo.
Essa atonia da nossa população, essa especie de desanimo doentio, de indifferença nirvanesca por tudo e todas as cousas, cercam de uma caligem de tristeza, desesperada a a nossa roça e tira-lhe o encanto, a poesia o o viço seductor de plena natureza.
Parece que nem um dos grandes paizes opprimidos, a Polonia, a Irlanda, a India apresentará o aspecto cataleptico do nosso interior. Tudo ahi dorme, cochila, parece morto; naquelles ha revolta, ha fuga para o sonho; no nosso... Oh!... dorme-se...
A ausencia de Ouaresma trouxera para o seu sitio essa atmosphera geral da roça. O «Socego» parecia dormir, dormir de encantamento, á espera que o principe o viesse despertar.
Machinas agricolas, que não haviam ainda servido, enferrujavam com a etiqueta da casa. Aquelles arados de ponta de aço, que tinham chegado com a relha reluzente, de um brilho azulado e doce, estavam hediondos e morriam de tedio no abandono em que jaziam, bracejando angustiosamente para o céo mudo. De manhã, não se ouvia mais o cacarejar das aves no gallinheiro, o esvoaçar dos pombos—todo esse hymno matinal de vida, de trabalho, de fartura não mais se casava com as auroras rosadas e com o chilreio alacre do passaredo; e ninguem sabia ver as paineiras em flor, com as suas lindas flores rosadas e brancas que, a espaços, cahiam docemente como aves feridas.
D. Adelaide não linha nem gosto nem actividade para superintender aquelles serviços e fruir a poesia da roça. Soffria com a separação do irmão e vivia como se estivesse na cidade. Comprava os generos na venda e não se incommodava com as cousas do sitio.
Anceiava pela volta da irmão; escrevia-lhe cartas desesperadas, ás quaes elle respondia aconselhando calma, fazendo promessas. A ultima recebida, porém, tinha de sopetão outro accento; não era mais confiante, enthusiastica, trahia desanimo, desalento, mesmo desespero.
«Querida Adelaide. Só agora posso responder-te a carta que recebi ha quasi duas semanas. Justamente quando ella me chegou ás mãos, acabava de ser ferido, ferimento ligeiro é verdade, mas que me levou á cama e traz-me-á unia convalescença longa. Que combate, minha filha! Que horror! Quando me lembro delle, passo as mãos pelos olhos como para afastar uma visão má. Fiquei com um horror á guerra que ninguem póde avaliar... Uma confusão, um infernal zunir de balas, clarões sinistros, imprecações—e tudo isto no seio da treva profunda da noite... Houve momentos que se abandonaram as armas de fogo: batiamo-nos á bayoneta, a coronhadas, a machado, a facão. Filha: um combate de troglodytas, um cousa prehistorica... Eu duvido, eu duvido, duvido da justiça disso tudo, duvido da sua razão de ser, duvido que seja certo e necessario ir tirar do fundo de nós todos a ferocidade adormecida, aquella ferocidade que se fez e se depositou em nós nos millenarios combates com as féras, quando disputavamos a terra e ellas... Eu não vi homens de hoje; vi homens de Cro-Magnon do Néanderthal armados com machados de silex, sem piedade, sem amor, sem sonhos generosos, a matar, sempre a matar... Este teu irmão que estás vendo, tambem fez das suas, tambem foi descobrir dentro do si muita brutalidade, muita ferocidade, muita crueldade... Eu matei, minha irmã; eu matei! E não contente de matar, ainda descarreguei um tiro quando o inimigo arquejava a meus pés... Perdoa-me! Eu te peço perdão, porque preciso de perdão e não sei a quem pedir, a que Deus, a que homem, a alguem emfim... Não imaginas como isto faz-me soffrer... Quando cahi em baixo de uma carreta, o que me doia não era a ferida, era a alma, era a consciencia; e Ricardo, que foi ferido e cahiu ao meu lado, a gemer e pedir—capitão, meu gorro; meu gorro!—parecia que era o meu proprio pensamento que ironizava o meu destino...
Esta vida é absurda e illogica; eu já tenho medo de viver, Adelaide. Tenho medo, porque não sabemos para onde vamos, o que faremos amanhã, de que maneira havemos de nos contradizer de sol para sol...
O melhor é não agir, Adelaide; e desde que o meu dever me livre destes encargos, irei viver na quietude, na quietude mais absoluta possivel, para que do fundo de mim mesmo ou do mysterio das cousas não provoque a minha acção o apparecimento de energias extranhas á minha vontade, que mais me façam soffrer e tirem o doce sabor de viver...
Além do que, penso que todo este meu sacrificio tem sido inutil. Tudo o que nelle puz de pensamento não foi attingido; e o sangue que derramei, e o soffrimento que vou soffrer toda a vida, foram empregados, foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralisados em pról de uma tolice politica qualquer...
Ninguem comprehende o que quero, ninguem deseja penetrar e sentir; passo por doido, tolo, maniaco e a vida se vai fazendo inexoravelmente com a sua brutalidade e fealdade».
Como Quaresma dizia na carta, o seu ferimento não era grave, era porém, delicado e exigia tempo para uma cura completa e sem perigos. Ricardo, este, fora ferido mais gravemente. E se o soffrimento de Quaresma era profundamente moral, o de Coração dos Outros era physico e não se cançava de gemer e imprecar contra a sorte que o arrastara até á posição de combatente.
Os hospitaes em que tratavam estavam separados pela bahia, agora intransponivel, exigindo a viagem de uma margem á outra bem doze horas por estrada de ferro.
Tanto na ida como na volta, ferido como estava, Quaresma passara pela estação em que morava. O trem, porém, não parava, e elle se limitou a deitar pela portinhola um longo e saudoso olhar para aquelle seu «Socego», de terras pobres e arvores velhas, onde sonhara repousar calmamente por toda a vida; e, entretanto, o lançara na mais terrivel das aventuras.
E elle perguntava de si para si, onde, na terra, estava o verdadeiro socego, onde se poderia encontrar esse repouso de alma e corpo, pelo qual tanto anceiava, depois dos sacolejamentos por que vinha passando—onde? E o mappa dos continentes, as cartas dos paizes, as plantas das cidades, passavam-lhe pelos olhos e não viu, não encontrou um paiz, uma provincia, uma cidade, uma rua onde o houvesse.
A sua sensação era de fadiga, não physica, mas moral r intellectual. Tinha vontade de não mais pensar, de não mais amar: queria, comtudo, viver, por prazer physico, pela sensação material pura e simples de viver.
Assim, convalesceu longamente, demoradamente, melancolicamente, sem uma visita, sem ver uma face amiga.
Coleoni e familia se haviam retirado para fóra; o General, por preguiça e desleixo, não viera vel-o. Vivia só, envolvido na suavidade da convalescença, a pensar no Destino, na sua vida, nas suas idéas e mais que tudo nas suas desillusões.
Entretanto, a revolta na bahia chegava ao fim; toda a gente já presentia isso e queria esse allivio.
O Almirante e Albernaz, ambos pelos mesmos motivos, observavam esse fim com tristeza. O primeiro via fugir o seu sonho de commandar uma esquadra e a consequente volta para o quadro; e o General sentia perder a sua commissão, cujos rendimentos faziam de forma tão notavel melhorar a situação da familia.
Naquella manhã, bem cedo, D. Maricota accordara o marido:
—Chico, levanta-te! Olha que tens que ir á missa do Senador Clarimundo...
Ouvindo a recommendação da mulher, Albernaz ergueu-se logo do leito. Era preciso não faltar. A sua presença se impunha e significava muito. Clarimundo fôra um republicano historico, agitador, tribuno temido, no tempo do Imperio; após a Republica, porém, não apresentara aos seus pares do Senado nada de util e bemfasejo. Embora assim, a sua influencia ficara sendo grande; e, com diversos outros, era chamado patriarcha da Republica. Ha nos proceres republicanos uma necessidade extraordinaria de serem gloriosos e não esquecidos pelo futuro, a que elles se recommendam com teimoso interesse.
Clarimundo era um desses proceres e, durante a commoção, não se sabia bem porque, o seu prestigio cresceu e já se falava nelle para substituir o Marechal. Albernaz conhecera-o vagamente, mas assistir a sua missa era quasi uma affirmação politica.
A dor da morte da filha já se esvaira muito na sua memoria. O que o fazia soffrer era aquella semi-vida da moça, mergulhada na loucura e na molestia. A morte tem a virtude de ser brusca, de chocar, mas não corroer, como essas molestias duradouras nas pessoas amadas: passado que é o choque, vai ficando em nós uma suave recordação do ente querido, uma boa physionomia sempre presente aos nossos olhos.
Dava-se isso com Albernaz e a sua satisfação de viver e a sua jovialidade natural foram voltando insensivelmente.
Obediente á mulher, preparou-se, vestiu-se e sahiu. Comquanto se estivesse ainda em plena revolta, esses officios funebres se faziam nas igrejas do centro da cidade. O General chegou a tempo e á hora. Havia uniformes e cartolas e todos se comprimiam para assignar as listas de presença. Não tanto que quisessem attestar á familia do morto esse acto delicado; dominava-os, além disso, a esperança de ter os nomes nos jornaes.
Albernaz não deixou de atirar-se tambem a uma das listas que andavam pelas mesas da sacristia; e, quando ia assignar, alguem lhe falou. Era o Almirante. A missa ia começar, mas ambos evitaram entrar na nave cheia, e ficaram a um vão da janella, na sacristia, conversando.
—Então acaba breve, hein?
—Dizem que a esquadra já sahiu de Pernambuco.
Fôra Caldas quem falara primeiro e a resposta do General fel-o sorrir ironico dizendo:
—Emfim...
—A bahia está cercada de canhões, continuou o General, após uma pausa, e o Marechal vai intimal-os a renderem-se.
—Já era tempo, fez Caldas... Commigo, a cousa ja estava acabada... Levar quasi sete mezes para dar cabo de uns calhambeques!...
—Você exagera, Caldas; a cousa não era tão facil assim... E o mar?
—Que fez a esquadra tanto tempo no Recife, você não me dirá? Ah! si fosse com este seu criado, tinha logo partido e atacado... Sou pelas decisões promptas...
O padre, no interior da igreja, continuava a pedir Deus repouso para a alma do Senador Clarimundo. O mystico cheiro de incenso vinha até elles e o votivo perfume, votivo ao Deus da paz e da bondade, não os demovia dos seus pensamentos guerreiros.
—Entre nós, adduziu Caldas, não ha mais gente que preste... Isto é um paiz perdido, acaba colonia ingleza...
Coçou nervoso um dos favoritos e esteve um instante a olhar o ladrilho do chão. Albernaz avançou, meio sarcastico:
—Agora não; agora a autoridade está prestigiada, consolidada, e uma era de progresso vai abrir-se para o Brasil.
—Qual o que! Onde é que você viu um Governo...
—Mais baixo, Caldas!
—...onde é que se viu um Governo que não aproveita as aptidões, abandona-as, deixa-as por ahi vegetar?... Dá-se o mesmo com as nossas riquezas naturaes: jazem por ahi á toa!
A sineta soou e olharam um pouco a nave cheia. Pela porta, via-se uma porção de homens, todos de negro, ajoelhados, contrictos, batendo nos peitos, a confessar de si para si: mea culpa, mea maxima culpa...
Uma restea de sol coava-se por uma das aberturas do alto e resplandecia sobre algumas cabeças.
Insensivelmente, os dous, na sacristia, levaram a mão ao peito e confessaram tambem: mea culpa, mea maxima culpa...
A missa veiu a acabar e ambos entraram para o abraço da pragmatica. A nave rescendia a incenso e tinha um aspecto tranquillo de immortalidade.
Todos tinham um grande ar de compuncção: amigos, parentes, conhecidos e desconhecidos pareciam soffrer igualmente. Albernaz e Caldas, logo que penetraram no corpo da igreja, apanharam no ar um sentimento profundo e afivelaram-no ao rosto.
Genelicio tambem viera; elle tinha o vicio das missas das pessoas importantes, dos cartões de pezames, dos cumprimentos em dias de anniversario. Temendo que a memoria não lhe ajudasse, possuia um caderninho onde as datas aniversarias estavam assentadas e as residencias tambem. O indice era organizado com muito cuidado. Não havia sogra, prima, tia, cunhada, de homem importante, que, em dia de anniversario, não recebesse os seus parabens, e, por morte, não o levasse á igreja em missa de setimo dia.
O seu traje de luto era de panno grosso, pesado e, olhando-o, lembrava-nos logo de um castigo dantesco.
Na rua, Genelicio escovava a cartola com a manga da sobrecasaca e dizia ao sogro e ao Almirante:
—A cousa está p'ra acabar...! Breve...
—E se resistirem? perguntou o General.
—Qual! Não resistem. Corre que já propuzeram rendição... É preciso arranjar uma manifestação ao Marechal...
—Não acredito, fez o Almirante. Conheço muito o Saldanha, é orgulhoso e não se entrega assim...
Genelicio ficou um pouco assustado com a intonação da voz do seu parente; teve medo que elle falasse mais alto, désse na vista e o compromettesse. Calou-se; Albernaz, porem, avançou:
—Não ha orgulho que resista a uma esquadra mais forte.
—Forte! Uns calhambeques, homem!
Caldas continha a custo a furia que lhe ia n'alma. O céo estava azul e calmo. Havia nelle nuvens brancas, leves, esgarçadas, que se moviam lentamente, como velas, naquelle mar infinito. Genelicio olhou-o um pouco e aconselhou:
—Almirante não fale assim... Olhe que...
—Qual! Não tenho medo... Porcarias!...
—Bom, fez Genelicio, eu tenho que ir á rua Primeiro de Março e...
Despediu-se e sahiu com o seu traje de chumbo, curvado, olhando o chão com o seu pince-nez azulado, palmilhando a rua com passo meudo e cauteloso.
Albernaz e Caldas ainda estiveram conversando um tempo e se despediram sempre amigos, cada um com o seu desgosto e a sua decepção.
Tinham razão: a revolta veiu a acabar d'ahi a dias. A esquadra legal entrou: os officiaes revoltosos se refugiaram nos navios de guerra portuguezes e o Marechal Floriano ficou senhor da bahia.
No dia da entrada, acreditando que houvesse canhoneio, uma grande parte da população abandonou a cidade, refugiando-se nos suburbios, por baixo das arvores, na casa de amigos ou nos galpões construidos adrede pelo Estado.
Era de ver o terror que se estampava naquellas physionomias, a ancia e a angustia tambem. Levavam trouxas, samburás, pequenas malas; crianças de peito, a chorar, o papagaio querido, o cachorro de estimação, o passarinho que de ha muito quebrava a tristeza de uma casa pobre.
O que mais mettia medo era o famoso canhão de dynamite, do «Nictheroy», uma espalhafatosa invenção americana, instrumento terrivel, capaz de causar terremotos e de abalar os fundamentos das montanhas graniticas do Rio.
As crianças e as mulheres, mesmo fóra do alcance de seu poder, temiam ouvir o seu estrondo: entretanto, esse fantasma yankee, esse pesadello, essa quasi força da natureza, foi morrer abandonado num caes, desprezado e inoffensivo.
O fim do levante foi um allivio; a cousa já estava, ficando monotona e o Marechal ganhou feições sobrehumanas com a victoria.
Quaresma teve alta por esse tempo; e uma ala de seu batalhão foi destacada para guarnecer a ilha das Enxadas. Innocencio Bustamante continuava a superintender o corpo com muito zelo, do interior do seu gabinete, na estalagem condemnada que lhe servia de quartel. A escripturação estava em dia e era feita com a melhor letra.
Polycarpo acceitou com repugnancia o papel de carcereiro, pois na ilha das Enxadas estavam depositados os marinheiros prisioneiros. Os seus tormentos d'alma mais cresceram com o exercicio de tal funcção. Quasi os não olhava: tinha vexame, piedade e parecia-lhe que dentre elles um conhecia o segredo de sua consciencia.
De resto, todo o systema de idéas que o fizera meter-se na guerra civil se tinha desmoronado. Não encontrara o Sully e muito menos o Henrique IV. Sentia tambem que o seu pensamento motriz não residia em nenhuma das pessoas que encontrara. Todos tinham vindo ou com pueris pensamentos politicos, ou por interesse; nada de superior os animava. Mesmo entre os moços, que eram muitos, se não havia baixo interesse, existia uma adoração fetichica pela forma republicana, um exagero das virtudes della, um pendor para o despotismo que os seus estudos e meditações não podiam achar justos. Era grande a sua desillusão.
Os prisioneiros se amontoavam nas antigas salas de aulas e alojamentos dos aspirantes. Havia simples marinheiros; havia inferiores; havia, escreventes e operarios de bordo. Brancos, pretos, mulatos, caboclos, gente de todas as cores e todos os sentimentos, gente que se tinha incitado em tal aventura pelo habito de obedecer, gente inteiramente extranha á questão em debate, gente arrancada á força aos lares ou á calaçaria das ruas, pequeninos, tenros, ou que se haviam alistado por miseria; gente ignara, simples, ás vezes cruel e perversa como crianças inconscientes; ás vezes, boa e docil como um cordeiro, mas, enfim, gente sem responsabilidade, sem anceio politico, sem vontade propria, simples automatos nas mãos dos chefes e superiores que a tinham abandonado á mercê do vencedor.
De tarde, elle ficava a passear, olhando o mar. A viração soprava ainda e as gaivotas continuavam a pescar. Os barcos passavam. Ora, eram lanchas fumarentas que lá iam para fundo da bahia; ora pequenos botes ou canôas, roçando carinhosamente a superficie das aguas, pendendo para lá e para cá, como se as suas alvas velas enfunadas quizessem afagar a espelhenta superficie do abysmo. Os Orgãos vinham suavemente morrendo na violeta macia; e o resto era azul, um azul immaterial que inebriava, embriagava, como um licor capitoso.
Ficava assim um tempo longo, a ver, e quando se voltava, olhava a cidade que entrava na sombra, aos beijos sangrentos do occaso.
A noite chegava e Quaresma continuava a passear na borda do mar, meditando, pensando, soffrendo com aquelles lembranças de odios, de sangueiras e ferocidade.
A sociedade e a vida pareceram-lhe cousas horrorosas, e imaginou que do exemplo dellas vinham os crimes que aquella punia, castigava e procurava restringir. Eram negras e desesperadas, as suas idéas; muita vez julgou que delirava.
E então se lamentava por estar sósinho, par não ter um companheiro com quem conversar, que lhe fizesse fugir aquelles tristes pensamentos que o assediavam e se chiavam transformando em obsessão.
Ricardo estava de guarnição na ilha das Cobras: e, mesmo que ali estivesse, os rigores da disciplina não lhe permittiriam uma conversa mais amigavel. Vinha a noite inteiramente, e o silencio e a treva envolviam tudo.
Quaresma ainda ficava horas ao ar livre a pensar, olhando o fundo da bahia, onde quasi não havia luzes que interrompessem a continuidade do negror nocturno.
Fixava bem os olhos para lá, como se os quizesse habituar a peneirar nas cousas indecifraveis e adivinhar dentro da sombra negra a forma das montanhas, o recorte das ilhas que a noite tinha feito desapparecer.
Fatigado, ia dormir. Nem sempre dormia bem; tinha insomnias e, se queria ler, a attenção recusava fixar-se e o pensamento vagabundava muito longe do livro.
Certa noite em que ia dormindo melhor, um inferior veiu accordal-o pela madrugada:
—Sr. Major, está ahi o home do Itamaraty.
—Que homem?
—O official que vem buscar a turma do Boqueirão.
Sem attinar bem do que se tratava, levantou-se e foi ao encontro do visitante. O homem já estava no interior de um dos alojamentos. Uma escolta estava á porta. Seguiam-no algumas praças, das quaes uma levava uma lanterna que derramava no salão uma fraca luzerna amarellada. A vasta sala estava cheia de corpos, deitados, semi-nus, e havia todo o iris das cores humanas. Uns roncavam, outros dormiam sómente; e quando Quaresma entrou, houve alguém que em sonho, gemeu—ai! Cumprimentaram-se Quaresma e o emissario do Itamaraty, e nada disseram. Ambos tiveram medo de falar. O official despertou um dos prisioneiros e disse para as praças: Levem este.
Seguiu adiante e despertou outro:—onde você esteve? Eu—respondeu o marinheiro—na «Guanabara»... Ah! patife, acudiu o homem do Itamaraty... Este tambem... Levem!...
Os soldados conductores iam até á porta, deixaram o prisioneiro e voltavam.
O official passou por uma porção delles e não fez reparo: adiante, deu com um rapaz claro, franzino, que não dormia. Gritou então: levante-se! O rapaz ergueu-se tremendo.—Onde esteve você? perguntou.—Eu era enfermeiro, retrucou o rapaz.—Que enfermeiro! fez o emissario. Levem este tambem...
—Mas, seu Tenente, deixe-me escrever á minha mãe, pediu o rapaz quasi chorando.
—Que mãe respondeu o homem do Itamaraty. Siga! Vá!
E assim foi uma duzia, escolhida a esmo, ao acaso, cercada pela escolta, a embarcar num batelão que uma lancha logo rebocou para fóra das aguas da ilha.
Quaresma não atinou de prompto com o sentido da scena e foi, após o afastamento da lancha, que elle encontrou uma explicação.
Não deixou de pensar então por que força mysteriosa, por que injuncção ironica elle se tinha misturado em tão tenebrosos acontecimentos, assistindo ao sinistro alicerçar do regimen...
A embarcação não ia longe. O mar gemia demoradamente de encontro as pedras do caes. A esteira da embarcação estrellejava phosphorescente. No alto, num céo negro e profundo, as estrellas brilhavam serenamente.
A lancha desappareceu nas trevas do fundo da bahia. Para onde ia? Para o Boqueirão...
Como lhe parecia illogico com elle mesmo estar ali mettido naquelle estreito calabouço. Pois elle, o Quaresma placido, o Quaresma de tão profundos pensamentos patrioticos, merecia aquelle triste fim? De que maneira sorrateira o Destino o arrastara até ali, sem que elle pudesse presentir o seu extravagante proposito, tão apparentemente sem relação com o resto da sua vida? Teria sido elle com os seus actos passados, com as suas acções encadeiadas no tempo, que fizera com que aquelle velho deus docilmente o trouxesse até á execução de tal designio? Ou teriam sido os factos externos, que venceram a elle, Quaresma, e fizeram-n'o escravo da sentença da omnipotente divindade? Elle não sabia, e, quando teimava em pensar, as duas cousas se baralhavam, se emmaranhavam e a conclusão certa e exacta lhe fugia.
Não estava ali ha muitas horas. Fôra preso pela manhã, logo ao erguer-se da cama; e, pelo calculo approximado do tempo, pois estava sem relogio e mesmo se o tivesse não poderia consultal-o á fraca luz da masmorra, imaginava podiam ser onze horas.
Porque estava preso? Ao certo não sabia; o official que o conduzira, nada lhe quizera dizer; e, desde que sahira da ilha das Enxadas para a das Cobras, não trocara palavra com ninguem, não vira nenhum conhecido no caminho, nem o proprio Ricardo que lhe podia, com um olhar, com um gesto, trazer socego ás suas duvidas. Entretanto, elle attribuia a prisão á carta que escrevera ao Presidente, protestando contra a scena que presenciara na vespera.
Não se pudera conter. Aquella leva de desgraça a sahir assim, as deshonras, escolhidos a esmo, para uma carniçaria distante, falara fundo a todos os seus sentimentos puzera diante dos seus olhos todos os seus principios moraes; desafiara a sua coragem moral e a sua solidariedade humana: e elle escrevera a carta com vehemencia, com paixão, indignado. Nada omittiu do seu pensamento: falou claro, franca e nitidamente.
Deve ser por isso que elle estava ali naquella masmorra, engaiolado, trancafiado, isolado dos seus semelhantes como uma féra, como um criminoso, sepultado na treva, soffrendo humidade, misturado com os seus detrictos quasi sem comer... Como acabarei? Como acabarei? E a pergunta lhe vinha, no meio da revoada de pensamentos que aquella angustia provocava pensar. Não havia base para qualquer hypothese. Era de conducta tão irregular e incerta o Governo que tudo elle, podia esperar: a liberdade ou a morte, mais esta que aquella.
O tempo estava de morte, de carnificina; todos tinham sêde de matar, para affirmar mais a victoria e sentil-a bem na consciencia cousa sua, propria, e altamente honrosa.
Iria morrer, quem sabe se naquella noite mesmo. E que tinha elle feito de sua vida? Nada. Levara toda ella atraz da miragem de estudar a patria, por amal-a e querel-a muito, no intuito de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua virilidade tambem; e, agora que estava na velhice, como ella o recompensava, como ella o premiava, como ella o condecorava? Matando-o. E o que não deixara de ver, de gosar, de fruir, na sua vida? Tudo. Não brincara, não pandegara, não amara—todo esse lado da existencia que parece fugir um pouco á sua tristeza necessaria, elle não vira, elle não provara, elle não experimentara.
Desde dezoito annos que o tal patriotismo lhe absorvia e por elle fizera a tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois que fossem... Em que lhe contribuiria para a felicidade saber o nome dos heróes do Brasil? Em nada... O importante é que elle tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas cousas de tupy, do folk lore, das suas tentativas agricolas... Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!
O tupy encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escarneo; e levou-o á loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ella não era facil como diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois elle não a viu combater como féras? Pois não a via matar prisioneiros, innumeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma serie, melhor, um encadeiamento de decepções.
A patria que quizera ter era um mytho; era um fantasma criado por elle no silencio do seu gabinete. Nem a physica, nem a moral, nem a intellectual, nem a politica que julgava existir, havia. A que existia de facto, era a do Tenente Antonino, a do Dr. Campos, a do homem do Itamaraty.
E, bem pensando, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a Patria? Não teria levado toda a sua vida norteado por uma illusão, por uma idéa a menos, sem base, sem apoio, por um Deus ou uma Deusa cujo imperio se esvaia? Não sabia que essa idéa nascera da amplificação da crendice dos povos grego-romanos de que ancestraes mortos continuaram a viver como sombras e era preciso alimental-as para que elles não perseguissem os descendentes? Lembrou-se do seu Fustel de Conlangos... Lembrou-se de que essa noção nada é para os menenanan, para tantas pesos... Pareceu-lhes que essa idéa como que fôra explorada pelos conquistadores por instantes sabedores das nossas subserviencias psychologicas, no intuito de servir ás suas proprias ambições...
Reviu a historia; viu as mutilações, os accrescimos em todos os paizes historicos e perguntou de si para si; como um homem que vivesse quatro seculos, sendo francez, inglez, italiano, allemão, podia sentir a Patria?
Uma hora, para o francez, o Franco-Condado era terra dos seus avós, outra não era; num dado momento, a Alsacia não era, depois era e afinal não vinha a ser.
Nós mesmos não tivemos a Cisplatina e não a perdemos; e, porventura, sentimos que haja lá manes dos nossos avós e por isso soffremos qualquer magua?
Certamente era uma noção sem consistencia racional e precisava ser revista.
Mas, como é que elle tão sereno, tão lucido, empregara sua vida, gastara o seu tempo, envelhecera atraz de tal chimera? Como é que não viu nitidamente a realidade, não a presentiu logo e se deixou enganar, por um falaz idolo, absorver-se nelle, dar-lhe em holocausto toda a sua existencia? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira!
Nada deixava que affirmasse a sua passagem e a terra não lhe dera nada de saboroso.
Comtudo, quem sabe se outros que lhe seguissem pegadas não seriam mais felizes? E logo respondeu a si mesmo: mas como? Se não se fizera communicar, se nada dissera e não prendera o seu sonho, dando-lhe corpo e substancia?
E esse seguimento adiantaria alguma cousa? E essa continuidade traria enfim para a terra alguma felicidade? Ha quantos annos vidas mais valiosas que a delle, se vinham offerecendo, sacrificando e as cousas ficaram na mesma, a terra, na mesma miseria, na mesma oppressão, na mesma tristeza.
E elle se lembrava que ha bem cem annos, ali, naquelle mesmo logar onde estava, talvez naquella mesma prisão, homens generosos e illustres estiveram presos por quererem melhorar o estado de cousas de seu tempo. Talvez só tivessem pensado, mas soffreram pelo seu pensamento. Tinha havido vantagem? As condições geraes tinham melhorado? Apparentemente sim: mas, bem examinado, não.
Aquelles homens, accusados de crime tão nefando em face da legislação da época, tinham levado dous annos a ser julgados; e elle, que não tinha crime algum, nem era ouvido, nem era julgado: seria simplesmente executado!
Fôra bom, fôra generoso, fôra honesto, fôra virtuoso—elle que fôra tudo isso, ia para a cova sem o acompanhamento de um parente, de um amigo, de um camarada...
Onde estariam elles? Sobre o Ricardo Coração dos Outros, tão simples e tão innocente na sua mania de violão, elle não poria mais os olhos? Era tão bom que o pudesse, para mandar á sua irmã o ultimo recado, ao preto Anastacio um adeus, á sua afilhada um abraço! Nunca mais vel-os-ia, nunca!
E elle chorou um pouco.
Quaresma, porem, enganava-se em parte. Ricardo soubera de sua prisão e procurava soltal-o. Teve noticia do exacto motivo della; mas não se intimidou. Sabia perfeitamente que corria grande risco, pois a indignação no palacio contra Quaresma fôra geral. A victoria tinha feito os victoriosos inclementes e ferozes, e aquelle protesto soou entre elles como um desejo de diminuir o valor das vantagens alcançadas. Não havia mais piedade, não havia mais sympathia, nem respeito pela vida humana; o que era necessario era citar o exemplo de um massacre á turca, porém clandestino, para que jamais o poder constituido fosse atacado ou mesmo discutido. Era a philosophia social da época, com forças de religião, com os seus fanaticos, com os seus sacerdotes e pregadoras, e ella agia com a maldade de uma crença forte, sobre a qual fizessemos repousar a felicidade de muitos.
Ricardo, entretanto, não se amedrontou; procurou influencias e amigos. Ao entrar no largo de S. Francisco encontrou Genelicio. Vinha da missa da irmã da sogra do deputado Castro. Como sempre, trajava uma pesada sobrecasaca preta que parecia de chumbo. Já estava sub-director e o seu trabalho era agora imaginar meios e modos de ser director. A cousa era difficil; mas trabalhava num livro: «Os Tribunaes de Contas nos Paizes asiaticos»—o qual, demonstrando uma erudição superior, talvez lhe levasse ao alto logar cubiçado.
Vendo-o, Ricardo não se deteve. Correu-lhe ao encalço e falou-lhe:
—Doutor, V. Ex. dá licença que lhe dê uma palavra?
Genelicio perfilou-se todo e, como tivesse pessima memoria das physionomias humildes, perguntou com solemnidade e arrogancia:
—Que deseja, camarada?
Coração dos Outros estava com a sua farda do «Cruzeiro do Sul» e não ficava bem a Genelicio dar-se como conhecido de um soldado, O trovador julgou-o mesmo esquecido e indagou ingenuamente:
—Não me conhece mais, doutor?
Genelicio fechou um pouco os olhos por detraz do pince-nez azulado e disse seccamente:
—Não.
—Eu, fez com humildade Ricardo, sou Ricardo Coração dos Outros, que cantou no seu casamento.
Genelicio não sorriu, não deu mostras de alegria e limitou-se:
—Ah? É o senhor! Bem: que deseja?
—O senhor não sabe que o Major Quaresma está preso?
—Quem é?
—Aquelle que foi vizinho do seu sogro.
—Aquelle maluco... Ahn!... E d'ahi?
—Eu queria que o senhor se interessasse...
—Não me metto nessas cousas, meu amigo. O Governo tem sempre razão. Passe bem.
E Genelicio seguiu com o seu passo cauteloso de quem poupa as solas das botas, emquanto Ricardo ficava de pé a olhar o largo, a gente que passava, a estatua immovel, as casas feias, a igreja... Tudo lhe pareceu hostil, máo ou indifferente; aquellas caras de homens tinham cataduras de feras e elle quiz por um momento chorar de desespero por não poder salvar o amigo.
Lembrou-se, porém, de Albernaz, e correu a procural-o. Não era longe, mas o General ainda não tinha chegado. Ao fim de uma hora o General chegou e, dando com Ricardo, perguntou:
—Que ha?
O trovador, bastante emocionado, explicou-lhe com voz dorida todo o facto. Albernaz concertou o pince-nez, ageitou bem o trancelim de ouro na orelha e disse com doçura:
—Meu filho, eu não passo... Você sabe: sou governista e parece, se eu fôr pedir por um preso, que já não o sou bastante... Sinto muito, mas... que se ha de fazer? Paciencia.
E entrou para o seu gabinete prazenteiro, muito seguro de si, dentro do seu placido uniforme de General.
Os officiaes continuavam a entrar e a sahir; as campainhas soavam; os continuos iam r vinham; e Ricardo procurava entre todas aquellas physionomias uma que lhe pudesse valer. Não havia e elle desesperava. Mas quem havia de ser? Quem? Lembrou-se: o commandante; e foi ter com o Coronel Bustamante, na velha estalagem que servia de quartel ao garboso «Cruzeiro do Sul».
O batalhão ainda continuava em pé de guerra. Embora terminada a revolta no porto do Rio de Janeiro era preciso mandar forças para o Sul, de forma que os batalhões não tinham sido dissolvidos e um dos apontados para partir era o «Cruzeiro».
O Alferes côxo, no ensaboado pateo da antiga estalagem, continuava na sua faina de instructor dos novos recrutas. Hom—brôoo... armas! Mei—ãã volta!
Ricardo entrou, subiu rapidamente a oscillante escada do velho cortiço e logo que chegou ao cubiculo do commandante, gritou: com licença, Commandante!
Bustamante andava de máo humor. Aquelle negocio de partir para o Paraná não lhe agradava. Como é que havia de superintender a escripta do batalhão, no fervor de batalhas, nas desordens de marchas e contramarchas? Isso era uma tolice do Commandante marchar; o chefe devia ficar a resguardo, para providenciar e dirigir a escripturação.
Elle pensava nessas cousas, quando Ricardo pediu licença.
—Entre, disse elle.
O bravo Coronel coçava a grande barba mosaica, tinha o dolman desabotoado e acabava de calçar um dos pes de botina, para com mais decencia receber o inferior.
Ricardo expoz o seu pedido r esperou com paciencia a resposta, que custou a vir. Por fim, Innocencio disse sacudindo a cabeça e olhando o inferior cheio, de severidade:
—Vai-te embora, senão mando-te prender! Já!
E apontou com o dedo a porta da sahida num gesto marcial e energico. O cabo não se demorou mais. No pateo o instructor coso, veterano do Paraguay, continuava com solemnidade a encher a arruinada estalagem com as suas vozes de commando: Hom-brõo... armas! Mei—ãã... volta... volver!
Ricardo veiu andando triste e desalentado. O mundo lhe parecia vasio de afecto e de amor. Elle que sempre decantara nas suas modinhas a dedicação, o amor, as sympathias, via agora que taes sentimentos não existiam, tinha marchado atraz de cousas fóra da realidade, de chimeras. Olhou o céo alto. Estava tranquillo e calmo. Olhou as arvores. As palmeiras cresciam com orgulho e titanicamente pretendiam attingir o céo. Olhou as casas, as igrejas, os palacios e lembrou-se das guerras, do sangue, das dores que tudo aquillo custara. E era assim que se fazia a vida, a historia e o heroismo: com violencia sobre os outros, com oppressões e soffrimentos.
Logo, porém, recordou que era preciso salvar o amigo que era necessario dar mais uns passos. Quem poderia? Consultou sua memoria. Viu um, viu outro e por fim lembrou-se da afilhada de Quaresma, e foi procural-a na Real Grandeza.
Chegou, narrou-lhe o facto e as suas sinistras apprehensões. Ella estava só, pois o marido cada vez mais trabalhava para aproveitar os despojos da victoria; não perdia um minuto, andando atraz de um e de outro.
Olga lembrou-se bem do padrinho, do seu eterno sonhar, da sua ternura, da tenacidade que punha em seguir as suas idéas, da sua candura de donzella romantica...
Durante um instante uma grande pena tomou-a toda inteira e tirou-lhe a vontade de agir. Pareceu-lhe que era bastante a sua piedade e ela ia de algum modo dar lenitivo ao soffrimento do padrinho; mas bem cedo o viu ensanguentado—elle, tão generoso, elle, tão bom, e pensou em salval-o.
—Mas que fazer, meu caro sr. Ricardo, que fazer? Eu não conheço ninguem... Eu não tenho relações... Minhas amigas... A Alice, a mulher do Dr. Brandão, está fora... A Cassilda, a filha do Castrioto, não pode... Não sei, meu Deus!
E accentuou estas ultimas palavras com grande e lancinante desespero. Os dous ficaram calados. A moça, que estava sentada, tomou a cabeça entre as mãos e as sua unhas longas e aperoladas engastaram-se nos seus cabellos negros. Ricardo estava de pé e aparvalhado.
—Que hei de fazer, meu Deus? repetiu ella.
Pela primeira vez, ella sentiu que a vida tinha cousa desesperadoras. Possuia a mais forte disposição de salvar seu padrinho; faria sacrificio de tudo, mas era impossivel, impossivel! Não havia um meio; não havia um caminho. Ella tinha que ir para o posto de supplicio, tinha que subir o seu Calvario, sem esperança de ressurreição.
—Talvez seu marido, disse Ricardo.
Pensou um pouco, demorou-se mais no exame do caracter do esposo; mas, em breve, viu bem que o seu egoismo, a sua ambição e a sua ferocidade interesseira não pemittiriam que elle désse o minimo passo.
—Qual, esse...
Ricardo não sabia o que aconselhal-a e olhava sem pensamento os moveis e a montanha negra e alta que se avistava da sala onde estavam. Queria encontrar um alvitre, um conselho; mas nada!
A moça continuava a cravar os dedos nos seus cabellos negros e a olhar a mesa em que repousavam os seus cotovellos. O silencio era augusto.
Num dado momento, Ricardo teve uma grande alegria no olhar e disse:
—Se a senhora fosse lá...
Ella levantou a cabeça; os seus olhos se dilataram, de espanto e o rosto lhe ficou rigido. Pensou um pouco, um nada, e falou com firmeza:
—Vou.
Ricardo ficou só e sentou-se. Olga foi vestir-se.
Elle então pensou com admiração naquella moça que por simples amizade se dava a tão arriscado sacrificio, que tinha a alma tão ao alcance della mesma e a sentiu bem longe desse nosso mundo, deste nosso egoismo, dessa nossa baixeza e cobriu a sua imagem com um grande olhar de reconhecimento.
Não tardou que ella ficasse prompta e ainda abotoava as luvas, na sala de jantar, quando o marido entrou. Vinha radiante, com os seus grandes bigodes e o seu rosto redondo cheio de satisfação de si mesmo. Nem fez menção de ter visto Ricardo e foi logo direito á mulher:
—Vaes sahir?
Ella, afogueada pela ancia desesperada de salvar Quaresma, disse com certa vivacidade:
—Vou.
Armando ficou admirado de vel-a falar daquelle modo. Voltou-se um instante para Ricardo, quiz interrogal-o, mas logo, dirigindo-se á mulher, perguntou com autoridade:
—Onde vaes?
A mulher não lhe respondeu logo e, por sua vez, o doutor interrogou o trovador:
—Que faz o senhor aqui?
Coração dos Outros não teve animo de responder; adivinhava uma scena violenta que elle teria querido evitar; mas Olga adiantou-se:
—Vai acompanhar-me ao Itamaraty, para salvar da norte meu padrinho. Já sabe?
O marido pareceu acalmar-se. Acreditou que, com meios suasorios, poderia evitar que a mulher désse passo tão perigoso para os seus interesses e ambições. Falou docemente:
—Fazes mal.
—Porque? perguntou ella com calor.
—Vaes comprometter-me. Sabes que...
Ella, não lhe respondeu logo e mirou-o um instante com os seus grandes olhos cheios de escarneo; mirou-o um, dous minutos; depois, riu-se um pouco e disse:
—É isto! Eu, porque eu, porque eu, é só eu para aqui, eu para ali... Não pensas noutra coisa... A vida é feita para ti, todos só devem viver para ti... Muito engraçado! De forma que eu (agora digo eu tambem) não tenho direito de me sacrificar, de provar a minha amizade, de ter na minha vida um traço superior? É interessante! Não sou nada, nada! Sou alguma coisa como um movel, um adorno, não tenho relações, não tenho amizades, não tenho caracter? Ora!...
Ella falava, ora vagarosa e irónica, ora rapidamente e apaixonada: e o marido tinha diante de suas palavras um grande espanto. Elle vivera sempre tão longe della que não a julgara nunca capaz de taes assomos. Então aquella menina? Então aquelle bibelot? Quem lhe teria ensinado taes cousas? Quiz desarmal-a com uma ironia e disse risonho:
—Estás no theatro?
Ella lhe respondeu logo:
—Se é só no theatro que ha grandes cousas, estou.
E accrescentou com força:
—É o que te digo: vou e vou, porque devo, porque quero, porque é do meu direito.
Apanhou a sombrinha, concertou o véo e sahiu solemne, firme, alta e nobre. O marido não sabia o que fazer. Ficou assombrado e assombrado e silencioso viu-a sahir pela porta fóra.
Em breve, estava no palacio da rua Larga. Ricardo não entrou; deixou que a moça o fizesse e foi esperal-a no Campo de Sant'Anna.
Ella subiu. Havia um immenso borborinho, uma agitação de entradas e sahidas. Toda a gente queria mostrar-se a Floriano, queria cumprimental-o, queria dar mostras da sua dedicação, provar os seus serviços, mostrando-se coparticipante na sua victoria. Lançavam mão de todos os meios, de todos os planos, de todos os processos. O dictador tão accessivel antes, agora se esquivava. Havia quem lhe quisesse beijar as mãos, como ao papa ou a um imperador; e elle já tinha nojo de tanta subserviencia. O califa não se suppunha sagrado e aborrecia-se.
Olga falou aos continuos, pedindo ser recebida pelo Marechal. Foi inutil. A muito custo conseguiu falar a um secretario ou ajudante de ordens. Quando ella lhe disse a que vinha, a physionomia terrosa do homem tornou-se de óca e sob as suas palpebras correu um firme e rapido lampejo de espada:
—Quem, Quaresma? disse elle. Um traidor! Um bandido!
Depois, arrependeu-se da vehemencia, fez com certa delicadeza:
—Não é possivel, minha senhora. O Marechal não a attenderá.
Ella nem lhe esperou o fim da phrase. Ergueu-se orgulhosamente, deu-lhe as costas e teve vergonha de ter de pedir, de ter descido do seu orgulho e ter enxovalhado a grandeza moral do padrinho com o seu pedido. Com tal gente, era melhor tel-o deixado morrer só e heroicamente num ilhéo qualquer, mas levando para o tumulo inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua personalidade moral, sem a macula de um empenho que diminuisse a injustiça de sua morte, que de algum modo fizesse crer aos seus algozes que elles tinham direito de matal-o.
Sahiu e andou. Olhou o céo, os ares, as arvores de Santa Thereza, e se lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribus selvagens, das quaes um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil inimigos. Fôra ha quatro seculos. Olhou de novo o céo, os ares, as arvores de Santa Thereza, as casas, as igrejas: viu os bondes passarem; uma locomotiva apitou; um carro, puxado por uma linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do Campo... Tinha havido grandes e innumeras modificações. Que fôra aquelle parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na physionomia da terra, talvez no clima... Esperemos mais, pensou ella; e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros.
Todos os Santos (Rio de Janeiro), Janeiro—Março de 1911.