Title: Helena
Author: Machado de Assis
Release date: January 14, 2022 [eBook #67162]
Most recently updated: October 18, 2024
Language: Portuguese
Original publication: Brazil: B.L. GARNIER
Credits: Laura Natal Rodrigues (Images generously made available by the Biblioteca Brasiliana USP Digital.)
CAPITULO I
CAPITULO II
CAPITULO III
CAPITULO IV
CAPITULO V
CAPITULO VI
CAPITULO VII
CAPITULO VIII
CAPITULO IX
CAPITULO X
CAPITULO XI
CAPITULO XII
CAPITULO XIII
CAPITULO XIV
CAPITULO XV
CAPITULO XVI
CAPITULO XVII
CAPITULO XVIII
CAPITULO XIX
CAPITULO XX
CAPITULO XXI
CAPITULO XXII
CAPITULO XXIII
CAPITULO XXIV
CAPITULO XXV
CAPITULO XXVI
CAPITULO XXVII
CAPITULO XXVIII
O conselheiro Vale morreu ás 7 horas da noite de 25 de abril de 1859. Morreu de apoplexia fulminante, pouco depois de cochilar a sesta,—segundo costumava dizer,—e quando se preparava a ir jogar a usual partida de voltarete em casa de um desembargador, seu amigo. O Dr. Camargo, chamado á pressa, nem chegou a tempo de empregar os recursos da sciencia; o padre Melchior não pôde dar-lhe as consolações da religião: a morte fôra instantanea.
No dia seguinte fez-se o entêrro, que foi um dos mais concorridos que ainda viram os moradores do Andarahy. Cêrca de duzentas pessoas acompanharam o fim do até a morada ultima, achando-se representadas entre ellas as primeiras classes da sociedade. O conselheiro, posto não figurasse em nenhum grande cargo do Estado, occupava elevado logar na sociedade, pelas relações adquiridas, cabedaes, educação e tradicções de familia. Seu pae fora magistrado no tempo colonial, e figura de certa influência na corte do último vice-rei. Pelo lado materno descendia de uma das mais distinctas familias paulistas. Elle proprio exercêra dous empregos, havendo-se com habilidade e decoro, do que lhe adveiu a carta de conselho e a estima dos homens publicos. Sem embargo do ardor político do tempo, não estava ligado a nenhum dos dous partidos, conservando em ambos preciosas amizades, que alli se acharam na occasião de o dar á sepultura. Tinha, entretanto, taes ou quaes ideias políticas, colhidas nas fronteiras conservadoras e liberaes, justamente no ponto em que os dous dominios podem confundir-se. Se nenhuma saudade partidaria lhe deitou a ultima pa de terra, matrona houve, e não só ama, que viu ir a enterrar com elle a melhor página de sua mocidade.
A familia do conselheiro compunha-se de duas pessoas: um filho, o Dr. Estacio, e uma irmã, D. Ursula. Contava ésta cincoenta e poucos annos; era solteira; vivêra sempre com o irmão, cuja casa dirigia desde o fallecimento da cunhada. Estacio tinha vinte e sete annos, e era formado em mathematicas. O conselheiro tentára encarreiral-o na política, depois na diplomacia; mas nenhum desses projectos teve começo de execução.
O Dr. Camargo, médico e velho amigo da casa, logo que regressou do entêrro, foi ter com Estacio, a quem encontrou no gabinete particular do finado, em companhia de D. Ursula. Tambem a dor tem suas voluptuosidades; tia e sobrinho queriam nutril-a com a presença dos objectos pessoaes do morto, no logar de suas predilecções quotidianas. Duas tristes luzes alumiavam aquella pequena sala. Alguns momentos correram de profundo silêncio entre os tres. O primeiro que o rompeu foi o médico.
—Seu pai deixou testamento?
—Não sei, respondeu Estacio.
Camargo mordeu a ponta do bigode, duas ou tres vezes, gesto que lhe era habitual quando fazia alguma reflexão.
—É preciso procural-o,—continuou elle.—Quer que o ajude?
Estacio apertou-lhe affectuosamente a mão.
—A morte de meu pai,—disse o moço, não alterou nada as nossas relações. Subsiste a confiança anterior do mesmo modo que a amizade, ja provada e antiga.
A secretária estava fechada; Estacio deu a chave ao médico; este abriu o movel sem nenhuma commoção exterior. Interiormente estava abalado. O que se lhe podia notar nos olhos era uma viva curiosidade, expressão em que, aliás, nenhum dos outros reparou. Logo que começou a revolver os papeis, a mão do médico tornou-se mais febril. Quando achou o testamento, houve em seus olhos um breve lampejo, a que succedeu a serenidade habitual.
—É isso? perguntou Estacio.
Camargo não respondeu logo; olhou para o papel, como a querer adivinhar o conteudo. O silêncio foi muito demorado para não fazer impressão no moço, que alias nada disse, porque o attribuíra á commoção natural do amigo, em tão dolorosas circumstâncias.
—Sabem o que estará aqui dentro? disse enfim Camargo. Talvez uma lacuna ou um grande excesso.
Nem Estacio, nem D. Ursula, pediram ao médico a explicação de semelhantes palavras. A curiosidade, porém, era natural, e o médico pôde le-la nos olhos, de ambos. Não lhes disse nada; entregou o testamento a Estacio, ergueu-se e deu alguns passos na sala, absorvido em suas proprias reflexões, ora arranjando machinalmente um livro da estante, ora mettendo a ponta do bigode entre os dentes, com a vista quêda, alheio de todo ao logar e ás pessoas.
Estacio rompeu o silêncio:
—Mas que lacuna ou que excesso é esse? perguntou ao médico.
Camargo parou deante do moço.
—Não posso dizer nada, respondeu elle. Seria inconveniente antes de saber as últimas disposições de seu pai.
D. Ursula foi menos discreta que o sobrinho; apos longa pausa, pediu ao médico a razão de suas palavras.
—Seu irmão, disse este, era boa alma; tive tempo de o conhecer de perto e apreciar-lhe as qualidades, que as tinha excellentes, Era seu amigo; sei que o era meu. Nada alterou a longa amizade que nos unia, nem a confiança que ambos depositavamos um no outro. Não quizera pois, que o último acto de sua vida fôsse um êrro.
—Um êrro! exclamou D. Ursula.
—Talvez um êrro! suspirou Camargo.
—Mas, doutor, insistiu D. Ursula, porque motivo nos não tranquillisa o espirito? Estou certa de que não se trata de um acto que desdoure a meu irmão; allude naturalmente a algum êrro no modo de entender... alguma cousa, que eu ignoro o que seja. Porque não fala claramente?
O médico viu que D. Ursula tinha razão; e que, a não dizer mais nada, melhor fôra ter-se calado de todo. Tentou dissipar a impressão de extranheza que deixára no ânimo dos dous; mas da hesitação com que falava concluiu Estacio que elle não podia ir além do que havia dito.
—Não precisamos de explicação nenhuma, interveiu o filho do conselheiro; amanhã saberemos tudo.
Nessa occasião entrou o padre Melchior. O médico sahiu ás 10 horas, ficando de voltar no dia seguinte, logo cedo. Estacio, recolhendo-se a seu quarto, murmurava consigo:
—Que êrro será esse? E que necessidade tinha elle de vir lançar-me este enigma no coração?
A resposta, se podesse ouvil-a, era dada nessa mesma occasião pelo proprio Dr. Camargo, ao entrar no carro que o esperava á porta:
—Fiz bem em preparar-lhes o espirito, pensou elle; o golpe, si o houver, ha de ser mais facil de soffrer.
O médico ia só; além disso, era noite, como sabemos. Ninguem pôde ver-lhe a expressão do rosto, que era fechada e meditativa. Exhumou o passado e devassou o futuro; mas de tudo o que reviu e anteviu nada foi communicado a ouvidos extranhos.
As relações do Dr. Camargo com a familia do conselheiro eram estreitas e antigas, como dissera Estacio. O médico e o conselheiro tinham a mesma edade: cincoenta e quatro annos. Conheceram-se logo depois de tomado o gráo, e nunca mais afrouxara o laço que os prendêra desde esse tempo.
Camargo era pouco sympathico á primeira vista, Tinha as feições duras e frias, os olhos prescrustadores e sagazes, de uma sagacidade incommoda, para quem encarava com elles, o que o não fazia attrahente. Fallava pouco e sêcco. Seus sentimentos não vinham á flor do rosto. Tinha todos os visiveis signaes de um grande egoista; comtudo, posto que a morte do conselheiro não lhe arrancasse uma lagryma ou uma palavra de tristeza, é certo que a sentiu devéras. Além disso, amava sobre todas as cousas e pessoas uma creatura linda,—a linda Eugenia, como lhe chamava,—sua filha unica e a flor de seus olhos; mas amava-a de um amor calado e recondito. Era difficil saber se Camargo professava algumas opiniões políticas ou nutria sentimentos religiosos. Das primeiras, se as tinha, nunca deu manifestação prática; e no meio das lutas de que fôra cheio o decennio anterior, conservara-se indifferente e neutral. Quanto aos sentimentos religiosos, a aferil-os pelas acções, ninguem os possuia mais puros. Era pontual no cumprimento dos deveres de bom catholico. Mas só pontual; interiormente era incredulo.
Quando Camargo chegou a casa, no Rio Comprido, achou sua mulher,—D. Thomasia,—meio adormecida n'uma cadeira de balanço e Eugenia ao piano, executando um trecho de Bellini. Eugenia tocava com habilidade; e Camargo gostava de a ouvir. Naquella occasião, porém, disse ele, parecia pouco conveniente que a moça se entregasse a um genero de recreio qualquer. Eugenia obedeceu, algum tanto de ma vontade. O pai, que se achava ao pe do piano, pegou-lhe nas mãos, logo que ella se levantou, e fitou-lhe uns olhos amorosos e profundos, como ella nunca lhe víra.
—Não fiquei triste pelo que me disse, papae,—observou a moça. Tocava por distrahir-me. D. Ursula como está? Ficou tão afflicta! Mamãe queria demorar-se mais tempo; mas eu confesso que não podia ver a tristeza daquella casa.
—Mas a tristeza é necessaria á vida,—acudiu D. Thomasia, que abrira os olhos logo á entrada do marido. As dores alheias fazem lembrar as proprias, e são um correctivo da alegria, cujo excesso póde engendrar o orgulho.
Camargo temperou ésta philosophia, que lhe pareceu demasiado austera, com algumas ideias mais accommodadas e risonhas.
—Deixemos a cada edade a sua atmosphera propria, concluiu elle, e não antecipemos a da reflexão, que é tornar infelizes os que ainda não passaram do puro sentimento.
Eugenia não comprehendeu o que os dous haviam dito. Seus olhos voltaram-se para o piano, com uma expressão de saudade irritada. Com a mão esquerda, assim mesmo de pe, extrahiu vagamente tres ou quatro notas das teclas suas amigas. Camargo tornou a fital-a com desusada ternura; a fronte sombria pareceu alumiar-se de uma irradiação interior. A moça sentiu-se enlaçada nos braços delle; deixou-se ir. Mas a expansão era tão nova, que ella ficou assustada e perguntou com voz trémula.
—Aconteceu la alguma cousa?
—Absolutamente nada, respondeu Camargo dando-lhe um beijo na testa.
Era o primeiro beijo,—ao menos o primeiro de que a moça tinha memoria. A caricia encheu-a de orgulho filial; mas a propria novidade della impressionou-a mais. Eugenia não creu no que lhe dissera seu pai. Viu-o ir sentar-se ao pe de D. Thomasia e conversarem em voz baixa. Approximando-se, não interrompeu a conversa, que elles continuaram no mesmo tom, e versava sobre assumptos puramente domesticos. Percebeu-o; contudo não ficou tranquilla. Na manhã seguinte escreveu um bilhete, que foi logo caminho do Andarahy. A resposta, que lhe chegou ás mãos no momento em que provava um vestido novo, teve a cortezia de esperar que ella terminasse a operação. Lida finalmente, dissipou todos os receios da vespera.
No dia seguinte foi aberto o testamento com todas as formalidades legaes. O conselheiro nomeava testamenteiros Estacio, o Dr. Camargo e o padre Melchior. As disposições geraes nada tinham que fôsse notavel: eram legados pios ou beneficentes, lembranças a amigos, dotes a afilhados, missas por sua alma e pela de seus parentes.
Uma disposição havia, porém, verdadeiramente importante. O conselheiro declarava reconhecer uma filha natural, de nome Helena, havida em D. Angela da Soledade. Ésta menina estava sendo educada em um collegio de Botafogo. Era declarada herdeira da parte que lhe tocasse de seus bens, e devia ir viver com a familia, a quem o conselheiro instantemente pedia que a tratasse com desvello e carinho, como se de seu matrimonio fôsse.
A leitura desta disposição causou natural espanto á irmã e ao filho do finado. D. Ursula nunca soubéra de tal filha. Quanto a Estacio ignorava menos que a tia. Ouvira uma vez falar em uma filha de seu pae; mas tão vagamente que não podia esperar aquella disposição testamentária.
Ao espanto succedeu em ambos outra e differente impressão. D. Ursula reprovou de todo o acto do conselheiro. Parecia-lhe que, a despeito dos impulsos naturaes o licenças juridicas, o reconhecimento de Helena era um acto de usurpação e um péssimo exemplo. A nova filha era, em seu entender, uma intrusa, sem nenhum direito ao amor dos parentes; quando muito, concordaria em que se lhe devia dar o quinhão da herança e deixal-a á porta. Recebel-a, porém, no seio da familia e de seus castos affectos, legitimal-a aos olhos da sociedade, como ella estava aos da lei, não o entendia D. Ursula, nem lhe parecia que alguem podesse entendel-o. A aspereza destes sentimentos tornou-se ainda maior quando lhe occorreu a origem possivel de Helena, Nada constava da mãe, além do nome; mas essa mulher quem era? em que atalho sombrio da vida a encontrára o conselheiro? Helena seria filha de um encontro fortuito entre duas voluptuosidades, ou nasceria de algum affecto, irregular embora, mas verdadeiro o unico? A éstas interrogações não podia responder D. Ursula; bastava porém, que lhe surgissem no espirito, para lançar nelle o tedio e a irritação.
D. Ursula era eminentemente severa a respeito de costumes. A vida do conselheiro, marchetada de aventuras galantes, estava longe de ser uma página de catecismo; mas o acto final bem podia ser a reparação de leviandades amargas. Essa atenuante não a viu D. Ursula. Para ella, o principal era a entrada de uma pessoa extranha na familia.
A impressão de Estacio foi muito outra. Elle percebêra a ma vontade com que a tia recebêra a noticia do reconhecimento de Helena, e não podia negar a si mesmo que semelhante facto creava para a familia uma nova situação. Contudo, qualquer que ella fôsse, uma vez que seu pai assim o ordenava, levado por sentimentos de equidade ou impulsos da natureza, elle a acceitava tal qual, sem pezar nem reserva. A questão pecuniaria pezou menos que tudo no espirito do moço; não pezou nada. A occasião era dolorosa de mais para dar entrada a considerações de ordem inferior, e a elevação dos sentimentos de Estacio não lhe permittia inspirar-se dellas. Quanto á camada social a que pertencia a mãe de Helena, não se preocupou muito com isso, certo que elles saberiam levantar a filha até á classe a que ella ia subir.
No meio das reflexões produzidas pela disposição testamentária do conselheiro, occorreu a Estacio a conversa que tivera com o Dr. Camargo. Provavelmente era aquelle o ponto a que alludíra o médico. Interrogado acerca de suas palavras, Camargo hesitou um pouco; mas insistindo o filho do conselheiro:
—Aconteceu o que eu previa, um êrro, disse elle. Não houve lacuna, mas excesso. O reconhecimento dessa filha é um excesso de ternura, muito bonito; mas pouco prático. Um legado era sufficiente; nada mais. A estricta justiça.
—A estricta justiça é a vontade de meu pae, redarguiu Estacio.
—Seu pai foi generoso, disse Camargo; resta saber se podia sel-o á custa de direitos alheios.
—Os meus? Não os allego.
—Se os allegasse seria pouco digno de memoria delle. O que está feito, está feito. Uma vez reconhecida, essa menina deve achar nesta casa familia e affectos de familia. Persuado-me que ella sabera corresponder-lhes com verdadeira dedicação...
—Conhece-a? inqueriu Estacio, cravando no médico uns olhos impacientes de curiosidade.
—Via-a tres ou quatro vezes disse este no fim de alguns segundos; mas era então muito creança. Seu pae fallava-me della como de pessoa extremamente affectuosa e digna de ser amada e admirada. Talvez fossem olhos de pai.
Estacio desejára ainda saber alguma cousa ácerca da mãe de Helena, mas repugnou-lhe entrar em novas indagações. Como os filhos de Noé, lançou uma capa sobre a nudez de seu pae, e tentou encarreirar a conversa para outro assumpto. Camargo, entretanto, insistiu:
—O conselheiro falou-me algumas vezes no projecto de reconhecer Helena; procurei dissuadil-o, mas sabe como elle era obstinado ás vezes em suas resoluções, accrescendo neste caso o natural impulso de amor paterno. O nosso ponto de viste era differente. Não me tenho por homem mau; contudo, entendo que a sensibilidade não póde usurpar o que pertence á razão.
Camargo proferiu éstas palavras no tom sêcco e sentencioso, que tão natural e sem exforço lhe sabia. A velha amizade delle e do finado era sabida de todos; a intenção com que fallava podia ser hostil á familia? Estacio reflectiu algum tempo no conceito que acabava de ouvir ao médico, curta reflexão, que por nenhum modo lhe abalou a opinião ja assentada e expressa. Seus olhos, grandes e serenos, como o espirito que os animava, pousaram benevolamente no interlocutor.
—Não quero saber—disse elle,—se ha excesso na disposição testamentária de meu pae. Se o ha, é legitimo, justificavel pelo menos; elle sabia ser pai; seu amor dividia-se inteiro. Receberei essa irmã, como se fôra creada commigo. Minha mãe faria com certeza a mesma cousa.
Camargo não insistiu. Sôbre ser exforço baldado dissuadir o moço daquelles sentimentos, que aproveitava ja agora discutir e condemnar theoricamente a resolução do conselheiro? Melhor era executal-a lealmente, sem hesitação nem pezar. Isso mesmo declarou elle a Estacio, que o abraçou cordialmente. O médico recebeu o abraço sem constrangimento, mas sem fervor.
Estacio ficára satisfeito comsigo mesmo. Seu caracter vinha mais directamente da mãe que do pai. O conselheiro, se lhe descontarmos a unica paixão forte que realmente teve, a das mulheres, não lhe acharemos, nenhuma outra saliente feição. A fidelidade aos amigos era antes resultado do costume que da consistencia dos affectos. A vida correu-lhe sem crises nem contrastes; nunca achou occasião de experimentar a propria têmpera. Se a achasse, mostraria que a tinha mediana.
A mãe de Estacio era differente; possuíra em alto grau a paixão, a ternura, a vontade, uma grande elevação de sentimentos, com seus toques de orgulho,—daquelle orgulho que é apenas irradiação da consciencia. Vinculada si um homem que, sem embargo do affecto que lhe tinha, despendia o coração em amores adventicios e passageiros, teve a fôrça de vontade necessaria para dominar a paixão e encerrar em si mesma todo o resentimento. As mulheres que são apenas mulheres choram, arrufam-se ou resignam-se; as que tem alguma cousa mais do que a debilidade feminina lutam ou recolhem-se á dignidade do silêncio. Aquella padecia, é certo, mas a elevação de sua alma não lhe permittia outra cousa mais do que um procedimento altivo e calado. Ao mesmo tempo, como a ternura era elemento essencial da sua organisação, concentrou-a toda naquelle unico filho, em quem parecia adivinhar o herdeiro de suas robustas qualidades.
Estacio recebêra affectivamente de sua mãe uma boa parte destas. Não sendo grande talento, deveu á vontade e á paixão do saber a figura notavel que fez entre seus companheiros de estudos. Entregara-se á sciencia com ardor e afinco. Aborrecia a política; era indifferente ao ruido exterior. Educado á maneira antiga o com severidade o recato, passou da adolescencia á juventude sem conhecer as corrupções de espirito nem as influências delecterias da ociosidade; viveu a vida de familia, na edade em que outros, seus companheiros, viviam a das ruas e perdiam em cousas infimas a virgindade das primeiras sensações. Dahi veiu que aos dezoito annos conservava elle tal ou qual timidez infantil, que só tarde perdeu de todo. Mas se perdeu a timidez, ficara-lhe certa gravidade não incompativel com os verdes annos e muito propria de organisações como a delle. Na política seria talvez meio caminho andado para subir aos cargos publicos; na sociedade, fazia com que lhe catassem respeito, o que o levantava a seus proprios olhos. Convem dizer que não era essa gravidade aquella cousa enfadonha, pesada e chata, que os moralistas asseveram ser quasi sempre um symptoma de espirito chocho; era uma gravidade jovial e familiar,—egualmente distante da frivolidade e do tedio, uma compostura do corpo e do espirito, temperada pelo viço dos sentimentos e pela graça das maneiras, como um tronco rijo e recto adornado de folhagens e flores. Junctava ás outras qualidades moraes uma sensibilidade, não feminil e doentia, mas sobria e forte; aspero comsigo, sabia ser terno e mavioso com os outros.
Tal era o filho do conselheiro; e se alguma cousa ha ainda que accrescentar é que elle não cedia nem esquecia nenhum dos direitos e deveres que lhe davam a edade e a classe em que nascêra. Elegante e polido, obedecia á lei do decoro pessoal, ainda nas menores partes della. Ninguem entrava mais correctamente n'uma sala; ninguem saia mais opportunamente. Ignorava a sciencia das nugas, mas conhecia o segrêdo de tecer um comprimento.
Na situação creada pela clausula testamentária do conselheiro, Estacio aceitou a causa da irmã, a quem ja via, sem a conhecer, com olhos differentes dos de Camargo e D. Ursula. Esta communicou ao sobrinho todas as impressões que lhe deixára o acto do irmão. Estacio procurou dissipar-lh'as; repetiu as reflexões oppostas ao médico; mostrou que, ao cabo de tudo, tratava-se de cumprir a derradeira vontade de um morto.
—Bem sei que não ha ja agora outro remedio mais que aceitar essa menina e obedecer ás determinações solemnes de meu irmão, disse D. Ursula quando Estacio acabou de falar. Mas só isso; dividir com ella os meus affectos não sei que possa nem deva fazer.
—Comtudo, ella é do nosso mesmo sangue.
D. Ursula ergueu os hombros como repellindo semelhante consanguinidade. Estacio insistiu em trazel-a a mais benevolos sentimentos. Invocou, além da vontade, a rectidão do espirito de seu pae, que não havia dispor uma cousa contrária á boa fama da familia.
—Além disso, essa menina nenhuma culpa tem de sua origem, e visto que meu pae a legitimou, convem que não se ache aqui como engeitada. Que aproveitariam os com isso? Nada mais do que perturbar a placidez da nossa vida interior. Vivamos na mesma communhão de affectos; e vejamos em Helena uma parte da alma de meu pae, que nos fica para não desfalcar de todo o patrimonio commum.
Nada respondeu a irmã do conselheiro. Estacio percebeu que não mudára os sentimentos da tia, nem era possivel consegui-lo por meio de palavras. Confiou do tempo essa tarefa. D. Ursula ficou triste e só. Apparecendo Camargo dahi a pouco, ella confiou-lhe todo o seu modo de sentir, que o médico interiormente approvava.
—Conheceu a mãe della? perguntou a irmã do conselheiro.
—Conheci.
—Que especie de mulher era?
—Fascinante.
—Não é isso; pergunto-lhe se era mulher de ordem inferior, ou...
—Não sei; no tempo em que a vi não tinha classe e podia pertencer a todas; demais, não a tratei de perto.
—Doutor, disse D. Ursula, depois de hesitar algum tempo;—que me aconselha que faça?
—Que a ame, se ella o merecer, e se puder.
—Oh! confesso-lhe que me ha de custar muito! E merece-lo-ha? Alguma cousa me diz ao coração que essa menina vem complicar a nossa vida; além disso, não posso esquecer que meu sobrinho, herdeiro...
—Seu sobrinho aceita as cousas philosophicamente e até com satisfação. Não comprehendo a satisfação, mas concordo que nada mais ha do que cumprir textualmente a vontade do conselheiro. Não se deliberam sentimentos; ama-se ou aborrece-se, conforme o coração quer. O que lhe digo é que a trate com benevolencia; e caso sinta em si algum affecto, não o suffoque; deixe-se ir com elle. Ja agora não se póde voltar atraz. Infelizmente!
Helena estava a concluir seus estudos; semanas depois determinou a familia que ella viesse para casa. D. Ursula recusou a princípio ir buscal-a; convenceu-a disso o sobrinho, e a boa senhora aceitou a incumbencia depois de alguma hesitação. Em casa foram-lhe preparados os aposentos; e marcou-se uma tarde de segunda-feira para ser a moça transladada a Andarahy. D. Ursula metteu-se na carruagem, logo depois de jantar. Estacio foi nesse dia jantar com o Dr. Camargo, no Rio Comprido. Voltou tarde. Ao penetrar na chacara deu com os olhos nas janellas do quarto destinado a Helena; estavam abertas; havia alguem dentro. Pela primeira vez sentiu Estacio a extranheza da situação creada pela presença daquella meia-irmã e perguntou a si proprio se não era a tia quem tinha razão. Expelliu pouco depois esse sentimento; a memoria do pae restituiu-lhe a benevolencia anterior. Ao mesmo tempo, a ideia de ter uma irmã sorria-lhe ao coração como promessa de venturas novas e desconhecidas. Entre sua mãe e as demais mulheres, faltava-lhe essa creatura intermediaria, que elle ja amava sem conhecer, e que que seria a natural confidente de seus desalentos e esperanças. Estacio contemplou longo tempo as janellas; nem o vulto de Helena appareceu alli, nem elle viu passar a sombra da habitante nova.
Na seguinte manhã, Estacio levantou-se tarde e foi direito á sala de jantar, onde encontrou D. Ursula, pachorrentamente sentada na poltrona de seu uso, ao pe de uma janella, a ler um tomo do Saint-Clair das Ilhas, enternecida pela centesima vez com as tristezas dos desterrados da ilha da Barra; boa gente e moralissimo livro, ainda que enfadonho e massudo, como outros de seu tempo. Com elle matavam as matronas daquella quadra muitas horas compridas do inverno, com elle se encheu muito serão pacífico, com elle se desafogou o coração do muito lagryma sobresalente.
—Veiu? perguntou Estacio.
—Veiu, respondeu a boa senhora fechando o livro. O almôço esfria,—continuou ella dirigindo-se á mucama que alli estava de pe, juncto da mesa; já foram chamar... nhanhã Helena?
—Nhanhã Helena disse que ja vem.
—Ha dez minutos, observou D. Ursula ao sobrinho.
—Naturalmente não tarda, respondeu este. Que tal?
D. Ursula estava pouco habilitada a responder ao sobrinho. Quasi não vira o rosto de Helena; e ésta, logo que alli chegou, recolheu-se ao aposento que lhe deram, dizendo ter necessidade de repouso. O que D. Ursula pôde afiançar foi somente que a sobrinha era moça feita.
Ouviu-se descer a escada um passo rapido, e não tardou que Helena apparecesse á porta da sala de jantar. Estacio estava então encostado á janella que ficava em frente da porta e dava para a extensa varanda, donde se viam os fundos da chacara. Olhou para a tia como esperando que ella os apresentasse um ao outro. Helena detivera-se ao vel-o.
—Menina, disse D. Ursula com o tom mais doce que tinha na voz, este é meu sobrinho Estacio, seu irmão.
—Ah! disse Helena sorrindo e caminhando para elle.
Estacio dera egualmente alguns passos.
—Espero merecer sua affeição, disse ella depois de curta pausa. Peço desculpa da demora; estavam á minha espera, creio eu.
—Iamos para a meza agora mesmo, interrompeu D. Ursula como protestando contra a ideia de que ella os fizesse esperar.
Estacio procurou corrigir a rudez da tia.
—Tinhamos ouvido o seu passe na escada, disse elle. Sentemo-nos, que o almoço esfria.
D. Ursula ja estava sentada á cabeceira da mesa; Helena ficou á direita, na cadeira que Estacio lhe indicou; este tomou logar do lado opposto. O almoço correu silencioso e desconsolado; raros monosyllabos, alguns gestos de assentimento ou recusa, tal foi o dispendio da conversa entre os tres parentes. A situação não era commoda nem vulgar. Helena, posto forcejasse por estar senhora de si, não conseguia vencer de todo o natural acanhamento da occasião. Mas, se o não vencia de todo, podiam ver-se atravez delle certos signaes de educação fina. Estacio examinou aos poucos a figura da irmã.
Era uma moça de dezeseis a dezesete annos, delgada sem magreza, estatura um pouco acima de mediana, talhe elegante e attitudes modestas. A face, de um moreno-pecego, tinha a mesma imperceptivel penugem da fructa de que tirava a côr; naquella occasião tingiam-na uns longes côr de rosa, a principio mais rubros, natural effeito do abalo. As linhas puras e severas do rosto parecia que as traçára a arte religiosa. Se os cabellos, castanhos como os olhos, em vez de dispostos em duas grossas tranças, lhe cahissem espalhadamente sôbre os hombros, e se os proprios olhos alçassem as pupillas ao ceu, dissereis um daquelles anjos adolescentes que traziam a Israel as mensagens do Senhor. Não exigiria a arte maior correcção e harmonia de feições, e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a gravidade do aspeto. Uma só cousa pareceu menos aprazivel ao irmão: eram os olhos, ou antes o olhar, cuja expressão de curiosidade sonsa e suspeitosa reserva foi o unico senão que lhe achou, e não era pequeno.
Acabado o almôço, trocadas algumas palavras, poucas e sôltas, Helena retirou-se ao seu quarto, onde durante tres dias passou quasi todas as horas, a ler meia duzia de livros que trouxe comsigo, a escrever cartas, a olhar pasmada para o ar, ou encostada ao peitoril de uma das janellas. Alguma vez desceu a jantar com os olhos vermelhos e a fronte pezarosa, apenas com um sorriso pallido e fugitivo nos labios. Uma creança, subitamente transferida ao collegio, não desfolha mais tristemente as primeiras saudades da casa de seus paes. Mas a aza do tempo leva tudo; e ao cabo de tres dias, ja a physionomia de Helena trazia menos sombrio aspecto. O olhar perdeu a expressão que primeiro lhe achou o irmão, para tornar-se o que era naturalmente, mavioso e repousado. A palavra sahia-lhe mais facil, seguida e numerosa; a familiaridade tomou o lugar do acanhamento.
No quarto dia, acabado o almôço, Estacio encetou uma conversa geral, que não passou de um simples duo, por que D. Ursula contava os fios da toalha ou brincava com as pontas do fichu que trazia ao pescoço. Como falassem da casa, Estacio disse á irmã:
—Ésta casa é tão sua como nossa; faça de conta que nascemos debaixo do mesmo tecto. Minha tia lhe dirá o sentimento que nos anima a seu respeito; não o póde haver mais cordial.
Helena agradeceu com um olhar longo e profundo. E dizendo que a casa e a chacara lhe pareciam bonitas e bem dispostas, pediu a D. Ursula que lh'as fôsse mostrar mais detidamente. A tia fechou o rosto e seccamente respondeu:
—Agora não, menina; tenho por hábito descançar e ler.
—Pois eu lerei para a senhora ouvir, replicou a moça com graça; não é bom cançar os seus olhos; e, além disso, é justo que me acostume a servil-a. Não acha? continuou ella voltando-se para Estacio.
—É nossa tia, respondeu o moço.
—Oh! ainda não é minha tia! interrompeu Helena. Hade sel-o quando me conhecer de todo. Por emquanto somos extranhas uma á outra; mas nenhuma de nós é ma; o coração e a convivencia apertarão de vez os laços que a natureza atou frouxamente.
Éstas palavras foram ditas em tom de graciosa submissão. A voz com que ella as proferiu era clara, doce, melodiosa; melhor do que isso, tinha um mysterioso encanto, a que a propria D. Ursula não pôde resistir.
—Pois deixe que a convivencia faça falar o coração, respondeu a irmã do conselheiro em tom brando. Não aceito o offerecimento da leitura, por que não entendo bem o que os outros me lêm; tenho os olhos mais intelligentes que os ouvidos. Entretanto, se quer ver a casa e a chacara, seu irmão póde conduzi-la.
Estacio declarou-se prompto para acompanhar a irmã. Helena, entretanto, recusou. Irmão embora, era a primeira vez que o via, e ao que parece, a primeira que podia achar-se a sos com um homem que não seu pae. D. Ursula, talvez porque preferisse ficar só algum tempo, disse-lhe seccamente que fôsse. Helena acompanhou o irmão. Percorreram parte da casa, ouvindo a moça as explicações que lhe dava Estacio e inquirindo de tudo com zêlo e curiosidade de dona da casa. Quando chegaram á porta do gabinete do conselheiro, Estacio parou.
—Vamos entrar num logar triste para mim, disse elle.
—Que é?
—O gabinete de meu pae.
—Oh! deixe ver!
Entraram os dous. Tudo estava do mesmo modo que no dia em que o conselheiro fallecêra. Estacio deu algumas indicações relativas ao theor da vida doméstica de seu pae; mostrou-lhe a cadeira em que elle costumava ler, de tarde e de manhã; os retratos de familia, a secretária, as estantes; falou de quanto podia interessal-a. Sobre a mesa, perto da janella, estava ainda o último livro que o conselheiro lêra: eram as Maximas do marquez de Maricá. Helena pegou nelle e imprimiu um beijo na página aberta. Uma lagryma brotou-lhe dos olhos, como pingo do sereno que cahisse da aza da noite, não fria como elle, mas quente de todo o calor de uma alma apaixonada e sensivel; brotou, deslizou-se e foi cahir no papel.
—Coitado! murmurou ella.
Depois sentou-se na mesma cadeira em que o conselheiro costumava dormir alguns minutos depois do jantar, e olhou para fóra. O dia começava a aquecer. O arvoredo dos morros fronteiros estava coberto de flores de quaresma, com suas petalas roxas e tristemente bellas. O expectaculo ia com a situação de ambos. Estacio deixou-se levar ao sabor de suas recordações da meninice. De envolta com ellas, veiu pousar-lhe ao lado a figura de sua mãe; tornou a ve-la, tal qual se lhe fôra dos braços, uma crua noite de Outubro, quando elle contava dezoito annos de edade. A boa senhora morrêra quasi moça,—ainda bella, pelo menos,—daquella belleza sem outono, cuja primavera tem duas estações.
Helena ergueu-se.
—Amava-o muito? perguntou ella,
—Quem o não amaria?
—Tem razão. Era uma alma grande e nobre; ou adorava-o. Reconheceu-me; deu-me familia e futuro; levantou-me aos olhos de todos e aos meus proprios. O resto depende de mim, do juizo que eu tiver,—ou talvez da fortuna.
Ésta ultima palavra cahiu-lhe do coração com um suspiro. Depois de alguns segundos de silêncio, Helena enfiou o braço no do irmão e desceram â chacara. Fôsse influência do logar ou simples mobilidade de seu espirito, Helena tornou-se logo outra do que se revellára no gabinete de seu pae. Jovial, graciosa e travessa, perdêra aquella gravidade quieta e senhora de si com que apparecêra na sala de jantar; fez-se lepida e viva, como as andorinhas que antes, e ainda agora esvoaçavam por meio das árvores e por cima da gramma. A mudança causou certo espanto ao moço; mas elle a explicou de si para si, e em todo o caso não o impressionou mal. Helena pareceu-lhe naquella occasião, mais do que antes, o complemento da familia. O que alli faltava era justamente o gorgeio, a graça, a travessura, um elemento que temperasse a austeridade da casa e lhe désse todas as feições necessarias ao lar doméstico. Helena era esse elemento complementar.
A excursão durou cêrca de meia hora. D. Ursula viu-os chegar, ao cabo desse tempo, familiares e amigos, como se houvessem criado junctos. As sobrancelhas grisalhas da boa senhora contrairam-se e o labio inferior recebeu uma dentada de despeito.
—Titia, disse Estacio jovialmente; minha irmã conhece ja a casa toda e suas dependencias. Resta somente que lhe mostremos o coração.
D. Ursula sorriu,—um sorriso amarello e acanhado, que apagou nos olhos da moça a alegria que os tornava mais lindos. Mas foi breve a ma impressão; Helena caminhou para a tia, e pegando-lhe nas mãos, perguntou com toda a doçura da voz:
—Não quererá mostrar-me o seu?
—Não vale a pena! respondeu D. Ursula com affectada bonhomia; coração de velha é casa arruinada.
—Pois as casas velhas concertam-se, replicou Helena sorrindo.
D. Ursula sorriu tambem; desta vez, porém, com expressão melhor. Ao mesmo tempo, fitou-a; e era a primeira vez que o fazia. O olhar, a principio indifferente, manifestou logo depois a impressão que lhe causava a belleza da moça. D. Ursula retirou os olhos; porventura receiou que o influxo das graças de Helena lhe torcessem o coração, e ella queria ficar independente e inconciliavel.
As primeiras semanas correram sem nenhum successo notavel, mas ainda assim interessantes. Era, por assim dizer, um tempo de espera, de hesitação, de observação reciproca, um tactear de caracteres, em que de uma e de outra parte procuravam conhecer o terreno e tomar posição. O proprio Estacio, não obstante a primeira impressão, recolhera-se a prudente reserva, de que o arrancou aos poucos o procedimento de Helena.
Helena tinha os predicados proprios a captar a confiança e a affeição da familia. Era docil, affavel, intelligente. Não eram estes, comtudo, nem ainda a belleza, os seus dotes por excellencia efficazes. O que a tomava superior e lhe dava probabilidade de triumpho era a arte de accomodar-se ás circumstâncias do momento e a toda a casta de espiritos, arte preciosa, que faz habeis os homens e estimaveis as mulheres. Helena praticava de livros ou de alfinetes, de bailes ou de arranjos de casa, com egual interesse e gôsto, frivola com os frivolos, grave com os que o eram, attenciosa e ouvida, sem entono nem vulgaridade. Havia nella a jovialidade da menina e a compostura da mulher feita, um accôrdo de virtudes domésticas e maneiras elegantes, complexo de cousas na apparencia oppostas, mas não inconciliaveis nem disparatadas entre si.
Além das qualidades naturaes, possuia Helena algumas prendas de sociedade, que a tornavam acceita a todos, e mudaram em parte o theor da vida da familia. Não falo da magnifica voz de contralto, nem da correcção com que sabia usar della, por que ainda então, estando fresca a memoria do conselheiro, não tivera occasião de fazer-se ouvir. Era pianista distincta, sabia desenho, falava correntemente a lingua franceza, um pouco a ingleza e a italiana. Entendia de costura e bordados e toda a sorte de trabalhos feminis. Conversava com graça e lia admiravelmente. Mediante os seus recursos, e muita paciencia, arte e resignação,—não humilde, mas digna,—conseguia polir os asperos, attrahir os indifferentes e domar os hostis.
Pouco havia ganho no espirito de D. Ursula; mas a repulsa desta ja não era tão viva como nos primeiros dias. Estacio cedeu de todo, e era facil; seu coração tendia para ella, mais que nenhum outro. Não cedeu porém sem alguma hesitação e dúvida. A flexibilidade do espirito da irmã afigurou-se-lhe a principio mais calculada que expontanea. Mas foi impressão que passou. Dos proprios escravos não obteve Helena desde logo a sympathia e boa vontade; esses pautavam os sentimentos pelos de D. Ursula. Servos de uma familia, viam com desaffecto e ciume a parenta nova, alli trazida por um acto de generosidade. Mas tambem a esses venceu o tempo. Um só de tantos pareceu vel-a desde princípio com olhos amigos; era um rapaz de 16 annos, chamado Vicente, cria da casa e particularmente estimado do conselheiro. Talvez esta ultima circunstância o ligou desde logo á filha do seu senhor. Despida de interesse, porque a esperança da liberdade, se a podia haver, era precaria e remota, a affeição de Vicente não era menos viva e sincera; faltando-lhe os gozos proprios do affecto,—a familiaridade e o contacto,—-condenado a viver da contemplação e da memoria, a não beijar sequer a mão que o abençoava, limitado e distanciado pelos costumes, pelo respeito e pelos instinctos, Vicente foi, não obstante, um fiel servidor de Helena, seu advogado convicto nos julgamentos da senzala.
Ás pessoas da intimidade da casa acolheram Helena com a mesma hesitação de D. Ursula. Helena sentiu-lhes a polidez fria e parcimoniosa. Longe de abater-se ou vituperar os sentimentos sociaes, explicava-os e tratava de os torcer em seu favor,—tarefa em que se esmerou superando as obstaculos na familia; o resto viria de si mesmo.
Uma pessoa, entre os familiares da casa, não os acompanhou no procedimento reservado e frio; foi o padre-mestre Melchior. Melchior era capellão em casa do conselheiro, que mandara construir alguns annos antes uma excellente capella na chacara, onde muita gente da vizinhança ouvia missa aos domingos. Tinha sessenta annos o padre; era homem de estatura mediana, magro, calvo, brancos os poucos cabellos, e uns olhos não menos sagazes que mansos. De compostura quieta, e grave, austero sem formalismo, sociavel sem mundanidade, tolerante sem fraqueza, era o verdadeiro varão apostolico, homem de sua Egreja e de seu Deos, integro na fe, constante na esperança, ardente na caridade. Conhecêra a familia do conselheiro algum tempo depois do consorcio deste. Seu olhar penetrante descobria a causa da tristeza que minou os ultimos annos da mãe de Estacio; respeitou a tristeza, mas attacou directamente a origem. O conselheiro era homem geralmente razoavel, salvo nas cousas do amor; ouviu o padre, prometteu o que este lhe exigia, mas foi promessa feita na areia; o primeiro vento do coração apagou a escriptura. Entretanto, o conselheiro ouvia-o sinceramente em todas as occasiões graves; e o voto de Melchior pesava em seu espirito. Morando na vizinhança daquella familia, tinha alli o padre todo o seu mundo. Se as obrigações ecclesiasticas não o chamavam a outro lugar, não se arredava elle de Andarahy, sítio de repouso apos trabalhosa mocidade.
Das outras pessoas que frequentavam a casa e residiam no mesmo bairro de Andarahy, mencionaremos ainda o Dr. Mattos, sua mulher, o coronel Macedo e dous filhos.
O Dr. Mattos era um velho advogado que, em compensação da sciencia do direito, que não sabia, possuía noções muito aproveitaveis de meteorologia e botanica, da arte de comer, do voltarete, do gamão e da política. Era impossivel a ninguem queixar-se do calor ou do frio, sem ouvir delle a causa e a natureza de um e outro, e logo a divisão das estações, a differença dos climas, influência destes, as chuvas, os ventos, a neve, as vasantes dos rios e suas enchentes, as marés e a pororoca. Elle fallava com egual abundancia das qualidades therapeuticas de uma herva, da nomenclatura scientifica de uma flor, da estructura de certo vegetal e suas peculiaridades. Alheio ás nobres paixões da política, se abria a boca em tal assumpto era para criticar egualmente de luzias e saquaremas,—os quaes todos lhe pareciam abaixo do paiz. O jogo e a comida achavam-no menos sceptico; e nada lhe avivava tanto a physionomia como um bom gamão depois de um bom jantar. Éstas prendas faziam do Dr. Mattos um conviva interessante nas noites que o não eram, como o loto é o jogo por excellencia nas occasiões em que outro qualquer é impossivel. O Dr. Mattos era o loto da sociedade, com a mesma monotonia dos anexins. Posto soubesse effectivamente alguma cousa dos assumptos que lhe eram mais prezados, não ganhou o peculio que possuia, professando a botanica ou a meteorologia, mas applicando as regras do direito, que ignorou até á morte.
A esposa do Dr. Mattos fôra uma das bellezas do primeiro reinado. Quando as graças physicas se alliam ás do espirito, a belleza póde esvair-se, que ainda lhe fica a alma. D. Leonor era uma rosa fanada, mas conservava o aroma da juventude. Algum tempo se disse que o conselheiro ardêra aos pes da mulher do advogado, sem repulsa desta; mas só era verdade a primeira parte do boato. Nem os principios moraes, nem o temperamento de D. Leonor lhe consentiam outra cousa que não fosse repellir o conselheiro sem o molestar. A arte com que o fez illudiu os malévolos; dahi o sussurro, ja agora esquecido e morto. A reputação dos homens amorosos parece-se muito como juro do dinheiro: alcançado certo capital, elle proprio se multiplica e avulta. O conselheiro desfructou essa vantagem, de maneira que se no outro mundo lhe levassem á collumna dos peccados todos os que lhe attribuiam na terra, receberia elle dobrado castigo do que mereceu.
O coronel Macedo tinha a particularidade da não ser coronel. Era major. Alguns amigos, levados de um espirito de rectificação, começaram a dar-lhe o titulo de coronel, que a princípio recusou, mas que afinal foi compellido a acceitar, não podendo gastar a vida inteira a protestar contra elle. Macedo tinha visto e vivido muito; e, sôbre o peculio da experiencia, possuia imaginação viva, fertil e agradavel. Era bom companheiro, folgazão e communicativo, pensando serio quando era preciso. Tinha dous filhos: um rapaz de vinte annos, que estudava em S. Paulo, e uma moça de vinte e tres, mais prendada que formosa.
Nos primeiros dias de agosto a situação de Helena podia dizer-se consolidada. D. Ursula não cedêra de todo, mas a convivencia ia produzindo seus fructos. Camargo era o unico irreconciliavel; sentia-se atravez de suas maneiras cerimoniosas uma a versão profunda, prestes a converter-se em hostilidade, se fôsse preciso. As demais pessoas, não só domadas, mas até enfeitiçadas, estavam ás boas com a filha do conselheiro. Helena tornara-se o acontecimento do bairro; seus ditos e gestos eram o assumpto da vizinhança e o prazer dos familiares da casa. Por uma natural curiosidade, cada um procurava em suas reminiscencias um fio biographico da moça; mas do inventário retrospectivo ninguem tirava elementos que podessem construir a verdade ou uma só parcella que fôsse. A origem da moça continuava mysteriosa; vantagem grande, porque o obscuro favorecia a lenda, e cada qual podia attribuir o nascimento de Helena a um amor illustre ou romanesco,—hypotheses admissiveis, e em todo o caso agradaveis a ambas as partes.
Por esse tempo resolveu Estacio dar um passo decisivo em sua vida. Ligado por amor á filha de Camargo, desde antes da morte do conselheiro, hesitára sempre em pedil-a ao pae, deferindo a resolução para quando fôsse propício o ensejo. A condição não era facil, por que o sentimento que elle nutria em relação a Eugenia tinha alternativas singulares de tibieza e fervor. A causa disso póde crer-se que estava tambem em seu coração; mas principalmente residia nella. N'um dos primeiros dias de Agosto, assentira Estacio de ir solicitar de Eugenia autorisação para fazer officialmente o pedido. Assim disposto, dirigiu-se á casa de Camargo.
Mal o avistou de longe, desceu Eugenia á porta do jardim. O chapellinho de palha, de abas largas, que lhe protegia o rosto dos raios do sol,—eram tres horas da tarde,—tornavam mais bella a figura da moça. Eugenia era uma das mais brilhantes estrêllas entre as menores do ceu fluminense. Agora mesmo, se o leitor, lhe descobrir o perfil, em camarote de theatro, ou se a vir entrar em alguma sala de baile, comprehenderá,—atravez de um quarto de seculo,—que os contemporaneos de sua mocidade lhe tivessem louvado, sem contraste, as graças que então alvoreciam, com o frescor e a pureza das primeiras horas.
Era do pequena estatura; tinha os cabellos de um castanho escuro, e os olhos grandes e azues,—dous pedacinhos do ceu; abertos em rosto alvo o corado, os quaes nem sempre lembravam tão alta origem, pois se eram muita vez quietos e modestos, não poucas os desmaiava tal ou qual expressão de languidez lasciva. Seu corpo, levemente refeito, era naturalmente elegante; mas se a dona sabia vestir-se com luxo, e até com arte, não possuia o dom de alcançar os maximos effeitos com os meios mais simples, dom preciosissimo, que faz as grandes elegantes, os grandes artistas e os grandes poetas.
Estacio contemplou-a namorado sem ousar dizer palavra; a primeira que lhe ia sahir dos labios, era justamente o pedido que o levava alli. Mas Eugenia deteve-lh'a mostrando o anel que sua madrinha, uma fazendeira de Cantagallo, lhe remettêra na vespera. Era uma opala magnifica, a tal ponto que Eugenia dividia os olhos entre o namorado e ella. Ésta simultaneidade esfriou o mancebo. Entraram ambos em casa, onde D. Thomasia os esperava. A mãe de Eugenia sabia combinar o decoro com os desejos de seu coração; não seria obstaculo aos dous namorados, infelizmente a presença de duas visitas veiu destruir o cálculo dos tres. Estacio espreitava uma occasião de pedir a Eugenia a autorisação que desejava; até o jantar não se lhe deparou nenhuma.
Depois do jantar, desceram todos ao jardim. D. Thomasia entreteve uma das visitas; Camargo foi mostrar á outra a sua collecção de flores. Estacio e Eugenia affastaram-se cautellosamente dos dous grupos, a pretexto de não sei que flor aberta na manhã daquelle dia. A flor existia; Eugenia colheu-a e deu a Estacio.
—Não va perdel-a; hade entregal-a a Helena da minha parte. Diga-lhe que estou com muitas saudades.
Estacio collocou a flor na casa do paletó.
—Vai cahir! disse Eugenia. Quer que pregue um alfinete?
Estacio não teve tempo de responder, por que a filha de Camargo, tirando um alfinete do cinto prendeu o pe da flor, gastando muito mais tempo do que o exigia a operação. A moça não era myope; todavia approximou de tal modo a cabeça ao peito do mancebo, que este teve impetos de lhe beijar os cabellos, e seria a primeira vez que seus labios lhe tocassem. Não o deteve o risco de ser visto; mas o simples respeito daquella creatura.
—Prompto! disse ella. Diga a Helena que é a flor mais bonita, do nosso jardim. Sabe que eu gósto muito de sua irmã?
—Acredito.
—Supponho que é minha amiga, hade se-lo com certeza. Oh! eu preciso muito de uma amiga verdadeira!
—Sim?
—Muito! Tenho tantas que não prestam para nada, e só me dão desgostos, como Cecilia... Se soubesse o que ella me fez!
—Que foi?
Eugenia desfiou uma historiazinha de toucador, que omitto em suas particularidades, por não interessar ao nosso caso, bastando saber que a razão capital da divergencia entre as duas amigas fôra uma opinião de Cecilia acerca da escolha de um chapeu.
Estacio não escutou a história com a attenção que a moça desejára; limitou-se a ouvir a voz de Eugenia, que era na verdade angelica. Alguma cousa porém lhe ficou, e quando ella poz termo ás suas queixas:
—O que me parece, observou o sobrinho de D. Ursula, é que não valia a pena brigar por tão pouca cousa...
—Pouca cousa! exclamou Eugenia. Parece-lhe pouco chamar-me caprichosa e de mau gôsto?
—Fez mal se o disse; em todo o caso...
Estacio fez uma pausa e continuou a andar. Eugenia, mollemente recostada em seu braço, esperou que elle continuasse o que ia dizer; mas o silêncio prolongou-se mais do que era natural.
—Em todo o caso? repetiu a moça erguendo para elle os seus olhos limpidos e curiosos.
—Eugenia, disse Estacio, quer saber a verdadeira razão do mau successo de suas affeições? é deixar-se levar mais pelas apparencias que pela realidade; é porque dá menos apreço ás qualidades solidas do coração do que ás frivolas exterioridades da vida. Suas amizades são das que duram a roda de uma valsa, ou, quando muito, a moda de um chapeu; podem satisfazer o capricho de um dia, mas são estereis para as necessidades do coração.
—Jesus! exclamou Eugenia estacando o passo um sermão por tão pouca cousa! Se tivesse algum pedaço de latim era o mesmo que estar ouvindo o padre Melchior.
Estacio não respondeu; contentou-se com erguer os hombros, e os dous continuaram a andar silenciosamente, acanhados e descontentes um do outro. A differença é que o enfado de Eugenia manifestava-se por um movimento nervoso de impaciencia e despeito.
—Se o offendi, perdoe-me, disse ella—com um leve tom de ironia.
—Oh! exclamou elle apertando-lhe a mão, como quem só esperava um pretexto para reatar a conversa interrompida.
—Talvez offendesse, continuou a moça; eu sei dizer as cousas como ellas me vem á boca, e parece que não são as mais acertadas...
—Não digo que o sejam sempre, replicou Estacio sorrindo. Agora, pelo menos, foi um pouco precipitada em zombar do que eu lhe dizia, que era justo e de boa intenção. Francamente, é para lastimar uma amizade, ganha entre duas quadrilhas e perdida por causa de um chapeu? Não vale a pena esperdiçar affectos, Eugenia; sentirá mais tarde que essa moeda do coração não se deve nunca reduzir a trocos miudos nem despender em quinquilharias.
Eugenia ouviu calada as palavras do moço; não as entendeu muito. Sabia-lhes a significação; não lhes viu porém nexo nem sentido; sobretudo não lhes sentiu a applicação. O que a irritou mais foi o tom pedagogo de Estacio; estouvada e voluntariosa, não admittia que ninguem lhe falasse sem submissão ou a reprehendesse por actos seus, que ella julgava legitimos e naturaes. A insistencia do moço foi o ponto de partida a um desses arrufos, não raros entre amantes, e communs entre aquelles dous. Os de Eugenia não eram simples silêncios; seu espirito rebelde e livre não adormecia nesses momentos de enfado; pelo contrário irritava-se e traduzia a irritação por meio de pirraças e accessos de mau humor. Estacio viu murmurar, crescer e desabar a tempestade. A moça deixava-lhe o braço e tornava a apoiar-se nelle, articulava algumas phrases sôltas, pedia a morte, batia no chão com o pesinho mimoso que por acaso esmagou uma pobre herva, alheia ás divergencias moraes daquellas duas creaturas. Ora parava ou desandava o caminho; mas logo se dirigia para o moço, com as palpebras trémulas de colera e um remoque nos labios; comprazia-se em torcer a ponta da manga até dilaceral-a, ou morder a ponta do dedo até imprimir-lhe o signal de seus dentes, côr de perola. Estacio, affeito a essas explosões, não lhes sabia remedio proprio, que tanto o silêncio como a réplica eram alli materias inflamaveis. Contudo, o silêncio era o menor dos dous perigos. Estacio limitava-se a ouvir calado, olhando á sorrelfa para a filha de Camargo, cujo rosto parecia mais bello, quando a raiva o coloria. Uma terceira pessoa era a unica esperança de pacificação; Estacio alongou o olhar pelo jardim em busca desse deus ex-machina. Appareceu elle enfim sob a forma de um Carlos Barreto,—estudante de medicina, que cultivava simultaneamente a pathologia e a comedia, mas promettia ser melhor Esculapio que Aristophanes. Mal os viu de longe, apertou o passo para o grupo.
—Vem gente, Eugenia,—disse Estacio; não demos expectaculos e... perdõe-me.
Eugenia ergueu os hombros, procurou com os olhos o intruso, que dahi a pouco estenda-lhes a mão.
O ceu não ficou logo claro; mas o vento amainou, e era de esperar que o sol se desfizesse enfim do seu capote de nuvens. Carlos Barreto deu a Eugenia a agradavel notícia de que trouxera a seu pae um convite para a soirée que daria no sabbado proximo uma de suas parentas. A perspectiva da soirée foi uma brisa salutar que dispersou o resto das nuvens que entenebreciam o ceu; Eugenia sorriu. J'ai ri; me voilà desarmée, como na comedia de Piron. Vinte minutos depois, não havia em Eugenia vestigio da scena do jardim. Mas a ideia do casamento estava adiada.
O effeito foi agro e doce para Estacio. Estimando ver dissipada a colera, doia-lhe que a causa fôsse, não a propria virtude do amor, mas um motivo comparativamente futil. A resolução de a consultar sôbre o pedido de casamento esvaiu-se-lhe como de outras vezes. Sahiu dalli á noite, antes do cha, aborrecido e azedo. Mas esse estado não durou muito; dez minutos depois de deixar a casa de Camargo sentiu alguma cousa semelhante á dentada de um remorso. O amor de Estacio tinha a particularidade de crescer e affirmar-se na ausencia e diminuir logo que estava ao pe da moça. De longe, via-a atravez da nevoa luminosa da imaginação; ao pe era difficil que Eugenia conservasse os dotes que elle lhe emprestava. Dahi, um dissentimento provavel e um remorso certo. Agora que a deixava, ia elle irritado contra si mesmo; achava-se ridiculo e cruel; chegava a adorar toda a graciosa futilidade de Eugenia; concedia, alguma cousa á edade, á educação, aos costumes, á ignorancia da vida.
Nesse estado de espirito entrou em casa, onde o esperava um incidente novo.
Chegando a casa, achou Estacio um remedio a seu mau humor. Era uma carta de Luiz Mendonça, que dous annos antes partira para Europa, d'onde agora regressava. Escrevia-lhe de Pernambuco, annunciando-lhe que dentro de poucas semanas estaria no Rio de Janeiro. Mendonça fora o seu melhor companheiro de aula. Havia entre elles certos contrastes de genio. O de Mendonça em mais folgazão e activo. Quando este partiu para Europa quiz que o antigo collega o acompanhasse, e o proprio conselheiro opinára nesse sentido. Estacio recusou pelo receio de que, sendo differente o espirito de um e outro, a viagem tivesse de obrigar ao sacrificio de habitos e preferencias de um delles.
A noticia da volta de Mendonça encheu de contentamento o sobrinho de D. Ursula. D. Ursula estava então na sala de costura, relendo algumas páginas do seu Saint-Clair, encostada a uma meza. Do outro lado desta, ficava Helena, a concluir uma obra de crochet.
—Titia, disse elle, dou-lhe uma novidade agradavel para mim.
—Que é?
—O Mendonça chegou a Pernambuco: está aqui dentro de pouco tempo.
—O Mendonça?
—Luiz Mendonça.
—O que foi para a Europa, sei. Ha quanto tempo?
—Dous annos,
—Dous annos! Parece que foi hontem.
—Não lhe leio a carta que me escreveu por ser muito longa. Diz-me que devo ir tambem á Europa, quanto antes. Querem ir?
—Eu? disse D. Ursula marcando a página do livro com os oculos de prata que até então conservára sobre o nariz. Não são folias para gente velha. Daqui para a cova.
—A cova! exclamou Helena. Está ainda tão forte! Quem sabe se não me ha de enterrar primeiro?
—Menina! exclamou D. Ursula em tom de reprehensão.
Helena sorriu de alegria e agradecimento; era a primeira palavra de verdadeira sympathia que ouvia a D. Ursula. Bem o comprehendeu ésta; e talvez a mortificou aquella expontaneidade do coração. Mas era tarde. Não podia recolher a palavra, não podia sequer explical-a.
—Que tal virá o teu amigo? perguntou ella ao sobrinho. Era bom rapaz antes de ir; um pouco tonto, apenas.
—Ha de vir o mesmo, respondeu Estacio; ou ainda melhor. Melhor de certo, porque dous annos mais modificam o homem.
Estacio fez aqui um panegyrico do amigo, intercallado com observações da tia, e ouvido silenciosamente pela irmã. Vieram chamar para o cha. D. Ursula largou definitivamente o seu romance, e Helena guardou o crochet na cestinha de costura.
—Pensa que gastei toda a tarde em fazer crochet? perguntou ella ao irmão, caminhando para a sala do jantar.
—Não?
—Não, senhor; fiz um furto.
—Um furto!
—Fui procurar um livro na sua estante.
—E que livro foi?
—Um romance.
—Paulo e Virginia?
—Manon Lescaut.
—Oh! exclamou Estacio. Esse livro.
—Exquisito, não é? Quando percebi que o ora, fechei-o e la o puz outra vez.
—Não é livro para moças solteiras...
—Não creio mesmo que seja para moças casadas, replicou Helena rindo e sentando-se á mesa. Em todo o caso, li apenas algumas páginas. Depois abri um livro de geometria... e confesso que tive um desejo.
—Imagino! interrompeu D. Ursula.
—O desejo de aprender a montar a cavallo, concluiu Helena.
Estacio olhou espantado para a irmã. Aquella mistura de geometria e equitação não lhe pareceu sufficientemente clara e explicavel. Helena soltou uma risadinha alegre de menina que applaude a sua propria travessura.
—Eu lhe explico, disse ella; abri o livro, todo alastrado de riscos que não entendi. Ouvi porém um tropel de cavallos e cheguei á janella. Eram tres cavalleiros, dous homens e uma senhora. Oh! com que garbo montava a senhora! Imaginem uma moça de vinte e cinco annos, alta, esbelta, um busto de fada, apertado no corpinho de amazona, e a longa cauda do vestido cahida a um lado. O cavallo era fogoso; mas a mão e o chicotinho da cavalleira quebravam-lhe os impetos. Tive pena, confesso, de não saber montar a cavallo...
—Quer aprender commigo?
—Titia consente?
D. Ursula levantou os hombros com o ar mais indifferente que pôde achar no seu repertorio. Helena não esperou mais.
—Escolha voce o dia.
—Amanhã?
—Amanhã.
Estacio costumava dar um passeio a cavallo quasi todas as manhãs. O do dia seguinte foi dispensado; começariam as licções de Helena. Antes disso, porém, escreveu Estacio á filha de Camargo uma carta rescendente a ternura e affecto. Pedia-lhe desculpa do que se passára na vespera; jurava-lhe amor eterno; cousas todas que lho dissera mais de uma vez, com o mesmo estylo, se não com as mesmas palavras. A carta dissipou-lhe a ultima sombra de remorso. Antes que ella chegasse ao seu destino, reconciliara-se elle comsigo mesmo. O portador sahiu para o Rio Comprido, e elle desceu ao terreiro que ficava nos fundos da casa, ao pe da qual estava situada a cavallariça. Naquelle lado da casa corria a varanda antiga, onde a familia costumava ás vezes tomar cafe ou conversar nas noites de luar, que alli penetrava pelas largas janellas. Do meio da varanda descia uma escada de pedra que ia ter ao terreiro.
Ja alli estava Helena. D. Ursula enprestara-lhe um vestido de amazona, com que algumas vezes montára, antes da morte do irmão. O vestido ficava-lhe mal; era folgado de mais para o talhe delgado da moça. Mas a elegancia natural fazia esquecer o accessorio das roupas.
—Prompta! exclamou Helena apenas viu o irmão assomar no alto da escada.
—Oh! isso não vai assim! respondeu Estacio. Não supponha que hade montar ja hoje como a moça que hontem viu passar na estrada. Vença primeiramente o medo.
—Não sei o que é medo, interrompeu ella com ingenuidade.
—Sim? Não a suppunha valente. Pois eu sei o que elle é.
—O medo? O medo é um preconceito dos nervos. E um preconceito desfaz-se; basta a simples reflexão. Em pequena educaram-me com almas do outro mundo. Até a edade de dez annos era incapaz de penetrar n'uma sala escura. Um dia perguntei a mim mesma se era possivel que uma pessoa morta voltasse á terra. Fazer a pergunta e dar-lhe resposta era a mesma cousa. Lavei o meu espirito de semelhante tolice e hoje era capaz de entrar, de noite, n'um cemiterio. E dahi talvez não: os corpos que alli dormem tem direito de não ouvir mais um só rumor de vida.
Estacio chegára ao último degrau da escada. As derradeiras palavras ouviu-as elle com os olhos fitos na irmã e encostado ao poial do pedra.
—Quem lhe ensinou essas ideias? perguntou elle.
—Não são ideias, são sentimentos. Não se aprendem; trazem-se no coração. Senhor geometra, continuou brandindo caprichosamente o chicote,—veja se transcreve em algum compendio éstas figuras de minha invenção, e ande cavalgar commigo.
Com um movimento rapido travou da cauda do vestido, e caminhou para diante. Estacio acompanhou-a, a passo lento, como solicitado por dois sentimentos differentes: a affeição que o prendia á irmã, e a extranha impressão que ella lhe fazia sentir. Quando chegou á porta da cavallariça, viu aparelhados dous animaes, o cavalo de seus passeios, e a egua que a tia cavalgava uma ou outra vez.
—Que é isso? disse elle. Por ora vamos a algumas indicações somente, aqui no terreiro.
—Justamente! respondeu a moça.
Um escravo que alli estava trouxe um tamborete, Estacio approximou-se de Helena, que afagava com a mão alva e fina as crinas da egua.
—Como se chama? perguntou ella.
—Moema.
—Moema!! Ora espere... é um nome indigena, não é?
Estacio fez um signal affirmativo. Helena tinha um pe sobre o tamborete; repetiu ainda o nome da egua, como quem reflectia sobre elle, sem que o irmão percebesse que não era aquillo mais do que um disfarce. De repente; quando elle menos esperava, Helena deu um salto, e sentou-se no selim. A egua alteou o collo, como vaidosa do peso que recebêra. Estacio olhou para a irmã, admirado da agilidade e correcção do movimento, e sem saber ainda o que pensasse daquillo. Helena inclinou-se para elle.
—Fui bem? perguntou sorrindo.
—Não podia ir melhor; mas o que me admira...
As patas de Moema interromperam a reflexão do moço. A cavalleira brandira o chicotinho, e o animal sahíra a trote largo pelo terreiro fora. Estacio, no primeiro momento, deu um passo e estendeu a mão como para tomar a redea ao animal; mas a segurança da moça logo lhe deixou ver que ella não fazia alli os primeiros ensaios. Ficou parado, de longe, a admirar-lhe o garbo e a destreza. No fim de vinte passos, Helena torceu a redea e regressou ao ponto donde sahíra.
—Que tal? disse ella logo que estacou. Terei geito para a equitação?
—Creança!
—Que é isso? Ja aprendeu? interveio D. Ursula do alto da varanda, onde acabava de chegar.
—Estava caçoando comnosco, disse Estacio. Ve como sabe montar?
—Ella sabe tudo, murmurou D. Ursula entre dentes.
Estacio montou no seu cavallo. Consultou o relogio; eram sete horas e meia.
—Permitte que o acompanhe? perguntou Helena.
—Com uma condição, disse elle; é que hade ter juizo. Não quero temeridades; a egua é apparentemente mansa; convem não brincar com ella. Ja vejo que voce é capaz de muitas cousas mais...
—Prometto ir pacificamente.
Helena cumprimentou a tia com um gesto gracioso, deu de redea ao animal e seguiu ao lado do irmão. Transposto o portão, seguiram os dous para o lado de cima, a passo lento. O sol estava encoberto e a manhã fresca. Helena cavalgava perfeitamente; de quando em quando a agua, instigada por ella, adiantava-se alguns passos ao cavallo; Estacio reprehendia a irmã, a seu pesar, porque ao mesmo tempo que temia alguma imprudencia, gostava de lhe ver o airoso do busto e a firme serenidade com que ella conduzia o animal.
—Não me dirá voce, perguntou elle, porque motivo, sabendo montar, pedia-me hontem licções?
—A razão é clara, disse ella; foi uma simples travessura, um capricho... ou antes um cálculo.
—Um cálculo?
—Profundo, hediondo, diabolico, continuou a moça sorrindo. Eu queria passear algumas vezes a cavallo; não era possivel sahir só, e nesse caso...
—Bastava pedir-me que a acompanhasse.
—Não bastava. Havia um meio de lhe dar mais gosto era sahir commigo; era fingir que não sabia montar. A ideia momentanea de sua superioridade neste assumpto, era bastante para lhe inspirar uma dedicação decidida...
Estacio sorriu do cálculo; mas foi um sorriso passageiro, porque dentro de poucos segundos, seu rosto ficou serio, e elle perguntou era tom sêcco:
—Ja lhe negamos algum prazer que desejasse?
Helena estremeceu e ficou egualmente séria.
—Não! murmurou; minha dívida não tem limites.
Ésta palavra sahiu-lhe do coração. As palpebras cahiram-lhe e um veu de tristeza lhe apagou o rosto. Estacio arrependeu-se do que dissera. Sua sensibilidade apurada comprehendeu a irmã; viu que, por mais innocentes que suas palavras fossem, podiam ser tomadas á ma parte, e em tal caso o menos que se lhe podia arguir era a descortezia. Estacio timbrava em ser o mais polido dos homens. Inclinou-se para ella e rompeu o silêncio.
—Voce ficou triste, disse Estacio; mas eu desculpo-a.
—Desculpa-me? perguntou a moça erguendo para o irmão seus bellos olhos humidos.
—Desculpo a injúria que me fez, suppondo-me grosseiro.
Apertaram-se as mãos, e o passeio continuou nas melhores disposições do mundo. Helena deu livre curso á imaginação e ao pensamento; suas falas exprimiam, ora a sensibilidade romanesca, ora a reflexão da experiencia prematura, e iam direitas á alma do irmão, que se comprazia em ver nella a mulher como elle queria que fosse, uma Graça pensadora, uma sisudez amavel. De quando em quando faziam parar os animaes para contemplar o caminho percorrido, ou discretear acerca de um accidente do terreno. Uma vez, aconteceu que iam fallando das vantagens da riqueza.
—Valem muito os bens da fortuna, dizia Estacio; elles dão a maior felicidade da terra, que é a independencia absoluta. Nunca experimentei a necessidade; mas imagino que o peor que há nella não é a privação de alguns apetites ou desejos, de sua natureza transitorios, mas sim essa escravidão moral que submette o homem aos outros homens. A riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que nos coube. Ve aquelle preto que alli está? Para fazer o mesmo trajecto que nós, terá de gastar, a pe, mais uma hora ou quasi.
O preto de quem Estacio falára, estava sentado no capim, descascando uma laranja, emquanto a primeira das duas mulas que conduzia, olhava philosophicamente para ele. O preto não attendia aos dous cavalleiros que se aproximavam. Ia esburgando a fructa e deitando os pedaços de casca ao focinho do animal, que fazia apenas um movimento de cabeça, com o que parecia alegra-lo infinitamente. Era homem de cêrca de quarenta annos, ao parecer, escravo. As roupas eram rafadas; o chapeu que lhe cobria a cabeça, tinha ja uma côr inverossimil. No entanto, o rosto exprimia a plenitude da satisfação; em todo o caso, a serenidade do espirito.
Helena relanceou os olhos ao quadro que o irmão lhe mostrára. Ao passarem por elle, o preto tirou respeitosamente o chapeu e continuou na mesma posição e occupação que d'antes.
—Tem razão, disse Helena: aquelle homem gastará muito mais tempo do que nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de vista? Em rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o experdicemos, quer o economisemos. O essencial não é fazer muita cousa no menor prazo; é fazer muita cousa aprazivel ou util. Para aquelle preto o mais aprazivel é, talvez, esse mesmo caminhar a pe, que lhe alongará a jornada, e lhe fara esquecer o captiveiro, se é captivo. É uma hora de pura liberdade.
Estacio soltou uma risada.
—Voce devia ter nascido...
—Homem?
—Homem e advogado. Sabe defender com habilidade as causas mais melindrosas. Nem estou longe de crer que o proprio captiveiro lhe parecerá uma bemaventurança, se eu disser que é o peor estado do homem.
—Sim? retorquiu Helena sorrindo; estou quasi a fazer-lhe a vontade. Não faço; prefiro admirar a cabeça de Moema. Veja, veja como se vai faceirando. Ésta não maldiz o captiveiro; pelo contrário, parece que elle lhe dá glória. Pudera! Se não a tivessemos captiva, receberia ella o gosto de me sustentar e conduzir? Mas não é só faceirice, é tambem impaciencia.
—De que?
—Impaciencia de correr por essa estrada da Tijuca fóra, e beber o vento da manhã, espreguiçando os musculos, e sentindo-se alguma cousa senhora e livre. Mas que queres tu, minha pobre egua? continuou a moça inclinando a cabeça até as orelhas do animal; vai aqui ao pe de nós um homem muito mau e medroso, que é ao mesmo tempo meu irmão e meu inimigo...
—Helena! interrompeu Estacio; voce é muito capaz de desparar a correr.
—E se fôsse?
—Eu deixava-a ir, e nunca a trazia em meus passeios. Voce monta bem; mas não desejo que faça temeridades. Nós somos responsaveis, não só por sua felicidade, mas tambem por sua vida.
Helena refletiu um instante.
—Quer dizer, perguntou ella, que se eu fôsse victima de um desastre não faltaria quem o imputasse á minha familia?
—Justo.
—Singular gente! Não há de ser tanto assim... Pois se eu me lembrasse—é uma supposição—se eu me lembrasse de deixar a vida por aborrecimento ou capricho, seria voce accusado de me haver propinado o veneno? Não ha melhor modo de me fazer evitar a morte.
—Deixemos conversas lugubres, e voltemos para casa, interrompeu Estacio.
—Ja!
—Raras vezes passo d'aqui; e não pense voce que é perto.
—Parece-me que ainda agora sahimos de casa. Vamos uns cinco minutos adeante? Sim?
Estacio consultou o relogio.
—Cinco minutos justos, disse elle.
—Até aquella casa que alli está com uma bandeira azul.
Havia effectivamente, cêrca de quatro minutos adiante, á esquerda da estrada, uma casa de insignificante apparencia, sôbre cujo telhado fluctuava uma bandeira azul presa a uma vara. Estacio conhecia a casa, mas era a primeira vez que via a bandeira. Helena pediu-lhe a explicação daquelle apendice.
—Va la saber, disse o irmão rindo.
Helena deu de redea á egua e adeantou-se alguns passos. Estacio apertou o animal e alcançou-a.
—Não va fazer tolices! disse elle em tom de branda reprehensão. Aquillo é fantasia do morador, ou algum signal de passaros, ou qualquer outra cousa que não vale a pena de uma travessura. Contemplemos antes a manhã, que está deliciosa.
Helena não attendeu á proposta do irmão e foi andando, a passo lento, na direcção da casa. A casa era velha, abrindo por uma porta para o alpendre antigo que lhe corria na frente. As collunnas deste estavam ja lascadas em muitas partes, apparecendo, aqui e alli, a ossada de tijolo. A porta estava meio aberta. Havia absoluta solidão, apparente ao menos. Quando elles lhe passaram pela frente, a porta abriu-se, mas se alguem espreitava por ella, ficou sumido na sombra, porque ninguem de fóra o viu.
Cêrca de cinco braças adeante, Estacio resolveu definitivamente regressar, e Helena não oppoz objecção nenhuma. Torceram a redea aos animais e desceram.
—Não poderei falar á bandeira? perguntou a moça. Deixe-me ao menos dizer-lhe adeus.
Tinha ja tirado da algibeira o seu fino lenço de cambraia; agitou-o na direcção da casa. Quiz o acaso que a bandeira, até então quieta, se movesse no sopro de uma aragem que passou.
—Ve como ella me respondeu? Não se póde ser mais cortez! exclamou Helena, rindo.
Estacio riu tambem da lembrança da irmã, e ambos desceram, a passo lento, como haviam subido. Helena vinha taciturna e pensativa. Seus olhos, cravados nas orelhas de Moema, não pareciam ver sequer o caminho que o animal seguia, Estacio, para arrancal-a ao silêncio, fez-lhe uma observação acerca de um incidente do caminho. Helena respondeu distrahidamente.
—Que tem voce? perguntou elle.
—Nada, disse ella; ia... ia embebida naquella toada. Não ouve?
Ouvia-se effectivamente, a algumas braças adeante, uma cantiga da roça, meia alegre, meia plangente. O cantor appareceu, logo que os cavalleiros dobraram a curva que a estrada fazia naquelle logar. Era o preto, que pouco tinham visto sentado no chão.
—Que lhe dizia eu? observou a irmã de Estacio. Alli vai o infeliz de ha pouco. Uma laranja chupada no capim e trez ou quatro quadras, é o bastante para lhe encurtar o caminho. Creia que vai feliz, sem precisar comprar o tempo. Nós poderiamos dizer o mesmo?
—Porque não?
A moça recolheu-se ao silêncio.
—Helena, isso que voce acaba de dizer. Vamos, estamos sos; confesse alguma tristeza que tenha.
—Nenhuma, respondeu a moca. Peço-lhe, entretanto, uma cousa.
—Diga.
—Peço-lhe que me comunique todas as más impressões que tiver a meu respeito. Explicarei umas, procurarei desvanecer-lhe outras, emendando-me. Sobretudo, peço-lhe que escreva em seu espirito esta verdade: é que sou uma pobre alma lançada n'um turbilhão.
Estacio ia pedir explicação mais desenvolvida daquellas últimas palavras; mas Helena, como se esperasse a pergunta, brandira o chicote, e deitou a egua a correr. Estacio fez o mesmo ao cavallo; dahi a alguns minutos entravam na chacara, elle aturdido e curioso, ella com a face vermelha e a bater-lhe violentamente o coração.
Apearam-se os dous no terreiro e dirigiram-se para a escada que ia ter á varanda. Pizando o primeira degrau, disse Estacio:
—Helena, explique-me suas palavras de ha pouco.
—Quaes?
E como Estacio levantasse os hombros, com ar de despeito, continuou Helena:
—Perdõe-me; sua pergunta não tem nem podia ter outra resposta mais do que a simples recusa. Não lhe direi mais nada. Nunca se devem fazer meias confissões; mas neste caso a confissão inteira seria imprudencia maior. Se se tratasse de factos, creia que a ninguem melhor podia confia-los do que a voce; mas por que motivo irei perturbar-lhe o espirito com a narração de meus sentimentos, se eu propria não chego a entender-me?
Estacio não insistiu. Subiram a escada, atravessaram a varanda e entraram na sala de jantar, onde acharam D. Ursula dando as ordens daquelle dia, a dous escravos. Estacio entrou pensativo; Helena mudou totalmente de ar e maneiras. Alguns segundos antes era sincera a melancholia que lhe ensombrava o rosto. Agora regressara a jovialidade de costume. Dissera-se que a alma da moça era uma especie de comediante que recebêra da natureza ou da fortuna, ou talvez de ambas, um papel que a obrigava a mudar continuamente de vestuario. D. Ursula viu-a entrar risonha e ir a ella dar-lhe os costumados—bons dias—que era sempre um beijo,—ou antes dous,—um na mão, outro na face.
—Demorei-me muito? perguntou ella voltando rapidamente o corpo, de maneira a ver o relogio que ficava do outro lado da sala. Nove horas! Que passeio, Sr. meu irmão!
Estacio olhava para ella silencioso e não lhe respondeu. Seu olhar não era de censura, mas de curiosidade, pena e admiração. Os dous foram logo depois mudar de toilette, e o almôço reuniu a familia. D. Ursula propoz, durante elle, algumas mudanças na disposição da chacara, mudanças que foram longamente discutidas com o sobrinho, e aceitas afinal por este. O dia estava sombrio e fresco; D. Ursula desceu á chacara com Estacio. As alterações foram ainda estudadas e combinadas no proprio terreno, com assistencia do feitor. Logo que acabou a deliberação e que o projecto de D. Ursula foi definitivamente assentado, Estacio reteve-a e lhe disse:
—Preciso falar-lhe um instante.
—Tambem eu.
—Quaes são os seus sentimentos actuaes em relação a Helena? Oh! não precisa franzir a testa nem fazer esse gesto de aborrecimento. Tudo são meras apparencias. Não creio que seja absolutamente amiga della; mas não póde negar que a antipathia desapareceu ou diminuiu muito.
—Diminuiu, talvez.
—E com razão. Pensa que tambem eu não tive repugnancias depois que ella aqui entrou? Tive-as; mas se não houvessem desaparecido,—desapareceriam hoje de manhã.
—Como?
Estacio referiu á tia a scena do capitulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena. D. Ursula sorriu ironicamente.
—Não a impressiona isto? perguntou Estacio.
—Não, respondeu D. Ursula com decisão; a phrase de Helena é achada em algum dos muitos livros que ella le. Helena não é tola; quer prender-nos por todos os lados, até pela compaixão. Não te nego que começo a gostar della; é dedicada, affectuosa, diligente; tem maneiras finas e algumas prendas de sociedade. Além disso, é naturalmente sympatica. Ja vou gostando della; mas é um gostar sem fogo nem paixão, em que entra boa dose de costume e necessidade. A presença de outra mulher nesta casa é conveniente, porque eu estou cançada. Helena preenche essa lacuna. Se alguma cousa, entretanto, a podia prejudicar nas nossas relações é esse dito.
Estacio tomou calorosamente a defesa da irmã.
—O que eu lhe contei, disse elle, foram apenas as palavras. Não pude nem poderei reproduzir a expressão sincera com que ella as proferiu e a profunda tristeza que havia em seus olhos. Não lhe nego que, ao vel-a mudar tão depressa e entrar alegre na sala, senti tal ou qual abalo de dúvida; mas passou logo. Sua natureza tem esse raro poder de concentrar a amargura no coração; tambem a dor tem suas hypocrisias...
—Mas que dor? que amargura? interrompeu: D. Ursula. A dor de ser legitimada? a amargura de uma herança?
Estacio protestou calorosamente contra aquelle caminho que a tia dava a suas ideias; emfim pediu-lhe que interrogasse com cautella a irmã.
—Um homem, concluiu elle, é menos apto para obter taes confissões; uma senhora, respeitavel e parenta, está mais no caso de lhe captar a confiança e obter tudo. Quer incumbir-se desse delicado papel?
—Pedes muito, respondeu D. Ursula. Verei se te posso dar metade disso. Era só o que tinhas para dizer?
—Só.
—Uma creancice! Eu tenho cousa mais séria. O Dr. Camargo escreveu-me: trata-se...
—Não precisa dizer mais nada, interrompeu Estacio; la vem elle.
Camargo apparecêra effectivamente a vinte passos de distância.
—Doutor,—disse D. Ursula, logo que este se approximou delles, chega um pouco fóra de proposito. Eu mal tive tempo de assustar meu sobrinho, que ainda não sabe o que o senhor lhe quer.
—Saberá agora; é só bastante que a senhora lhe diga que me approva.
—Completamente,
—Trata-se...—disse Estacio.
—De uma conspiração; todos conspiramos em seu beneficio.
D. Ursula retirou-se para casa; os dous ficaram sos. Uma vez sos, Camargo pousou a mão no hombro de Estacio, fitou-o paternalmente, emfim perguntou-lhe se queria ser deputado. Estacio não pôde reprimir um gesto de sorpreza.
—Era isso? disse elle.
—Creio que não se trata de um supplício. Uma cadeira na camara! Não é a mesma cousa que um quarto no aljube.
—Mas a que proposito...
—Ésta ideia apoquentava-me ha algumas semanas. Doia-me ve-lo vegetar os seus mais bellos annos n'uma obscuridade relativa. A política é a melhor carreira para um homem em suas condições; tem instrucção, caracter, riqueza; póde subir a posições invejaveis. Vendo isso, determinei-me a mettel-o na Cadeia... Velha. Fala-se em dissolução. Para facilitar-lhe o successo, entendi-me com duas influências dominantes, o negocio afigurasse-me em bom caminho.
Estacio ouviu com desagrado as notícias que lhe dava o médico.
—Mas doutor, disse elle depois de curto silêncio, houve de sua parte alguma precipitação. Pelo menos, de via consultar-me. Do modo por que arranjou as cousas, quasi me acho desobrigado de lhe agradecer a intenção. Quanto a acceitar, não acceito.
Camargo não perdeu a tramontana. Havia nelle a tenacidade do dogue e a tactica da serpente. Deixou passar por cima da cabeça a primeira onda de desagrado, surgiu fóra e insistiu tranquillamente:
—Vejamos as cousas com os oculos do senso-commum. Em primeiro logar, não creio que tenha outros projectos na cabeça.
—Talvez.
—Duvido que sejam mais vantajosos do que este. A sciencia é ardua e seus resultados fazem menos ruido. Não tem vocação commercial nem industrial. Medita alguma ponte-pensil entre a Côrte e Nictheroy, uma estrada até Matto-Grosso ou uma linha de navegação para a China? É duvidoso. Seu futuro tem por ora dous limites unicos, alguns estudos de sciencia e os alugueis das casas que possue. Ora, a eleição nem lhe tira os alugueis nem obsta a que continue seus estudos; a eleição completa-o dando-lhe a vida pública, que lhe falta. A unica objecção seria a falta de opinião política; mas ésta objecção não o póde ser. Hade ter, sem dúvida, meditado alguma vez nas necessidades públicas, e...
—Supponha,—é mera hypothese,—que tenho alguns compromissos com a opposição.
—Nesse caso, dir-lhe-ei que ainda assim deve entrar na camara—embora pela porta dos fundos. Se tem ideias especiaes e partidarias, a primeira necessidade é obter o meio de as expor e defender. O partido que lhe der a mão,—se não fôr o seu,—ficará, consolado com a ideia de ter ajudado a a um adversario talentoso o honesto. Mas a verdade é que não escolheu ainda entre os dous partidos; não tem opiniões feitas. Que importa? Grande numero de jovens politicos seguem, não uma opinião examinada, ponderada e escolhida, mas a do círculo de suas affeições, a que seus paes ou amigos immediatos honraram e defenderam, a que as circumstâncias lhe impõem. Dahi vem algumas legítimas conversões posteriores. Tarde ou cedo o temperamento domina as circumstâncias da origem, e do botão luzia ou saquarema nasce um magnifico lyrio saquarema ou luzia. Demais, a política é sciencia prática; e eu desconfio de theorias que só são theorias. Entre primeiro na camara; a experiencia e o estudo dos homens e das cousas lhe designarão a que lado se deve inclinar.
Estacio ouviu attento éstas vozes com que a serpente lhe apontava para a árvore da sciencia do bem e do mal. Menos curioso que Eva, entrou a discutir philosophicamente com o reptil.
—Entra-se na política,—disse elle,—por vocação legítima, ambição nobre, interesse, vaidade, e até por simples distração. Nenhum desses motivos me impelle a dobrar o cabo Tormentorio.
—Da Boa Esperança,—emendou Camargo rindo;—não supprima tres seculos de navegação.
Estacio riu-se tambem. Depois falou ao médico de sua indole e ambições. Não negava que tivesse ambições; mas nem só as havia políticas nem todas eram da mesma estatura. Os espiritos, disse elle, nascem condores ou andorinhas, ou ainda outras especies intermedias. A uns é necessario o horisonte vasto, a elevada montanha, de cujo cimo batem as azas e sobem a encarar o sol; outros contentam-se com algumas longas braças de espaço e um telhado em que vão esconder o ninho. Estes eram os obscuros, e, na opinião delle, os mais felizes. Não seduzem as vistas, não subjugam os homens, não os menciona a história em suas páginas luminosas ou sombrias; o vão do telhado em que abrigaram a prole, a árvore em que pousaram, são as testemunhas unicas, e morredoras da felicidade de alguns dias. Quando a morte os colhe, vão elles pousar no regaço commum da eternidade, onde dormem o mesmo perpétuo somno, tanta o capitão que subiu ao summo estagio por uma escala de mortos, como o cabreiro que o viu passar uma vez e o esqueceu duas horas depois. Suas ambições não eram tão infimas como seriam as do cabreiro; eram as do proprietario do campo que o capitão atravessasse. Um bom peculio, a familia, alguns livros e amigos,—não iam além seus mais arrojados sonhos.
Um sorriso de lástima foi a primeira resposta do médico.
—Meu caro Estacio,—disse, elle depois,—esse trocadilho de andorinhas e cabreiros é a cousa mais extraordinaria que eu esperava ouvir a um mathematico. Saiba que detesto egualmente a philosophia da obscuridade e a rhetorica dos poetas. Sobretudo gósto que me respondam em prosa quando falo em prosa.
—Parece-lhe que poetei? perguntou Estacio rindo.
—Despropositamente! Ora, eu falo de cousas sérias; e convem não confundir alhos, que são a metade prática da vida, com bugalhos, que são a parte ideológica e vã.
—Eu serei ideologo,
—Não tem direito de o ser.
—Pois bem, deixe-me com as minhas mathematicas, as minhas flôres, as minhas espingardas.
—Não! Ha de intercalar tudo isso com um pouco de política.
Puxando-o familiarmente pela gola do paleto, Camargo fel-o sentar ao pe de si, no banco que alli estava mais proximo. Depois falou. O novo discurso foi o mais longo que proferiu em todos os seus dias. Nenhuma das vantagens da vida pública deixou de ser apontada com uma complacencia de tentador; todas as glórias, pompas e satisfações da política, e não só as reaes, mas as ficticias ou duvidosas, foram inventariadas, pintadas, douradas e illuminadas pelo médico. Sua palavra revellou um poder de evocação, uma vehemencia, uma energia, que ninguem era capaz de suppor-lhe. O taciturno desabrochou tagarella. Para falar tanto e com tal fôrça era preciso que o animasse um grande sentimento ou um grande interesse.
Estacio, lisonjeado com a affeição que elle lhe mostrava, não teve ensejo de fazer essa reflexão. Nem se animou a repetir a recusa; adoptou o alvitre de deferir a resposta para outra occasião.
—Ja lhe disse o que sinto a tal respeito. Contudo, estou prompto a reflectir, e a consultar o padre Melchior e Helena.
O nome de Helena produziu em Camargo uma careta interior. Exteriormente não passou o effeito de um sorriso sardonico e dissimulado. Interveiu uma pitada de rapé, que o médico inseriu lentamente, depois de a extrahir lentamente de uma boceta de tartaruga, presente do conselheiro Valle.
—Helena! disse elle com alguma hesitação. Que vem fazer sua irmã neste negocio?
—É um voto,—redarguiu Estacio; e menos leve do que lhe parece. Ha nella muita reflexão escondida, uma razão clara e forte, em boa harmonia com as suas outras qualidades feminis.
Entre as sobrancelhas de Camargo projectou-se uma longa ruga, e foi toda a expressão de seu espanto e desgôsto. A resposta de Estacio revellara-lhe uma situação nova na familia: o voto de Helena, consultivo agora, podia vir a ser preponderante. Ésta solução, que porventura faria estremecer de alegria os ossos do conselheiro, não a previra o médico. Limitou-se a notal-a de si para si; e, terminando subitamente a conversa, disse:
—Consulte as pessoas de seu agrado. Quem não estiver com a minha opinião, não é seu amigo. Em todo o caso, ninguem lhe poderá affirmar que não é a amizade, a longa amizade.
Estacio cortou-lhe a palavra, apertando-lhe affectuosamente a mão. Tinham-se levantado. Era quasi meio dia; Camargo despediu-se alli mesmo; ia ver dous doentes no caminho da Tijuca. O filho do conselheiro atravessou sosinho a chacara; ia pensativo, e aborrecido. A política, na sua opinião, era uma noiva importuna; mas se todos conspirassem a favor della, não sería elle obrigado a desposal-a? A ésta reflexão respondeu a voz do padre Melchior, do alto de uma janella:
—Venha ca, senhor deputado; quando teremos o seu primeiro discurso?
D. Ursula tinha ja confiado ao velho capellão a proposta de Camargo. Consultado por Estacio, respondeu este que sua opinião era absolutamente inutil.
—Consulte suas fôrças e a responsabilidade do cargo, e escolha, concluiu o padre.
—Ja escolhi, disse Estacio; pedia seu conselho para apoiar melhor a minha propria decisão. Não é esse o destino de todos os conselhos? Decidi que não acceito a candidatura. A vida política é turbulenta de mais para o meu espirito. Estou prompto para a acção, mas não hade ser exterior. Dado o meu temperamento, que iria eu buscar á camara, além de algumas prerogativas e um papel accessorio? Eu só me meteria na política, se pudesse officiar; mas ser apenas sachristão...
—Entre o officiante e o sachristão, observou Melchior, está o prégador, que é cargo nobre e influente.
—Mas o thema do sermão, padre-mestre?—retorquiu Estacio rindo; falta-me o thema.
D. Ursula, a quem seduziam exclusivamente a posição e o rumor público em favor do sobrinho, viu naquellas razões um pretexto ou uma puerilidade. Defendeu, como pôde, a causa de Camargo; instou com o sobrinho para que reflectisse maduramente, antes de qualquer resposta definitiva. Estacio prometteu como promettêra ao médico, por simples condescendencia; mas sobretudo para pôr termo ao assumpto e ir saber a causa do sorriso quasi imperceptivel que viu roçar os labios de Helena. A moça erguera-se e dirigira-se para uma das janellas; Estacio foi até alli.
—Adivinhei pelo seu sorriso,—disse elle, que tudo isto lhe pareço pueril, e que eu faço bem em não acceitar o que se me offerece.
Helena olhou um pouco espantada para elle; mas respondeu com tranquillidade:
—Pelo contrário, penso que deve acceitar. Além de haver consentimento de minha tia, parece ser um grande desejo do pai de Eugenia.
Era a primeira vez que Helena alludia ao amor de Estacio, e fazia-o por modo encoberto e obliquo. Estacio escapou dessa vez á regra de todos os corações amantes: resvalou pela allusão e discutiu gravemente o assumpto da candidatura. Era pesado de mais para cabeça feminina; Helena intercalou uma observação sobre dous passarinhos que bailavam no ar, e Estacio aceitou a diversão, deixando em paz os eleitores.
Durante dous dias, não sahiu elle de casa. Tendo recebido alguns livros novos, gastou uma parte do tempo em os folhear, ler alguma página, collocal-os nas estantes, alterando a ordem e a disposição dos anteriores, com a prolixidade e o amor do bibliophilo. Helena ajudava-o nesse trabalho,—um pouco parecido com o de Penelope,—por que a ordem estabelecida ao meio dia era às vezes alterada às duas horas, e restaurada na seguinte manhã. Estacio, entretanto, não ficava todo entregue aos livros; admirava a solicitude da irmã, a ordem e o cuidado com que ella o auxiliava. Helena parecia não andar; seu vulto resvalava silenciosamente, de um lado para outro, obedecendo a uma indicação do irmão, ou pondo em experiencia uma ideia sua. Estacio parava às vezes fatigado; ella continuava imperturbavelmente o serviço. Se elle lhe fazia alguma observação, a moça respondia com um movimento de hombros ou um sorriso, e proseguia. Então Estacio segurava-lhe nos pulsos e exclamava rindo:
—Socega, borboleta!
Helena parava, mas eram só poucos minutos; volvia logo ao trabalho com a mesma serena agitação. Era assim que as horas se passavam na intimidade mais doce, e que a reciproca affeição ia excluindo toda a preocupação alheia; era assim que a influência de Helena assumia as proporções de voto preponderante.
No terceiro dia D. Thomasia e Eugenia foram jantar a Andarahy. Eugenia estava nesse dia mais sisuda e docil que nunca; dissera-se que trazia a alma tão nova como o vestido, e menos enfeitada que elle. Estacio sentiu-se satisfeito; o ideal reconciliava-se com o real. Poderam falar sosinhos mais de uma vez; todas as pessoas da casa pareciam conspiradas para lhes deixar a solidão. Foi ella quem recordou a proposta política do pai, da qual soubera casualmente, ouvindo a narração que este fizera a D. Thomasia. O desejo de Eugenia era pela affirmativa; e Estacio, receioso de despertar os caprichos adormecidos da moça, frouxamente resistiu, e consentiu ainda mais frouxamente em reconsiderar o assumpto.
—Deputado! exclamava Eugenia com os olhos no ceu.
Estacio acompanhou Eugenia e D. Thomasia na carruagem que as levou ao Rio Comprido. O dia fôra mais ou menos alegre; a viagem foi divertida e palreira como um regresso de romaria. Os cavallos mostravam-se tão lepidos como as pessoas que iam no carro, e encurtaram alguns minutos o caminho, com desgôsto de Eugenia.
Voltando a Andarahy, Estacio trazia a alma pura de todas as más impressões, que lhe deixavam usualmente as visitas á casa de Camargo. Nenhum dissentimento houvera naquelle dia. Eugenia parecia modificada. Em casa esperava-o porém uma desagradavel noticia: a tia sentira-se incommodada pouco depois que elle sahíra e recolhera-se ao quarto. O caso affligiu-o; mas não tardou a apparecer Helena, que o tranquilisou, dizendo-lhe que D. Ursula tinha apenas uma forte dor de cabeça, ja diminuida com o emprêgo de um remedio cazeiro.
No dia seguinte de manhã, informado de que a tia dormia socegadamente, Estacio abriu uma das janellas do quarto e relanceou os olhos pela chacara. A alguns passos de distância, entre duas larangeiras, viu Helena a ler attentamente um papel. Era uma carta, longa de todas as suas quatro laudas escriptas. Seria alguma mensagem amorosa?
Ésta ideia molestou-o singularmente. Affastou-se da janella, conchegou as cortinas, e pela fresta procurou observar a irmã. Helena estava de pe, no mesmo logar, e percorria rapidamente as linhas, até o final da ultima página. Alli chegando, deu dous passos, tornou a parar volveu ao princípio da carta, para a ler de novo, não ja depressa, mas repousadamente. Estacio sentiu-se movido de imperiosa curiosidade, á qual vinha misturar-se uma sombra de despeito e ciume. A ideia de que Helena podia repartir seu coração com outra pessoa desconsolava-o ao mesmo tempo que o irritava. A razão de semelhante exclusivismo não a explicou elle, nem tentou investigal-a; sentiu-lhe somente os effeitos, e ficou alli sem saber que faria. Duas vezes sahiu da janella para ir ter com a irmã, mas recuou de ambas as vezes, reflectindo que a curiosidade pareceria impolidez, se não era talvez, tyrania. Ao cabo de alguns minutos de hesitação, sahiu do quarto e dirigiu-se á chacara.
Quando alli chegou, Helena passeava lentamente com os olhos no chão. Estacio parou deante della.
—Ja fora de casa! exclamou em tom de gracejo.
Helena tinha a carta na mão esquerda; instinctivamente a amarrotou como para escondel-a melhor. Estacio, a quem não escapou o gesto, perguntou-lhe rindo se era alguma nota falsa.
—Nota verdadeira, disse ella alisando tranquillamente o papel, e dobrando-o conforme recebêra; é uma carta.
—Segredos de moça?
—Quer lel-a? perguntou Helena apresentando-lh'a.
Estacio fez-se vermelho e recusou com um gesto. Helena dobrou lentamente o papel e guardou-o na algibeira do vestido. A innocencia não teria mais puro rosto; a hypocrisia não encontraria mais impassivel máscara. Estacio contemplava-a a um tempo envergonhado e suspeitoso; a carta fazia-lhe cocegas; seu olhar ambicionava ser como o da Providencia que penetra nos mais intimos refolhos do coração. Vieram, entretanto, dizer a Helena que D. Ursula lhe pedia fôsse ter com ella. Estacio ficou só. Uma vez só, entregou-se a um inquerito mental sôbre a procedencia da mysteriosa missiva. Um indicio havia de que podia conter alguma cousa secreta; era o gesto com que ella a escondeu. Mas não podia ser de alguma antiga companheira do collegio, que lhe confiava segredos seus? Estacio abraçou com alvorôço ésta hypothese. Depois, occorreu-lhe que, ainda provindo de uma amiga, a carta podia tratar de algum idyllio de collegio, em que Helena fosse protagonista, idyllio vivo ou morto, página de esperança ou de saudade. Ainda nesse caso, que tinha elle com isso?
Fazendo ésta ultima reflexão, Estacio sacudiu do espirito o assumpto e seguiu a examinar as novas obras da chacara, entre as quaes figurava um vasto tanque. Ja alli estavam os operarios; ia começar o trabalho do dia. Estacio viu a obra feita e deu várias indicações novas. Algumas eram contrárias ao plano assentado; como lhe fizessem tal observação, Estacio rectificou-as. Depois admirou-se de não ver um vaso, que alias dous dias antes mandara remover; emfim recommendou a rega de uma planta, ainda humida da agua que o feitor lhe deitára nessa manhã.
D. Ursula não estava de todo boa, mas pôde almoçar á mesa commum. O sobrinho appareceu aborrecido; a sobrinha triste; o dialogo foi mastigado como o almôço. No fim deste, recebeu Estacio uma carta de Eugenia. Era uma tagarelice meia frivola, meia sentimental, mistura de risos e suspiros, sem objecto definido, a não ser pedir-lhe que escrevesse, se não pudesse ir vel-a.
Acabava elle de ler a carta, quando Helena lhe appareceu á porta do gabinete. Não a escondeu; teve um pensamento singular: mostral-a à irmã, na esperança de que ésta, pagando-lhe com egual confiança, lhe mostrasse a sua,—ideia que revellava o seu nenhum conhecimento do espirito das mulheres, porquanto só a indiscrição masculina era capaz de cahir em semelhante laço. Helena percorreu com os olhos a carta de Eugenia e esteve algum tempo silenciosa.
—Permitte-me um conselho? perguntou ella.
E como Estacio respondesse com um gesto de assentimento:
—Va ter com Eugenia, solicite licença para ir pedil-a a seu pai, e conclua isso quanto antes. Não é verdade que se amam? della creio poder affirmar que sim; de voce...
—De mim?
—Penso que é mais duvidoso; ou voce é mais habil. Hade ser isso. Naturalmente parece-lhe fraqueza amar,—isto é, a cousa mais natural do mundo,—a mais bella,—não direi a mais sublime. Os homens serios tem preconceitos extravagantes. Confesse que ama,—que não é indifferente a esse sentimento inexprimivel que liga, ou para sempre, ou por algum tempo, duas creaturas humanas.
—Ou por algum tempo! repetiu mentalmente Estacio.
E éstas quatro palavras tão naturaes e tão communs tinham ares de uma revellação nova no estado de espirito em que elle se achava. Se Helena tivesse proposito de lhe lançar a perplexidade na alma não empregaria mais efficaz conceito. Sería na verdade aquelle amor tão travado de desanimos, dissentimentos e alternativas, tão discutido em seu proprio coração, seria uma affeição destinada a perecer no occaso da primeira lua matrimonial?
—Pois bem, concordou elle, ao cabo de alguns instantes; é verdade. Eugenia não me é indifferente; mas poderei estar certo dos sentimentos della? Ella mesma poderá affirmar alguma cousa a tal respeito? Ha alli muita frivolidade que me assusta; illude-a talvez uma impressão passageira.
—Pode ser; mas ao marido cabe a tarefa de fixar essa impressão passageira... O casamento não é uma solução, penso eu; é um ponto de partida. O marido fara a mulher. Convenho que Eugenia não tem todas as qualidades que voce desejaria; mas não se póde exigir tudo; alguma cousa é preciso sacrificar, e do sacrificio recíproco é que nasce a felicidade doméstica.
As reflexões eram exactos: por isso mesmo Estacio as interrompeu. O filho do conselheiro achava-se n'uma posição difficil. Caminhara para o casamento com os olhos fechados; ao abril-os viu-se á beira de uma cousa que lhe pareceu abysmo, e era simplesmente um fôsso estreito. De um pulo poderia transpol-o; mas, se não era irresoluto nem debil, tinha elle acaso vontade de dar esse salto?
Insistindo Helena, prometteu elle que nessa tarde iria visitar Camargo. De tarde desabou um temporal violento. A fôrça do vento e da trovoada abrandou; mas a chuva continuou a cahir com a mesma violencia; era impossivel ir ao Rio Comprido. Estacio estimou aquelle obstaculo; era melhor adorar de longe a imagem da moça do que ir colhêr algum desgôsto juncto della.
De pe, encostado a uma das vidraças da sala de visitas, via elle cahir os grossas toalhas de agua. A seu lado estava sentada Helena, não alegre, mas taciturna e melancholica.
—É tão bom ver chover quando estamos abrigados, exclamou elle. Tenho la na estante um poeta latino que diz alguma cousa neste sentido... Que tem voce?
—Estou pensando nos que não tem abrigo, ou o tem mau; nos que não tem neste momento nem tectos solidos nem corações amigos ao pe de si.
A voz da moça era trémula; uma lagryma lhe brotou dos olhos, tão rapida que ella não teve tempo de a dissimular. Sorprehendida nessa manifestação de sensibilidade, inexplicavel talvez para o irmão, ergueu-se e procurou gracejar e rir. O riso parecia uma cristalisação da lagryma; e o gracejo tinha ares do responso. Estacio não se illudiu; nada daquillo era claro,—ou era tão claro como a carta. Seu olhar, severo e frio, interrogou mudamente a moça. Helena, que tivera tempo de tranquillisar-se, voltou o rosto para a rua, e começou a rufar com os dedos na vidraça.
Naquella mesma noite D. Ursula, que não havia de todo melhorado, adoeceu devéras. A familia, mal convalecida da perda de seu velho chefe, via-se agora ameaçada de uma nova dor, em todo o caso exposta a novos receios. O Dr. Camargo declarou que o caso era grave, e deu principio a rigoroso tratamento.
Helena era naquella occasião a natural enfermeira. Pela primeira vez patenteou-se em todo o explendor a dedicação filial da moça, sua constancia, solicitude e tino. As horas do dia, e não poucas noites inteiras, passava-as na alcova de D. Ursula, attenta a todos os cuidados que a gravidade da enfêrma exigia. Os remedios e o pouco alimento que ésta podia receber não lhe eram dados por outras mãos. Helena velava á cabeceira durante o somno leve e interrompido da doente, achando em suas proprias fôrças a resistencia que a natureza confiou especialmente ás mães. Quando dava algum repouso ao corpo, não era elle ininterrupto nem longo; e mais de uma vez, alta noite, erguia-se do leito, collocado provisoriamente no quarto contiguo, para ir espreitar a mucama que em seu logar acompanhava a enfêrma. As prescripções do médico era ella quem as recebia e cumpria. A voz dura e sêcca com que Camargo lhe falava não era propria a tornal-o amavel e aceito, mas Helena cerrava os ouvidos á antipathia do homem para só obedecer ao médico. Este não tinha outra pessoa a quem interrogasse acerca dos phenomemos da doença; nem podia achar quem melhor os observasse e referisse; fôrça lhe era acceital-a. Assim que, essas duas pessoas que se repeliam e detestavam, iam de accordo desde que se tratava da vida de um terceiro.
O que completava a pessoa de Helena e ainda mais lhe mereceu o respeito de todos é que, no meio das occupações e preocupações daquelles dias, não fez padecer um só instante a disciplina da casa. Ella regeu a familia e serviu a doente, com egual desvello e beneficio. A ordem das cousas não foi alterada nem esquecida fóra da alcova de D. Ursula; tudo caminhou do mesmo modo que antes, como se nada extraordinario se houvesse dado. Helena sabia dividir a attenção sem dispersal-a, que é o principal segrêdo do trabalho fecundo.
De si é que ella não curou muito. A toilette era singella e descuidada. Os cabellos, colhidos á pressa e presos por um pente no alto da cabeça, não receberam de sua dona, em todo aquelle tempo, a fórma elegante e graciosa, com que ella os saiba realçar. Accrescia o abatimento e pallidez, que era impossivel evitar no meio de tanta fadiga, certo cançasso dos olhos, que os fazia molles e talvez mais adoraveis, um rosto sem riso nem viveza, um silêncio attento e laborioso.
A doença durou cêrca de vinte dias. Afinal, triumphou a sciencia e a propria natureza de D. Ursula, robusta apezar dos annos. A convalecença começou; com ella volveu a satisfação da familia. O papel de Helena não estava acabado; diminuia, contudo, e Estacio interveio para que a irmã tivesse, enfim, alguns dias de absoluto repouso. Ella recusou, dizendo que o repouso perdido aos poucos seria aos poucos recuperado.
Havia no coração de D. Ursula uma fonte de ternura, que Helena devia tocar, para jorrar livre e impetuosamente. Sua dedicação, em tal crise foi a vara mysteriosa daquella Oreb. A affeição da tia era até então frouxa, voluntaria e deliberada. Depois da molestia, avultou expontanea. A experiencia do caracter da moça dera esse resultado inevitavel. Toda a prevenção cessou; a gratidão da vida ligou fortemente o que tantas circumstâncias anteriores pareciam separar. Não o occultou a irmã do conselheiro; suas maneiras não tinham ja acanhamento nem reserva; as palavras subiam do coração á boca sem atenuação nem cálculo; fez-se carinhosa e mãe.
No dia em que ella pôde sahir do quarto pela primeira vez, Helena deu-lhe o braço e levou-a até á sala de costura e das reuniões íntimas. Estacio amparou-a do outro lado. Alli chegando, foi ella sentada n'uma poltrona. Estacio abriu um pouco a janella, para penetrar além da luz, um pouco de ar. D. Ursula respirou á larga, como lavando o pulmão cora aquella primeira onda de vida. Depois, segurando as mãos de Helena, que ficára de pe a seu lado, fel-a inclinar a fronte e imprimiu-lhe um beijo longo e verdadeiramente maternal. Estacio approximara-se; aquella manifestação encheu-o de júbilo.
—Bem merecido beijo!—exclamou elle. Helena foi um anjo em todo este tempo.
—Bem sei,—retorquiu D. Ursula; foi um verdadeiro anjo, foi mulher, mãe e filha. Obrigada, Helena! Póde ser que a medicina tenha ajudado a cura, mas o principal merito é só teu.
Helena abraçou a convalecente.
—Estacio,—disse ésta; agradece a tua irmã, como eu fiz.
Estacio inclinou-se para Helena afim de lhe pousar na fronte o casto ósculo de irmão. Não o conseguiu, porque Helena desviando o busto e reclinando a cabeça para traz, estendeu-lhe sorrindo a mão esquerda e disse:
—Não foi serviço que merecesse tanta paga; basta um apêrto de mão e o affecto de todos.
Estacio apertou-lhe a mão, e sentiu-lh'a trémula. Aquelle movimento de castidade não lhe pareceu exagerado nem descabido; achou-a assim mais bella. Uma creatura tão ciosa de si mesma que nem admittia a caricia do irmão, não era digna de honrar o nome da familia?
A convalecença de D. Ursula foi lenta, e não a houve mais rodeada de cuidados e attenções. Os dous sobrinhos não a deixaram um instante sosinha, e inventavam toda a sorte de recreio com que pudessem distrahil-a: jogos de familia ou leitura, musica ou simples palestra íntima. Uma vez lembraram-se de representar, só para ella, uma comedia de duas pessoas. Outra vez, Helena organizou um sarau musical, em que tomaram parte Eugenia Camargo, e mais tres moças da visinhança. Foi a primeira vez que a ouviram cantar. O successo não podia ser mais completo. Como o applauso que lhe deram pareceu desconsolar um pouco a filha do médico, Helena preparou-lhe habilmente um triumpho, fazendo-a executar ao piano uma composição brilhante, sua favorita. Estacio, que quasi não tirava os olhos da irmã, percebeu-lhe a intenção, e disse-lh'o. Helena esquivou-se à allusão; mas, insistindo elle:
—Não ha nada que admirar, disse ella; Eugenia toca perfeitamente; ora justo que tambem fosse applaudida. Se ha arte no que fiz, parece-me que é a mais singella do mundo. O melhor modo de viver em paz, é nutrir o amor proprio dos outros com pedaços do nosso. Mas, olhe; Eugenia nem precisa disso; tem a primazia da belleza. Veja se ha creatura mais deliciosa.
Estacio dirigiu os olhos para onde Helena lhe indicava. Era um grupo de duas moças e dous rapazes. Eugenia pelo braço de um delles, estava de pe, ouvindo sem attender as palavras, que alli diziam, por que seus olhos inquietos derramavam-se por toda ella e pela sala. Admirava-se e espreitava a admiração dos outros. A figura era realmente graciosa; mas Estacio quizera-a mais inconsciente, menos preoccupada do effeito que produzia.
—Ha cem bellezas como aquella, disso elle.
—Estacio! exclamou Helena com ar de reprehensão.
—A belleza é como a bravura; vale mais se não a mettem á cara dos outros.
—Voce é um ingrato!
Naquella noite ficou mais patente que nunca a preponderancia ganha por Helena, que se tornara a verdadeira dona da casa, a directora ouvida e obedecida. D. Ursula cedêra, em poucas semanas, o que lhe negára durante mezes.
Por que razão, pensando em todas as cousas, não conseguíra ella apressar o casamento de Estacio? Estacio continuava a hesitar, a recuar, a adiar; pedia tempo para reflectir. Suas ausencias no Rio Comprido iam-se tornando mais longas; os dias, quasi todos, eram desfiados no remanso da familia. Mas Helena insistiu tanto que elle prometteu fazer o solemne pedido no primeiro dia do anno.
Estacio não havia esquecido a carta lida pela irmã; mas por mais que a espreitasse e a estudasse nada descobria que lhe fizesse suppor affeição encoberta. Nenhum dos homens que iam alli,—e eram poucos,—parecia receber de Helena mais do que a cortezia commum. D. Ursula, a quem elle incumbira de interrogar a irmã acerca das palavras que ésta lhe dissera na manhã do primeiro passeio, não obteve resposta mais decisiva.
A promessa de ir pedir Eugenia, fel-a Estacio na segunda semana de Dezembro, em uma noite sem visitas que eram as melhores noites para elle. No dia seguinte de manha, erguendo-se tarde, soube que Helena sahíra a cavallo logo cedo.
—Sosinha?
—Com o Vicente.
Vicente era o escravo que, como sabemos, se affeiçoára, primeiro que todos, a Helena; Estacio designara-o para servil-a. A notícia do passeio não lhe agradou. O tempo andava com o mesmo passo de costume; mas á anciedade do mancebo affigurava-se que era mais longo. Estacio chegava á janella, ia até o portão da chacara, cora ar de apparente indifferença, que a todos illudia, a começar por elle proprio. N'uma das vezes em que voltou a casa, achou levantada D. Ursula; falou-lhe; D. Ursula sorriu com tranquillidade.
—Que tem isso? disse ella. Ja uma vez sahiu a passeio com o Vicente e não aconteceu nada.
—Mas não é bonito, insistiu Estacio. Não está livre de um acto de desattenção.
—Qual! Toda a visinhança a conhece. Demais, Vicente ja não é tão creança. Tranquillisa-te, que ella não tarda. Que horas são?
—Oito.
—Dez ou quinze minutos mais. Parece-me que ja ouço um tropel.
Os dous estavam na sala de juntar: passaram á varanda, e viram effectivamente entrar no terreiro Helena e o pagem. Helena deu um salto e entregou a redea de Moema ao pagem que acabava de apear-se. Depois subiu a escada da varanda. Ao collocar o pe no primeiro degrau, deu com os olhos nu irmão e na tia. Fez-lhes um comprimento com a mão, e subiu a ter com elles.
—Ja de pe! exclamou abraçando D. Ursula.
—Ja, para lhe ralhar,—disse ésta sorrindo. Que ideia foi essa de bater a linda plumagem? É a segunda vez que voce se lembra de sahir sem o urso do seu irmão.
—Não quiz incommodar o urso, replicou ella voltando-se para Estacio. Tinha immensa vontade, de dar um passeio, e Moema tambem. Apenas hora e meia.
Aquelle dia foi o de maior tristeza para a moça. Estacio passou quasi todo o tempo em seu gabinete; nas poucas occasiões em que se encontraram, elle só falou por monosyllabos, ás vezes por gestos. De tarde, acabado o jantar, Estacio desceu á chacara. Ja não era só o passeio de Helena que o mortificava; ao passeio jantava-se a carta. Teria razão a tia em suas primeiras repugnancias? Como elle fizesse essa pergunta a si mesmo, ouviu atraz de si um passo apressado e o farfalhar de um vestido.
—Está mal commigo? perguntou Helena com doçura.
Ao ouvir-lhe a voz, fundiu-se a colera do mancebo. Voltou-se; Helena estava deante delle, com os olhos submissos e puros. Estacio reflectiu um instante.
—Mal? disse elle.
—Parece que sim. Não me fala, não se importa commigo,—anda carrancudo... Seria por que eu sahi do manhã?
—Confesso que não gostei muito.
—Pois não sahirei mais.
—Não; póde sahir. Mas está certa de que não corre nenhum perigo indo só com seu pagem?
—Estou.
—E se eu lhe pedir que não saia nunca sem mim?
—Não sei se poderei obedecer. Nem sempre voce poderá acompanhar-me; além disso, indo com o pagem, é como se fosse só; e meu espirito gosta ás vezes de trotar livremente na solidão.
—Naturalmente a pensar de cousas amorosas... acrescentou Estacio cravando os olhos interrogadores na irmã.
Helena não respondeu; tomou-lhe o braço e os dous seguiram silenciosamente uns dez minutos. Chegando a um banco de madeira, Estacio sentou-se; Helena ficou de pe diante delle. Olharam um para outro sem proferir palavra; mas o labio de Estacio tremêra duas ou tres vezes como hesitando no que ia dizer. Por fim, o moço venceu-se.
—Helena, disse elle, voce ama.
A moca estremeceu e corou vivamente; olhou em volta de si como assustada e pousou as mãos nos hombros de Estacio. Reflectiu ella no que disse depois? É duvidoso; mas a voz, que nessa occasião parecia concentrar todas as melodias da palavra humana, suspirou lentamente:
—Muito! muito! muito!
Estacio empallideceu. A moça recuou um passo, e, trémula, poz o dedo na boca como a impor-lhe silêncio. A vergonha flamejava em seu rosto; Helena deu as costas ao irmão e affastou-se rapidamente. Ao mesmo tempo, a sineta do portão era agitada com fôrça, e uma voz atroava a chacara:
—Licença para o amigo que vem do outro mundo!
Estacio dirigiu-se ao portão. Abria-o; um moço que alli estava entrou precipitadamente. Era Mendonça. Os dous mancebos lançaram-se nos braços um do outro. Helena, a alguma distância, presenciou aquella effusão, e não lhe foi difficil adivinhar quem era o recem-chegado.
A effusão cessou, ou antes interrompeu-se, para repetir-se. Quando os dous rapazes se julgaram assaz abraçados, tomaram o caminho da casa. Helena, que estava um pouco adiante delles, foi apresentada a Mendonça. Ao ouvir que era irmã de Estacio, Mendonça ficou naturalmente espantado. Cortejou ceremoniosamente a moça, e os dous seguiram até a casa, onde pouco depois entrou Helena.
Mendonça era da mesma estatura que Estacio, um pouco mais cheio, hombros largos, physionomia risonha e franca, natureza mobil e expansiva. Vestia com o maior apuro, como verdadeiro parisiense que era, arrancado de fresco ao boulevard de Gand, ao cafe Tortoni e ás recitas do Vaudeville. A mão larga e forte calçava fina luva côr de palha, e sôbre o cabello, penteado a capricho, pousava um chapeu de fabrica recente.
Estacio, antes de entrar, explicou ao amigo a situação de Helena, cujas qualidades e educação louvou, com o fim de lhe fazer comprehender o respeito e a affeição que ella de todos merecia. Helena adivinhou esse trabalho preparatorio do irmão logo que entrou na sala.
Mendonça divertiu a familia uma parte da noite contando os melhores episodios da viagem. Era narrador agradavel, fluente e pitoresco, dotado de grande memoria e certa fôrça de observação. Seu espirito galhofeiro achava mais facilmente o lado comico das cousas; e mais se comprazia em dizer os accidentes de um jantar de hotel ou de uma noite de theatro que em descrever as bellezas da Suissa ou os destroços de Roma.
A visita durou pouco mais do hora. Estacio quiz acompanhal-o até a cidade; elle não consentiu que fosse além do portão. Atravessando a chacara, falaram do passado, e um pouco do futuro, a trechos soltos, como o lugar e a occasião lhes permittiam. Mendonça, vendo que Estacio não tocava em um ponto essencial, foi o primeiro que o aventou.
—Fallaste-me em uma de tuas cartas de certa Eugenia...
—A filha do Camargo.
—Justo. Negocio roto?
—Quasi terminado.
—Terminado... na egreja, supponho?
—Tal qual.
—Quando?
—Brevemente.
—Marido, emfim! Era só o que te faltava. Nasceste com a bossa conjugal, como eu com a bossa viajante, e não sei qual de nós terá razão.
—Talvez ambos.
—Creio que sim. Tudo depende do gôsto de cada um. O casamento é a peor ou a melhor cousa do mundo; pura questão de temperamento. Eu vi algumas vezes essa moça; era então muito menina. Não te pergunto se é um anjo...
—É um anjo.
—Como todas as noivas. Feliz Estacio! Segues a carreira de tua vocação, em quanto que eu...
—Tu?
—Interrompo a minha e talvez para sempre. Preciso cuidar da vida; não sou capitalista, nem meu pae tão pouco. Adeus, viagens!
—Tanto melhor! Arranjo-te noiva. Não é a tua vocação, mas não serás o primeiro que a erre, sim que dahi venha mal ao mundo.
—Pois arranja la isso. Em todo caso não será tua irmã.
—Oh! não, disse vivamente Estacio.
—Na verdade, é bonita; mas... se permittes a franqueza de outr'ora, acho-lhe uma costella de desdem...
—Que ideia! É a mais affavel creatura do mundo. Veras mais tarde; hoje estava talvez preoccupada. Em todo o caso, não havias de querer que ella saltasse a dansar contigo na sala, de mais a mais sem musica.
Mendonça acabava de accender um charuto; apertou a mão de Estacio e sahiu. Estacio accordou de um sonho. A realidade poz-lhe suas mãos de chumbo e repetiu-lhe ao ouvido a confissão interrompida de Helena. Ancioso por saber o resto, entrou elle immediatamente em casa. A diligencia foi esteril, por que a irmã recolhera-se a seu aposento. Estacio imitou-a. Era forçoso esperar uma noite inteira, demora que o affligia, porque, dizia elle consigo mesmo, cumpria-lhe velar pela sorte de Helena, como irmão e chefe de familia, indagar de seus sentimentos, e ordenar o que fôsse melhor. Uma noite não em muito; comtudo, a preoccupação retardou-lhe o somno. A confissão subita, laconica e eloquente da irmã ficara-lhe no espirito como se fôra o echo perpétuo de uma voz extincta.
Nem no dia seguinte nem nos subsequentes alcançou o que esperava. Helena, ou evitava ficar a sos com elle, ou esquivava-se a maior explicação. Nos passeios matinaes, que eram frequentes, procurou Estacio mais de uma vez enterreirar a conversa no assumpto que, mais que nenhum outro, o preoccupava. Helena ouvia com um sorriso, e respondia com uma gracejo; depois dava de redea á conversação e galopada na direcção opposta. Como a fantasia era campo vasto, nunca mais o moço lograva trazel-a ao ponto de partida.
Um dia, a insistencia de Estacio teve tal caracter de autoridade, que pareceu constranger e molestar Helena. Ella replicou com remoque; elle redarguiu com uma advertencia aspera. Iam ambos a pe, levando os animaes pela redea. Ouvindo a palavra do irmão, Helena susteve o passo, e fitou-o com um olhar digno, um desses olhares que parecem vir das estrêllas, qualquer que seja a estatura da pessoa. Estacio possuia essas duas cousas que nunca hão de conhecer corações mediocres: a nobre retratação do êrro e a generosidade do perdão. Viu que cedêra a um mau impulso, e confessou-o; mas confessou-o com palavras taes, que Helena travou-lhe da mão e lhe disse:
—Obrigada! Se me não dissesse isso, ver-me-hia desparar por este caminho fóra até o fim do mundo ou até o fim da vida.
—Helena!
—Oh! não é vão melindre, é a propria necessidade da minha posição. Voce póde encaral-a com olhos benignos; mas a verdade é que só as azas do favor me protegera. Pois bem, seja sempre generoso, como foi agora; não procure violar o sacrario de minha alma. Não insista em pedir a explicação de palavras mal pensadas e ditas em ma hora...
—Mal pensadas? Póde ser; mas por isso é que são verdadeiras; se voce tivera tempo de as meditar, guardal-as-hia comsigo, avara de seus segredos e suspeitosa de corações amigos. Meu fim era somente ajudal-a a ser venturosa, destruir...
—É tarde! interrompeu a moça consultando o reloginho preso á cintura. Vamos?
Estacio sorriu melancholicamente; offereceu-lhe o joelho, ella pousou nelle o pesinho afilado e leve e saltou no selim. A volta foi menos alegre do que costumava ser. Elles falavam, mas a palavra vinha aos labios, como uma onda vagarosa e surda; nenhuma colera, mas nenhuma animação. Assim correu aquelle dia; assim correriam outros, se não fôra a vara magica de Helena. Seu natural influxo era tão forte, que o irmão voltou desde logo ás boas, sendo as melhores horas as que passava ao pe della, a escutal-a e a vel-a, ambos contentes e felizes. O episodio da confissão vinha as vezes, como hóspede importuno, projectar entre elles seu nebuloso perfil; mas o espirito de Estacio repellia-o, e a alegria da irmã fazia o resto.
Entretanto, graças ao amigo recem-chegado, o filho do conselheiro sahiu um pouco de suas regras habituaes, e começou a provar alguma cousa mais da vida exterior. Mendonça buscava realizar, em miniatura, o seu esvaido ideal parisiense; havia nelle o movimento, a agitação, a galhofa, que absolutamente faltavam a Estacio, e vieram dar-lhe á vida a variedade que ella não tinha. Alguns expectaculos e passeios, uma ou outra ceia alegre, mas casta, tal foi o programma de uma parte infima da existencia de Estacio. Para contrastar com ella, tinha elle as manhãs do Andarahy e algumas noites do Rio Comprido. Ao amigo e á sua consciencia, dizia o moço que estava a despedir-se da liberdade.
A influência de Mendonça estendeu-se á propria casa de Estacio. Mendonça gostava sobretudo da variedade ao viver; não tolerava os mesmos prazeres, nem os mesmos charutos; para os apreciar tinha necessidade do os alternar frequentemente. Se fôsse possivel, era capaz de fazer-se monge durante um mez, antes do carnaval, trocar o hábito por um dominó, e atar as últimas notas das matinas com os preludios da contradança. Sua fidelidade á moda custava-lhe um pouco quando ésta não ia a passo com a sua impaciencia. Em sua opinião o que distinguia o homem do cão era a faculdade de fazer com que uma noite se não parecesse com outra. O Rio de Janeiro não lhe offerecia a mesma variedade de recursos que Paris; mas seu genio era inventivo e fertil, e não lhe faltaria meio de fugir á uniformidade dos habitos.
O peor que lhe acontecia era a disparidade entre os desejos e os meios. Filho de um commerciante, apenas remediado, não teria elle podido realizar a viagem á Europa, nas proporções largas em que o fez, a não ser a intervenção benefica de uma parenta velha, que se incumbira de lhe ministrar os recursos de que elle carecesse durante aquella longa ausencia. Nem a parenta continuaria a abrir-lhe a bolsa, nem pae queria crear-lhe habitos de ociosidade. Tratava este, portanto, de obter-lhe um emprêgo público. Mendonça estava longe de recusar; pedia somente que o emprêgo o não deslocasse da Côrte.
Inquieto, amigo da vida ruidosa e facil, intelligente sem largos horisontes, possuindo apenas a instrucção precisa para desempenhar-se regularmente de qualquer commissão de certa ordem, Mendonça, com todos os seus defeitos e boas qualidades, era homem agradavel e acceito. Seus defeitos eram antes do espirito que do coração. A variedade que elle pedia para as cousas externas e de menor tomo, não a praticava em suas affeições, que eram geralmente inalteraveis e fieis. Era capaz de sacrificio e dedicação; sobretudo, se lhe não pedissem o sacrificio deliberado ou a dedicação reflectida, mas aquelles que exige uma circumstância imprevista e subita.
Não admira que a presença de tal homem viesse modificar o tom da sociedade de que era centro a familia de Estacio, quando elle alli fazia alguma apparição. Era o sal daquella terra. Não tinha a rijeza do figurino, nem a morgue do estrangeirado. A tesoura do alfaiate não lhe dissimulára a indole expansiva e franca. Acolhido como um filho, tinha alli uma porção de sua casa. Que melhor aspecto podia ter a vida em taes condições, naquella familia ligada por um sentimento de amor?
A noite do ultimo dia do anno veiu turvar a limpidez das aguas.
Naquelle dia fazia annos Estacio, e D. Ursula assentira receber algumas pessoas a jantar, e outras mais á noite, em reunião íntima. Ella e Helena tomavam a peito fazer com que a pequena festa de familia fosse digna do objecto. Estacio opinou pela suppressão do sarau; mas era difficil alcançar a desistencia de corações que o amavam.
Logo de manhã, como elle se levantasse cedo, encontrou Helena que o convidou a seguil-a á sala de costura.
—Quero dar-lhe o meu presente de annos, disse ella.
Alli entrados, abriu a moça uma pasta de desenhos, na qual havia um só, mas significativo: era uma parte da estrada de Andarahy—a mesma por onde elles costumavam passear, mas com algumas particularidades do primeiro dia. Dous cavalleiros, elle e ella, iam subindo a passo lento; ao longe, e acima via-se a velha casa da bandeira azul; no primeiro plano, desciam o preto e as mulas. Por baixo do desenho uma data; 25 de Julho de 1850.
Estacio não pôde conter um gesto de admiração, quando a moça retirou de cima do desenho a folha de papel de seda que o cobria. Apertou a mão de Helena e examinou o trabalho. Notou a firmeza das linhas, a exacção das circumstâncias locaes, as impressões de uma hora fugitiva que o lapis da irmã tivera a arte de fixar no papel.
—Não podia fazer-me presente melhor, disse elle; da-me uma parte de si mesma, um fructo de seu espirito. E que fructo! Não ha muita moça que desenhe assim. Era talvez por isso que voce sahia algumas vezes sosinha com o pagem?
Estacio contemplou ainda instantes o desenho; depois levou-o aos labios e beijou-o. O ósculo acertou de cahir na cabeça da cavalleira. Foi o original que corou.
—Andavam a gabar meus talentos,—disse Helena apos um instante; tive a vaidade de dar uma pequena amostra...
—Excellente amostra! Não acha, titia? disse, o moço a D. Ursula, que nesse instante apparecêra á porta, trazendo o seu presente, n'uma bocetinha de joalheiro.
D. Ursula não tinha, de certo, o instincto da arte; mas o amor da familia lhe ensinára uma esthetica do coração, e essa bastou a fazel-a admirar o trabalho de Helena.
—Mas que digo eu todos os dias? exclamou D. Ursula. Ésta pequena sabe tudo!
—Quasi tudo, emendou Helena; ignoro, por exemplo, como lhes hei de agradecer...
—O que, tontinha? interrompeu a tia. Algum, disparate, naturalmente, improprio em qualquer dia, mas muito mais ainda no dia de hoje.
Em quanto as duas senhoras foram tratar das disposições do dia, Estacio mandou sellar o cavallo e sahiu. Queria comparar ainda uma vez o desenho do Helena com o sitio copiado. A fidelidade era completa, e o quadro seria absolutamente o mesmo, se dessem algumas circumstâncias da primeira occasião. Helena não ia ao lado delle; mas a vinte braças de distância fluctuava a bandeira azul da casa do alpendre. Estacio afrouxou o passo do cavallo, como saboreando as recordações da primeira manhã, quando Helena se lhe mostrára tão singularmente commovida. Volveu a reflectir na situação della, e na paixão que lhe confessára, dias antes, com tamanha vehemencia. Se se tratava de uma felicidade possivel, embora difficil, Estacio prometteu a si mesmo alcançar-lh'a. Não era isso servir o sangue do seu sangue?
A casa do alpendre, até alli indifferente a Estacio, creava agora para elle um interesse especial. Á medida que se approximava, ia achando no edificio a fiel reproducção do desenho. Este não apresentava todas as particularidades da vetustez; mas continha as mesmas disposições exteriores, como se fôra feita deante do original.
A uma das janellas estava um homem, com a cabeça inclinada, attento a ler o livro que tinha sobre o peitoril. Nessa attitude não era facil examinal-o; affigurava-se, entretanto, uma creatura mascula e bella. A duas braças de distância, o individuo levantou a cabeça, e cravou em Estacio um par de olhos grandes e serenos; immediatamente os retirou, baixando-os ao livro.
—Mal sabes tu, philosopho matinal, disse Estacio comsigo,—mal sabes tu que a tua casa teve a honra de ser reproduzida pela mais bella mão do universo!
O philosopho continuou a ler, e o cavallo continuou a andar. Quando Estacio regressou dahi a alguns minutos, achou somente a casa; o morador desaparecêra; circumstância indifferente, que escapou de todo à attenção do moço. Nem elle pensava mais naquillo; seu pensamento trotava largo, á ingleza, como o ginete, e ambos bebiam o ar, como anciosos de chegar ao ponto da partida.
A festa correu animada, posto o reunião fôsse restricta. Algumas voltas da valsa, duas ou tres quadrilhas, jogo e musica, muita conversa e muito riso, tal foi o programma da noite, que a encheu e fez mais curta.
Se as honras da casa foram feitas por Helena, a alma da festa era Mendonça, cujo espirito havia ja recebido e colhido o suffragio universal. Eugenia dera-lhe, antes de todos, o seu voto. Havia entre ambos tal ou qual afinidade de indole, que naturalmente os approximava. Mendonça lisongeava os caprichos de Eugenia, applaudia-a, comprehendia-a, obedecia-lhe sem constrangimento nem reparo. Quando Mendonça valsava com Eugenia, todos os olhos se concentravam nelles. Eram valsitas de primeira ordem. As ondulações voluptuosas do corpo de Eugenia e a serenidade e segurança de seus passos, adaptavam-se maravilhosamente áquella especie de dança,—a unica que nossos costumes formalistas possuem. Era bello vel-os percorrer o vasto círculo deixado a seus movimentos; vel-os emfim parar com a mesma precisão e sem o menor symptoma de cançasso. Eugenia punha toda a sua attenção naquelle gesto de braço com que as mulheres, logo que interrompem ou cessam de todo a valsa, conchegam ao corpo a saia do vestido, cujo movimento rotatorio póde dar lugar a alguma indiscrição. O prazer com que ella fazia esse gesto, e a graça com que o acompanhava de uma leve inclinação do corpo mostravam que, mais ainda a faceirice do que a necessidade, lhe movia o corpo e a mão.
Ésta sorte de triumphos enchia a alma de Eugenia; e, porque ella não possuia nem a modestia nem a arte de o simular, via-se-lhe no rosto o orgulho e a satisfação. A dança não era para a filha de Camargo um goso ou um recreio somente; era tambem um adorno e uma arma. Dahi vinha que o valsista mais intrepido e constante era tambem o principal parceiro do seu espirito; e ninguem disputava esse papel ao filho do commerciante.
—Sua filha é a rainha da noite, murmurou o Dr. Mattos ao ouvido de Camargo, em um intervallo do voltarete.
—Não é verdade? acudiu o médico.
E a alma do pae voava enrolada nas pontas da fita que apertava a cintura de Eugenia, não regressando ao domicilio se não quando a moça parava. Então volvia Camargo um olhar em torno de si, como pedindo egual admiração. Depois ficava sombrio, e mais do que usualmente, cahia em longos e mortaes silêncios. Tres ou quatro vezes approximára-se de Helena sem lograr detel-a, nem adiarem si mais que duas palavras triviaes. Insistia; não a perdia de vista, parecia ancioso de a conversar sôbre alguma cousa.
Helena repartia-se entre todas as pessoas, attenta aos mil cuidados que a noite requeria. Cantou uma vez, dansou uma quadrilha, e não valsou. Em vão Mendonça insistira com ella; a moça desculpou-se dizendo que a valsa lhe fazia vertigens. Na opinião do filho do coronel-major ésta razão encobria somente a ignorancia de Helena. Estacio pensava antes que era a castidade selvagem da irmã que lhe não permittia o contacto de um homem, ideia que lhe fez bem ao coração.
Pela volta da meia noite, terminada a ceia, começou aquella hora de repouso, que precede a total dispersão. As senhoras trocavam impressões e commentarios, os rapazes fumavam, os jogadores decidiam as últimas remissas. A noite não refrescara, e a agitação augmentára o calor. Helena, tão cançada como D. Ursula, retirára-se por alguns instantes para a sala contigua á principal; alli sentou-se n'um sopha, e derreou levemente o corpo, deixando cahir os cilios, não sei se pensativos, se pesados de somno. Seu espirito não tivera tempo de encadear duas ideias ou esboçar um sonho, quando uma voz a accordou:
—Ja dormindo!
Era Camargo.
Helena abriu os olhos sobresaltada. A voz de Camargo, produzira-lhe a impressão de desagrado, que lhe fazia sempre. Sorriu a moca contrafeitamente, e vendo que elle se dispunha a sentar-se no sopha, não arredou o vestido, como se quizesse deixar entre ambos larga distância: Camargo sentou-se.
—Parece que se assustou? disse elle.
—Um pouco.
Camargo agitou entre as mãos os perendengues do relogio,—tão numerosos como elles se usavam naquelle tempo; depois pegou familiarmente no leque da moça, abriu-o, contou as varetas, tornou a fechal-o e restituiu-o com um elogio. Helena respondeu-lhe com um sorriso. Ia levantar-se, quando elle a deteve com éstas palavras:
—Estimei achal-a só, por que precisava pedir-lhe um conselho.
A testa de Helena contrahiu-se interrogativamente.
—Um conselho e um favor, continuou o médico. Não será, creio eu, a primeira vez que a velhice consulte a mocidade. Demais, trata-se de assumpto em que a gente moça lê de cadeira.
Helena olhou para elle desconfiada. Nunca vim o médico tão affavel, e essa mudança de maneiras e de tom é que lhe fazia medo. Verdade é que elle ia pedir-lhe alguma cousa; e a experiencia ensina que o interesse é muito mais eloquente que o vinho e muito mais meigo que o amor. Camargo não se deteve. Fez uma exposição rapida de suas relações com a familia do conselheiro, do sentimento de amizade que o ligava a ella.
—A perda do meu finado amigo,—concluiu elle, não póde ser supprida por nenhuma cousa; mas ha alguma compensação na affeição que sobrevive e me faz considerar ésta familia como minha propria. Estou certo de que seu irmão e D. Ursula sentem a meu respeito do mesmo modo. Quanto á senhora, é recente na familia, mas não tem menor direito que ella. Vi-a tão pequena!
—A mim? perguntou Helena.
Camargo fez um gesto affirmativo, em quanto a moça olhava em volta da sala, receiosa de que alguem tivesse entrado e ouvido. Uma vez segura de que ninguem havia, recebeu impressão contrária á primeira; envergonhou-se daquelle receio. A vergonha augmentou quando o médico accrescentou em voz baixinha:
—Não falemos nisso...
—Pelo contrário! exclamou ella. Pode falar com franqueza; diga tudo. Era minha mãe. Não sei o que foi para o mundo; mas se me perdoaram a irregularidade do nascimento, não creio que me pedissem em troca a renúncia do meu amor de filha; a lei que o poz em meu coração é anterior á lei dos homens. Não repudio uma só das minhas recordações de outro tempo. Sei e sinto que a sociedade tem leis e regras dignas de respeito; aceito-as taes quaes; mas deixem-me ao menos o direito de amar o que morreu. Minha pobre mãe! Vi-a expirar em meus braços; recolhi o seu último suspiro. Tinha apenas doze annos; contudo, não consenti, que outra pessoa velasse á cabeceira a ultima noite que passou sobre a terra... Oh! não a esquecerei nunca! nunca! nunca!
Helena proferiu éstas palavras n'um estado de exaltação que até alli se lhe não vira. Em vão Camargo procurou duas ou tres vezes interrompel-a, receioso de que a ouvissem fóra, por que a moça tinha levantado a voz. Helena não obedeceu; não viu se quer o gesto supplicante do médico. O seio, castamente velado pelo corpinho, que subia até ao pescoço, estava offegante e onduloso como a agua do mar batida pelo vento. Á ultima palavra sahiu-lhe como um soluço. Camargo sentiu-se sorprehendido com aquella explosão de ternura. Era evidente que elle esperava outra cousa. Seguiu-se um breve silêncio, durante o qual Helena mordia a ponta do lenço, como para conter a palavra que lhe tumultuava no coração. O médico proseguiu emfim:
—Ninguem lhe pede que a esqueça, disse elle; todos respeitam esses sentimentos de piedade filial. O passado morreu, e o menos que se deve aos mortos é o silêncio. A senhora tem o direito de lhe dar o amor e a saudade. Mas falemos dos vivos; e perdoe-me se lhe toquei, sem querer, em tão dolorosa recordação.
—Não! não é dolorosa! disse ella abanando a cabeça.
—Falemos dos vivos. Não está certa do amor de sua familia?
Helena fez um gesto affirmativo.
—Não poderia encontrar outra melhor nem tão boa. D. Ursula é uma sancta senhora; Estacio um caracter austero e digno. Venhamos agora ao conselho. Ha muito tempo ando com ideia de ir á Europa; estou caminhando para a velhice; não quero deixar de ir ver alguma cousa além do nosso Pão d'Assucar. Ja desfiz o projecto mais de uma vez. Cuido que agora vou definitivamente realisal-o. Dá-se porém uma circumstância grave. Sabe que minha filha ama seu irmão? Meus olhos descobriram desde muito essa inclinação de um e outro, por que tambem seu irmão ama minha filha. Merecem-se; e de algum modo continuam si affeição dos paes; a natureza completa a natureza. Ésta é a situação. O que eu desejava, porém, é que me dissesse se devo partir ja, levando-a; ou se é melhor esperar que elles se casem.
Helena ouvira o médico sem olhar para elle; quando elle acabou, fitou-o admirada e curiosa. A puerilidade da pergunta era tão evidente que a moça procurou ler no rosto do interlocutor o pensamento verdadeiro e occulto. Camargo apressou-se a explicar-se.
—Estacio,—disse elle,—póde amar Eugenia com ideias matrimoniaes; mas tambem pode não passar isso de um capítulo de romance, como o que se lê em uma viagem da Corte a Nictheroy. Seu caracter é serio; mas o coração tem leis especiaes. Confesso que o procedimento de Estacio nada me affirma a tal respeito. Ha nelle umas mudanças pouco explicaveis. O tempo decorrido é mais que muito sufficiente para que... Está reflectindo!
—Estou.
—E...
—Supponho que pede mais do que me disse. Quer que eu indague a tal respeito as intenções, de Estacio!
—Isso.
—Mas porque não se dirige a elle mesmo?
—Não havia inconveniente; estabeleceu-se porém que um pae não deve ser o primeiro a falar em taes cousas. É preciso respeitar a dignidade paterna. Accresce que Estacio é rico, e tal circumstância podia fazer suppor de minha parte um sentimento de cobiça, que está longe de meu coração. Podia falar a D. Ursula; creio porém que ella não tem a sua habilidade, e... porque o não direi? a sua influência no espirito de Estacio.
—Eu!
—Oh! influência incontestavel! A senhora veiu completar a alma de seu irmão. É visivel a affeição e o respeito que elle lhe tem. Demais, em taes assumptos urna irmã é natural confidente e conselheira.
Helena deu tres pancadinhas no joelho com a ponta do leque, e enfiou os olhos pela porta de communicação entre aquella e a salla principal. Depois voltou-se para o médico.
—Sei que elles se amam,—disse ella,—e ja dei a minha opinião a tal respeito. Eugenia parece ser minha amiga; meu irmão é meu irmão; desejo-lhes todas as felicidades. Ha porém um limite á intervenção de uma irmã; e não desejo ir além. Demais, seu pedido é ocioso.
—Porque?
—Annuncie a viagem; e Estacio, se apressará a pedir-lhe sua filha. Se o não fizer, é por que a não ama, conforme ella merece, e em tal caso mais vale perder um casamento que fazel-o mau.
—Sim? perguntou Camargo.
—Naturalmente.
—O conselho é excellente,—disse o médico depois de um instante, mas tem o defeito substancial de supprimir a sua intervenção, que me é necessaria. Vejamos o meio de combinar as cousas. Supponhamos que, annunciada a viagem, Estacio não corresponde ás minhas esperanças. Que devo fazer?
—Embarcar.
—Embarcar é arriscar o casamento. Ora, este casamento... é um de meus sonhos. Desejo que os filhos continuem a affeição dos paes. Se Estacio recuar, minhas esperanças esvaem-se-me como fumo; o tempo cavará um abysmo entre os dous; Eugenia amará outro... Emfim, conto com a senhora.
—Commigo?
—A senhora tem uma fôrça de resolução, uma fertilidade de expedientes, um espirito capaz de emprezas delicadas, e, tratando-se da felicidade de um irmão. Creio que empenhará todas as fôrças para levar a cabo a mais pura das ambições. Não lhe peço um absurdo, peço-lhe a felicidade de minha filha.
Helena não respondeu; olhou de revez para elle, e cravou depois os olhos no aguia branca tecido no tapete, sobre o qual pousava seu pe impaciente e colerico. Podia referir mais detidamente qual o seu papel juncto de Estacio, a respeito de Eugenia, seus pedidos, e a promessa do irmão, que deveria ser cumprida, se o fosse, em algum dos seguintes dias. Mas nem quiz dar esperanças que os acontecimentos podiam dissipar, nem o coração lhe consentia mais larga confidencia. Ambos elles viam que se detestavam cordialmente; mas se em Helena havia colera abafada, em Camargo havia tranquillidade e observação. Elle contemplava a moça, com o olhar fixo e metalico dos gatos; a mão esquerda, pousada sobre o joelho, rufava com os dedos magros e pelludos. Nada dizia; mas todo elle em uma interrogação imperiosa. Helena olhou ainda uma vez para o médico.
—Dá-me o seu braço até á sala? perguntou.
Camargo sorriu.
—Só isso? Eu dizia commigo outra cousa.
—Que dizia então? perguntou Helena com aquelle ar de esmagadora indifferença que só as mulheres possuem.
—Dizia que muito se devia esperar da dedicação de uma moça, que acha meio de visitar ás seis horas da manhã uma casa velha e pobre, não tão pobre, que a não adorne garridamente uma flamula azul..
Helena fez-se livida; sua mão apertou nervosamente o pulso de Camargo. Nos olhos pareciam falar-lhe ao mesmo tempo o terror, a colera e a vergonha. Atravez dos dentes cerrados Helena gemeu ésta palavra unica:
—Cale-se!
—Falo entre nós e Deus, disse Camargo.
Uma onda de sangue invadiu a face da moça, com a mesma rapidez com que ella lhe empallidecêra. Helena quiz erguer-se; mas sentiu-se exhausta. Ninguem da sala pôde perceber a impressão e o movimento; ninguem olhava para alli. Camargo, entretanto, inclinou-se para Helena e proferiu algumas palavras de animação, que ella interrompeu, murmurando com amargura:
—O senhor é cruel!
—Sou pae, respondeu o médico; pae extremoso e discreto, mais discreto ainda que extremoso, Conto com a senhora.
Dissolvida a reunião, Helena recolheu-se à pressa, com o pretexto de que estava a cahir de somno, mas realmente para dar á natureza o tributo de suas lagrymas. O desespêro comprimido tumultuava no coração, prestes a irromper. Helena entrou no quarto, fechou a porta, soltou um grito e lançou-se de golpe á cama, a chorar e a soluçar.
A belleza dolorida é dos mais patheticos expectaculos que a natureza e a fortuna podem offerecer á contemplação do homem. Helena torcia-se no leito como se todos os ventos do infortunio se houvessem desencadeado sôbre ella. Em vão tentava abafar os soluços, cravando os dentes no travesseiro. Gemia, intercortava o pranto com exclamações sôltas, enrolava no pescoço os cabellos deslaçados pela violencia da afflicção, buscando na morte o mais prompto dos remedios. Colerica, rompeu com as mãos o corpinho do vestido, e o joven seio, livre de sua. casta prisão, pode á larga desaffogar-se dos suspiros que o enchiam. Chorou muito; chorou todas as lagrymas poupadas durante aquelles mezes placidos e felizes,—leite da alma com que fez calar a pouco e pouco os vagidos de sua dor.
Calar somente, não adormecel-a, por que ella ahi lhe ficou,—companheira daquella noite cruel, para velarem ambas. Quando os olhos cançaram, e foram mais intervallados os soluços, Helena jazeu immovel no leito, com o rosto sobre o travesseiro, fugindo com a vista á realidade exterior. Uma hora esteve assim, muda, prostrada, quasi morta, uma hora longa, longa, longa,—como só as tem o relogio da afflicção e da esperança.
Quando a tormenta pareceu extincta, a moça sentou-se na cama e olhou vagamente em torno de si. Depois ergueu-se; dirigiu-se tropega á toilette, que communicava com a alcova por uma porta; alli parou deante do espelho, mas fugiu logo, como se lhe pesasse encarar consigo mesma. Uma das janellas estava aberta; Helena foi alli aspirar um pouco do ar da noite. Ésta era clara, tranquilla e quente. As estrêllas tinham uma scintillação viva que as fazia parecer alegres. Helena enfiou um olhar por entre ellas como procurando o caminho da felicidade. Esteve á janella cêrca de meia hora; depois entrou, sentou-se e escreveu uma carta.
A carta era longa, escripta a golphadas, sem nexo nem ordem; continha muitas queixas e imprecações; uma ternura expansiva de mistura com um desespêro profundo; fallava daquelles que, tendo nascido sob a influência de ma estrêlla, só tem felicidades intermittentes e mutaveis; dizia que para ella a propria felicidade era um germen de morte e dissolução,—ideia que repetia tres vezes, como se tal observação fosse o transumpto de suas experiencias certas. A carta fallava tambem de um homem, cujo egoismo de pae não conhecia limites, e que a todo o trance queria que a filha desposasse uma grande riqueza e uma grande posição,—«homem—dizia ella, que me viu a principio com olhos avessos, pela diminuição que eu trazia á herança.» No fim dizia que havia naquellas linhas muito de obscuro e incompleto; que opportunamente contaria tudo; mas que desde ja podia dar a triste notícia de que lhe era forçoso abster-se de sahir.
Helena releu o escripto e meditou longo tempo sôbre elle; accrescentou ainda algumas linhas; depois, rasgou o papel em dous pedaços, chegou-os á vela, e os destruiu. Como arrependida, voltou a escrever outra carta, mas não chegou a acabar seis linhas; rasgou-a como fizera á primeira, e só então recorreu ao remedio melhor de uma alma ulcerada e pia: rezou. A prece é a escada mysteriosa de Jacob: por ella sobem os pensamentos ao ceu; por ella descem as divinas consolações.
Entretanto, a noite começava a inclinar a urna das horas ás mãos da madrugada. O somno fugira dos olhos de Helena; mas era forçoso repousar. Assim mesmo vestida atirou-se sôbre o leito. Não dormiu, não se póde dizer que dormisse; ficou alli n'um estado, que não era vigilia nem somno, até que a manhã rompeu inteiramente. Abrindo os olhos, pareceu accordar de um sonho; sua imaginação recompoz as phases todas do acontecimento da vespera. Depois suspirou, e ficou longo tempo a olhar para o chão, com a fixidez tragica e solemne da morte.
—Era justo! murmurava de quando em quando.
Levantou-se emfim; levantou-se abatida e cançada. Viu-se ao espelho; a descorada face e a linha roxa que lhe circulava as palpebras difficilmente podiam deixar de impressionar a familia. Helena disfarçou como pôde esses vestígios da tempestade; explicou-os do modo mais verosimil: o cançasso da vespera e a insomnia de toda uma noite. A explicação não achou obstaculo no ânimo da tia e do irmão. Somente o padre Melchior, presente a ella, fitou na moça um olhar dubitativo, que a obrigou a baixar os cilios.
Se Helena padecia, o logar de Estacio não era ao pe della? Assim o pensou o sobrinho de D. Ursula, que em todo esse dia resolveu não sahir de casa. Cercou-a de cuidados, buscou distrahil-a, pediu-lhe que fosse repousar um instante. Para justificar a explicação que dera, Helena obedeceu ás instrucções do irmão. Este foi encerrar-se no gabinete, onde se occupou em examinar e colleccionar alguns papeis. Era o dia marcado para solicitar de Eugenia o consentimento matrimonial, e elle não cogitava em ir ao Rio Comprido. Na irmã, sim; na irmã pensava elle, ora relendo as páginas de sua predilecção, ora mandando saber se dormia socegada, ora contemplando o desenho com que ella o presenteára na vespera. Sentia-se tão feliz naquella aurora do anno!
Pouco antes do jantar ouviu no corredor um rumor de saias, e não tardou que a irmã apparecesse á porta. Vinha como fôra; mas a Estacio pareceu que effectivamente o descanço e o somno lhe haviam restaurado as fôrças. A razão era o sorriso estudado que lhe avivava o rosto. Helena parou e Estacio foi ter com ella, travou-lhe da mão, fel-a entrar.
—Estás melhor? perguntou.
—Estou boa.
—Não dizia eu que era melhor desistir da ideia da reunião? Éstas festas prolongam-se, e fatigaram, sobretudo as pessoas franzinas...
Helena ergueu os hombros.
—Anda sentar-te um pouco.
—Primeiro hade responder-me a uma cousa.
—Que é?
—Que dia é hoje? perguntou ella.
—Anno bom.
—Lembra-se do que me prometteu?
—Perfeitamente. Ves estes papeis? disse elle mostrando sôbre a secretária uma porção de papeis classificados e postos por ordem. Occupei-me até agora em liquidar o passado; faltam-me umas últimas contas, que o procurador hade trazer amanhã. Depois, irei...
Helena abanou a cabeça com ar de desaprovação.
—Não, disse ella; não hade ir depois, hade ir hoje mesmo. Que tem as contas com a autorisação que deve pedir a Eugenia? Va logo de noite. Sou supersticiosa; creio que o pedido feito no dia de hoje é de excellente agouro. Dará um anno feliz.
—Minha intenção era ir dentro de quatro ou cinco dias, respondeu Estacio depois de silêncio; mas não tenho dúvida em fazel-o ja. Uma vez preenchida a formalidade.
—Pedil-a-ha immediatamente ao pae.
—Não!
—Porque?
—Porque precisarei meditar ainda vinte e quatro horas, pelo menos. Vinte e quatro horas não é muito para quem tem de amarrar-se eternamente. Quero sondar meu proprio espirito, e...
—Mas tudo isso é uma estravagancia! interrompeu Helena sentando-se na borda da rede em que Estacio costumava ler. Pretenderá voce recuar depois de lhe falar a ella?
—Oh! não! Mas uma vez que caminho para solução tão grave, não ha inconveniente em ir pe ante pe. Admiras-te? perguntou elle vendo que a irmã fazia um gesto de impaciencia.
—Zango-me.
—Mas...
—Voce é insupportavel. Falta ao que prometteu.
—Ja disse que hei de cumprir.
—Não recuará?
—Não.
—Irá pedil-a hoje mesmo?
—A ella.
—A ella e ao pae.
—Ao pae escreverei uma carta.
—Pois seja uma carta! Contanto que acabe com isso. O casamento será...
—Quando convier ao Dr. Camargo.
—Antes do fim do mez.
—Tão cedo!
—Dou-lhe mez e meio. Nem uma hora mais! Estou morta por vel-os casados, tanto por voce como por ella, coitada! que o ama tanto...
—Cres? perguntou vivamente Estacio.
—Se creio! Posso affirmal-o. Não será amor como voce quizera que fôsse, mas é o amor que ella lhe pode dar, e é muito. Está dito! Palavra?
Estacio estendeu silenciosamente a mão, que Helena apertou.
—Vou confiar todo o meu destino á cabeça mais leve do universo, disse Estacio com os olhos fitos no chão. Não é de seu coração que me queixo; mas de seu espirito, que nunca deixou as roupas da infancia. Demais, á medida que me approximo da hora solemne, sinto que me repugna o estado conjugal. É tão boa a minha vida de solteiro! tão cheios os meus dias...
Helena tapou-lhe a boca com uma das mãos; com a outra fez-lhe um gesto para que se calasse. Depois, fugiu. Uma vez só, Estacio reflectiu longamente na situação em que se achava; reconheceu que estava moralmente obrigado a pedir Eugenia, desde que seus corações se tinham aberto um para o outro, celebrando um contracto, que elle só não podia romper. A consciencia rebellou-se contra as resoluções do coração, e a decisão foi curta.
Naquella mesma noite, ouviu Eugenia a esperada palavra. A alegria que se lhe derramou nos olhos foi immensa e caracteristica. Um pouco mais de recato não era descabido em tal occasião. Não houve nenhum; seu primeiro acto de mulher foi uma meninice. Eugenia ignorava tudo, até a dissimulação de seu sexo. Concedendo a mão a Estacio, não era uma castellã que entregava o premio, mas um cavalleiro que o recebia com alvorôço e submissão.
Transposto o Rubicon, não havia mais que caminhar direito á cidade eterna do matrimonio. Estacio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr. Camargo pedindo-lhe a mão de Eugenia, carta sêcca e digna, como as circumstâncias a pediam. Antes de a remetter, mostrou-a a Helena, que recusou lel-a. Não a leu, nem lhe pegou. Elle teve-a alguns instantes na mão, sem atrever-se a dal-a ao escravo que esperava por ella. Por fim, deitou-a sôbre a secretária.
—Amanhã, disse elle sorrindo para Helena.
Helena lançou mão da carta e deu-a ao escravo.
—Leva á casa do Sr. Dr. Camargo, ordenou a moça. Não tem resposta.
Camargo ia sentar-se á mesa quando lhe entregaram a carta de Estacio; leu-a pura si, mas a filha leu-a nos olhos delle. Uma aura de bemaventurança desrugou a fronte do médico; seus labios,—cousa pasmosa!— abriram-se n'um sorriso perenne e franco, sorriso que uma vez chegou a desabrochar em gargalhada, a primeira que D. Thomasia lhe ouviu. Acabado o jantar, Camargo deu conta do pedido á mulher, e os dous paes chamaram a filha á sala. Eugenia ouviu a notícia sem baixar os olhos nem corar. Interrogada, respondeu que era muito do seu gosto o casamento.
—Sim? perguntou Camargo simulando um espanto que não sentia.
Eugenia fez uma leve inclinação de cabeça, com certo ar de quem dizia não acreditar no espanto do pae. Este pegou nas mãos da filha e puxou-a para si.
—Assim, pois, meu anjo,—disse elle,—casas-te por tua livre vontade? Estacio é o eleito de teu coração? Louvo a escolha, que não podia ser mais digna. Serás herdeira das virtudes de tua mãe, que te proponho como o melhor modelo da terra.
—O mais consciencioso pelo menos, acudiu D. Thomasia satisfeita e vaidosa do louvor do marido. Ha de ser boa espôsa, modesta, solicita, e economica.
—Economica, sem avareza,—emendou Camargo. A riqueza não deve ser dissipada; mas é certo que impõe obrigações imprescindiveis, e seria da maior inconveniencia viver a gente abaixo de seus meios. Não farás isso, nem cahirás no extremo opposto; procura um meio termo, que é a posição do bom senso. Nem dissipada, nem miseravel.
D. Thomasia concordou com ésta explicação do marido, em quanto Eugenia, olhando alternadamente para um e outro, parecia não lhes dar a minima attenção. Seu pensamento estava em Andarahy; ella viaja na imaginação, a cerimonia do consorcio, as carruagens, o apuro do noivo, a sua propria graça, a coroa de flores de larangeira, que a havia de adornar, emfim talhava ja o vestido branco e pregava as rendas de Malines com que havia de levar os olhos a ambas as metades do genero humano. Daquelle sonho foi despertada pelo pae, que lhe imprimiu na testa o seu segundo beijo, o primeiro, como o leitor se hade lembrar, foi dado na noite da morte do conselheiro. O terceiro seria provavelmente no dia em que ella casasse.
—Sabes que te amo, Eugenia? disse Camargo olhando para ella.
—Papae!
Camargo não pôde dizer mais nada. Seu amor, um instante expansivo, volveu a aninhar-se no fundo do coração, onde sempre estiveram. A satisfação do médico precisava do silêncio e do recolhimento para saborear-se. Foi então que Eugenia passou ás mãos de D. Thomasia. A mulher do Dr. Camargo via aquelle casamento com olhos differentes do marido. O que ella sobretudo viu eram as vantagens moraes da filha. Sentou-a ao pe de si e recitou-lhe um catecismo de deveres e costumes, que Eugenia interrompia de quando em quando, com exclamações de obediencia filial:
—Sim, mamãe!... Deixe estar!... Mamãe hade ver!...
D. Thomasia sentia-se feliz. Seu rosto, cuja expressão era vulgar, tinha naquella occasião alguma cousa que o tornava sublime. Ella fez com que a filha se lhe sentasse ao collo; e ésta, sentindo que a molestava, deixou-se lentamente cahir de joelhos, ficando entre os della, a olhar para ella.
Camargo, entretanto, ja não era daquelle mundo. Passeava de um para outro lado, com as mãos para traz, a morder a ponta do bigode. De quando em quando parava e olhava para o grupo das duas senhoras, mas era só machinalmente; seu olhar baço indicava que elle ia mergulhado em profundas cogitações.
Naquelle homem sceptico, moderado e taciturno, havia uma paixão verdadeira, exclusiva e ardente: era a filha. Camargo adorava Eugenia: era a sua religião. Concentrára esforços e pensamentos em fazel-a feliz, e para o alcançar não duvidaria empregar, se necessario fôsse, a violencia, a perfidia e a dissimulação. Nem antes nem depois sentira egual sentimento; não amou a mulher; casou por que o matrimonio é uma condição de gravidade. O maior amigo que teve foi o conselheiro Valle; mas essa mesma amizade que o ligára ao pae de Estacio nunca recebêra a contra-prova do sacrificio; alias appareceria em toda a sinceridade a natureza do médico. Elle só conhecia os affectos por assim dizer caseiros e inertes, os que não sabem nem podem afrontar as intemperies da vida. Nas relações moraes dos homens possuia somente o trôco miudo da polidez; a moeda de ouro dos grandes affectos nunca lhe entrára nas arcas do coração. Um só existia alli: o amor de Eugenia.
Mas esse mesmo amor, alias violento, escravo e cego, era uma maneira que o pae tinha de amar-se a si proprio. Entrava naquillo uma somma larga de fatuidade. Menos graciosa, Eugenia seria talvez menos amada. Elle contemplava a com o mesmo orgulho, com que o joalheiro admira o aderêço que lhe sahiu das mãos. Era a ternura do egoista: amava-se na propria obra. Caprichosa, rebelde, superficial. Eugenia não teve a fortuna de ver emendados seus defeitos, antes fui a educação que lh'os deu. Dos labios de Camargo nunca sahiu a expressão correctiva; nenhum de seus actos revellou esse procedimento vigilante e director, que é a nobre attribuição da paternidade. Se a indole da filha fosse ma, a complicidade do pae fal-a-hia pessima.
Não era felizmente; seu coração conhecia as doçuras da bondade; sua rebeldia era um hábito, não um vicio nativo. A propria frivolidade foi-lhe desenvolvida pela educação, nada podendo o zelo da mãe contra as complacencias do pae. Ésta era a explicação tambem da fascinação que exercia nella o tumulto exterior da vida. Quasi se póde dizer que ella não conhecêra o vestido curto: a modista a desmamou; uma contradança foi a sua primeira communhão.
Não era facil dar a Eugenia a felicidade que o pae ambicionava e a que mais lhe apetecia a ella. Posto não fosse perdulario, eram poucos os haveres do médico, de modo que á filha não podia caber peculio sufficiente a satisfazer todas as velleidades. Elle espreitou durante longo tempo um noivo, armando com algum dispendio a gaiola em que o passaro devia cahir. No dia em que percebeu a inclinação de Estacio, fez quanto pode para prendel-o de vez. Esperou muitos mezes a iniciativa de Estacio; e quando ella lhe entrou a fugir para a região das cousas problematicas, suspeitou a influência de Helena. Ja era muito que ésta moça diminuisse a herança do futuro genro; arrancar-lhe o genro era de mais. Camargo não hesitou um instante; foi direito ao fim. O resultado confirmou-lhe a suspeita.
O casamento era muito, mas não bastava. Camargo cuidára na carreira política de Estacio, como um meio de dar certo relevo público ao marido da filha, e, por um effeito retroactivo, a elle proprio, cuja vida fora tanto ou quanto obscura. Se o marido de Eugenia se confinasse no repouso doméstico, entre a horta e a algebra, a ambição de Camargo padeceria immenso. Vimol-o apresentar a Estacio a maçan política; recusada a princípio, foi-lhe de novo apresentada, e finalmente acceita com a noiva. Ésta dupla victória foi o momento maximo da vida do médico. Elle ouvia ja o rumor público; sentia-se maior,—ante-gostava as delícias da notoriedade;—via-se como que sogro do Estacio e pae das instituições.
—Vou entrar na cova dos leões, sem a convicção de Daniel,—suspirou Estacio na occasião em que cedeu ás instancias de Camargo.
—Seu talento amansará os leões,—acudiu este.
Assentou-se logo alli que o casamento seria celebrado na primeira semana de março. Os dous mezes de intervallo foram destinados ás formalidades ecclesiasticas e ao preparo do enxoval. Estacio aceitou tudo sem objecção. D. Ursula e Helena approvaram o plano. A primeira accrescentou uma clausula:—os noivos viriam morar com ellas em Andarahy.
O padre Melchior, consultado sôbre o casamento, deu-lhe inteira approvação, e só lhe pareceu que o prazo era longo de mais. A effusão com que abraçou Estacio, as palavras de applauso que lhe disse impressionaram vivamente o mancebo.
—Desejava muito este casamento? perguntou elle.
—Muito! Seu pae ha de approval-o no ceu!
Até os mortos conspiravam contra elle; Estacio aceitou resolutamente seu destino. A alegria do padre, ordinariamente contida e digna, transpoz os limites do costume, para se mostrar quasi infantil; D. Ursula não cabia em si do contente; Helena parecia colhêr naquelle casamento a sua propria felicidade. Era a bemaventurança universal que Estacio ia comprar a trôco de um vínculo eterno.
Surgiu, entretanto, um obstaculo temporario. A madrinha de Eugenia, a fazendeira que lhe mandara um dia a opala, que a moça admirou namorando ao mesmo tempo os olhos do futuro noivo, a madrinha de Eugenia adoeceu gravemente, menos ainda da molestia que a accommetteu que dos annos que lhe pesavam nos hombros. Era senhora rica, viuva, flanqueada por duas sobrinhas solteiras, uma cunhada, um primo, dous filhos destes e uma vintena de afilhados. Ja daqui se póde inferir a estreiteza das esperanças de Camargo. Posto que elle não tivesse nunca preterido os deveres que lhe impunha o vínculo espiritual, dando á fazendeira todas as provas possiveis de um grande affecto, ainda assim era de recear que a ultima vontade da moribunda não trouxesse o cunho da estricta justiça, ou, quando menos, de razoavel equidade. Nestas circumstâncias, a viagem a Cantagallo era urgentissima, e cumpria realizal-a á custa dos maiores incommodos. Todo o incommodo é aprazivel quando termina em legado. Camargo não perdia a esperança desse desenlace egualmente affectuoso e pecuniario. Resolveu ir com a familia toda, e avisou por carta ao futuro genro.
Estacio estimou o obstaculo, mas não contou com o que elle trazia no bojo. Chegando ao Rio Comprido achou afflictos o médico e D. Thomasia; Eugenia recusava sair da Corte. Em vão lhe mostravam a conveniencia de corresponder, em occasião tão grave, á affeição da madrinha; debalde lhe diziam que era ser ingrata não ir recolher o último suspiro da veneravel senhora, sua mãe espiritual. Eugenia recusava a pes junctos.
Assistiu o noivo á ultima phase da lucta entre os paes e a filha. Ésta trazia os olhos vermelhos de chorar; batia com as mãos uma na outra, declarando que só iria á fôrça. Estacio procurou chamal-a á razão, apoiando as reflexões do pae, sem alcançar mais do que elle. Emfim, Eugenia poz uma condição á sua acquiescencia:
—Irei, se o Dr. Estacio fôr comnosco.
Camargo approvou a condição in petto; verbalmente, oppoz-se ao sacrificio. Estacio enfiára; posto entre a espada e a parede, ja a viagem de Eugenia lhe parecia superflua.
—Acompanha-nos? insistiu a moça,
—Não é possivel, acudiu o médico; tamanho incommodo por um simples capricho.
—Pois então não vou!
D. Thomasia ficou um tanto vexada com a teima de Eugenia. Estacio mordia o labio, olhando para a moça, cujo rosto o interrogava instantemente. Venceu-o o decoro; considerando Eugenia sua mulher, quiz cortar por uma scena que lhe parecia ridicula.
—Acompanhal-os-hei,—disse elle sem enthusiasmo.
A solução era favoravel a todos: os tres aceitaram de boa feição. Marcou-se a viagem para dous dias depois. D. Ursula, apezar dos bons olhos com que via o casamento, achou desnecessaria a ida do sobrinho, mas não emprehendeu dissuadil-o. Helena approvou tudo. Elle fez sentir ás duas parentes a extensão do sacrificio, e esteve a ponto de retirar a palavra. Era tarde. A ultima noite passada em Andarahy foi cruel para elle; as horas voaram ligeiras como nunca. Como devia sahir no dia seguinte, logo cedo, alli mesmo se despediu da tia e da irmã, despedida de alguns dias que lhe custou como si fôra de annos. Prometteu, entretanto, que o regresso seria breve.
O que elle não podia prometter era conjurar o drama que se lhes preparava, drama que ia em fim devolver-se, intenso, funesto e irremediavel,—do qual não o consolariam jamais nem as doçuras da paz doméstica, nem as glórias da vida pública.
Estacio levantou-se ao amanhecer. Uma vez prompto, quiz sorprehender a tia e a irmã com uma lembrança sua, e escreveu n'uma folha de papel éstas simples palavras: «Até á volta; 6 horas da manha.» Dobrou-a e foi pol-a sôbre a mesa de costura de D. Ursula. Dalli passou á sala de jantar, depois á varanda. Aqui chegando deu com os olhos em Helena, que o esperava ao pe da escada.
—Silêncio! disse graciosamente a moça. Não faça espantos que póde accordar titia. Vim saber se voce precisa de alguma cousa.
—De nada, respondeu Estacio commovido. Mas que imprudencia foi essa de se levantar tão cedo?
—Cedo! O sol não tarda comprimentar-nos. Adeus! muitas recommendações a Eugenia. Não lhe falta nada, não é?
—Nada.
Estacio recebeu a mão que Helena lhe estendêra e ficou a olhar para ella.
—Olhe que é tarde!
Dizendo isto, Helena apertou-lhe a mão e procurou retirar a sua; Estacio reteve-a.
—Se soubesses como me custa ir!
—São apenas alguns dias...
—Valem por mezes, Helena! Adeus, não te esqueças de mim. Escreve-me; eu escreverei logo que chegar. Não faças imprudencias; não saias a passeio em quanto eu estiver ausente.
—Adeus!
—Adeus!
Estacio quiz dar-lhe o abraço da despedida; mas a moça, menos ainda com a palavra que com o gesto, fel-o recuar.
—Não, disse ella affastando-se; as despedidas mais longas são as mais difficeis de supportar.
Recuou até á porta da sala de jantar, fez um gesto de despedida e entrou. Estacio desceu a custo as escadas. Helena viu-o descer e sahir; depois subiu cautellosamente ao seu aposento. Alli sentou-se alguns minutos, pensativa e triste. Ergueu-se enfim, vestiu rapidamente as roupas de montar; collocou o chapellinho preto sôbre os cabellos penteados á ligeira, e desceu. Na chacara esperava-a Vicente, com a egua ajaezada e prompta. Helena montou sem demora; o pagem cavalgou uma das duas mulas que havia na cavallariça e os dous sahiram a trote na direcção da casa do alpendre e da bandeira azul.
A casa estava ainda silenciosa; porta e janellas conservavam-se hermeticamente fechadas. Helena apeou-se e bateu de mansinho; repetiu as pancadas progressivamente mais fortes. Ninguem lhe respondeu. Helena impaciente rodeou a casa; mas parece que achou egualmente fechadas as portas do fundo, por que volveu logo. Collou o ouvido á porta e esperou. Quando lhe pareceu que era baldado o esfôrço, tirou da algibeira um lapis e um pedacinho de papel; collocou o pe no degrau de tijolo e sôbre o joelho escreveu algumas palavras; dobrou depois o papel e introduziu-o por baixo da porta. Esperou ainda alguns minutos, caminhou para a egua, montou e regressou a casa.
Vinha triste e pensativa. A egua, a passo vagaroso, não sentia o esfôrço da cavalleira, que a deixava ir, frouxa a redea, inutil o chicote. O pagem levava os olhos na moça com um ar de adoração visivel; mas, ao mesmo tempo, com a liberdade que dá a confiança e a complicidade, fumava um grosso charuto havanez, tirado ás caixas do senhor.
D. Ursula não estava ainda levantada; mas Helena não lhe occultou o passeio. O dia correu triste e solitario, como os seguintes, sem embargo da companhia que iam fazer ás duas senhoras as pessoas mais íntimas. Mendonça, a quem Estacio as recommendára, era alli pontual; seu espirito conseguia disfarçar um pouco as saudades do moço ausente. O padre Melchior prolongava suas visitas quotidianas; um mesmo sentimento ligava a todas as pessoas.
O mesmo era, e não unico, por que outro e mais egoista e pessoal veiu alli viçar tambem. Mendonça sentiu que metade de seu destino estava acabada, e que a outra metade ia começar, mais circunspecta que a primeira. O relogio em que elle viu bater essa hora fatidica foram os olhos, de Helena. Mendonça começava a amar, Estouvado, e não corrupto, atravessára o delirio dos primeiros annos sem perder a flor dos castos affectos, sem sequer a haver colhido. Helena sentiu nascer e crescer essa adoração silenciosa, sem parecer que a descobrira. Não animou o mancebo nem o repelliu; redobrou de confiança,—dessa confiança, que só se dá aos simples familiares, e que mostra claramente a um namorado a inanidade de suas esperanças. Ao parecer de extranhos, a situação affigurava-se de perfeita concordia. O coronel-major piscou um dia os olhos ao Dr. Mattos; o Dr. Mattos proferiu um—latet anguis in herba—e ambos foram repartir o pão das conjecturas com a espôsa do advogado, senhora muito perspicaz nos namoros de salão. A opinião dos tres é que o casamento era cousa provavel e talvez certa. Um só obstaculo podia haver; eram os escrupulos do pae de Mendonça. Esse mesmo obstaculo não existia, por quanto, além das qualidades estimaveis da moça, havia o reconhecimento legal e social, público e doméstico; accrescendo (observação do Dr. Mattos) que duzentas e tantas apolices mereciam um comprimento de chapeu e não davam logar a cinco minutos de reflexão.
As primeiras cartas de Estacio chegaram uma tarde, em que as duas senhoras e Mendonça se achavam na varanda, acabado o jantar, bebendo as últimas gotas de cafe. D. Ursula, depois de pôr em actividade tres mucamas para lhe irem procurar os oculos, levantou-se e foi ella propria á cata delles, coma sua carta na mão. Helena ficou com a que lhe era dirigida estava sentada juncto a uma das janellas; abriu-a e leu-a para si:
ESTACIO A HELENA.
«Quando ésta carta te chegar ás mãos estarei morto, morto de saudades de minha tia e de ti. Nasci para os meus, para a minha casa, os meus livros, os meus habitos de todos os dias. Nunca o senti tanto como agora, que estou longe do que ha mais caro neste mundo. Poucos dias la vão, e ja me parecem mezes. Que seria se a separação não fosse tão limitada?
«Na carta que escrevo a ti tia dou conta de nossa viagem e da saúde de todos. D. Clara está, na verdade, á beira da morte; mas pode durar ainda alguns dias, e o Dr. Camargo resolveu esperar até dar-lhe os ultimos adeuses. A recepção que nos fez a familia foi cordialissima. Ha aqui uma cunhada da enfêrma, um primo, tres sobrinhos, outros parentes e varios afilhados. O primo é commendador e tenente-coronel; elle e os outros são a gente mais affavel do mundo. Os homens da familia são influências eleitoraes; quando souberam da minha candidatura, offereceram-me logo os seus serviços, com a clausula unica de que haja prévia recommendação do Rio do Janeiro. Agradeci o favor, com muita abundancia d'alma porque a tal candidatura, que não me seduzia nem seduz, não ha remedio se não cuidar della, de modo que o meu nome não padeça, a injúria da derrota. Que te parece ésta pontasinha de vaidade?
«Mudemos de assumpto, que este me afflige, e não quero philosofar sem ti, que es a minha companheira nestas vadiações de espirito. Ahi não te lembrarás, talvez, das nossas palestras; aqui lembra-me tudo. De manhã, dou o meu passeio equestre, como la; mas que differença! Quem vae a meu lado é o tenente-coronel, excellente homem, coração de pomba, com o defeito unico e enorme de se não chamar D. Helena do Valle, a minha boa Helena, que la está na Côrte a divertir-se sem seu irmão. Elle fala de tudo e muito: do cafe, do governo, das eleições, dos escravos, dos impostos. Eu ouço-o, que é o menos que posso fazer, e deixo-o ir sem interrupção. Ás vezes, como que desconfiado, recolhe-se ao silêncio; eu ato o fio da conversa e elle encarrega-se de desenrolar o novello. Tão pouca cousa o faz feliz! Já cacei uma vez; confesso-te que é o que me pode distrahir um pouco. Pensava ter perdido o costume; mas não perdi. A modestia impede-me dizer mais.
«A fazenda é vasta e a casa excellente. Não te direi que gósto da vida agricola; não gósto, não me dou com ella. Mas viver num recanto como este, a dous passos do mato, a tantas legoas da rua do Ouvidor, isso creio que se dá com a minha indole. Consultaremos titia. Eu não sei o que é amar o tumulto exterior; acho que é dispersar a alma e crestar a flor dos sentimentos. Nasci para monge... e creio que tambem para despota, porque estou a planear uma vida ignorada e deserta, sem consultar tuas preferencias. Sou um Cromwell com tendencias de frade; ou, por dizer tudo n'uma só palavra: sou um Lutero... muito inferior.
«Pobre Helena! Ja la vão quatro páginas só a falar de mim. Vejamos ó que tens feito. Andas muito triste? passeas? lês? jogas? tocas? Conta-me a tua vida o mais miudamente que puderes; conta-me a vida de todos. Não me escondas nada; se, por exemplo, ao abrir um livro ou tocar uma tecla do piano, pensares em mim, escreve isso mesmo, marcando o dia e até a hora, se puder ser. E depois dou-te o direito de perguntar onde ficou a minha gravidade, e responderei que ha uma puerilidade séria, e que os extremos tocam-se. Quando assim não seja, a culpa é do ceu, que me não deu uma irmã creança; agora é preciso que comecemos pela primeira phase da vida.
«Deixei muito recommendado ao Mendonça que fôsse a nossa casa com frequencia. Não sei se elle se terá lembrado e cumprido a promessa que me fez. Se não tiver cumprido, has de mandar-lhe dizer que eu o detesto e abomino, que elle é o maior traidor que o ceu cobre; que tudo fica acabado entre mim e elle; que a amizade é um culto, etc. Dize o que te parecer e pelo modo que te é usual.
«Lembro-me de ti a proposito de tudo. Hoje de tarde, por exemplo, o terreiro offerecia ura aspecto bonito e caracteristico. Se ella estivesse aqui, disse commigo, faria um magnifico desenho. Peguei de um lapis que trouxe, meia folha de papel, e quiz reproduzir o panorama. Escrevi um problema algebrico! Foi um conselho que me deu o lapis: ninguem se metta a fazer aquillo que ignora. Eu ignorava o que era estar ausente da familia; por que motivo me determinei a tental-o?
«Interrompi ésta carta para receber o Dr. Froes, que é o médico de D. Clara; veiu ao meu quarto para me dizer que o estado da doente é perdido; que a morte é certa; mas que a vida póde prolongar-se ainda por muitos dias. Ve que perspectiva! Estou com raiva de mim mesmo; esses ultimos dias da enfêrma pesam sôbre mim como se fôra o punho fechado do destino. Se a morte é certa, por que viver alguns dias mais? E é vida isso, ou é morrer aos goles, sem consciencia do que se perde nem do que se vae ganhar?
«Está decidido; posso ir daqui a seis dias ou daqui a um mez. Sera o que Deus quizer. Manda-me, entretanto, alguns livros. No meu quarto só achei um Manual de medicina prática. Manda-me alguma cousa que me faça lembrar Andarahy. Tira da estante oito ou dez volumes, á tua escolha. Manda tambem algum trabalho de agulha teu; quero mostral-o á cunhada de D. Clara, a quem gabei muito os teus talentos. Se puderes desenhar alguma cousa, á pressa, o tanque, a varanda, ou qualquer outro logar, faze-o, e manda com o resto. Escreve-me longamente; conta-me tudo o que houver interessante; fala-me de ti, que é o meio de consolar minhas saudades, que são immensas, immensas como este amor que tenho a minha familia toda. Vou fazer por voltar breve. Adeus, minha boa Helena; adeus, minha vida, adeus, ó mais bella e doce de todas as irmãs!
«P.S. Reli a carta, e fiquei envergonhado do trecho a respeito da vida da doente. Perdoa-me a ferocidade, e leva-a em conta da solidão.»
Helena leu e releu a carta. Depois ficou silenciosa a olhar para as folhas da trepadeira, que do lado de fóra viera a subir pela muralha da varanda, e a debruçar-se emfim do parapeito para dentro. A carta ficára aberta sôbre os joelhos da moça. Mendonça, a poucos passos, olhava para ésta, sem ousar falar-lhe.
Goethe escreveu um dia que a linha vertical é a lei da intelligencia humana. Póde dizer-se, do mesmo modo, que a linha curva é a lei da graça feminil. Mendonça o sentiu contemplando o busto de Helena e a casta ondulação da espadua e do seio, cobertos pela caça fina do vestido. A moça estava um pouco inclinada. Do logar em que ficava, Mendonça via-lhe o perfil correcto e pensativo, a curva molle do braço, e a ponta indiscreta e curiosa do sapatinho raso que ella trazia. A attitude convinha á belleza melancholica de Helena. O rapaz olhava para ella sem movimento nem voz.
A tarde expirava; a côr verde do morro fronteiro ia tomando o aspecto cinzento-escuro que precede a côr fechada da noite. A propria noite desceu; e um escravo entrou na varanda, a accender as duas lampadas que pendiam do tecto. Ésta circumstância accordou a moça, e bastou-lhe voltar um pouco a cabeça para ver o amigo de Estacio a alguns passos de distância.
—Estava ahi? perguntou Helena estremecendo.
—D. Ursula não voltou, respondeu Mendonça com timidez; não quiz interromper a leitura que a senhora fazia.
—A leitura? A leitura acabou ha muito tempo.
—Mas tambem se lê com o espirito.
Helena lançou-lhe um olhar suspeitoso.
—Não sei ler de cór, disse ella, erguendo-se e sahindo da varanda.
Mendonça ficou aturdido. Que lhe dissera elle tão grave que a pudesse offender? Repetiu suas proprias palavras e não lhes achou sentido mau. Certo, porém, de que a molestára, alli ficou aborrecido de si mesmo, desejoso de lhe explicar tudo, se alguma cousa houvesse explicavel. Apos alguns instantes, resolveu entrar tambem. Entrou; Helena não estava nem na sala de jantar, nem na do jogo, onde achou D. Ursula com o Dr. Mattos e o coronel-major. Dalli passou á sala de visitas. Helena não o viu entrar; estava mergulhada n'uma poltrona com a cabeça nas mãos. Commovido, deteve-se alguns instantes a contemplal-a; depois caminhou para ella e falou-lhe.
Helena ergueu a cabeça.
—Perdõe-me, disse elle, se alguma cousa lhe disse que a magoou. Confesso que não sei o que poderia haver em minhas palavras. Ficou triste por isso?
A moca cravou nelle um olhar ainda suspeitoso, e não lhe respondeu logo. Mendonça adoptou o melhor dos alvitres naquella occasião; inclinou-se e recuou para sahir. Helena chamou-o; elle approximou-se outra vez, com um ar de tão doce resignação, que lisonjearia o mais levantado orgulho. Helena estendeu-lhe a mão; elle apertou-a e teve impetos de a beijar uma e muitas vezes, triumphando naquelle unico instante da hesitação de todos os dias; faltou-lhe resolução. Helena mostrou-lhe o trecho da carta em que Estacio se referia a elle; falaram dos ausentes e dos presentes, de todos e de tudo, menos do assumpto que exclusivamente preoccupava o moço. Elle sahiu dalli sem ter dito nada de seu coração. Chegando á rua achou-se poltrão e ridiculo, disse mil nomes feios a si proprio; emfim, prometteu declarar tudo a Helena no dia seguinte.
No dia seguinte, que era domingo, Helena dirigiu-se á capella a ouvir a missa do padre Melchior. Acabada a cerimonia, não seguiu para casa, com D. Ursula, mas foi ter á sacristia, onde o padre acabava de tirar os paramentos. Melchior, logo que soubera da carta de Estacio, nessa manha, pedira a Helena que lh'a deixasse ver.
—Falam sempre ao coração as lettras dos amigos, dissera elle.
Helena deu-lhe a carta, que o padre recebeu com uma expressão antes de curiosidade que de affecto. Leu-a vagarosamente, como escrutando o sentido e as palavras; e sendo longa a epistola, longo foi o tempo que elle despendeu em a interpretar. Durante esse tempo, Helena admirava-lhe a figura austera, a serenidade religiosa, que é a coroa mystica do verdadeiro ecclesiastico. A sacristia era pequena; duas altas janellas deixavam entrar a luz, o ar e o aroma das folhas e das flôres da chacara. Entre a cimalha e o telhado algumas andorinhas haviam fabricado os ninhos, donde sabiam, como pensamentos de juventude, a adejar ao sol da manha. Ao pe daquelle quadro exterior de alegria e verdura, a sacristia tinha certo ar melancholico e severo, que lançava n'alma o esquecimento das vicissitudes humanas. Helena deixou-se captivar desse sentimento de abstenção e elevação; se alguma dor ou remorso a pungia, esqueceu-os, por um minuto ao menos, entra aquellas paredes desataviadas, deante de um padre, entre uma imagem de Jesus e as obras vivas do Creador.
Lida a carta, Melchior dobrou-a com ar pensativo; depois entregou-a á moça.
—Ja respondeu? perguntou elle.
—Ja; trouxe-lhe a carta que vou mandar hoje mesmo.
Melchior abriu-a e leu; não gastou menos tempo, ainda que era de menores dimensões. O estylo era affectuoso, mas muito menos exhuberante que o da carta de Estacio. Ella contava-lhe, em suas feições geraes, a vida que alli passavam, desde que elle partira, as occupações de cada dia e as distrações da noite.
«Vivemos, dizia a moça, como podem viver duas creaturas que sabem a affeição que lhes tem um parente amigo, ausente embora, mas não esquecido,—nem ingrato. O padre Melchior, algum dos visinhos, e o Dr. Mendonça são as nossas visitas habituaes. Voce sabe o que vale o padre; é a mais bella alma que Deus mandou ao mundo. Os risinhos são affaveis, como sempre. O Dr. Mendonça é verdadeiramente digno da nossa affeição e confiança. Disse-lhe o que voce me escreveu; elle riu, como homem seguro de escapar á punição.
«Pena é que voce tenha de se demorar ahi tanto tempo; mas, se alguma esperança pode haver de salvar a doente, damo-nos por bem pagas da demora. É verdade que voce não é médico; mas ha ahi outra doente, para quem é, não só médico, mas até toda a medicina. Porque razão me não escreveu Eugenia? Eu não cuidei que essa amiga me esquecesse na vespera de ser rainha cunhada. Se estivessemos mais perto ia puxar-lhe as orelhas. Diga-lhe isto; e se tiver occasião de emprestar-me os seus dedos, applique-lhe o castigo, declarando-lhe o delicto commettido e o juiz que a sentenciou.
«O que voce diz da vida solitaria é muito justo, mas impraticavel. Os amigos não nos iriam ver; e poderiamos nós dispensal-os? Tal é a opinião de titia e a minha. O melhor de tudo é este meio termo de Andarahy; nem estamos fóra do mundo, nem, no meio delle. O ruido externo pode ter os effeitos de que voce fala; mas elle é ás vezes preciso para aturdir e distrahir o espirito. Tambem a solidão tem suas dores, e fundas: tambem ella abala o coração. Nem um extrema nem outro.»
A carta continha alguns periodos mais, não muitos; tres ou quatro vezes falava em Eugenia, com tamanha insistencia que punha em relevo o silêncio a tal respeito conservado por Estacio; falava-lhe da belleza da noiva, do casamento proximo, do amor que os faria felizes, e da ventura que ambos dariam a todos os seus.
Quando o padre acabou de ler a resposta; abriu os braços a Helena; depois abrangeu com as mãos a cabeça da moça e contemplou-a durante alguns segundos.
—Toda a sua alma está nesse escripto, disse elle; vejo ahi a reflexão e o affecto. Tanto melhor! Ha comtudo uma lacuna: não transmitte a seu irmão as minhas saudades; mas ha tambem uma excrescencia: louva meritos que não possuo. Embora! Mande-a...
—Escreverei duas linhas mais.
—Pois sim. Diga-lhe que se apresse porque estou velho e posso morrer antes.
—Oh! protestou Helena.
Melchior olhou para ella silenciosamente.
—Cre que Estacio seja feliz? perguntou elle emfim.
—Creio.
—Tambem eu.
Outro silêncio. O primeiro que o rompeu foi o padre.
—Por que se não casa tambem? disse elle.
—Eu?
—De certo. Póde ser que muito breve, talvez...
—Talvez, nunca.
Melchior franziu a testa; sua physionomia, de ordinario meiga, tornou-se severa, como a consciencia delle. O padre tinha uma das mãos de Helena entre as suas; deixou-a insensivelmente cair. Entre os dous estabeleceu-se um silêncio que os acabrunhava e que não ousavam romper; como subjugados por um mysterio, receiava cada um delles que o outro lh'o lesse na fronte; instinctivamente desviaram os olhos.
Melchior foi o primeiro que voltou a si. A reflexão corrigiu a expontaneidade; e o padre reassumiu o gesto usual, com essa dissimulação, que é um dever, quando a sinceridade é um perigo.
—Vamos la, disse elle; ninguem póde decidir o que hade fazer amanhã; Deus escreve as páginas do nosso destino; nós não fazemos mais do que transcrevel-as na terra.
—É verdade! confirmou ella com um gesto de cabeça, e sem erguer os olhos.
—Amanhã, continuou o padre, o acaso,—isso que os incredulos chamam acaso, e que é a deliberação da vontade infinita,—lhe apontará um homem digno da senhora; e seu coração lhe dirá; é este; e o suspiro desalentado de hoje converter-se-ha n'um olhar de graças ao ceu. Ora, o que eu lhe peço, o que eu desejo, é que se apresse tanto que eu possa casal-os...
—Oh! mas não vae morrer amanhã, interrompeu Helena.
—Estou velho, minha filha; estes cabellos brancos são ja a neve desse mar polar para onde navegamos todos. Conto sessenta annos. A morte póde colher-me um dia proximo...
—Vamos almoçar, disse Helena sorrindo.
Sahiram da sacristia, atravessaram a capella, e penetraram na chacara. Na occasião em que iam transpor a porta da capella, viram Mendonça entrar em casa. Melchior estacou, e olhou para Helena. Ésta ia como acabrunhada e absorta. O gesto do padre, quando ella lhe declarou que não se casaria talvez nunca, ficára-lhe gravado na memoria, como um enigma, que talvez receiava decifrar. Poucos minutos eram passados; contudo, ella pôde reflectir, e colligir os elementos de uma resolução. Detendo-se, com o padre, á porta da capella, viu tambem entrar Mendonça, Os olhos da moca e do padre interrogaram-se de novo, mas desta vez nenhum delles os desviou.
—Vê aquelle homem? perguntou Helena. Parece-lhe que seria bom marido?
—Excellente, de certo, disse vivamente Melchior; caracter, educação, sentimentos.
—Tem ainda uma virtude particular: ama-me.
—Sei.
—Elle lh'o disse?
—Não, mas ve-se. É sabido de todos os que frequentam ésta casa. A probabilidade do casamento é objecto de commentarios; e a opinião geral é que elle se fara dentro de pouco tempo. Confessou-lhe alguma cousa?
—Nada; mas os olhos da mulher amada não são menos sagazes que os dos padres amigos. Acha que devo confirmar a opinião dos outros?
—Acho; consulte porém seu coração.
—Ja consultei.
—Neste unico instante?
—Nada menos.
—Devéras? disse Melchior derramando um olhar de paternal ternura no rosto serio de Helena.
—Não digo que o ame desde ja; mas a affeição que elle me tem reflectirá em meu coração, e eu virei a amal-o. O que importa saber é que é digno de mim. De todos os que me pretendessem nenhum lhe seria superior.
—Ainda bem! Contudo, repare que vae contrahir uma obrigação perpétua, e que um contracto destes não póde ser deliberado em poucos instantes.
—Oh! nesse ponto a minha ignorancia sabe mais do que a sua theologia. Que são minutos e que são mezes? Paixões de largos annos, chegando ao casamento, acabam muitas vezes pela separação ou pelo odio, quando menos pela indifferença. O amor não é mais que um instrumento de escolha; amar é eleger a creatura que hade ser companheira na vida, não é afiançar a perpétua felicidade de duas pessoas, por que essa póde exvair-se ou corromper-se. Que resta à maior parte dos casamentos, logo apos os annos da paixão? Uma affeição pacifica, a estima, a intimidade. Não peço mais ao casamento, nem lhe posso dar mais do que isso.
—Não gósto de tanta reflexão era tão verde edade, replicou benevolamente Melchior; todavia encanta-me esse raciocinio, que ao cabo de tudo póde ser verdadeiro. Mas não me desdigo; alguns minutos é pouco tempo; reflicta ainda vinte e quatro horas.
—Nem um instante mais, insistiu Helena. Minhas reflexões são lentas ou subitas: ou cinco minutos ou um anno; escolha.
—Pois reflicta cinco minutos, replicou o padre sorrindo.
—Ja la vão quatro; aproveitarei o último para lhe dizer que em nada disto falaria se não fossem as qualidades notaveis desse moço; e para accrescentar que a elle me liga certa sympathia de genios... é talvez a semente do amor.
Tinham chegado ao primeiro degrau da escada da varanda. Subiram e penetraram na sala de jantar, onde acharam D. Ursula e Mendonça, este a percorrer com os olhos um jornal do dia. O almoço serviu-se immediatamente.
—Padre-mestre, disse D. Ursula, demorou-se tanto que cuidei... tivesse ideia de me arrebatar Helena.
—Estive-a ouvindo de confissão, respondeu Melchior.
—E pode absolvel-a?
—De certo.
—Mas com grande penitencia, não?
—A mais facil de todas, acudiu Helena olhando para o padre.
—Oh! então é que os peccados são leves! concluiu D. Ursula. Não lhe parece?
Éstas ultimas palavras foram dirigidas a Mendonça, na occasião em que todos caminhavam para a mesa. Mendonça não disse nada. Seus olhos ousavam apenas resvalar pela moça; contra o costume, elle falava pouco,—menos ainda que na vespera e nos dias anteriores. D. Ursula via a differença, mas não a comprehendia.
—Não quero saber que peccados confessou,—disse ella sentando-se; mas estou certa que o maior delles não levaria ninguem ao purgatorio.
—Veja o que é uma tia indulgente, observou Helena a Mendonça, sentando-se a seu lado.
Preoccupado com a conversa que acabava de ter na sacristia e na chacara, Melchior pouca attenção prestou a principio ao filho do commerciante. Seu espirito analysava as circumstâncias do momento e pesava a responsabilidade que lhe podia vir de qualquer resolução que adoptasse. Apos um longo dialogo com a sua consciencia, o velho sacerdote inclinou os olhos ao mancebo, que lhe ficava defronte, ao lado de Helena. Viu-os conversar com essa familiaridade de bom gôsto, que é a pedra de toque dos costumes polidos. Ella mostrava-se graciosa, solicita e attenta, como uma espôsa amante; elle parecia enamorado da voz e das falas da donzella; como que um clarão interior lhe desvendára à alma os horizontes infinitos da esperança. Familiarisado com Helena, tratado por ella com exquisita attenção, era comtudo a primeira vez que ella lhe falava, não como a um confidente amigo, mas como a um homem que poderia vir a ser seu esposo. Alguma seriedade, um olhar submisso, uma attenção continuada, fizeram essa differença que antes foi sentida pelo coração do que descoberta pelos olhos.
No fim do almôço, Melchior dirigiu-se para a sala de visitas, com Helena. Mendonça acompanhou-os. A resolução do padre estava assentada de raiz; elle acceitava aquelle casamento como um presente do ceu. Apenas entrados ha sala, travou das mãos de um e outro e lhes disse, com voz commovida:
—Promettem não zangar-se commigo?
—Por que? interrogou Mendonça com os olhos.
Helena baixára os seus.
—Promettem?
—Padre-mestre... começou Mendonça sem poder concluir a phrase.
O padre olhou silenciosamente para um e outro. Talvez hesitava falar; talvez buscava o melhor meio de dizer o que tinha no coração. Urgia romper o silêncio; fel-o com solemnidade:
—Serei duas vezes padre: segundo a natureza e segundo o Evangelho. Quando duas creaturas se merecem, é servir a Deus emprestar a voz ao coração que não ousa falar. O senhor ama ésta menina; leio-lhe dos olhos o sentimento que o arrasta para ella; são dignos um do outro. Se é a timidez que lhe fecha os labios, eu sou a voz da verdade e do amor infinito; se outro motivo, serei juiz complacente para escutal-o.
Ouvindo éstas palavras, Mendonça ficou aturdido e mudo. Não só a fortuna lhe chegava ás mãos, quando elle menos esperava, mas até escolhêra um caminho desusado e extranho. A realidade confundia-se alli cora o sonho. A presença de um terceiro era sufficiente motivo para acanhar os mais resolutos; accrescia a veste sacra do sacerdote que dava aquillo um ar de solemnidade e consagração. Mendonça recobrou enfim o uso dos sentidos; sua resposta unica e eloquente, foi estender a mão a Helena, gesto a que a moça correspondeu com simplesa e naturalidade.
—Não se enganaram meus olhos, disse o padre. Ama-a, e póde dar-lhe a felicidade que lhe desejo a ella. Tambem Helena o fara venturoso, não? perguntou elle voltando-se para á moça.
—Mas é isto um sonho? perguntou enfim Mendonça.
—A vida não é outra cousa, retorquiu o capellão; velho pensamento e velha verdade. Façamos por que o sonho seja agradavel e não arido ou triste. Promettem-me que se farão felizes?
—Não ambiciono outra cousa, disse o rapaz; será o meu cuidado e a minha glória.
—Seu amor, continuou Melchior, é mais forte que o de Helena; eu consultei-a antes, e li em seu coração. Elege-o com prazer, embora sem enthusiasmo. Não é a paixão cega que a faz falar é um sentimento brando e singello, por isso mesmo duradouro. A reflexão de um corrigirá a violencia do outro, e os dous sentimentos se completarão pela virtude especial de cada um.
Ésta explicação franca de Melchior teve o condão de ser agradavel aos dous. Helena estimou que elle nem lisonjeasse as illusões de Mendonça, nem a désse como acceitando indifferente e estouvada o casamento proposto. Pela sua parte, Mendonça viu nas palavras do padre um indicio da sinceridade de Helena, e aceitou o pouco offerecido, com a certeza de multiplical-o. O caracter de Melchior e a veneração que mereciam suas virtudes, eram fianças de veracidade e davam ao acto singello que alli se passava um forte cunho de santidade e elevação. Não era uma vulgar declaração de amor, sugeita ás variações do espirito ou do interesse; mas verdadeiros esponsaes, em que a religião era inspiradora e testemunha.
Aquelle dia foi marcado no calendario de Mendonça com lettras de ouro e setim; a noite desceu coroada de murta e rosas. Elle viveu essas horas todas n'um estado de somnambulismo e extasis. Tencionava referir tudo á mãe, logo que entrou em casa ao meio dia; mas não se atreveu, porque elle mesmo não estava certo se vivia a realidade ou se voava nas azas de uma chimera. De noite voltou a Andarahy; achou em Helena o mesmo modo affectuoso, a mesma solicitude e carinho; nenhuma ternura expansiva, nenhuma contemplação namorada; um meio termo que o continha a elle proprio, e não era menos aprazivel ao coração. A nova situação era, entretanto, sensivel, porque os vigilantes de fóra, trocaram entre si olhares profundos e inundados de graves descobertas; um delles, o coronel-major, chegou a proferir uma allusão, que os interessados fingiram não perceber.
Quando Mendonça chegou a casa, nessa noite, ia mais que nunca cheio de commoção e nadando em plena glória. A cidade, apenas ahi entrou, pareceu-lhe transformada por uma vara magica; elle viu-a povoada de seres phantasticos e rutilantes que iam e vinham do ceu á terra e da terra ao ceu. A côr deste era unica entre todas as da palheta do divino scenographo. As estrêllas, mais vivas que nunca, pareciam saudal-o de cima com ventarolas electricas, ou fazerem-lhe figas de inveja e despeito. Azas invisiveis lhe roçavam os cabellos, e umas vozes sem boca lhe falavam ao coração. Seus pes como que não pousavam no solo; elle ia extatico e sem consciencia de si. Era aquelle o galhofeiro de ha pouco? O amor fizera esse milagre mais.
Um dos theatros estava aberto; comprou um bilhete e entrou. Não era desejo de divertir-se ou interessar-se pelo drama, que alias expirava de parceria com o protagonista; era necessidade de ver gente, de ater-se á realidade das cousas, tão chimerico se lhe affigurava tudo o que se passára desde manhã.
Um expectador,—o filho do coronel-major,—viu-o a alguma distância e foi sentar-se ao pe delle.
—O senhor que tem melhor vista,—disse o academico—desengane-me; aquella moça que alli está, naquelle camarote, não é a andorinha viajante?
—A andorinha viajante? repetiu Mendonça olhando para elle; que quer dizer esse nome?
—É a alcunha da irmã de Estacio. Sera ella que está alli, com uma senhora edosa?
—Mas porque lhe chamam assim?
—Eu sei! Naturalmente porque sae á rua todos os dias. Na verdade, é um passear! Mal amanhece, la vae trepada no cavallinho, com o pagem atraz...
—Quem lhe poz essa alcunha?
—As alcunhas são como as mofinas; não tem autor.
Cahíra o panno; Mendonça despediu-se alli mesmo e sahíu. Na rua repetiu mentalmente as palavras do joven academico. Ao cabo de alguns minutos sorriu; comprehendêra que, apenas suspeitada a sua felicidade, ja a inveja lhe deitava na taça uma gota de veneno. Ergueu os hombros, resoluto a supportar tranquillo essa livida companheira do successo.
Guiou para casa, onde entrou pouco depois. Helena volvêra a occupal-o exclusivamente. So, na alcova de solteiro, inventariou os acontecimentos daquelle dia e achou-se morgado da fortuna. Como precisava conversar com alguem, escreveu uma longa carta a Estacio, narrando-lhe toda a história do seu coração, suas esperanças e a prompta realisação dellas. A alma derramou-se no papel impetuosa e exhuberante. O estylo era irregular, a phrase incorrecta; mas havia alli a eloquencia e a sinceridade da paixão. Quando fechou a carta, anteviu o prazer que ia dar ao amigo, logo que ella lhe chegasse ás mãos, levando a notícia de que as vinculos atados na aula iam apertar se na familia. «Vem quanto antes, dizia elle ao terminar a missiva; tenho ancia de abraçar-te e ouvir de ti mesmo o consentimento que me fara o mais feliz dos homens!»
Quando esta carta chegou a Cantagallo, Estacio voltava de uma pequena excursão, que fizera com o pae de Eugenia. Conheceu a letra do sobrescripto; abriu negligentemente a carta; leu-a com assombro. Á impressão foi tão visivel, que Camargo lhe perguntou de que se tratava.
—Recebo uma noticia que me obriga a partir amanhã, disse elle.
—Negocio grave?
—Grave.
—Ainda assim, nesta occasião.
—Que tem? D. Clara póde ainda resistir á morte alguns dias; e posto que a minha ausencia não prejudique nada do facto a que alludo, comtudo é mister que me informe e providencie.
—Algum negocio relativo ao inventário?—aventurou Camargo, que nada conhecia mais grave que o dinheiro.
—Justamente, respondeu machinalmente Estacio.
Camargo consolou a filha do desgôsto que lhe causava a partida do noivo; falou-lhe a linguagem da razão; disse que havia assumptos praticos, a que os sentimentos tinham de ceder o passo alguma vez. No dia seguinte de manhã partiu Estacio na direcção da Corte, não sem prometter que voltaria, se a molestia ou qualquer outro motivo obrigasse a familia a demorar-se em Cantagallo.
Ninguem esperava por elle em Andarahy. Entrando na chacara,—era de noite,—viu Estacio que a sala que ficava no angulo esquerdo da frente da casa estava allumiada e tinha gente. A sala ficava ao rez do chão, e as janellas estavam abertas. Elle parou a pouca distância, e pôde distinguir o coronel-major e o Dr. Mattos a jogarem o gamão; a mulher do advogado falava a D. Ursula e Melchior, em um dos lados; do outro estava assentada Helena, tendo Mendonça deante de si.
Estacio deu volta aos fundos da chacara, e entrou pela varanda. Os escravos que o virara chegar deram signal da novidade, com vozes de alegria, que alias não chegaram até ás pessoas da sala. Estas só souberam do recem-chegado quando este assomou á porta. A satisfação de o ver foi geral e sincera em todos. Estacio distribuiu abraços e apertos de mão. Melchior, que se deixára ficar de lado, foi o último com quem elle falou.
—O Dr. Camargo veiu? perguntou D. Ursula ao sobrinho logo depois que este comprimentára a todos.
—Não, respondeu Estacio, a doente não póde escapar, mas ainda a deixei com vida.
—Imagino a impaciencia dos herdeiros.
Ésta observação philosophica do coronel-major não teve nenhum effeito. Melchior, que a reprovára anteriormente, fez mudar a conversa, informando-se da familia de Camargo. Estacio deu todas as notícias que podiam interessar; depois falou de alguns incidentes da viagem; afinal obteve licença para ir mudar de toilette.
Mendonça acompanhou o amigo, alcançando-o ainda na escada. Subiram junctos e junctos entraram no quarto.
—Agora que estamos sos, perguntou Mendonça, houve por la alguma cousa?
—Nada.
—Tanto melhor!
Um escravo entrou no quarto, afim de servir a Estacio; Mendonça, ancioso por lhe falar de Helena, contentou-se com trocar algumas vagas indicações.
—Recebeste a minha carta? disse elle.
—Recebi.
—Não esperavas por ella, aposto?
—Não.
—Como eu não esperava escrevel-a. Estás aborrecido, continuou elle depois de um silêncio.
—Estou cançado.
—Naturalmente, assentiu Mendonça abrindo um livro que achou sobre a mesa e tornando-o a fechar.
O silêncio prolongou-se alguns minutos, durante os quaes Mendonça tornou a abrir o livro, examinou uma espingarda de caça, preparou um cigarro e fumou. O escravo servia o senhor com a pontualidade de quem lhe conhecia os costumes. Estacio continuava mortalmente silencioso; Mendonça falou algumas vezes, sobre cousas indifferentes, e o tempo não correu, andou com a lentidão que lhe é natural quando trata com impacientes. Logo que Estacio se deu por pro rapto, e o escravo sahiu, Mendonça voltou directamente ao assumpto que o preoccupava.
—Estava ancioso por ver-te, disse elle. Não nos é possivel falar agora: não temos tempo. Mas quero dar-te um abraço, ao menos, um abraço de agradecimento pela felicidade...
—Parece que só esperavas a minha ausencia?
—Creio que não. Ja antes de seguires, começava a sentir alguma cousa nova, que vim a descobrir ser paixão violenta.
—Helena ama-te?
—Com egual amor, não creio; mas aceita-me; tem-me algum affecto.
—Tratarei de consultal-a.
Mendonça não pôde continuar, por que Estacio descia a escada ao dar-lhe a ultima resposta. Mendonça desceu tambem. Na sala estavam ainda as mesmas pessoas. Perto de uma janella conversava Helena com o padre. O cha foi logo servido; e a conversa tornou-se geral, mas sem grande animação. Melchior falou menos que todos.
Nem por isso foi o primeiro que sahiu; foi o último. Na chacara, dirigindo-se ao portão, ergueu os olhos ao firmamento, não para ver a lua e as estrêllas, mas para subir a região mais alta. O que disse ninguem o soube; mas o anjo das rogativas humanas por ventura colheu em seu regaço os pensamentos do ancião e os levou aos pes do eterno e casto amor.
—Helena, disse Estacio no dia seguinte, logo que pôde falar a sos á irmã,—sabes porque vim mais depressa? Foi por tua causa. O Mendonça escreveu-me dizendo haver alcançado de ti uma promessa de casamento.
—É verdade.
—É verdade?
—Até o ponto em que a minha vontade tem um limite, que é a sua. Por mim só nada posso decidir; mas não creio que voce se opponha de nenhum modo. Não é certo que deseja a minha felicidade?
Estavam sentados em um banco de pau, defronte do grande tanque. Estacio ficou algum tempo a olhar para a agua.
—Não entendo, disse elle enfim.
—Porque?
—Mais de uma vez me confessaste não sei que paixão violenta, paixão que parecia conter a tua vida toda. Que, sem embargo de um amor unico e forte, uma mulher despose um homem que não é o preferido de seu coração, é caso não vulgar e muita vez justificavel. Mas que este casamento seja para ella a felicidade, confesso que não o poderei entender nunca.
—Recusa então o seu consentimento?
—Não recuso; desejo comprehender.
—Nada mais simples, retorquiu a moça.
—Ah!
—Falei-lhe de um amor forte, é certo, não extincto naquelle tempo, mas totalmente sem esperança. Que moça não tem dessas phantasias uma vez ao menos? A phantasia passou. Ou eu não devo casar nunca, ou posso desposar um homem digno, que me ame. Não casar, foi algum tempo o meu desejo; não o é hoje, desde que voce, titia e o padre Melchior ambicionam ver-me casada e feliz. Para obter a felicidade, além do casamento, escolhi pessoa que me parece capaz de dar a paz doméstica e os melhores affectos de seu coração.
—De maneira que sacrificas-te a um desejo nosso?
—Quando fôsse sacrificio, fal-o-hia de boa cara; mas não é.
—Não se trata do um sacrificio repugnante e odioso; mas cumpre examinar o que perdes. Dizes que a phantasia passou; não creio. Helena, não creio que ella passasse. Tu amas de certo; amas violentamente alguem; amas sem esperança nem futuro; isto é, levas para casa do teu marido um coração que te não pertence, um sentimento intruso e inimigo...
Helena quiz interrompel-o.
—Ouve, continuou Estacio. Esse sentimento, se vier a extinguir-se, e se fôr substituido pela affeição que creares a teu marido, não te fara desventurosa; mas suppõe que não morre esse amor, qual será a tua situação?
—Tudo isso é um castello no ar,—disse Helena sorrindo; eu amei, não amo; ou amo somente a meu futuro marido.
Estacio abanou a cabeça com ar de incredulidade. Seus olhos pousaram no rosto placido da irmã, como tentando arrancar-lhe uma confissão silenciosa. Os della, firmes e tranquillos, crusavam o olhar com os delle. Estacio conhecia ja o dominio que a moça exercia sôbre si mesma; sua tranquillidade não o convenceu. Assim o pensava, assim o disse—sem rebuço.
—Por que razão negaria eu a verdade? retorquiu Helena.
Estacio ergueu os hombros.
—Suppondo que voce tenha razão, tornou ella; não deverei casar nunca?
—Não digo isso; mas ha dous caminhos para a felicidade, além de Mendonça.
—Não os vejo.
—Esse amor mysterioso será realmente sem esperança? Nada ha definitivo no mundo, nem o infortunio nem a prosperidade. O que a tua imaginação suppõe estar perdido, acha-se apenas transviado ou occulto...
—Adivinho o segundo caminho, atalhou Helena; não casando agora, posso vir a amar um dia, mais do que a Mendonça, algum homem tão digno como elle.
—Parece-te absurdo isso?
—Não, mas é uma loteria; perco um bem certo, por outro duvidoso. O jogador não faz cálculo differente. Essa felicidade póde não vir; eu contento-me com a que me cabe agora. Mendonça ama-me devéras; senti-o desde algum tempo. O padre Melchior abriu-me os olhos; aceito o destino que os dous me offerecem. Ésta é a razão e a realidade; o mais é illusão e phantasia.
Em quanto ella falava, Estacio, que tirára o chapeu de Chile, occupava-se em fazer circular na copa a fita larga que o cingia. Houve entre ambos grande silêncio. Pela beira do tanque seguia uma longa carreira de formigas, conduzindo as mais dellas trechos de folhas verdes. Com um galho sêcco, Estacio distrahia-se em perturbar a marcha silenciosa e laboriosa dos pobres animaes. Fugiam todas, umas para o lado da terra, outras para o lado da agua, era quanto as restantes apressavam a jornada na direcção do domicilio. Helena arrancou-lhe o galho da mão; Estacio pareceu accordar de largas reflexões; ergueu-se, deu alguns passos e voltou a ella.
—Helena,—declarou elle,—não creio nada do que voce me diz; voce sacrifica-se sem necessidade e sem glória. Não consinto; é meu dever oppor-me a semelhante cousa...
Helena ergueu-se tambem.
—Mendonça começa a ser o fructo prohibido, observou ella sorrindo; é o meio seguro de o fazer amado.
A moça affastou-se na direcção da casa. Estacio via-a desaparecer por entre as árvores, e ficou algum tempo entre o banco e o tanque. As formigas, dispersas alguns minutos antes, tinham agora entrado no primeiro caminho, com a mesma ordem anterior. Viu-as o moço, e comparou-as a suas ideias, tambem necessitadas de que um galho, invisivel as não dispersasse e confundisse. No meio de suas reflexões lembrou-lhe o padre; Estacio atravessou a chacara, sahiu á rua e dirigiu-se á casa de Melchior.
Melchior habitava uma casinha, situada no centro de um jardim diminuto, a algumas braças da residencia de Estacio. Tinha duas salas o predio, janellas por todos os lados, uma porta na frente e outra nos fundos. A da frente abria entre duas janellas de venezianas. A sala de visitas era ao mesmo tempo gabinete de estudo e de trabalho. Simples era a mobilia, nenhuns adornos, uma estante de jacaranda, com livros grossos in-quarto e in-folio; uma secretária, duas cadeiras de repouso, e pouco mais.
Na occasião em que Estacio alli entrou, Melchior passeava de um para outro lado, com um livro aberto nas mãos, algum Tertuliano ou Agostinho, ou qualquer outro da mesma estatura, por que o padre amava contemplar os grandes espiritos do passado, quando não encarava os mysterios do futuro. Naquelle corpo mediano havia uma aguia captiva. Entre as quatro paredes da casa, limitada a vista pelos arbustos e as flores do jardim, Melchior olvidava o tempo e eliminava o espaço, vivendo a vida retrospectiva ou prophetica, doce e mysteriosa volupia das almas solitarias. Melchior era um solitario; sem embargo das relações sociaes, que elle cultivava, amava sobretudo estar separado dos homens. Nessas horas, que eram a maior parte do tempo, lia ou meditava, esquecido ou extranho a todas as cousas do seu seculo.
Naquella occasião lia. Vendo assomar á porta o vulto de Estacio, Melchior fechou o rosto; contudo, recebeu-o affavelmente.
—Vim interrompel-o, disse Estacio; mas era preciso.
Melchior depoz o livro sôbre a mesa redonda que havia no meio da sala, marcando a lauda com uma telha estampa. Depois sentaram-se ao pe de uma das janellas lateraes. Então não se atreveu a dizer logo o motivo que o levara alli; mas de sua propria hesitação, deduziu Melchior qual era elle.
—Era preciso? repetiu o padre.
—Trata-se de Helena. Sei que é nosso amigo; confio em seu conselho e discrição. Como deseja a felicidade da minha familia, buscou facilitar o casamento de Helena e Mendonça...
—Contando com a sim approvação, explicou o padre.
—Hesito em dal-a.
—Por que?
Estacio explicou que Helena não tinha inclinação ao noivo que se lhe propunha, ao que Melchior respondeu referindo singellamente a verdade.
—É certo que o não ama ardentemente; concluiu elle, mas aceita-o, aprecia-o, está a meio caminho da felicidade que lhe devemos dar.
—Ha uma difficuldade, padre-mestre; é que ella ama a outro.
Melchior empallideceu; seu olhar escrutador, como o de um juiz, cravou-se immovel e afiado no rosto de Estacio. A fronte severa do moço não se alterou, nem seus olhos baixaram a terra.
—Ama a outro, continuou elle; paixão violenta, mas sem esperança, e tão real qual mysteriosa. Uma ou duas vezes alludiu a ella; mas nada mais lhe pude arrancar. Agora mesmo, quando lhe falei a tal respeito, desviou dahi o sentido e a conversação. Nada mais sei; sei porém que ama, e casar com outro em taes circumstâncias, dá dous inconvenientes egualmente graves: priva-se da possibilidade de uma união feliz com o homem que interiormente elegeu, e leva para casa do marido um sentimento de pezar e de remorso. Parece-lhe isso toleravel?
—Não ha remorso não ha pezar, onde não ha esperança, redarguiu o padre. Helena aceita o Mendonça por expontanea vontade; e conheço-a tanto que não acho ja possivel que ella recuse.
—Salvo o meu consentimento.
—É claro; mas por que o não daria?
—Porque não desanimo de descobrir a pessoa a quem Helena entregou seu coração. Talvez ella ache impossivel aquillo que é simplesmente difficil. Demais, não esqueçamos que Helena mal tem dezesete annos.
—Valem por vinte e cinco.
—Pode ser; mas convem não aceitar de coração leve uma condescendencia ou um capricho, ou qualquer outro motivo occulto que a inspira nesta resolução.
—Que motivo seria?
—Eu sei! Talvez a suspeita de que estimassemos vel-a affastar-se de casa.
—Não a calumnie; Helena tem perfeita sciencia e consciencia dos affectos que a rodeam e da estima em que é tida. Suas objecções não valem nada deante da declaração que ella propria fez. Não compliquemos uma situação simples e definida.
Melchior proferiu éstas palavras com voz branda, mas em tom firme; Estacio não se animou a responder logo. Voltou porém ao primeiro argumento; depois aventurou uma objecção nova.
—Mendonça é bom coração, disse elle; mas não possue as qualidades que, em meu entender, devem distinguir o marido de Helena. Nunca exercerá, sôbre ella a influência que deve ter um marido. Entre os dois inverte-se a pyramide. Mas isto, ao menos, se destruia uma das condições do casamento, podia conservar a felicidade doméstica. O perigo maior é outro; é vir elle a perder a estima da mulher. Nesse caso que lhe dariamos nós a ella? Um casamento apparente e um divorcio real.
Não olhava pura elle o padre, mas para fóra, com uns olhos dolorosos e o gesto impaciente. Quando elle acabou, fitou-o com resolução; disse-lhe que se tratava de casar Helena, não com um marido especial, mas com o que ella propria escolhêra de sua vontade livre; casamento que cumpria fazer sem demora. Era certo que, como chefe de familia, Estacio podia oppor-se ao casamento ou marcar-lhe condições; mas nem convinha isso ao interesse de Helena nem ao proprio interesse da familia.
Estacio ergueu-se quando o padre acabou; percorreu a sala, calado e pensativo. No fim de alguns segundos, o padre foi a elle.
—Va contar tudo a sua tia, disse; approve sua irmã; casal-os-hei a todos no mesmo dia.
—Pois bem, disse Estacio como concluindo um raciocinio interior; consinto em que Helena se case; procuremos outro marido. Mendonça. não; hade ser outro. Vou casar tambem; receberei todas as semanas; algum rapaz apparecerá que a mereça e de quem ella venha a gostar seriamente... é a minha ultima resolução.
No momento em que Estacio proferia éstas palavras, transpunha Mendonça a porta do jardim do capellão. Preoccupado com a frieza de Estacio, lembrara-lhe expor a Melchior suas impressões e pedir-lhe conselho, Melchior ia responder ao sobrinho de D. Ursula, quando ouviu rumor de passos na areia do jardim.
—Ahi vem o noivo, disse elle.
Estacio deu dous passos para pegar no chapeu; mas reconsiderou e foi sentar-se ao pe da mesa redonda. Havia alli um exemplar das Escripturas. Abriu-as ao acaso; a página acertou ser um capítulo dos Proverbios; seus olhos cahiram neste versiculo: «Quem quer abrir mão de seu amigo, busca-lhe as occasiões; elle será coberto de opprobrio.» Envergonhado, voltou a folha. Mendonça, entrára na sala. Não contava com Estacio, mas estimou vel-o alli.
—Venha, disse Melchior; tratavamos justamente seu casamento.
Estacio lançou ao padre um olhar de exprobação. O padre não o viu; olhava para Mendonça, que immediatamente lhe respondeu:
—Não venho ca para outra cousa. Uma vez que a fortuna o fez nosso confidente, desejo constituil-o meu conselheiro e director.
—Antes de tudo sou advogado de sua causa, disse Melchior: estava expondo agora as vantagens della.
Mendonça olhou fixamente para o amigo, e, depois de curta pausa:
—Rejeitas ou aceitas o noivo? perguntou elle.
Posto entre a espada e a parede, Estacio não soube logo que respondesse; ficou a olhar para a lauda aberta, receioso de encontrar a vista dos dous. O silêncio era peor que a resposta; e nem o caso nem as pessoas permittiam tão grande pausa. Estacio fechou do golpe o livro e ergueu-se.
—Discutia somente as vantagens do casamento, disse elle.
—E qual é a tua opinião?
—Minha opinião é que Helena está ainda muito menina. Mas não é só essa, nem é a principal; o uso em todo o caso é a favor do casamento. A principal razão é o teu proprio crédito.
—Meu crédito?
—Helena póde vir a amar-te como lhe mereces: mas a verdade é que não sente ainda hoje egual paixão á tua; foi o padre-mestre que m'o disse. Estima-te, é certo; mas a estima é flor da razão; e eu creio que a flor do sentimento é muito mais propria no canteiro do matrimonio.
—Ha muita flor nesse ramalhete de rhetorica, interrompeu benevolamente o padre. Falemos linguagem singella e nua. Não creia litteralmente o que lhe diz este philosopho, proseguiu elle voltando-se para Mendonça; elle ama-os e quer vel-os felizes; é o proprio zêlo quem lhe faz falar assim. N'uma palavra; deseja que o senhor a conquiste depois de campanha formal...
Mendonça respondeu ao capellão com um sorriso pallido, que lhe arrebitou um pouco as pontas do bigode, recolhendo-se logo medroso e frio. Seu rosto ficára carregado e pensativo; a lingua de Estacio tocara-lhe o coração. Disposto a aceitar a estima e a sympathia de Helena com a esperança de converter esse pequeno dote em avultado capital, não lhe occorrêra que a olhos extranhos podia parecer que seu fim exclusivo era a riqueza da moça. Estacio rompêra o veu a essa probabilidade. Uma só palavra desfizera a illusão de poucos dias.
—Vamos la,—disse o padre,—abracem-se como irmãos.
Nenhum delles se mexeu, Melchior sentiu toda a gravidade da situação; viu perdidos seus esforços, desfeita a união assentada, um abysmo cavado entre os dous amigos, incerto o destino de Helena. Interveiu outra vez com palavras de brandura, que os dous ouviram sem interromper. Quando acabou:
—O Estacio tem razão, disse Mendonça; meu crédito padecerá desde que alguem se lembre de dizer que o casamento foi arranjado sem nenhuma preoccupação das preferencias de D. Helena. Ella me desobrigará, em troca da palavra que lhe restituo.
A phrase brotou-lhe dolorida, mas sem hesitação nem fraqueza. Estacio olhava para elle e sentia alguma cousa semelhante a um remorso. Uma voz interior parecia dizer-lhe:—«Somnambulo, abre os olhos, tem consciencia de tuas acções; teu abraço enforca; teus escrupulos fazem-te odioso; tua solicitude é peor do que a colera.» Via o mancebo cortejar o padre; deteve-o pelo braço.
—Onde vaes? disse elle.
—Vou aonde me leva o pundonor, disse singellamente Mendonça.
—Pobres rapazes! exclamou o padre. São dous estouvados, nada mais; um quer catar argumentos onde sua irmã só achou nobre o franca resolução; o outro rompe de coração leve uma promessa feita em presença de um sacerdote! Estouvados disse eu? São mais do que isso; são dous dementes. Ora, como só eu tenho juizo e consequente autoridade, digo que nem um ha de sahir assim desenganado, nem o outro ha de recusar a acquiescencia que lhe peço em nome de seu finado pae.
Estacio estremeceu; Mendonça conservou-se frio. A arma era rija, mas o golpe excedia a necessidade; Mendonça não quereria dever a espôsa á evocação do nome do conselheiro: equivalia a um rapto. Percebeu-o Melchior, quando viu Estacio estender a mão ao amigo, mão que este recebeu com dignidade e frieza. Contaria Estacio com essa mesma repulsa do pretendente? O certo é que lhe disse sem a menor sombra de hesitação:
—Meu zêlo foi talvez excessivo; mas a intenção é boa e pura. Que posso eu desejar senão ver felizes os meus? Amem-se; será a remate de minhas aspirações. Promettes fazel-a feliz?
—Não prometto nada, disse Mendonça; o casamento é ja impossivel. Tu abriste-me os olhos; não te quero mal por isso. Perco muito, é certo; mas não me exponho á lingua dos maus.
Mendonça foi buscar o chapeu e dispoz-se a sahir, não obstante a intervenção de Melchior, que procurou trazel-o a sentimentos de reconciliação. Não insistiu o padre; viu no rosto do mancebo uma resolução digna e firme, que era impossivel dobrar naquelle momento. Quando Mendonça, lhe estendeu a mão em despedida, elle apertou-lh'a com ternura e esperança. Estacio tentou ainda retel-o; foi inutil; Mendonça sahiu dalli sem rancor, mas sem pezar. O coração sangrava-lhe; mas a consciencia ia contente.
Melchior foi até á porta, a despedir-se do Mendonça. Quando este sahiu, elle voltou o rosto para dentro, cruzou os braços e fitou o sobrinho de D. Ursula. O moço desviou as olhos; não foi o medo que os torceu, mas a vergonha.
—Viu? perguntou o padre. Não sei qual seja a sua resolução; mais prometto-lhe que serei como Mahomet,—Deus me perdoe!—ainda que veja o sol á minha direita e a lua á minha esquerda, não deixarei de executar o meu designio. Va ter com sua familia; deixe-me alguns instantes com o meu breviario.
Estacio não pôde resistir á intimação do sacerdote; não achou uma palavra para lhe dizer. Sahiu aturdido, desconsolado, colerico. Na rua e na chacara, ia pensando na scena daquella ultima hora, e parecia apenas reconstruir um sonho. Desconhecia-se, apalpava a intelligencia, chamava em seu auxilio todas as fôrças da realidade; olhava para o chão suspeitoso de que ia calcando as nuvens. Quando a razão tomou pe no meio de lembranças tão desconcertadas, elle viu claramente o resultado de suas acções: perdia um amigo de longos annos e abdicava a direcção da familia, pelo menos em relação ao casamento da irmã. Se ésta lhe agradecesse a resistencia, Estacio dar-se-hia por bem pago de tudo. Não era em seu favor que elle conspirara? Este pensamento levantou-lhe o ânimo; tivesse a approvação de Helena, pouco lhe importaria o resto.
Helena ouviu-lhe a narração fiel do que se passára em casa de Melchior. Ouviu-a commovida; no fim reprovou tudo o que elle fizera.
—Mendonça é ja o fructo prohihido, concluiu a moça; começo a amal-o. Se ainda assim me obrigar a desistir do casamento, adoral-o-hei.
—Chegamos ao capricho! exclamou elle; é o fundo do coração de todas as mulheres.
Helena sorriu e voltou-lhe as costas. Subiu a seu quarto, travou de uma penna e escreveu um bilhetinho. A tinta seccou primeiro que duas grossas lagrymas cahidas no papel; mas as lagrymas seccaram tambem. Antes de fechar o bilhete, desceu Helena a mostral-o ao irmão.
Quando a moça entrou no gabinete, Estacio ia ter com ella. Sua resolução estava assentada. Uma vez que a irmã aceitava de boa feição o casamento, não havia mais que approval-o e celebral-o. Encontraram-se na porta; Estacio recuou para dentro.
—Helena, disse elle, faça-se a tua vontade.
—Consente?
Estacio fez um gesto affirmativo.
—Não basta isso, tornou a moça; Mendonça não voltará ca depois do que se passou. Peço-lhe a remessa deste bilhete.
Estacio abriu o bilhete; continha éstas poucas palavras: «Venha hoje a Andarahy; é o meu coração que o pede e a nossa felicidade que o exige.» Cinco minutos gastou o moço a ler as duas linhas; leu o que estava escripto e o que não estava. Helena desarmava os escrupulos de Mendonça, tirando á futura união qualquer suspeita de interesse. Leu e fechou lentamente o papel.
—Approva? perguntou a moça.
—Assim, pois, disse o moço tristemente, a tua felicidade exige que esse homem venha ca, que te cases com elle, que nos fujas? Não te basta a familia, a affeição de nossa tia, a minha propria affeição? Estes mezes de doce intimidade vão ser esquecidos em um só instante, sacrificados aos pes do primeiro homem que te apraz escolher e seguir? No dia em que penetraste nesta casa, entrou contigo um raio de luz nova, alguma cousa que nos faltava e que tu trouxeste contigo; nossa familia completou-se; nossos corações receberam um sentimento ultimo. Pensavamos que isto seria duradouro, e era simplesmente fugaz. Oh! Helena, melhor fôra não ter vindo!
Helena quiz responder; mas a voz travou-se-lhe na garganta, e a palavra retrocedeu ao coração. Apontou para o papel como pedindo-lhe ainda uma vez que o enviasse e saiu.
De tarde, appareceu Melchior; ia tranquillo e e resoluto a dar um golpe decisivo. Estacio rendeu-se antes que elle falasse.
—Padre-mestre, disse o moço logo que o viu; a reflexão venceu-me; faça-se a vontade de todos.
—Fala de coração?
—De coração.
—Pois bem, seja completo; tomou o padre. Sou ministro de uma religião que condemna o orgulho. Não ha dezar em curar as feridas de um amigo; va ter com o seu amigo; traga-o a esta casa como irmão.
—Irei amanhã.
—Não; va hoje mesmo.
A noite cahiu logo; Estacio foi dalli vestir-se. Não tendo enviado o bilhete de Helena, metteu-o na algibeira para entregal-o elle proprio; depois tirou-o e releu-o; tendo-o relido, fez um gesto para rasgal-o, mas conteve-se e perpassou-o ainda uma vez pelos olhos. A mão, á semelhança de mariposa indiscreta, parecia attrahida pela luz; resistiu, resistiu algum tempo; emfim chegou o bilhete, á vela e queimou-o.
A visita de Estacio não causou nenhum espanto a Mendonça; elle a esperava com a confiança das indoles ingenuas e avessas ao odio. Não era crivel que um amigo de longos annos dormisse sobre a injustiça de um minuto; contudo dormiu. Foi na seguinte manhã que Estacio procurou o pretendente de Helena.
Entrou elle naturalmente em casa de Mendonça; sem expansão nem secura. A entrevista foi breve, mas cordial; houveram-se os dous com affectuosa dignidade. Estacio explicou seus escrupulos; declarou-se contente com a alliança. O contentamento podia existir; todavia a manifestação foi parca e sêcca. Houve mais calor e expansão quando elle lhe pediu que désse vida feliz á irmã.
—Sera para mim um eterno remorso, se Helena vier a ser desgraçada, disse elle. Não tivemos o mesmo berço; vivemos nossa infancia debaixo de tecto differente; não aprendemos a falar pelos labios da mesma mãe. Importa pouco; nem por isso lhe quero menos. Meu pae recommendou-a a nossa familia e ella correspondeu ao sentimento que dictou essa ultima e solemne vontade.
Mendonça nas respondeu nada; elle reflectira durante a noite nas palavras que ouvira a Estacio no dia anterior;—palavras que bem podiam ser ditas ou pensadas por outros, talvez por todos, logo que soubessem de seu casamento. Helena viria a amal-o, talvez; mas desde logo lhe levava para casa a chave da independencia. Mendonça recuou. Quando o padre Melchior o soube, não pode conter um gesto de admiração; mas se louvou o escrupulo, não approvou a resolução, que vinha derrubar tudo.
—Não tapará nunca a boca aos maus, disse o padre; elles acharão meio de envenenar sua propria generosidade.
—Paciencia! tornou o moço; é menor esse perigo. Se casar, dirão que faço uma operação vantajosa; talvez sua familia o supponha; talvez ella propria o pense.
Helena teve noticia dos receios de seu pretendente e da resolução a que parecia inclinar o coração. Foi a elle; perguntou-lhe se era verdade. Mendonça affirmou que sim. Ella contemplou-o longamente sem dizer palavra; travou-lhe das mãos, apertou-as com effusão; elle persistiu.
No desinteresse de Mendonça havia porventura um pouco de faceirice,—dessa que rara vez deixa de enfeitar os mais puros e nobres sentimentos. A moça o percebeu, mas nem por isso deixou de crer na sinceridade do rapaz. Creu; tentou dissuadil-o; e posto nada alcançasse nos primeiros minutos, estava certa de que triumpharia afinal do derradeiro obstaculo. Seus olhos seriam mais habeis e felizes que os labios do padre. Foi o que ella disse ao capellão.
—Tomo á minha conta effectuar este casamento, continuou Helena.
—Resolvida a tudo?
—A tudo.
—Mas se elle insistir...
—Se elle insistir, vencel-o-hei, ou por um modo ou por outro. Uma moça que quer ser noiva vale por um exercito; eu sou um exercito.
—Muito bem! Contudo, sua dignidade.
—Oh! em último caso abro mão da herança.
—Era capaz disso? perguntou Melchior.
—Se era capaz? Desejo-o até,—disse a moça com vehemencia.
E accrescentou em tom mais brando:
—Sobre o homem de minha escolha desejo que não paire a minima desconfiança.
Tal era a situação, dous dias depois da volta de Estacio. O casamento podia contar-se feito. Mendonça não resistiu ao nobre desinteresse de Helena. D. Ursula approvou tudo com effusão e amor, nada sabendo das incertezas e contradições dos ultimos dias.
Na noite desse dia, Estacio escreveu para Cantagallo dando notícias suas. Do casamento de Helena falou pouco; quasi nada. Tudo o descontentava: tanto o que elle fizera e dissera, sem proveito, como o desenlace da situação. Não soubera oppor-se com efficacia nem applaudir opportunamente.
Posto fôsse tarde o somno teimava em fugir-lhe dos olhos e elle velou até muito além de meia noite. Occupado, sem dúvida em adormecer organisações menos sensiveis e existencias menos complicadas, o somno fez-lhe apenas uma curta visita. Pelas cinco horas de manhã, Estacio accordou e ergueu-se. A manhã estava fresca; quasi toda a familia dormia. Estacio desceu; o unico escravo que achou levantado preparou-lhe uma chicara de cafe. Não tendo ainda chegado os jornaes, bebeu-a sem a leitura do costume.
Quem sabe o que é fortuito ou providencial, e por que fios tenues se prendem muitas vezes os acontecimentos humanos? Estacio ouviu o som longinquo de um tiro; era algum caçador, talvez; a supposição deu-lhe ideia de ir caçar. Elle não era um Nemrod na habilidade, mas era-o na vocação. Foi buscar a espingarda, proveu-se de polvora e chumbo, e sahiu.
Se a habilidade não era muita, parecia ter ainda diminuido naquella manhã, ou por que a mão estivesse menos firme, ou por que a vista andasse menos segura. Estacio caminhára longo tempo sem pensar no fim que o levava; ia absorto,—alheio ao logar e ás cousas. Fez algumas tentativas de caça; mas deixou de mão o recreio. Quando cançou de errar, consultou o relogio e viu que não era cedo. Tinha o braço cançado de suster a espingarda; só então reparou que uso trouxera cm pagem consigo. Dispoz-se a voltar. Vendo uma parasita, colheu-a com a intenção de a dar a Helena, como seu primeiro presente de nupcias. Depois desceu, em caminho para casa.
Vinha descendo, com a espingarda debaixo do braço, e os olhos no chão, a passo lento, apezar de serem oito horas dadas. De uma vez que ergueu os olhos viu um caso extranho que lhe fez deter o passo. Um pouco abaixo, sahia de traz de uma casa velha, o pagem de Helena, conduzindo a mola e a egua. Estacio não soube que pensar daquillo; mas, cedendo a um impulso que não pôde dominar, deu um salto por cima de uma cêrca do espinhos, agachou-se e esperou o resto.
O resto não se demorou muito. Assomou á porta da frente a figura de Helena. Depois de olhar cautellosamente para um e outro lado, sahiu e montou na egua; o pagem cavalgou a mula e os dous desceram a trote.
Estacio sentiu uma nuvem cobrir-lhe os olhos; ao mesmo tempo apertava o primeiro objecto que achou debaixo das mãos; era a cêrca de espinhos. A dor fel-o voltar a si; tinha a mão ensanguentada. Ao longe cavalgavam Helena e o pagem. Logo que os viu desaparecer, Estacio saltou de novo á estrada. Sem resolução nem plano, caminhou em direcção á casa d'onde vira sahir a irmã. Era a mesma da bandeirinha azul, que Helena comprimentá-la de longe, alguns mezes antes, e não esquecera de reproduzir na paisagem que dera ao irmão, no dia dos annos delle. Estas circumstâncias, antes indifferentes, appareciam-lhe agora como outros tantos artigos de um libello.
O prédio parecia ainda mais velho do que a primeira vez que o vira; a caliça das paredes e das columnas ia cahindo, e o esqueleto de tijolo estava a nu em mais de um logar. Alguma herva mofina brotava a custo juncto ás paredes, cobrindo com suas folhas descoloridas o chão desegual e humido. Por baixo de uma das janellas havia um banco de pau, gretado pelo tempo, com as bordas roliças do longo uso. Tudo alli respirava penuria e senilidade.
—Não, dizia Estacio consigo, não é este o asylo de um Romeo de contrabando. Mora aqui alguma familia pobre, que a caridade engenhosa de Helena vem afagar de longe em longe.
A solução do enigma pareceu-lhe tão natural, que o moço resolveu parar a meio da aventura, e chegou a dar alguns passos para traz. Mas a suspeita é a tenia do espirito; não perece em quanto lhe resta a cabeça. Estacio sentiu o desejo imperioso de indagar o que aquillo era, e voltou sôbre seus passos. Para entrar alli era necessario um motivo ou ura pretexto. Procurou algum; a aventura dera-lhe o melhor de todos. Olhou para a mão ferida e ensanguentada, e foi bater á porta.
Poucos instantes esperou Estacio. Veiu um homem abrir-lhe a porta; era o mesmo que elle vira alli uma vez. Entre ambos houve meio minuto de silêncio, durante o qual nem Estacio se lembrou de dizer o que queria, nem o desconhecido de lhe perguntar quem era. Olhavam um para o outro.
—Que desejava? disse enfim o dono da casa.
—Um favor, respondeu Estacio, mostrando-lhe a mão ferida. Ia a cahir ha pouco; procurando amparar-me, n'uma cêrca de espinhos, feri-me, como ve. Podia dar-me um pouco d'agua para lavar este sangue, e...
—Pois não, interrompeu o outro. Queira sentar-se ahi no banco,—ou, se prefere, entrar... É melhor entrar, concluiu abrindo-lhe caminho.
Em qualquer outra occasião, Estacio teria recusado o convite, porque o expectaculo da miseria repugnava aos olhos saturados de opulencia. Agora, ardia por haver a chave do enigma. Entrou. O desconhecido abriu uma das janellas para dar mais alguma luz, offereceu ao hóspede a melhor cadeira e foi por um instante ao interior.
Estacio pôde então examinar, á pressa, a sala em que se achava. Era pequena e escura. A parede, pintada a colla, ja de longa data, tinha em si todos os signaes do tempo; primitivamente de uma só côr, a pintura apresentava agora uma variedade triste e desagradavel. Aqui o bolor, alli uma grêta, acola o rasgão produzido por um movel; cada accidente do tempo ou do uso dava áquellas quatro paredes o aspecto de um asylo da desgraça. A mobilia era pouca, velha, mesquinha e desegual. Cinco ou seis cadeiras, nem todas sãs, uma mesa redonda, uma commoda e uma marqueza, um aparador com duas mangas de vidro cobrindo castiçais de latão, sôbre a mesa um vaso de louça com flôres, e na parede dous pequenos quadros cobertos de escomilha encardida, taes eram as alfaias da sala. So as flôres davam alli um ar de vida. Eram frescas, colhidas de pouco. Atentando nellas, Estacio estremeceu: pareceu-lhe reconhecer uma acacia plantada em sua chacara. Quando a suspeita germina na alma, o menor incidente assume um aspecto decisivo. Estacio sentiu um calafrio por todo o corpo.
Voltou o dono da casa, trazendo nas mãos uma bacia, e nos braços uma toalha, cuja alvura contrastava singularmente com a côr da parede e o aspecto senil da casa. Estacio ergueu-se.
—Deixe-se estar, disse o desconhecido.
—Estou perfeitamente bem.
—Nesse caso, faça o favor de chegar á janella.
A bacia foi posta na janella; o desconhecido quis lavar elle proprio a mão do hóspede; mas o moço não lh'o consentiu.
—Ao menos, disse o dono da casa, hade consentir que a enxugue. Eu entendo um pouco disto; infelizmente, não tenho aqui nenhum medicamento caseiro para applicar.
Estacio aceitou o offerecimento. O dono da casa abriu a toalha e começou cuidadosamente a operação. O sobrinho de D. Ursula pôde então examiná-lo á vontade.
Era um homem de trinta e seis a trinta e oito annos, forte de membros, alto e bem proporcionado. Uma cabelleira espessa e comprida, de um castanho escuro, descia-lhe da cabeça até quasi tocar nos hombros. A fronte elevada, tinha um ar de serenidade olympica. Os olhos eram grandes, e geralmente quietos, mas riam-se, quando sorriam os labios, animando-se então de um brilho intenso, ainda que passageiro. Havia naquella cabeça,—salvo as suiças,—certo ar de tenor italiano. O pescoço, cheio e forte, surgia d'entre dous hombros largos, e, pela abertura da camisa, que um lenço atava frouxamente na raiz do colo, podia Estacio ver-lhe a alva côr e a rija musculatura. Vestía pobre, mas limpamente, um rodaque branco, calça de ganga e collete de brim pardo. A toilette mas que disparatada e mesquinha, não diminuia a belleza mascula da pessoa; accusava somente a penuria de meios.
Quando elle acabou de lavar os arranhões de Estacio,—eram pouco mais do que isso,—propoz-se a ir buscar um pedaço de panno afim de atar-lhe a mão; Estacio, com a outra mão e os dentes, rasgou o lenço que trazia, e o dono da casa completou o summario curativo.
—Prompto! disse elle. Se tiver em casa algum medicamento apropriado, será conveniente applical-o. Toda a cautella é pouca; convem evitar alguma inflammação.
—Obrigado, respondeu Estacio. Realmente, vim dar-lhe uma massada, sem grande necessidade talvez.
—Porque?
—Podia fazer isto mesmo quando chegasse a casa.
—Mora perto?
—Um pedaço abaixo.
—Foi conveniente curar ja; nenhuma precaução é inutil em cousa, nenhuma da vida.
—Maxima de prudencia, observou Estacio procurando sorrir.
—Que só aprende tarde quem não a traz na massa do sangue, replicou o outro suspirando.
A não ser indiscreto ou fallador, era difficil levar a conversa por diante. O favor estava feito, o assumpto exgotado. Restava agradecer, despedir-se e sahir. Estacio, entretanto, tinha necessidade de mais tempo; queria arrancar áquelle homem uma palavra menos indifferente á situação, ou conhecer-lhe, se fôsse possivel, o caracter e os costumes. Para isso havia talvez um meio; contrafazer-se, affectar maneiras extranhas ás suas, apegar-se á occasião por todas as bordas. Estacio determinou-se a isso, confiando o resto do acaso. Voltou á cadeira e sentou-se.
—Consente que descance um pouco? Estou fatigadissimo.
—Não pelo que caçou, disse o desconhecido rindo.
—Volto com as mãos abanando. Nunca fui bom caçador; e tenho, não obstante, a mania de atirar aos passaros.
—Não é esse o defeito de muita outra gente, em mais elevada ordem de cousas? Eu fui victima desse defeito mortal.
—Ah! exclamou Estacio com certa entonação interrogativa.
O dono da casa sorria levemente; mas não pareceu molestal-o a curiosidade do hóspede;—talvez mesmo não desejasse outra cousa.
—É verdade,—disse elle; devo a minha actual penuria ao erro de teimar em cousas extranhas á minha indole e aptidão, extranhas e totalmente oppostas...
—Hade perdoar-me,—interrompeu Estacio com um ar de familiaridade indiscreta, que lhe não era habitual; eu creio que um homem, forte, moço e intelligente não tem o direito de cahir na penuria.
—Sua observação,—disse o dono da casa sorrindo,—traz o sabor do chocolate que o senhor bebeu naturalmente ésta manhã antes de sahir para a caça. Presumo que é rico. Na abastança é impossivel comprehender as lutas da miseria; e a maxima de que todo o homem póde, com esfôrço, chegar ao mesmo brilhante resultado, hade sempre parecer uma grande verdade á pessoa que estiver trinchando um peru. Pois não é assim; ha excepções. Nas cousas deste mundo não é tão livre o homem como suppõe; e uma cousa, que uns chamam mau fado, outros concurso de circumstâncias, e que nós baptisámos com o genuino nome brazileiro de caiporismo, impede a alguns ver o fructo de seus mais herculeos esforços. Cesar e sua fortuna! toda a sabedoria humana está contida nestas quatro palavras.
O desconhecido proferiu isto com o tom mais simples e natural do mundo, e uma facilidade de elocução, que Estacio mal lhe podia suppor. Era aquillo uma comedia ou a expressão da verdade? Estacio olhou fixamente para elle, como a querer penetral-o. Ao mesmo tempo ouviu-se um rumor na parte da casa que ficava além da sala; Estacio voltou a cabeça com um gesto de desconfiança. A porta abriu-se e appareceu uma preta velha trajando nas mãos uma bandeja. A creada estacou a meio caminho.
—Põe em cima da mesa, disse o dono da casa. É o meu almôço,—continuou elle, voltando-se para Estacio; almôço parco e hygienico. Ousarei offerecer-lh'o?
Estacio fez um gesto negativo, e dispoz-se a sahir.
—Ja! Não é meu intento despedil-o; almoçarei conversando. Vivo tão solitario, que a presença de alguma pessoa é para mim um encanto.
Estacio aceitou sem difficuldade o convite; sentou-se defronte do homem, ao pe da mesa, e assistiu ao almôço, que não podia ser mais escasso: um pão, duas hostias de queijo duro, e uma chavena de cafe. O que mais valia era o contentamento do dono da casa e a franqueza com que ostentava aos olhos de um extranho a simplicidade de seus habitos.
—Não é refeição de principe,—dizia elle,—mas satisfaz todas as ambições de um estomago sem esperança. Aqui é a sala de visitas e a sala de jantar; a cosinha é contigua; além, ficam duas braças de quintal; para la do quintal... o infinito da indifferença humana.
E depois de um silêncio:
—Não digo bem, emendou elle; nem sempre acho indifferença. Meu trabalho não me dá mais do que o escasso pão de cada dia; mas tenho algumas alegrias, no meio de minha perpétua quaresma; e essas recebo-as de mãos caridosas e puras.
Dizendo isto, o desconhecido exgotou a chavena, e reclinou-se sôbre a cadeira, fitando em cheio a cara do hóspede. Estacio reflectiu nas últimas palavras, e um raio de esperança veiu rasgar-lhe a nuvem que lhe entenebrecia a fronte. Os dous homens pareciam interrogar-se. O filho do conselheiro saccou do bolso um charuto e offereceu-o ao dono da casa.
—Obrigado, disse este.
—Não fuma?
—Ja fumei; hoje economiso esse vicio. Nem por isso faço mais lentamente a digestão.
—Mora só?
—Só.
—Não tem familia?
—Nenhuma.
—Hade achar-me singularmente indiscreto.
—Não; supponho que sua curiosidade tem uma causa honrosa e legítima.
—Acertou; sua pessoa inspira-me sympathia; e se eu conhecesse alguma dessas mãos puras, que lhe emendam as lacunas da sorte...
—Dar-me-hia, por intermedio dellas, o seu obolo?...
—Se o não offendesse...
—Não offendia, mas eu recusava, se soubesse; e peço-lhe desde ja que o não faça ás escondidas...
Estacio fez um gesto de assentimento.
—Não é orgulho, continuou o dono da casa; é um resto de pudor que a pobreza me não tirou ainda. Fiz-lhe agora um obsequio, um simples dever de visinho... Pareceria que o senhor m'o pagava com um beneficio. O beneficio seria menos expontaneo de sua parte, e menos agradavel para mim. Agradavel não exprime, talvez, toda a minha ideia; mas o senhor facilmente comprehenderá o que quero dizer.
—Entendeu-me mal; o meu obolo não seria na especie a que o senhor allude. Tenho amigos, e alguma influência; poderia arranjar-lhe melhor posição.
O desconhecido reflectiu um instante.
—Aceitaria? perguntou Estacio.
—Estou pensando na maneira de recusar. Ouro é o que ouro vale, Eu vexar-me-hia eternamente de dever qualquer melhoria da sorte ao cumprimento de um dever de caridade.
—Ja me não admira a vida pobre que tem tido.
—Excessivo escrupulo, talvez?
—Escrupulo desarrazoado.
—Antes de mais que de menos.
—Nem de menos nem de mais; mas só a porção justa.
—A porção varia conforme as necessidades moraes de cada um. Mas, eu mesmo, que lhe estou a falar nem sempre tive ésta virtude intratavel; e por ventura alguma vez fraqueei.
A fronte do desconhecido tornou-se sombria; a voz morreu-lhe nos labios, e os olhos cahiram naquella atonia que exprime uma grande concentração de espirito. Era occasião de interrogal-o directamente ou sahir. Estacio preferiu o último alvitre.
—Não o quero demorar mais,—disse o dono da casa quando o mancebo proferiu as palavras de despedida. Ja é tarde, e sua mãe talvez esteja anciosa...
Estacio limitou-se a olhar para elle em cheio,—dizendo:
—Se alguma vez resolver dar de mão a seu a escrupulos, mande procurar-me. Minha casa é conhecida em todo Andarahy pela—casa do Conselheiro Valle...
O desconhecido, era cujo rosto Estacio esperou ver um signal qualquer de abalo ou sorpresa, conservou-se impassivel e risonho. Curvou-se em signal de agradecimento; e como Estacio hesitasse em estender-lhe a mão, elle metteu as suas nas algibeiras.
—Talvez nos vejamos ainda, disse Estacio ja fóra da porta.
—Sim?
—Passeio algumas vezes por estes lados.
—Nem sempre estou em casa; mas ainda estando, conservo fechadas as cousas. Quando quizer descançar, bata; a casa é pobre, mas será amiga.
Estacio affastou-se rapidamente. Eram dez horas, e o sol aquecia; elle não deu pelo sol nem pelo tempo. Semelhante ao transviado florentino, achava-se no meio de uma seiva escura, a egual distância da estrada recta,—diritta via—e da fatal porta, onde temia ser despojado de todas as esperanças. Nada sabia; nada conjecturava; eram tudo novas dúvidas e oscillações. O homem com quem acabava de conversar parecia-lhe sincero; sua pobreza era authêntica; sensivel a nota de melancholia que por vezes lhe afrouxava a palavra. Mas onde cessava alli a realidade e começava a apparencia? Vinha de tratar com um infeliz ou um hypocrita? Estacio rememorou todos os incidentes da manhã, e todas as palavras do desconhecido; eram outros tantos pontos de interrogação suspeitos e irrespondiveis. Seu espirito repellia com horror a ideia do mal; mas custava-lhe a acceitar a ideia do bem; e a peor das angústias,—a dúvida,—continha-o todo e agitava-o, em suas mãos felinas. O sol e a agitação alastravam-lhe a testa de perolas de suor; ao offego da marcha apressada juntava-se o da violenta commoção. Estacio não via os objectos que ia costeando, nem as pessoas que lhe passavam ao lado; ia cego e surdo, até que o choque da realidade o despertasse.
Chegou enfim a casa. Ao portão estava um escravo, a quem deu a espingarda. Sua demora causára alguma inquietação á familia; logo que as duas senhoras souberam de seu regresso correram a recebel-o, ficando D. Ursula a uma janella, e descendo Helena até meio caminho. A apparição subita da moça, a alegria e o amor, que pareciam impelli-la, como duas azas sanctas, a perfeita ingenuidade de seu gesto, tudo produziu nelle a necessaria reacção,—reacção de um instante,—mas salutar, porque a crise era demasiado violenta. Estacio apertou as mãos da moça com a energia do náufrago. Um fluido subtil percorreu as fibras de Helena; e aquelle rapido instante teve toda a doçura de uma reconciliação.
Estacio contava recolher-se ao quarto para pôr em ordem suas ideias, comparal-as, extrahir uma conjectura pelo menos, e verifical-a ou desmentil-a. Mas nem a tia nem a irmã haviam almoçado, á espera delle; e forçoso lhe foi acompanhal-as na satisfação de uma necessidade que não sentia. Durante o almôço, Estacio procurou observar Helena; trabalho ocioso, porque o rosto da moça, se alguma cousa trahia nessa occasião, eram as alegrias ineffaveis da familia. Ella propria servia por suas mãos a Estacio e D. Ursula; inexcedivel na attenção com que sabia repartir-se entre os convivas não o era menos no carinho e na graça. Nos olhos parecia estampada a ignorancia do mal, e o sorriso em o das almas candidas. Poder-se-hia attribuir áquella creatura de dezesete annos corrupção e hypocrisia? Estacio envergonhou-se de tal ideia; sua alma sentiu as vertigens do remorso.
Mas o almoço acabou, dispersou-se a companhia, o mancebo recolheu-se ao gabinete, e, desfeita a visão, voltou a suspeita. Estacio buscou dominar a situação. Elle não ia ao ponto de suppor em Helena a completa perversão dos sentimentos; o limite do mal, que se lhe podia attribuir, era o de uma culposa leviandade. Se em vez de um acto leviano, fôsse aquillo um simples estratagema de caridade, Helena não mereceria menos uma advertencia, mas a pureza da intenção salvava tudo, e a paz da familia, não menos que o seu decoro, se restabeleceria inteira. Estacio examinou um por um todos os indicios de culpabilidade e de innocencia; buscou sinceramente os elementos de prova; não esqueceu um só argumento de inducção. Nesse trabalho despendeu longas horas, sem resultado apreciavel, pela razão de que, se a sentença era difficil de formular, o juiz era incompetente para decidir; entre a dignidade e a affeição, seu espirito balouçava incerto.
Quasi á hora do jantar, Estacio, que não sahira uma só vez do gabinete, chegou a uma das janellas, e viu atravessar a chacara a mais humilde figura daquelle enigma, humilde e importante ao mesmo tempo: o pagem. O pagem appareceu-lhe como uma ideia nova; até aquelle instante não cogitára nelle uma só vez. Era o confidente e o complice. Ao vel-o recordou-se que Helena lhe pedira uma vez a liberdade daquelle escravo. A ameaça rugiu-lhe no coração; mas a colera cedeu á angústia, e elle sentiu na face alguma cousa semelhante a uma lagryma.
Nesse momento duas mãos lhe taparam os olhos.
Não era preciso grande esfôrço para adivinhar a dona das mãos. Estacio, com as suas, affastou as mãos de Helena, segurando-lhe os pulsos de modo que lhe arrancou um leve gemido. Voltando-se, deu com os olhos na irmã, que lhe disse em tom de gracioso reproche:
—Voce é muito mau! Pagou-me a caricia com um apertão. Deixe estar que nunca mais cahirei em outra. Vim vel-o, por que voce hoje não se lembrou ainda de dar á gente um ar de sua graça... Doeu-me!—continuou ella olhando para os pulsos.—Mas... tenho os dedos molhados; seria... voce estaria... que é? que foi?
Estacio, que ouviu a discurso da irmã, com o rosto desfeito e o olhar ancioso, não lhe respondeu ás últimas interrogações, e continuou a olhar para ella, como a querer ler na physionomia da moça a explicação do enigma que o atordoava. Helena ainda insistiu, atterrada e afflicta. Indo pegar-lhe nas mãos, Estacio desviou o corpo, dirigiu-se á parede, despendurou o desenho que Helena lhe dera no dia de seus annos, e approximou-se da moça.
—Que é? repetiu ésta admirada.
A unica resposta de Estacio foi estender o dedo sôbre a mysteriosa casa reproduzida na paisagem. Helena olhou alternadamente para o desenho e para o irmão. A expressão interrogativa e imperiosa deste, fel-a attentar no ponto indicado. Subito empallideceu; seus labios tremeram como a murmurar alguma cousa, mas a alma falou tão baixo que a palavra não chegou á boca. Durou aquillo poucos instantes. A angústia lia-se no rosto dos dous; a moça, para occultar a sua, cobriu os olhos com as mãos. O gesto era eloquente; Estacio lançou para longe de si o quadro, com um movimento de colera. Helena atirou-se para o corredor.
D. Ursula aguardava os sobrinhos para jantar. Demorando-se estes, dirigiu-se ella propria ao gabinete de Estacio. A porta estava aberta; D. Ursula entrou e deu com elle, sentado n'uma poltrona, com o lenço na cara, como a soluçar. A tia correu com a velocidade que lhe permittiam os annos. Estacio não a ouviu entrar; só deu por ella quando as mãos da boa senhora lhe arrancaram as suas dos olhos. O assombro de D. Ursula foi indescriptivel, sobretudo quando Estacio, erguendo-se, atirou-se-lhe aos braços, exclamando:
—Que fatalidade!
—Mas... que é?... explica-te.
Estacio enxugou as faces molhadas do longo e silencioso pranto, com o gesto decidido de um homem que se envergonha de um acto de debilidade. O vestigio das lagrymas dava-lhe aquelle cunho tocante e severo, que as grandes dores imprimem no rosto humano. A explosão desabafara-lhe o espirito; elle podia enfim ser homem, o era preciso que o fôsse. D. Ursula pediu e ordenou que lhe confiasse a causa da inexplicavel afflicção em que viera achal-o. Estacio recusou dizel-a.
—Saberá tudo amanhã, ou logo. Agora só poderia dar-lhe um enigma, e eu sei o que elle me ha custado. Algumas horas mais, e precisarei de seu conselho e apoio.
D. Ursula resignou-se á demora. Quando chegou á sala de jantar achou um recado de Helena; mandava-lhe dizer que se sentira repentinamente incommodada e que a dispensasse naquella tarde e noite. D. Ursula suspeitou logo que o recado de Helena tivesse relação com a afflicção de Estacio, e correu ao quarto da sobrinha. Achou-a meia inclinada sobre a cama, com o rosto na almofada e o corpo tranquillo e como morto. Ao sentir os passos de D. Ursula, ergueu a cabeça. A pallidez era grande e profundo o abatimento; mas não houvera lagrymas. A dor, se a houve, e houve, parecia ter-se petrificado naquella face immovel e fria como o granito. O que restava ainda vivo na figura da moça eram os olhos, que não perderam o fulgor natural. Ella ergueu-os a medo, e abraçou a tia com um olhar de súpplica e de amor. D. Ursula travou-lhe das mãos, encarou-a silenciosamente, e murmurou:
—Conta-me tudo.
—Saberá depois! suspirou a moça.
—Não tens confiança em tua tia?
Helena ergueu-se e lançou-se-lhe nos braços; duas lagrymas rebentaram-lhe dos olhos, e foram as primeiras que elles verteram naquella meia hora. Depois beijou-lhe as mãos com ternura:
—Póde receber estes beijos,—disse ella,—os anjos não os tem mais puros.
Foram as últimas palavras que D. Ursula pôde arrancar-lhe; a moça recolheu-se ao profundo silêncio em que ella a encontrou. D. Ursula sahiu; e foi dalli ter com Estacio. O sobrinho encaminhava-se para a sala de jantar.
—Vamos para a mesa, disse elle,—não convem que os escravos saibam de taes crises.
D. Ursula referiu o estado em que achára Helena e as palavras que trocára com ella. Estacio ouviu-a sem nenhuma expressão de sympathia. O jantar foi um simulacro; era um meio de illudir a perspicacia dos escravos, que alias não cahiam naquelle embuste. Elles conheceram perfeitamente que algum acontecimento occulto trazia suspensos e concentrados os espiritos. As iguarias voltavam quasi intactas; as palavras eram trocadas com esfôrço entre a sinhá velha e o senhor moço. A causa daquillo era com certeza nanhã Helena, que estava ausente.
Estacio deu ordem para que a todas as pessoas extranhas se declarasse estar ausente a familia. A unica excepção era o padre Melchior. A esse escreveu pedindo-lhe que os fôsse ver.
—Não posso esperar até amanhã, disse D. Ursula; se tens de revellar alguma cousa a um extranho, por que o não fazes a mim primeiro? Dize-me o que ha. Não posso ver padecer Helena; quero consolal-a e animal-a.
—O que tenho para dizer é longo e triste,—retorquiu Estacio; mas, se deseja sabel-o desde ja, peço-lhe ao menos que espere a presença do padre Melchior. Eu não poderia dizer duas vezes as mesmas cousas; seria revolver o punhal na ferida.
A curiosidade de D. Ursula cresceu com éstas meias palavras do sobrinho; mas era forçoso esperar e esperou. Foi dalli ao quarto de Helena, Como a porta estivesse fechada, espreitou pela fechadura. Helena escrevia. Ésta nova circumstância veiu complicar as impressões de D. Ursula.
—Helena está encerrada no quarto, e escreve, disse ella ao sobrinho.
—Naturalmente, respondeu este com sequidão.
O padre Melchior não se demorou em acudir ao chamado de Estacio. O bilhete era instante e a letra febril. Algum acontecimento grave devia ter-se dado. A reflexão do padre era justa, como sabemos; elle o reconheceu desde logo, não só no aspecto lugubre da familia, como na ancia com que era esperado. Os tres recolheram-se a uma das salas interiores.
—Helena? perguntou Melchior.
—Vamos tratar della, respondeu Estacio.
Referir o que se passára naquella fatal manhã era mais facil de planear que de executar. No momento de expor a situação e as circumstâncias della, Estacio sentiu que a lingua rebelde não obedecia á intenção. Achava-se n'um tribunal doméstico, e o que até então fôra conflicto interior entre a affeição e a dignidade, cumpria agora reduzil-o ás proporções de um libello, claro, sêcco e decidido. Innocente ou culpada, Helena apparecia-lhe naquelle momento como uma recordação das horas felizes,—doce recordação, que os successos presentes ou futuros podiam somente tornar mais saudosa, mas não destruiriam nunca, porque é esse o mysterioso privilegio do passado. Reagiu, entretanto, sôbre si mesmo; e ainda que a custo referiu minuciosa e sinceramente o que se passára desde aquella manhã.
Não fôra talhado para tão melindrosas revellações o coração de D. Ursula. Desde o princípio da conversação sentiu o atordoamento que dão os grandes golpes. Esperava, de certo, um grande infortunio de Helena, um episodio de sua familia anterior, alguma cousa que desafiasse a compaixão, sem diminuir o sentimento da estima. Acontecia justamente o contrário; a estima era impossivel e a compaixão tornava-se apenas provavel.
—Mas não! é impossível! exclamou ella dahi a pouco, logo que a razão obscurecida pelo abalo, pôde readquirir alguma luz—não! eu a vi ha pouco; senti-lhe as lagrymas na minha face, ouvi-lhe palavras que só a innocencia póde proferir. E, além disso, seu procedimento irreprehensivel, um anno quasi de convivencia sem mácula, a elevação de seus sentimentos... não posso crer que tudo isso... Não! pobre Helena! Vamos chamal-a; ella explicará tudo. Interroguemos o Vicente.
Um gesto dos dous homens mostrou que nenhum delles julgava digno este último recurso para conhecer a verdade.
D. Ursula cahíra em prostração, recordava suas apprehensões do primeiro dia, e recuava com horror á ideia de ter acertado. Defronte della, Estacio occupava uma poltrona rasa, em cujos braços fincava os cotovellos, apoiando nas mãos a cabeça ardente e abatida. A alma ruminava a dor.
Um só dos tres vingada a dignidade da situação. O padre Melchior não sentira menor assombro que os dous parentes de Helena, nem padeceu menos profundo golpe; mas reergueu-se de um e outro; pôde vencer-se e conservar a razão clara, fria e penetrante. Entre os dous corações ulcerados e sem fôrça, comprehendeu Melchior que lhe cabia a principal acção, e não recuou ante a responsabilidade que dahi poderia deduzir. Viu de um lance a extensão possivel do mal, a desunião da familia, os desesperos da occasião, os odios do dia seguinte, as amarguras indeleveis e talvez as indeleveis saudades; mas nem este quadro o aterrou, nem elle o aceitou sem exame. Melchior não condemnava nem absolvia; esperava. Elle pertencia ao numero dessas virtudes singellas para as quaes o vicio é uma rara excepção; natureza sincera e franca, era-lhe difficil crer na hypocrisia. Em quanto Estacio proseguia calado e pensativo, e D. Ursula, ora sentada, ora de pe, intercalava o silêncio com exclamações de dor, Melchior observava-os e reflectia tambem comsigo. Emfim, proferiu éstas palavras de animação:
—Socegue, D. Ursula; a verdade hade apparecer, e não estamos certos que seja o que nos parece. Em todo o caso não antecipemos a afflicção. Seria padecer duas vezes. Ha tempo de chorar á larga.
Melchior levantou-se:
—Convem sacudir o abatimento, continuou dirigindo-se a Estacio; é a hora da acção e do vigor. Sobretudo é necessario não boquejar de semelhante assumpto por agora; daria azo ás vozes extranhas e seus naturaes commentarios. Eu tomarei nesta collisão o logar que me compete, se m'o não contestam...
—Oh! exclamou Estacio.
—... Mas desejo que desde ja se compenetrem bem de que, se a dignidade pede uma cousa, a caridade pede outra, e que o dever stricto é concilial-as. Nada do odios; perdão ou esquecimento.
—Mas, padre-mestre, que lhe parece? perguntou D. Ursula com anciedade.
—D. Ursula, disse o padre; é preciso agora que a razão fale e trabalhe; o sentimento deve retrahir-se e esperar. Examinarei o caso, e aconselharei o necessario remedio. Talvez estejamos a debater-nos no vacuo; quem sabe? trata-se de um equívoco, de uma apparencia...
—Oh! ella confessou tudo! interrompeu Estacio. Vi-lhe a expressão da culpa nos olhos. Mas, emfim, estou prompto para tudo, continuou elle erguendo-se. Não foi o senhor um dos melhores amigos de meu pae? Não o é ainda nosso? Ajude-nos, aconselhe-nos; faremos o que lhe parecer melhor. Na singular situação em que nos achamos nenhum de nós temos o espirito bastante senhor de si para colhêr os elementos da verdade, apural-a e resolver. Esse papel é seu.
Vieram trazer a Estacio uma carta. Era do Dr. Camargo, annunciando-lhe que a madrinha do Eugenia fallecêra, e que elle no prazo de alguns dias estaria na Corte. Era o peor momento para semelhante vinda; Estacio não pôde reprimir um gesto de desgôsto. O padre, dizendo-lhe o mancebo de que tratava a carta, observou que nenhum inconveniente podia haver no regresso do Camargo, uma vez que, sem demora, ficasse liquidado o assumpto que os affligia.
—D. Ursula,—continuou elle,—deixe-nos agora sos alguns instantes; va tranquilla, confie em Deus, e não faça suspeitar a ninguem o que se passa nesta casa.
D. Ursula obedeceu. Logo que ella sahiu. Melchior fechou a porta. Estacio sentou-se de novo, disposto a ouvir o capellão. Este deu alguns passos entre a porta e uma das janellas. Ia anoitecendo; Estacio accendeu um candelabro. Melchior sentou-se ao pe delle, sem lhe falar nem voltar-lhe sequer os olhos. Meditava ou luctava comsigo mesmo; a fronte pesada e merencoria traduzia a agitação interior. Ja não era a inalteravel placidez, reflexo de uma consciencia religiosa e pura. Se a consciencia era a mesma, não o era o coração, a braços com uma crise nova. Apos dez minutos de profundo silêncio entre ambos, o padre falou.
—És forte? perguntou o padre.
—Sou.
—Cres em Deus?
Estacio estremeceu e olhou para o ancião, sem responder. Melchior insistiu:
—Cres?
—Essa pergunta...
—É menos ociosa do que parece. Não basta suppor que se cre; nem basta crer á ligeira, como na existencia de uma região obscura da Asia, onde nunca se pretende pôr os pes. O Deus de que te fallo não é só essa sublima necessidade do espirito, que apenas contenta alguns philosophos; fallo-te do Deus creador e remunerador, do Deus que le no fundo de nossas consciencias, que nos deu a vida, que nos hade dar a morte, e além da morte o premio ou o castigo. Cres?
—Creio.
—Pois bem, tu transgrediste a lei divina, como a lei humana, sem o saber. Teu coração é um grande inconsciente; agita-se, murmura, rebella-se, vaga á feição de um instincto mal expresso e mal comprehendido. O mal persegue-te, tentaste, envolve-te em seus liames dourados e occultos; tu não o sentes, não o ves; tens horror de ti mesmo, quando deres com elle de rosto. Deus que te lê, sabe perfeitamente que entre teu coração e tua consciencia ha com o um veu espesso que os separa, que impede esse accôrdo gerador do delicto.
—Mas que é, padre-mestre?
Melchior inclinou-se e encarou o moço. Seus olhos, fitos nelle, eram como tum espelho polido e frio, destinado a reproduzir a impressão do que lhe ia dizer.
—Estacio,—disse Melchior pausadamente,—tu amas tua irmã.
O gesto mesclado de horror, assombro e remorso, com que Estacio ouvira aquella palavra, mostrou ao padre, não só que elle estava de posse da verdade, mas tambem que acabava de a revellar ao mancebo. O que a consciencia deste ignorava, sabia-o o coração, e só lh'o disse naquella hora solemne. A consciencia, depois de tactear nas trevas, recuou apavorada, como affastando de si o clarão subito que accendêra nella a palavra do sacerdote. Estacio não respondeu nada: não podia responder nada. Com que vocabulo e em que lingua humana esprimiria elle a commoção nova e terrivel que lhe abalára a alma toda? que fio podéra atar-lhe as ideias rôtas e dispersas? Nem falou, nem se atreveu a erguer os olhos; ficou como estupido e morto, Melchior contemplou-o alguns minutos, silencioso e compassivo. Seus olhos, que eram de aguia para os mysterios da vida, eram de pomba para os grandes infortunios. Abaixo da cabeça mascula, havia um coração feminino.
A mudez de Estacio cessou emfim; o corpo agitou-se; o labio articulou algumas phrases desconcertadas. Vago era o sentido dellas; podia concluir-se que elle não cria na revellação de Melchior, que o supposto sentimento era tão absurdo e desnatural, que só a maus instinctos devia ser attribuido. Melchior ouviu-o e sorriu com satisfação. Não era aquillo mesmo um protesto de consciencia honrada?
—Maus instinctos, não,—respondeu Melchior; um desvio da lei social e religiosa, mas desvio inconsciente. Entra em teu coração, Estacio; revolve-lhe os mais intimos recantos, e la acharás esse germen funesto: lança-o fóra de ti, que é o preceito do Eterno Mestre. Não o sentiste nunca: a tentação usa essa tactica serpentina e dolosa; é insinuante, como a calúmnia, e pertinaz, como a suspeita. Mas eu sou a verdade, que affirma, e a caridade, que consola. Digo-te, não que peccaste, mas que ficaste á beira do peccado; e estendo-te a mão para que recues do abysmo.
—Padre-mestre! murmurou Estacio cujo coração recebia a influência da palavra de Melchior, a um tempo severa e meiga.
—Não fales, continuou o padre; negal-o é mentir; confessal-o é ocioso. Como nasceu em teu coração semelhante sentimento? Quiz a fortuna que entre voces dous não houvesse a imagem da infancia e a communhão dos primeiros annos; que, em plena mocidade, passassem do total desconhecimento um do outro, para a intimidade do todos os dias. Ésta foi a raiz do mal. Helena appareceu-te mulher, com todas as seduções proprias da mulher, e mais ainda com as de seu proprio espirito, por que a natureza e a educação accordaram em a fazer original e superior. Não sentiste a transformação lenta que se operou em ti, nem podias comprehendel-a. S. Paulo o disse: para os corações limpos, todas as cousas são limpas. Vias a affeição legitimo naquillo que era ja affeição espuria; dahi vieram os zelos, a suspicacia, um egoismo exigente, cujo resultado seria subtrahir a alma de Helena a todos as alegrias da terra, unicamente para o fim de a contemplares sosinho, como um avaro.
Ouvindo a palavra do padre, Estacio soletrava o proprio coração e lia claramente o que até então era para elle como um livro fechado. A situação tornava-se, entretanto, por demais afflictiva, profunda a vergonha, intenso o remorso. Estacio ergueu-se; erguendo-se deu com os olhos no retrato do Conselheiro, que, na penumbra em que ficava, parecia olhar para o filho, e interrogal-o. Ésta circumstância desorientou o moço.
—Não, padre-mestre! exclamou elle deixando-se cahir na cadeira.—É impossivel! isto que me está dizendo é um sonho mau, é um funesto equívoco; é impossivel; juro-lhe que é impossível. É certo que a amo... que a amava, com sentimento de irmão; mas esquecer-me, aninhar em minha alma tão odioso affecto... oh! era impossivel!
Melchior erguera-se. Apos meia duzia de passos, approximou-se de Estacio, sôbre cuja cabeça estendeu a mão direita, em quanto com a outra lhe erguia a barba, obrigando-o a olhar para elle.
—Digo-te que teus uma raiz de ma herva no coração; ésta é a cruel verdade. Ha no homem uma ligação de sentimento, ás vezes inexplicavel. Productos de climas oppostos ahi se alternam ou se confundem... Mas queres saber o resto?
—O resto?
—Ouve,—continuou o padre sentando-se. A planta ruim bracejou um ramo para o coração virgem e casto de Helena, e o mesmo sentimento os ligou em seus fios invisiveis. Nem tu o vias, nem ella; mas eu vi, eu fui o triste expectador dessa violenta e miseravel situação. São irmãos e amam-se. A poesia tragica póde fazer do assumpto uma acção theatral; mas o que a moral e a religião reprovam não deve achar guarida na alma de um homem honesto e christão.
—Impossivel! impossivel! exclamou Estacio. Mas, dado que assim fosse, por que accumular á difficuldade presente o horror de semelhante revellação?
—Por que a revellação explica a difficuldade. Helena não sabera que ama, mas ama. Ora, um amor clandestino, de parceria com esse outro amor incestuoso, embora inconsciente, provaria da parte de Helena uma perversão, que ella não póde ter, e que, em tal edade, faria della um monstro. Sera Helena esse monstro? Se o fosse, eu desesperaria da natureza humana. Não! essa casa, onde a viste entrar, é com certeza asylo de miseria; o que ella ahi vae levar é a esmola e a compaixão.
Um raio de esperança alumiou a fronte de Estacio. O raciocinio do padre era exacto; e por mais perigosa que fôsse a situação revellada por elle, ja agora não se podia desejar outra cousa; a dignidade da familia ficava intacta. Estacio reflectiu largo tempo no que acabava de ouvir. Mas, a esperança foi curta, embora a necessidade della grande.
—Helena continua recolhida? perguntou o padre.
Estacio fez um leve signal affirmativo.
—Falar-lhe-hei amanhã; por hoje convem não dizer palavra nem deixar transpirar cousa nenhuma.
Dizendo isto, Melchior recolheu-se ao silêncio, como se reflectisse ainda alguma cousa. Estacio erguera-se e entrára a passear lentamente. De quando em quando apertava a cabeça entre as mãos; tantas commoções bastavam para atordoar mais forte espirito. O mysterio o cercava de todos os lados. Elle ia até á janella, dahi até à porta, intercalando as reflexões interiores com sacudimentos nervosos do braço ou da cabeça. A intervallos, olhava a furto e de travez para o capellão, como o criminoso olha para a consciencia; não podia evitar o sentimento de terror, e ao mesmo tempo de respeito, que lhe infundia aquelle investigador exacto e profundo de seus sentimentos mais reconditos e inaccessiveis. Ruminava o que o padre lhe dissera; cada minuto lhe ia tornando mais clara a verdade revellada; e o que era obscuro fizera-se-lhe emfim transparente. É assim que a luz de um astro, accesa desde seculos, chega finalmente a ferir a retina de nossos olhos mortaes.
Uma vez, interrompendo os passos, ergueu os olhos para o retrato do Conselheiro. Não os retirou atterrado; cravou-os com um ar de reproche e de amargura, em que o padre reparou e que o fez sorrir tristemente. O olhar do filho pedia contas ao pae.
—Paz aos mortos! observou Melchior. Os actos de seu pae já não pertencem á jurisdicção deste seculo.
Melchior proferiu éstas palavras ja de pe.
—O Dr. Camargo, disse elle mudando de tom,—deve chegar um dia destes, segundo annuncia. Ha alguma razão para demorar o casamento?
—Nenhuma.
—Convem realisal-o immediatamente.
—Immediatamente.
Melchior caminhou para a porta. Ia dar volta á chave, e deteve-se.
—Antes de nos separarmos, disse elle,—desejo a promessa de que não falarás a Helena antes de amanhã.
—Prometto.
O padre reflectiu um instante; Estacio pareceu adivinhal-o.
—Quer ainda outra promessa? perguntou elle. Quer que a evite da todos os modos.
—Sim; que a considere como pessoa totalmente extranha.
—Poderia ser de outra maneira? observou melancholicamente Estacio. Os successos destes dias são, por em quanto ao menos, uma barreira entre ella e sua familia. Demais, eu seria destituido de todo o senso moral...
—Jura?
—Juro.
Melchior desabrochou a camisa, e aventou um crucifixo de marfim, que lhe pendia de uma fita preta, ao pescoço.
—Este, disse elle cora voz singella, é a effigie do teu Deus. Tão puro exemplo de castidade não viram os seculos nem antes nem depois que elle desceu á terra. Jura o que me promettes.
—Padre-mestre,—retorquiu Estacio; minha palavra era bastante. Mas, se é preciso affirmação mais solemne, eu a darei tal qual me pede.
Estacio inclinou a cabeça sôbre o crucifixo e beijou-o respeitosamente; depois beijou a mão ao padre. Melchior abençou-o e sahiu.
Sahindo do gabinete de Estacio, dirigiu-se para a sala de costura, onde achou D. Ursula um pouco menos agitada.
—Falou a Helena? perguntou ella dirigindo-se ao padre.
—Ainda não; sei que não quer sahir do quarto; deixemos passar a primeira commoção. Amanhã virei saber tudo. Por hoje é preciso que a senhora socegue.
—Oh! estou socegada! Não perdi a confiança.
D. Ursula proferiu éstas palavras com tamanha serenidade e tão profunda convicção que fortaleceu o espirito do proprio Melchior, alias não inclinado a crer no mal. O ancião deteve-se alguns instantes a contemplar o rosto placido de D. Ursula, a admirar a fôrça secreta que a tornava surda ao clamor da realidade,—pelo menos, da realidade apparente. Contemplou-a silencioso, e desceu á chacara.
A noite era escura. Calcando a terra e a areia das largas calhes da chacara, Melchior, em sua imaginação, refloria o passado, nem sempre feliz, mas geralmente quieto, dessa quietação que é tanta vez a superficie da vida. Mais de uma vez buscára dissipar a sombra pezarosa que alguns erros do conselheiro accumularam na fronte da consorte. Haveria naquella casa uma geração de dores, destinadas a abater o orgulho da riqueza com o irremediavel expectaculo da debilidade humana?
—Não, dizia elle comsigo mesmo. A verdade é que tudo se encadeia e desenvolve logicamente. Jesus o disse: não se colhem figos dos abrolhos. A vida sensual do marido produziu o infortunio calado e profundo daquella senhora que se foi em pleno meio dia; o fructo hade ser tão amargo como a árvore; seu sabor é travado de remorsos.
Neste ponto chegava ao portão. Ahi deteve-se um instante. O passo cautelloso e timido de alguem fel-o voltar a cabeça. Um vulto, cujo rosto não via, tão escuro como a noite, alli estava e lhe tocava respeitosamente as abas da sobrecasaca. Era o pagem de Helena.
—Seu padre,—disse este,—diga-me por favor o que aconteceu em casa. Vejo todos tristes; nhanhã Helena não apparece; fechou-se no quarto... Me perdoe a confiança. O que foi que aconteceu?
—Nada, respondeu Melchior.
—Oh! é impossivel! Alguma cousa ha por fôrça. Seu padre não tem confiança em seu escravo. Nhanhã Helena está doente?
—Socega; não ha nada.
—Um! gemeu incredulamente o pagem. Ha alguma cousa que o escravo não pode saber; mas tambem o escravo póde saber alguma cousa que os brancos tenham vontade de ouvir...
Melchior reprimiu uma exclamação. A noite não lhe permittia examinar o rosto do escravo, mas a voz era dolente e sincera. A ideia de interrogal-o passou pela mente, do padre, mas não fez mais do que passar; elle a regeitou logo, como a regeitára algumas horas antes. Melchior preferia a linha recta; não quizera empregar um meio tortuoso. Iria pedir a Helena a solução das difficuldades. Entretanto, o pagem, como interpretasse de modo afirmativo o silêncio do sacerdote, continuou:
—Nhanhã Helena é uma sancta. Se alguem a accusa, accusa o bom procedimento della. Eu lhe direi tudo...
Melchior ia recusar, mas um incidente interrompeu a palavra do pagem, contra a vontade deste, e talvez contra o desejo de Melchior. Ouviram-se passos; era um escravo que vinha fechar o portão.
—Vem gente,—disse Vicente,—amanhã...
O pagem tacteou nas trevas em procura da dextra do capellão; achou-a emfim, imprimiu-lhe um ósculo do respeito e affastou-se. Melchior seguia para casa, abalado com a meia revellação que acabava de ouvir. Outro qualquer podia duvidar um instante da sinceridade do escravo; podia suppor que o acto delle em menos expontaneo do que parecia; emfim, que a propria Helena suggeríra aquelle meio de transviar a expectação e congraçar os sentimentos. A interpretação era verosimil; mas o padre não cogitou de tal cousa. A elle é principalmente applicavel a maxima apostolica; para os corações limpos, todas as cousas são limpas.
A seguinte aurora alumiou um ceu puro de nuvens. Estacio accordou com ella, depois de uma noite mal dormida. Nunca a manhã, lhe pareceu mais rumorosa e jovial; nunca o ar apresentára tão fina transparencia, nem a folhagem tão lustrosa, côr. Da janella a que se encostára via as flôres de todos os matizes, quebrando a monotonia da verdura, e enviando-lhe a elle uma nuvem invisivel de seus aromas: aspecto de festa e ironia da natureza. Estacio achava-se alli como um sahimento em horas de carnaval.
Almoçou sosinho; D. Ursula estava com Helena. Logo depois do almôço recebeu uma carta de Mendonça, que tendo ido na vespera a Andarahy, recebêra a resposta dada a todos, e mandava saber se havia molestia em casa. Estacio respondeu affirmativamente, accrescentando que, posto não se tratasse de cousa grave, só o esperava dous dias depois. A resposta podia ser mais circumspecta; no estado em que elle se achava, pareceu-lhe excellente.
Pela volta do meio dia, chegou Melchior. Na sala de visitas achou D. Ursula, que o espreitava de uma das janellas.
—Helena? perguntou elle ancioso.
—Ja hoje desceu,—respondeu D. Ursula. Está mais tranquilla. Não lhe perguntei nada, mas dizendo-lhe que o senhor viria falar-lhe, mostrou-se anciosa por vel-o, e pediu-me até que o mandasse chamar.
Seguiram os dous até á saleta que ficava ao pe da sala de jantar. Helena estava sentada, com a cabeça cahida sôbre as costas da cadeira, e os olhos meios cerrados. Logo que o padre entrou, Helena abriu os olhos e ergueu-se. Vivo e passageiro rubor coloriu-lhe as faces pallidas da vigilia e da afflicção. Ergueu-se e deu dous passos para o padre, que lhe apertou as mãos entre as suas.
—Imprudente! murmurou Melchior.
Helena sorriu, um sorriso pallido e tão passageiro como a côr que lhe tingira o rosto, D. Ursula dispoz-se a ir chamar Estacio, que estava no andar de cima. Apenas a viu sahir, Helena segurou em uma das mãos do padre.
—Queria vel-o! disse ella. Não tenho ânimo de falar a ninguem mais, de dizer tudo...
—É inutil; tudo sei, interrompeu Melchior sorrindo. O Vicente foi hoje de manhã á minha casa; foi de movimento proprio; relatou-me quanto sabia; disse-me que esse homem é seu irmão; que a senhora o ia ver, a occultas, não podendo ou não querendo apresental-o em casa de seus parentes. O escrupulo era excessivo, e o acto leviano. Porque motivo dar apparencia incorrecta a um sentimento natural? Teria poupado muita afflicção e muita lagryma a si e aos seus, se tomasse antes o caminho direito, que é sempre o melhor.
Helena ouvia éstas palavras do padre com a alma debruçada dos olhos. Não parecia sequer respirar. Quando elle acabou, perguntou soffrega:
—Com que intento lhe falou elle?
—Com o mais puro do todos; desconfiou que a senhora padecia por isso e veiu contar-me tudo.
Helena cruzou os dedos e ergueu os olhos. Melchior não a quiz interromper nessa ascenção mental ao ceu; limitou-se a contemplal-a. A belleza de Helena nunca lhe parecêra mais tocante do que nessa attitude implorativa. A contemplação não durou muito, por que a oração foi breve.
—Orei a Deus,—disse ella, descendo as mãos,—por que infundiu ahi no corpo vil do escravo tão nobre espirito do dedicação. Delatou-me para restituir-me a estima da familia. Aquillo que ninguem lhe arrancaria do coração, tirou-o elle mesmo no dia em que viu em perigo o meu nome e a paz de meu espirito. Infelizmente, mentiu.
Melchior empallideceu.
—Mentiu sem o saber, continuou a moça. Disse o que suppunha ser verdade,—o que eu lhe dei como tal. Não é meu irmão esse homem.
Melchior inclinou-se para a moça e pegando-lhe nos pulsos, disse imperiosamente.
—Então quem é? Seu silêncio é uma delação; não tem ja direito de hesitar.
—Não hesito, replicou Helena; em taes situações uma creatura, como eu, caminha direito a um rochedo ou a um abysmo; despedaça-se ou some-se. Não ha escolha. Este papel,—continuou, tirando da algibeira uma carta,—este papel lhe dira tudo; leia e refira tudo a Estacio e a D. Ursula. Não tenho ânimo de os encarar nesta occasião.
Melchior, atordoado, fez um leve signal de cabeça.
—Lido esse papel,—estão rotos os vínculos que me prendem a ésta casa. A culpa do que me acontece não é minha, é de outros; aceitarei contudo ás consequencias. Poderei contar ao menos com a sua benção?
A resposta do padre foi pousar-lhe um beijo na fronte, beijo de absolvição ou de clemencia, que ella lhe pagou com muitos na dextra enrugada e trémula de commoção. Helena precipitou-se depois para o corredor, deixando o padre só, com a carta nas mãos, sem ousar abril-a, receioso dos males que iam dalli sahir, sem certeza ao menos de que ficaria no fundo a esperança. Ia abril-a, e hesitou se o devia fazer na ausencia de Estacio e D. Ursula; venceu o escrupulo e leu.
D. Ursula, que entrou na occasião em que elle fechava a carta, recuou aterrada. Melchior estava pallido como um defuncto. Antes que nenhum, delles falasse, entrou Estacio na saleta. Melchior dirigiu-se a elle e entregou a carta. Leu-a Estacio e dizia assim:
«Minha boa filha. Sei pelo Vicente que alguma cousa ahi ha que te afflige. Presumo adivinhar o que é. O Estacio esteve commigo, logo depois que daqui sahiste a ultima vez. Entrou desconfiado, e deu como razão ou pretexto a necessidade de curar algumas feridas feitas na mão. Talvez elle proprio as fizesse para entrar aqui em casa. Interrogou-me; respondi conforme pedia o caso. Suppondo que elle soubesse de tuas visitas, não lhe occultei a minha pobreza; era o meio de attribuil-as a um sentimento de caridade. A virtude serviu assim de capa a impulsos da natureza. Não é isso em grande parte o theor da vida humana? Fiquei, entretanto, inquieto; talvez lhe não arrancasse o espinho do coração. Pelo que me disse o Vicente receio que assim acontecesse. Conta-me o que ha, pobre filha do coração; não me escondas nada. Em todo o caso, procede com cautella. Não provoques nenhum rompimento. Se fôr preciso, deixa de vir aqui algumas semanas ou mezes. Contentar-me-ha a ideia de saber que vives em paz e feliz. Abençoo-te, Helena, com quanta effusão pode haver no peito do mais venturoso dos paes, a quem a fortuna, tirando tudo, não tirou o gôsto de se sentir amado por ti. Adeus. Escreve-me.—Salvador.»
P.S. Recebi o teu bilhete. Pelo amor de Deus, não faças nada; não saias dahi; seria um escandalo.»
Estacio não comprehendeu desde logo o que acabava de ler. A verdade parecia inverossimil. Seu primeiro movimento foi sahir dalli e ter com Helena. Melchior deteve-o a tempo.
—Não precipitemos nada, disse elle. Socegue primeiro.
Estacio deixou-se cahir n'uma cadeira; Melchior communicou o conteudo da carta a D. Ursula, cujo pasmo foi ainda mais profundo que o do sobrinho, porque ella não soltou uma palavra, não fez um gesto; ficou a olhar estupidamente para o papel. Houve então entre aquelles tres personagens dez minutos de mortal silêncio. D. Ursula não pensava; olhava para a carta, logo depois para o sobrinho e o padre, como a esperar uma conclusão que seu proprio espirito não podia deduzir dos acontecimentos. Estacio ficára desorientado; em vão procurava um fio de deducção entre suas ideias; a revellação nova era uma complicação mais. Se a carta era sincera, como explicar a declaração testamentária de seu pae? Se o não era, como explicar a audacia de semelhante invenção? Elle não podia discernir o que era favoravel a Helena, nem ousava affirmar o que lhe era adverso.
No meio daquella familia, arriscada a dispersar-se, Melchior considerava a superioridade da morte sobre alguns lances terriveis da vida. Se o obito de Helena tomára o logar da carta, a dor seria violenta; mas o irremediavel desfecho e o consolo da religião teriam contribuido para sarar a alma dos que ficassem e converter o desespêro de alguns dias na saudade da vida inteira. Em vez disto, estava elle talvez diante de um destino aniquillado; via um abysmo possivel entre corações que a vontade de um morto vinculára. Qualquer que fôsse a veracidade da carta, o resultado era talvez esse.
Melchior foi dalli ter com Helena, para alcançar mais detida explicação do quê acabava de ler. Ella ergueu-se quando o viu, e pareceu reviver ao contemplar o gesto benevolo com que elle lhe falou. Um longo suspiro de alivio rompeu-lhe do coração; seus braços cahiram sobre os hombros do padre, em cujo seio escondeu o rosto e repousou emfim,—um minuto—das dores que a affligiam.
—Perdoaram-me? disse ella.
—Hão de perdoar; conte-me tudo.
—Oh! não posso, não sei; sei que é meu pae.
O capellão não insistiu; voltou aos outros dous, a quem achou na posição em que os deixára. Interrogaram-n'o com os olhos.
—Nada, disse elle. Seu coração não possue nesta occasião a necessaria fôrça para responder a quanto se lhe devia perguntar; demais não sabera tudo. Temos a primeira confissão da verdade....
—Da verdade? interrompeu melancholicamemte Estacio. Quem sabe se é verdade o que lemos nesse papel?
—É, deve ser. Faltam-nos, é certo, os fundamentos da asseveração; mas eu incumbo-me de ir buscal-os.
—Iremos ambos.
D. Ursula quiz dissuadir o sobrinho de ir á casa do homem, causa dos desastres da familia; não tanto por que lhe parecia que entre Estacio e elle nenhuma relação convinha estabelecer, mas sobretudo por que ella precisava de alguem que a acompanhasse em tão graves circumstâncias. Melchior inclinou-se ao alvitre de D. Ursula.
—Irei eu só, disse elle; depois conduzil-o-hei até ca, se fôr preciso.
—Não posso esperar, insistiu Estacio; preciso falar a esse homem, ouvil-o, ler-lhe a verdade ou o embuste nas linhas do rosto. Talvez o decoro da familia exigisse outra cousa; mas, padre-mestre, meu coração goteja sangue.
Era impossivel dissuadil-o; Melchior tratou somente de o moderar. De resto, a crise era violenta; cumpria resolvel-a sem demora nem hesitação. O padre animou D. Ursula, e sahiu acompanhado de Estacio, cujo coração, convalecido do primeiro abalo, deixava as regiões da dúvida para entrar na atmosphera da verdade,—pelo menos da esperança. Quaesquer que fossem as consequencias da nova revellação, vinha ésta como um balsamo, apos tão dolorosas commoções; era um rasgão azul no ceu tempestuoso daquelles dias. Ia elle pensando assim,—ou antes sentindo,—por que o pensamento não ousava regel-o, desde que a vida inteira do moço se lhe concentrára no coração.
Chegando em frente da casa, Estacio desviou os olhos; custava-lhe encaral-a, mas venceu-se. Houve demora em abrir a porta; abriu-se ésta emfim, e a figura do dono da casa appareceu aos dous. Vendo-os, empallideceu um pouco, mas um sorriso procurou disfarçar a impressão. Estacio foi direito ao fim.
—Supponho que se lembra de mim? disse elle.
—Perfeitamente.
—Sabe que motivo nos traz a sua casa?
—Não, senhor.
—Confessa a autoria desta carta?
Salvador estremeceu; depois respondeu com um gesto affirmativo.
—Pretende que Helena é sua filha, disse o moço depois de um instante. Confirma verbalmente o que escreveu?
—Helena é minha filha.
Melchior interveiu.
—Ha um anno, fallecendo, o meu velho amigo conselheiro Valle, reconheceu Helena, por uma clausula testamentária; recommendava á familia que a tratasse com affecto e carinho e designava o collegio em que ella estava sendo educada. O facto do reconhecimento e as circumstâncias que apontou dão toda a veracidade á palavra do morto. Que prova apresenta o senhor em contrário a ella?
—Nenhuma, disse Salvador; não tenho prova de nenhuma natureza.
—Na falta de provas, proseguiu o capellão, poderia dizer-nos como suppor da parte do conselheiro uma falsificação tratando-se de disposição tão grave como essa de introduzir uma pessoa extranha na familia?
Salvador sorria amargamente.
—Supponha,—disse elle,—que eu havia illudido a confiança do conselheiro, e que elle acreditava ser pae de Helena.
—Era isso?
—Não era. Na posição em que nos achamos já não ha logar para meias palavras. Fôrça é referir tudo. Dez minutos apenas.
Os tres sentaram-se. Melchior olhava para o dono da casa com a persistencia e a curiosidade naturaes da occasião. Salvador esteve alguns instantes calado; emfim voltou-se para o capellão.
—Estimo, disse elle, que o Sr. padre viesse; sua caridade temperará a legítima indignação deste mancebo; e eu farei as declarações indispensaveis na presença das duas pessoas a quem mais amo, abaixo de Helena.
—Queira falar, disse seccamente Estacio.
—A mãe de Helena, disse Salvador, cuja belleza foi a causa, a um tempo, da sua ma e boa fortuna, era filha de um pobre lavrador do Rio Grande do Sul, onde tambem nasci. Apaixonamo-nos um pelo outro. Meu pae oppoz-se ao casamento; tinha alguns bens, mandara-me estudar, queria ver-me em posição brilhante. Angela podia ser obstaculo á minha carreira, dizia elle. Oppoz-se, e eu resisti; raptei-a; fomos viver na campanha oriental, d'onde passamos a Montevideo, e mais tarde ao Rio de Janeiro. Tinha vinte annos quando deixei a casa paterna; possuia alguns estudos poucos, meio duzia de patacões, muito amor e muita esperança. Era de sobra para a minha edade, mas insuficiente para o meu futuro. A lua de mel foi desde logo uma noite de privações e trabalhos. Minha vida começou a ser um mosaico de profissões; aqui onde me veem, fui mascate, agente do foro, guarda-livros, lavrador, operario, estalajadeiro, escrevente de cartorio; algumas semanas vivi de tirar cópias de peças e papeis para theatro. Trabalhava com energia, mas a fortuna não correspondia á constancia, e o melhor dos annos gastei-o em luta aspera e desegual. Uma compensação havia, a mais doce de todas: era o amor e o contentamento de Angela, a egualdade de animo com que ella encarava todas as vicissitudes. Pouco tempo depois da nossa fuga havia outra compensação mais: era Helena. Essa menina nasceu em um dos momentos mais tristes da minha vida. Os primeiros caldos da mãe foram obtidos por favor de uma mulher da visinhança. Mas nasceu, em boa hora, e foi um laço mais que nos prendeu um ao outro. A presença de um ente novo, sangue do meu sangue, fez-me redobrar de energia. Trabalhava com alma, luctava resoluto contra todas as fôrças adversas, certo de encontrar á noite a solicitude da mãe e as ingenuas caricias da filha. Os senhores não são paes; não podem avaliar a fôrça que possue o sorriso de uma filha para dissolver todas as tristezas accumuladas na fronte de um homem. Muita vez, quando o trabalho me tomava parte da noite, e eu, apezar de robusto, me sentia cançado, erguia-me, ia ao berço de Helena, contemplava-a um instante e parecia cobrar fôrças novas, Se o proprio berço era obra de minhas mãos! Fabriquei-o de alguns sarrafos de pinho velho; obra grosseira e sublime: servia a adormecer metade da minha felicidade na terra.
Salvador interrompeu-se commovido.
—Perdoem-me,—continuou elle depois de alguns instantes, se éstas memorias me abalam o coração. Eu era pobre, tão pobre como hoje. Desse tempo só resta um echo doloroso e consolador. Crescia Helena e cresciam suas graças. Era o encanto e a esperança do meu albergue. Quando pôde aprender os rudimentos da leitura, dei-lhe as primeiras licções; assisti pasmado á aurora daquella intelligencia que os senhores veem hoje tão desenvolvida e lucida. Aprendia com facilidade, por que estudava com amor. Angela e eu construiamos os mais lindos castellos do mundo. Nós a viamos ja mulher, formosa como viria a ser, porque ja o era, intelligente e prendada, espôsa de algum homem que a adorasse e elevasse. Viviamos dessa antecipação, que era apenas um sonho, e não sentíamos os golpes da fortuna.
—Porque razão,—perguntou Melchior,—dado esse amor e nascida uma filha, não sanctificou o senhor a situação singular em que se achavam?
—A curiosidade é justa, replicou Salvador, mas a resposta é decisiva. Casar era a nossa justificação; era um argumento contra o resentimento de meu pae. Nos primeiros dias da nossa fuga do Rio Grande a propria embriaguez da felicidade desviou qualquer ideia de sanctificar e legalisar uma união consentida pela natureza. Depois vieram os trabalhos e as necessidades. Como eu tinha certeza de não fugir ao dever que tomára em meus hombros, ia adiando o acto de mez para mez, de anno para anno. Afinal o projecto esvaiu-se de todo. Estavamos ligados pela miseria e pelo coração, não pretendiamos o respeito da sociedade; triste desculpa, e ainda mais triste recordação, por que o casamento teria talvez obstado aos acontecimentos posteriores. Helena contava seis annos. Minha fortuna, adversa sempre, com intermittencias favoraveis, parecia abrandar um pouco. Ia encetar um novo meio de vida, quando uma circumstância grave me chamou ao Rio Grande. Meu pae adoecêra; mandava-me o seu perdão, ordenando-me que o fôsse ver sem demora. Obedeci promptamente. Do que elle me remetteu para as despezas dr viagem e outras, deixei alguma cousa a Angela e Helena, e parti. Vinte e quatro horas depois de ver meu pae, tive a dor de o perder. A liquidação dos negocios foi curta; os bens todos ficaram pertencendo aos credores; restavam-me alguns patações. Recebi esse golpe novo com a philosophia da insensibilidade. Quem sabe se não era eu o culpado do acontecimento? Os negocios entretanto, apezar de curtos, demoraram-me mais do que eu pretendia e convinha. A ancia de voltar cresceu desde que não recebi a resposta das últimas cartas que escrevi a Angela. Enfim, pude regressar ao Rio de Janeiro com um luto mais e uma esperança menos. Neste ponto entra a pessoa de seu pae.
Estacio desviou os olhos.
—Logo que cheguei,—continuou Salvador,—corri a casa; achei-a fechada. Um visinho, testemunha da minha afflicção, deu-me notícia de que Angela se mudára para S. Christovão. Não sabia nem o numero nem a rua; mas deu-me algumas indicações, que me guiaram. Ainda hoje tenho ante os olhos o sorriso com que aquelle homem me respondia. Era um sorrir de compaixão que humiliava. Sem nunca haver recebido de mim a menor offensa, vejo que elle tinha um prazer secreto com o meu infortunio. Porque? Deixo aos philosophos liquidarem esse enigma da natureza humana. Voei a S. Christovão; gastei tempo em procurar a casa, mas dei com ella. Quando a vi, duvidei de meus olhos ou das indicações. Era uma casa elegante, escondida entre o arvoredo, no meio de um pequeno jardim. Podia ser aquella a residencia da companheira de minha miseria? Receioso de ir bater alli, vi assomar ao portão um homem, que me pareceu ser o jardineiro. Perguntei pela dona da casa, a quem dei o seu proprio nome, dizendo que lhe desejava falar. «A senhora sahiu,» respondeu elle distrahidamente. Dispuz-me a esperar, mas o jardineiro observou-me que ia sahir e fechar o portão, e que a senhora só voltaria á noite. «Esperarei até a noite», redargui. O jardineiro mediu-me de alto a baixo, circulou um olhar cautelloso pela rua e disse-me baixinho: «Aconselho ao senhor que não volte; o patrão não hade gostar.» Não escrevo um romance; dispenso-me de lhes pintar o efeito que produziram essas palavras. O que senti excede a toda a descripção. Ha catastrophes mais solemnes, ha situações mais patheticas; mas naquella occasião parecia-me que todas as dores do mundo se tinham convergido para meu coração. O jardineiro era verdadeiramente compassivo; lendo em meu rosto o effeito de suas palavras, disse-me alguma cousa de que absolutamente me não lembro. Convidou-me com brandura a sahir; obedeci machinalmente. Podendo informar-me acerca de Angela, não o fiz. A febre reteve-me tres dias de cama, n'uma pobre cama alugada em pessima estalagem da Cidade Nova. No terceiro dia recebi uma carta de Angela. Pedia-me que lhe perdoasse o passo que dera; que uma paixão nova e delirante a havia guiado, e que, se viesse a arrepender-se, seria essa a minha vingança. Quando li a carta, tive impeto de ir ter com ella e esganal-a; mas o impeto passou, e a dor desfez-se em reflexões. Poucos dias antes, a bordo, um engenheiro inglez que vinha do Rio Grande para esta Côrte, emprestara-me um volume truncado de Shakespeare. Pouco me restava do pouco inglez que aprendi; fui soletrando como pude, e uma frase que alli achei fez-me estremecer, na occasião, como uma profecia; recordei-a depois quando Angela me escreveu. «Ella enganou seu pai, diz Brabantio a Otelo, há de enganar-te a ti tambem.» Era justo; pelo menos, era explicavel. Dous dias depois da carta de Angela, escrevi-lhe pedindo meia hora de conversação; nada mais. Angela concedeu-me a entrevista. Meu plano era arrebatar-lhe Helena; ela parece que o previu, recebendo-me sosinha, no jardim, ás nove horas da noite.
—Por que razão recorda todas essas minucias? interrompeu Melchior com brandura; nós desejamos somente saber o essencial.
—Tudo é essencial na minha narração, disse Salvador. Aquella entrevista mostrou-me a toda a luz o caracter de Angela. Que outra mulher se arriscaria, em taes circumstâncias, a affrontar a colera do homem desprezado? Angela era um complexo de qualidades singulares. Capaz de supportar as maiores angústias, forte e risonha no meio das maximas privações, esqueceu n'um instante as virtudes que tinha para correr atraz de uma fantasia do amor. Não foi a riqueza que a seduziu; ella iria, ainda que tivesse de trocar a riqueza pela miseria. Angela nasceu metade freira e metade bailarina; capaz das austeridades de um claustro, não o era menos das pompas da scena. E dahi... não fui eu mesmo que a desviei da estrada real para mettel-a por um atalho obscuro? Disse-lh'o naquella noite em que procurei ser tranquillo e superior aos acontecimentos. «Meu fim,—declarei eu,—é só um: levar Helena; Helena é minha filha, não quero deixal-a entregue a seus maus exemplos.» As lagrymas com que me banhou as mãos, as rogativas que me fez, ajoelhada a meus pes, para que lhe deixasse Helena, não ha negar que foi tudo sincero. Cedi apparentemente. Minha resolução estava assentada; sem Helena a vida parecia-me impossivel. Que outro vínculo me prendia ao mundo? A morte e a miseria tinham feito em redor de mim completa solidão. A unica felicidade sobrevivente era ella.
—Segundo rapto, observou o padre. O senhor condemnava-se a só adquirir um vislumbre de felicidade por meios violentos.
—Tem razão, respondeu Salvador com tristeza; um abysmo chamava outro abysmo... Felizes os que sabem o caminho recto da vida, e nunca se arredaram delle! Quiz arrebatar Helena; espreitei-a noite e dia. Não a via nunca; a propria casa rara vez tinha uma porta ou janella aberta. Havia alli o recato e o mysterio. Um dia resolvi ir ter com o protector de Angela. A noticia que me deram do conselheiro Valle era a mais honrosa do mundo. Assentei que me ouviria e cederia a meus justos rogos. O demonio do orgulho impediu a execução do plano. Quasi a entrar em casa do conselheiro, recuei. Decorreram assim cêrca de dous mezes. Emmagreci; as longas vigilias fizeram-me pallido; o trabalho não me attrahia; cheguei a padecer fome. O poeta que disse que a saudade é um pungir delicioso não consultou meu coração. Acerbo o achei eu; é certo que a ella misturava-se a colera, a colera da impotencia e o desgôsto mortal do abandono. Um dia, dirigi-me para S. Christovão, disposto a empregar a violencia, com tanto que trouxesse Helena ou fôsse dalli para o Aljube. Era á tardinha. Approximei-me do jardim de Angela, ouvi a voz de minha filha. Era a primeira vez depois de longos mezes! Parou-me o sangue todo. Passado o primeiro abalo, caminhei cautelloso encostado á cêrca, Helena falava a alguem. Por uma abertura da cêrca, pude espreital-a. Estava ao collo de um homem. Esse homem era o conselheiro. Olhei para um e outro; ora para o meu rival, ora para a minha Helena. Helena acariciava as barbas delle; este sorria para ella com um ar de ternura, que o absolvia quasi da offensa a mim feita. O coração porém apertou-se-me, ao ver dar a outro, affagos a que só eu tinha direito. Era um roubo feito á natureza; mas, se meu proprio sangue me repudiava, que podia eu exigir de alheios corações? Dahi a algum tempo,—não sei se foi curto ou longo, por que eu ficára a olhar para ambos, pasmado de amor e de colera, ouvi que falavam de mim. «Mas, olhe,—dizia Helena,—papae quando vem?» O conselheiro deu um beijo na menina, e falou de uma borboleta que nesse momento pairara sôbre a cabeça della. As creanças porém são implacaveis; aquella repetiu a pergunta. «Papae não volta» respondeu o conselheiro. Helena ficou muito séria. «Não volta? porque?» «Tua mamãe disse hontem que papae está ao ceu.» Helena levou as mãos aos olhos, donde lhe rebentaram lagrymas copiosas. Uma nuvem passou-me pelos olhos, tentei dar alguns passos, entrar no jardim, dizer quem era e exigir minha filha. Os musculos não corresponderam á intenção; senti fraqueza nas pernas; achei-me de bruços. Quando dei accôrdo de mim, volvi de novo os olhos para o logar onde os víra. Ainda alli estavam, mas a attitude era differente. O conselheiro erguera-se, tendo nos braços Helena, que ja não chorava. Elle beijava-lhe as mãosinhas e dizia-lhe: «Se papae foi para o ceu, fiquei eu no logar delle, para dar-te muito beijo, muito doce e muita boneca. Queres ser minha filha?» A resposta de Helena foi a do náufrago; estendeu-lhe os braços em volta do pescoço, como se dissesse; «Se não tenho ninguem mais no mundo!» O gesto foi tão eloquente que eu vi borbulhar uma lagryma nos olhos do conselheiro. Essa lagryma decidia do meu destino; vi que elle a amava, e de todos os sacrificios que o coração humano póde fazer, aceitei o maior e mais doloroso: eliminei a minha paternidade, desisti da unica herança que tinha na terra, fôrça da minha juventude, consolo de minha miseria, coroa de minha velhice, e voltei á solidão mais abatido que nunca!
Salvador interrompeu a narração; levou a mão direita aos olhos; por entre seus dedos escorreram algumas lagrymas, que elle, de envergonhado, enxugou rapidamente.
—Essas recordações são penosas, disse o padre; não convem despertal-as de uma vez; seria abrir feridas que o tempo cicatrisou. Sabemos o essencial...
—Não, resta ainda alguma cousa, disse Salvador.
Estacio erguera-se. Visivelmente commovido, procurava luctar contra o sentimento que o dominava, afim de conservar a necessaria independencia de espirito para julgar da narrativa e do alcance que ella podia ter. Tinha involuntariamente apertado a mão de Salvador, ao escutar-lhe as últimas palavras; e arrependera-se desse primeiro movimento, que podia parecer uma absolvição summaria. A verdade é que elle não reflectia nem sentia claramente; sua mente e seu coração eram um campo de ideias e commoções contrárias.
—Vou acabar,—disse Salvador depois de alguns minutos. Resta explicar o procedimento de Helena.
—Seu pae,—continuou Salvador dirigindo-se a Estacio, que, para acabar de compor o rosto, tinha ido até á janella e voltára a sentar-se, seu pae era honrado e cavalheiro. Arrebatando-me Angela, não me trahiu, por que não me vira nunca; não contribuiu directamente para a traição della, por que suppunha cortadas nossas relações. Soube depois que Angela, quando elles se apaixonaram um pelo outro, lhe occultára completamente o motivo da minha viagem; dera-se como separada de mim. Mentiu, como mentiu mais tarde, dizendo que eu havia morrido, O conselheiro não sabia sequer o meu nome. A mentira no primeiro caso, não teve fim nenhum; não houve cálculo; foi uma suggestão de amor ou um esquecimento; foi talvez um modo de respeitar-me: no segundo caso, houve cálculo; era o de redobrar o affecto que o conselheiro tinha a Helena. Assim aconteceu, por que o conselheiro sentiu-se pae de Helena, e assumiu esse caracter desde aquella tarde. Do contracto, feito alli entre o homem e a creança, cumpriu elle toda as clausulas com generosa pontualidade. Póde crer que lhe fiquei profundamente grato. Uma vez, passando por uma lithographia, vi um retrato delle; comprei-o e conservo-o alli ao lado do de Helena.
Melchior e Estacio olharam para a parede, onde pendiam dous quadrinhos, ainda cobertos, conforme Estacio os vira, no primeiro dia em que alli foi.
—Os mezes e os annos passaram,—continuou Salvador,—Helena deu entrada em um collegio de Botafogo, onde recebeu apurada educação. O conselheiro a levou alli, dando-a como orphã de um amigo, de Minas; Angela, que se dera por sua tia, ia buscal-a aos sabbados. Omitto mil circumstâncias intermediarias, e as vezes, poucas, em que pude ver minha filha, de passagem e a occultas. Se o tempo houvesse produzido em mim os seus naturaes effeitos, se a natureza não se ajustasse em fazer contraste com a fortuna, conservando-me o vigor e o viço da mocidade, é possivel que eu achasse meio de empregar-me no collegio ou nas immediações, afim de ver mais frequentemente Helena. Mas eu era o mesmo: passado o primeiro abalo, voltaram-me as carnes, voltou-me a côr, e eu era e mesmo que antes de partir para o Rio Grande. Helena podia reconhecer-me; e eu faltava á convenção tacita que fizera com o conselheiro. Um sabbado, porém, tinha Helena doze annos, vindo ambas do collegio, parou o carro defronte do Passeio Publico. Vi-as descer e entrar. Levado por um impulso irresistivel, entrei tambem. Queria contemplal-as de longe sem lhes falar; mas a resolução estava acima das minhas fôrças. Que pae não faria outro tanto? No logar mais solitario do Passeio, corri para Helena. Vendo-me, a menina pareceu não reconhecer-me logo; mas attentou um pouco, recuou espavorida e agarrou-se á mãe, abraçando-a pela cintura. Conheci que não estava alli um pae, mas um espectro que regressava do outro mundo. Ia affastar-me, quando ouvi a voz de Helena perguntar á mãe: «Papae?» Voltei-me. Angela envolvêra o rosto da creança entre seus vestidos. O gesto equivalia a uma confissão; mas ésta foi ainda mais clara quando a mãe, cedendo á boa parte da sua natureza, ergueu resoluta os hombros, descobriu o rosto da filha, pousou-lhe um beijo na testa, fitou-a e fez com a cabeça um gesto affirmativo. A menina não exibiu mais; correu para mim e atirou se me nos braços. Angela não se atreveu a impedir o movimento da filha; o passado e o sacrificio falavam em meu favor. Abracei Helena e beijei-a como doudo. Angela interveio: «Basta!» disse ella. Pegou na mão da filha e estendeu-me a sua. Apertei-a machinalmente; meus olhos estavam pregados na creança. Era tão gentil, com o vestido rico que trazia, os cabellos enlaçadas com fitas azues, um chapellinho de palha e os pesinhos calçados com botinas de seda! «Fez bem, disse eu a Angela, depois de alguns instantes; deu-lhe um pae melhor do que eu.» Reparei então que ella propria se transformára; trajava com elegancia e estava superiormente bella. A abastança aperfeiçoára a natureza. Olhei-a sem inveja nem colera,—mas com saudade,—dessa vez deliciosa, porque rememorei os bons tempos da nossa ebriedade e loucura. O passado é um peculio para os que ja não esperam nada do presente ou do futuro; ha alli sensações vivas que preenchem as lacunas de todo o tempo. «Fez mal,»—disse-me ella baixinho. E suspirou. «Sei que morri,—disse eu, e não pretendo resuscitar.» Depois voltei-me para Helena:—«Minha filha, faze de conta que me não viste; morri, para ti e para o mundo. Teu pae é outro. Promettes que não dirás nada?» Helena fez um leve signal de cabeça e beijou-me a mão a furto, como se não quizesse ser vista de Angela. Nesse simples gesto reconheci que ella ia obedecer-me; mas a tristeza que lhe ficou foi o castigo de sua mãe. Pediamos á natureza mais do que ella podia dar.
Salvador fez uma pausa, ergueu-se foi à commoda, e de uma das gavetas tirou uma caixinha, que collocou sôbre a mesa. Melchior e Estacio trocaram um olhar de curiosidade. Salvador sentara-se de novo.
—Angela morreu,—proseguiu elle,—dahi a um anno. Seu pae e alguns amigos poucos foram leval-a á sepultura. Tambem eu la me achei. A differença é que elle enterrava uma aventura, e eu via enterrar o meu passado. Vi-o triste e taciturno, como sinceramente pezaroso da creatura que perdéra. Helena, entretanto, não podendo estar só na mesma casa, foi removida para o collegio, onde ficou residindo definitivamente. O conselheiro ia visital-a todas as semanas. Pela minha parte, certo da discrição de minha filha, encetei com ella uma correspondencia que era toda a consolação que me podia caber. Uma escrava do collegio servia de intermediaria entre nós. Então, como hoje, achei uma alma compassiva que me ajudou a ser feliz com mysterio; a differença é que naquelle tempo era precisa a intervenção pecuniaria. Eu tinha pouco, mas dava o jantar de um dia para ler cartas de Helena. Conservo-as todas, tanto as de outr'ora, como as destes últimos mezes; estão fechadas aqui.
Salvador mostrou a caixinha que collocára sôbre a mesa.
—Um dia, almoçando em um botequim, li a notícia da morte do conselheiro. O facto consternou-me; mas eu peço licença para lhes dizer tudo; de envolta com o sentimento, de pezar, houve em mim alguma cousa semelhante a uma satisfação. Respirava enfim! O contracto expirava com elle; eu ia entrar na posse de minha filha. Não escrevi desde logo a Helena; fil-o ao cabo de alguns dias. Tive duas respostas: a primeira era no sentido da minha carta; a segunda annunciava-me que o conselheiro a reconhecêra por testamento. Podia procurar e ler-lhes a segunda carta: é um documento da elevação dos sentimentos daquella menina. Exprimia-se com a maior gratidão e saudade a respeito do conselheiro; mas negava-se a aceitar o favor posthumo. Sabendo a verdade, não queria escondel-a ao mundo. Acceitando o reconhecimento, entendia que prejudicava direitos do terceiro, além de repudiar-me solennemente, o que não queria fazer desde que adquiria a liberdade de acção. Entre a herança e o dever, dizia ella, escolho o que é honesto, justo e natural. Esta carta tirou-me o somno uma noite inteira, perplexo como fiquei entre o acto do finado e a resolução da herdeira. Que mão invisivel tocára no coração do conselheiro essa corda de sensibilidade? Melhor fora que elle houvesse traduzido era uma simples lembrança a affeição que tinha a Helena. Longo tempo reflecti nisso; o pae luctava com o pae. Tel-a commigo era a minha ventura, o meu sonho, a minha ambição; era a realidade que eu chegára a tocar com as mãos. Mas podia atal-a ao carro decrepito da minha fortuna, dar-lhe o pão amargo, que era o meu lote de todos os dias? A familia do conselheiro ia afiançar-lhe futuro, respeito, prestigio; a lei ia amparal-a. Perguntei a mim mesmo, se depois de haver morrido para o mundo, me era licito resuscitar para reclamar e rehaver um titulo de que me havia despojado; finalmente se possuia ja o direito de fazer um escandalo. Éstas reflexões, se viessem sos, teriam triumphado desde logo; mas, em opposição a ellas, vieram as suggestões do coração. Adverti que, cedendo á vontade do morto, cavaria um abysmo entre mim e Helena, e que não mais, ou só raramente e a o occultas, podia desfructar, a felicidade de lhe dizer que a amava, de ouvir a mesma palavra de seu coração. Nessa lucta gastei tres longos dias. Helena escreveu-me outra carta, insistindo na resolução que dizia haver tomado. Urgindo responder-lhe, fil-o sacrificando-me, não a convenci. Procurei ter uma entrevista com ella. Não era facil; mas o interesse venceu tudo; a escrava intermediaria augmentou o preço da complacencia. O que se passou entre nós não o poderei repetir agora; curto era o prazo concedido, mas a lucta foi renhida e longa. Busquei persuadil-a com reflexões e súpplicas; ella resistiu com indignação e lagrymas. Sua nobre alma repudiava a complicidade e o lucro de uma usurpação. Eu não via usurpação, por que a meus olhos nem os interesses da familia do conselheiro, nem as noções da simples moral prevaleciam: eu via minha filha e seu futuro: nada mais. Talvez os culpados desse meu proceder fossem somente Angela e seu bemfeitor. Elles me acostumaram a amal-a de longe, a não disputar a outrem o beneficio que ella recebia. Emfim, meu coração, egoista e ulcerado, entendia que o reconhecimento daquella pobre creança era o simples retorno das caricias de que eu havia sido defraudado; taes foram os motivos da minha consciencia. Helena resistiu até á ultima; cedeu somente á necessidade da obediencia, á imagem de sua mãe que eu invoquei, como um supremo esfôrço, á fiança que lhe dei de que a acompanharia sempre, de que iria viver perto della, onde quer que o destino a levasse; cedeu exhausta, sem convicção nem fervor. Se nesse acto decisivo de Helena ha culpa, é toda minha, por que eu fui o o autor unico; ella não passou de simples instrumento, instrumento rebelde e passivo. Seu êrro foi não ter a prudencia necessaria para não transpor o abysmo que nos separava. Eu devia contar com na resoluções subitas e promptas dessa menina; ha alli uma costella de sua mãe. Mandando-lhe dizer com as indicações precisas, onde morava, estava longe de esperar que ella viesse ver-me. A principio fiquei atterrado com as possiveis consequencias; mas se o homem se habitua ao mal e á dor, por que se não hade acostumar ao prazer e ao bem? Helena veiu mais vezes; o gôsto de a ver fez olvidar o perigo, e eu bebi, em horas escassas e furtivas, a unica felicidade que mo restava na terra, a de ser pae e a de me sentir amado por minha filha.
Tinha acabado; grossas lagrymas, retidas a custo, emfim lhe rebentaram dos olhos e rolaram pelo rosto abaixo do narrador. A commoção não ficou só nelle; seus dous ouvintes a sentiram tambem. Acabára; e o peor que podia acontecer era isso mesmo. Uma vez finda a narração, ficaram os dous calados e perplexos, sem que ousassem contradizel-o. Depois de curta pausa, Salvador rematou assim:
—De tudo o que lhes disse não tenho outras provas, além destas cartas, que seriam bastantes, o de minhas lagrymas, que hão de ser eternas. Mas ainda quando haja outras, creio que não serão precisas. Na situação em que estamos só ha duas soluções possiveis; ou nada se altera do que o conselheiro estatuiu, e somente eu carregarei as consequencias da sorte, desaparecendo; ou a familia regeita Helena, e eu a levarei commigo. Dir-se-ha que a lei a protege a todo trance? Pois ella assignará todas as desistencias necessarias.
Estacio cortou-lhe a palavra dizendo que opportunamente lhe dariam sua resolução. Sahiram elle e Melchior logo depois; não trocaram uma só palavra; cada um delles ia absorto. Comtudo, o padre observava de quando em quando o sobrinho de D. Ursula, buscando adivinhar-lhe os pensamentos.
Chegando á porta da chacara, o padre perguntou ao moço:
—Que pretende fazer?
—Não sei ainda.
—Sei eu o que deve fazer: nada.
—Conservar ésta situação?
—De certo. Helena obedeceu á vontade de seus dous paes, aceitando o equívoco em que ambos a vieram collocar. Obedeceu á fôrça. Agora, está reconhecida; é um facto que não podemos discutir nem alterar.
Estacio esteve silencioso alguns instantes.
—Mas posso eu, á vista do que acabamos de ouvir, conservar a Helena um titulo que rigorosamente lhe não pertence? Helena não é minha irmã; é absolutamente extranha á nossa familia; o titulo que nos ligava desaparece. Por que motivo continuariamos nós uma falsificação...
—De seu pae? atalhou Melchior.
—Padre-mestre!
—Aquelle homem falou verdade; mas nem a lei nem a Egreja se contentam com essa simples verdade. Em opposição a ella, ha a declaração derradeira do um morto. A justiça civil exige mais do que palavras e lagrymas; a ecclesiastica não extingue, com um traço de penna, a affirmação posthuma. Demais, não espere que esse homem reproduza perante ninguem as declarações de ha pouco; só o fará quando perder a ultima esperança. É evidente que elle nada quer alterar do que seu pae estabeleceu, e antes se sacrificará do que envergonhará a filha. Sente-se disposto a fazer o que elle recusa?
Estacio não respondeu; tinham entrado na chacara, e caminhavam lentamente na direcção da casa. Melchior deteve-o.
—Estacio! disse o padre depois de olhar para elle um instante. Eu leio no fundo de seu pensamento; quizera despojar Helena do titulo que seu pae lhe deixou para lhe dar outro, e ligal-a á sua familia por differente vínculo...
Estacio fez um gesto como protestando.
—Esquece duas cousas graves; o escandalo e o casamento de um e outro; ja se não pertence, nem ella se pertence a si. Vamos la; seja homem. Sepultemos quanto se passou no mais profundo silêncio; e a situação de hontem será a mesma de amanhã.
Quando Estacio e Melchior entraram era casa, ja D. Ursula sabia tudo; lográra desatar a lingua de Helena. Abatida com a leitura da carta, não lhe levantára o ânimo a narração verbal da moça; seu coração preferia talvez que Helena fôsse verdadeiramente filha do conselheiro. Alguns mezes de espaço e a convivencia affectuosa produziram a differença de sentimento entre o primeiro e o último dia.
—Nada podemos fazer ja agora, disse o padre; provocariamos um escandalo sem esperança do resultado.
D. Ursula fez um gesto de assentimento. Chamada a ouvil-os. Helena desceu dahi a alguns minutos. A côr da vergonha tingiu-lhe a face logo que ella deu com Estacio, que a esperava, ao lado de Melchior, ambos calados, mas sem nenhum vislumbre de irritação. Apos um silêncio longo e abafado, Estacio communicou a Helena a resolução da familia e seus sentimentos de generosidade e confiança; concluiu dizendo que sôbre todas as cousas prevalecia a vontade derradeira de seu pae. Helena empallideceu e cerrou os olhos; D. Ursula correu a amparal-a. O organismo debilitado pelas vigilias e commoções das últimas horas não pudera resistir; mas o deliquio foi leve e curto. Voltando a si, Helena beijou ardentemente as mãos de D. Ursula e as do padre, estendeu a dextra a Estacio, que a apertou; depois, com voz trémula, mais firme resolução, disse:
—Meu coração ficará eternamente grato ao resto de estima que não perdi; mas a situação mudou, e fôrça é mudar com ella. Não quero a protecção da lei, nem poderia receber a complacencia de corações amigos. Commetti um erro, e devo expial-o. Emquanto a vergonha vivia só commigo, era possivel continuar nesta casa; eu atordoava-me para esquecel-a; mas agora, que é patente, vel-a-hei nos olhos de todos e no sorriso de cada um. Peço-lhes que me perdoem e me deixem ir! Não devêra ter entrado, é certo. Expio a fraqueza de um coração que eu me habituára a amar de longe, com o prestigio de mysterio, e o encanto do fructo prohibido. De hoje em diante, amal-os-lei de longe ou de perto, mas extranha... e perdoada!
Dizendo isto, Helena abraçou D. Ursula como a pedir o beneficio da sua intervenção. D. Ursula abraçou-a egualmente, mas fez com a cabeça um gesto negativo. Melchior observou que a repulsa era pelo menos um symptoma de desprendimento pouco explicavel em relação á familia, que, sem embargo dos ultimos successos, não lhe retirára nem a estima nem a protecção.
—Herdou o orgulho de seu pae! murmurou Estacio.
A phrase foi dita em voz baixa, mas Helena ouviu-a, e seus olhos fulgiram de momentanea satisfação. Attribuir a orgulho, o que era vergonha e remorso, dava-lhe certa superioridade que a moça julgava não ter naquelle lance. Protestou em favor de seus sentimentos de gratidão, com a palavra viva, animada, cordial que todos tres lhe conheciam, mas interrompida a intervallos pela commoção interior, e pelos lagrymas que lhe escorriam dos olhos, quasi exhaustos de chorar. Estacio poz termo a todas as hesitações.
—Pois bem, disse elle, será isso mais tarde; a lei é por nós; e nossa vontade é que nos obedeça.
Helena mordeu o labio com desesperação, mas não respondeu. A cabeça descahiu-lhe lentamente como ao pêso de uma ideia a mais e mais oppressora. Depois ergueu-a; seus olhos tristes, mas animados dos ultimos raios de uma esperança, dirigiram-se para os de Estacio, que nessa occasião pareciam falar as dores todas da paixão suffocada e rebelde. Ambos elles os baixaram á terra, medrosos de si mesmos.
—Não creio que ella aceite facilmente a sua decisão,—disse Melchior a Estacio, logo que pôde achar-se só com elle. Acautele-se: é capaz de fugir-nos.
—Cre?
—Não a conhece ainda? A posição em que estes acontecimentos a deixaram repugna-lhe mais que tudo. Prefere a miseria á vergonha; e a ideia de que interiormente não a absolvemos, é o verniz que lhe fica no coração.
De noite, recebeu Estacio uma carta de Salvador, acompanhada de um pacote.
«Reflecti muito durante éstas duas horas,—dizia elle,—e cheguei a uma conclusão unica. Elimino-me; é o meio de conservar a Helena a consideração e o futuro que lhe não posso dar. Quanto ésta carta lhe chegar ás mãos, terei desaparecido e para sempre. Não me procure, que é inutil. Irei abençoal-o de longe. Recaia, entretanto, sobre mim todo o resentimento; eu só o mereço, porque só eu o provoquei. Vão as cartas de Helena; guardo tres apenas, como recordação da felicidade que perdi.»
Estacio teve vontade de ler as cartas de Helena; mas a tempo recusou; mandou-a dar á moça. Helena, que estava com D. Ursula, entregou-as a ésta.
—São a minha história, disse ella; peço-lhe que as leia e me julgue.
Havia em seus olhos uma expressão que não era usual. Recolheu-se immediatamente a seu quarto, onde jazeu longo tempo, calada, quieta, sinistra, o corpo atirado em um sopha, a alma sabe Deus em que regiões de infinito desespêro.
Naquella noite, a segunda de tão singulares successos, foi que Estacio sentiu toda a violencia do amor que lhe inspirára Helena. Em quanto os detinha um vínculo sagrado, amára sem consciencia; e ainda depois de esclarecido pelo padre, o esfôrço empregado em vencer-se, e a propria natureza da catastrophe, não lhe permmittiram ver a extensão do mal. Agora, sim: roto o vínculo, restituida a verdade, elle conhecia que a voz da natureza, maia sincera e forte que as combinações humanas, os chamava um para o outro; e que a mulher destinada a amal-o e ser amada, era justamente a unica que as leis sociaes lhe vedavam possuir.
Durante as primeiras horas seu coração mordeu rebelde o freio da necessidade. A vigilia foi longa e crua; e a reflexão veiu emfim dominar a tempestade interior, ou antes alumiar seus destroços. Elle viu que o padre tinha razão; que era fôrça desfolhar a esperança de um dia. Ao mesmo tempo, o exemplo de Helena deu-lhe ânimo. Senhora do segrêdo de seu nascimento, e consciente de amar sem crime, a moça apressára, não obstante, o casamento de Estacio e escolhêra para si um noivo estimado apenas. Se uma vez a palavra delatora lhe rompeu dos labios, ella a retrahiu logo, fazendo o mais obscuro dos sacrificios.
Não quiz Estacio ser menos generoso. Logo de manhã escreveu a Mendonça, pedindo-lhe que não deixasse de os ir visitar nesse dia. Não o fez sem custo, mas fel-o sem arrependimento. Tinha por fim apressar o casamento de Helena e o seu, condemnando-se a soffrer calado os golpes do avêsso destino.
A manhã, entretanto, não trouxe a Helena o esquecimento e a paz. A noite não lhe serviu de remedio, antes legou á aurora toda a sua mortal angústia. Debilitada, nervosa, impaciente, não podia a moça vencer-se nem supportar-se. Ora repellia com sequidão as boas palavras de D. Ursula; ora lhe pedia intercedesse com Estacio para a resolução que ella admittia como unico meio de a poupar á vergonha. A excitação moral era grande; cumpria aquietal-a por meios persuasivos. Helena fugia a todos: não encarava Estacio e D. Ursula sem que o pêjo lhe colorisse a face, mudança tanto mais visivel, quanto que a vigilia e a dor a tinham empallidecido singularmente. Diziam-lhe que a vontade do conselheiro estatuira uma lei na familia, segundo a qual ella continuava a ser parenta como d'antes, e tão amada como era. A moça agradecia a generosidade, mas não podia fugir á ideia de haver contribuido para uma usurpação. Seu desejo capital era que a deixassem ir ter com o pae, ao pe de quem a natureza e sua consciencia lhe indicavam que poderia estar sem remorso. Estacio e D. Ursula respondiam-lhe com affagos e protestos; mas quando viram que estes eram inuteis, não houve mais que revellar-lhe a carta de Salvador.
O padre Melchior incumbiu-se de lhe fazer essa delicada communicação.
—Seu pae, disse elle, praticou em seu favor um acto heroico; fugiu para lhe não fazer perder a consideração e o futuro. Leia ésta carta, e veja se ella lhe dá a fôrça necessaria para resistir.
Helena pegou na carta com soffreguidão; leu-a de um lance d'olhos. O gemido que lhe rompeu do coração mostrou bem a profundez da ferida que acabava de receber. O padre acolheu-a lacrymosa e esvaecida em seus braços; disse-lhe palavras de conforto e de esperança. Nos primeiros minutos, Helena nada pôde ouvir; o golpe ensurdecêra a alma. Melchior fel-a sentar ao pe de si; ella obedeceu sem consciencia. Apos alguns minutos de silêncio e concentração, a moça dirigiu a palavra ao padre, e agradeceu-lhe a caridade. Depois referiu-lhe os acontecimentos de sua infancia, os mesmos que o capellão ouvira. A sagacidade natural de seu espirito cedo lhe fizera ver que a posição de sua mãe não era a mesma das outras mães; essa descoberta porém não teve outra virtude mais que communicar a seu amor de filha uma intensidade e energia capazes de affrontar os mais fortes obstaculos, como se ella quizesse reunir em si toda a somma de affectos e respeitos que a sociedade afiança ás situações regulares. Melchior ouviu-a commovido; seu coração, nutrido da medulla do Evangelho, reconheceu um effeito da graça divina nesse amor immaculado, que valia por todas as absolvições da terra. Elle a applaudiu e confortou; falou-lhe do futuro, do carinho de sua familia,—sua, a despeito de tudo; emfim da obrigação em que ella estava de corresponder a tanta confiança.
Talvez Helena, em sua razão, correspondesse aos conselhos de Melchior; mas a razão é o que menos a dirigia naquellas circumstâncias afflictivas. Ella deixou o padre para recolher-se a seus aposentos, Quando D. Ursula alli foi, meia hora depois, achou-a profundamente abatida; a violencia da crise passára. A linguagem que lhe falou foi maternal, ungida de amor e perdão; Helena ouviu-a agradecida, mas um sorriso descorado e sem convicção lhe entre-abria os labios. Suppunha ler commiseração onde havia affecto e respeito; e seu orgulho rebellava-se de inspirar o unico sentimento que a consciencia lhe dizia merecer.
As instancias de D. Ursula para que Helena se alimentasse foram inuteis; ella apenas recebia o que bastava para não sucumbir á fome. A companhia repugnava-lhe; assim, poucas vezes a viram desde os dias que se seguiram áquella funesta manhã. Mendonça não conseguiu mais do que os outros. A familia teve o cuidado de annunciar que Helena se achava enferma. A afflicção do noivo foi grande; mas todos buscaram tranquilizal-o. Nada havendo transpirado do acontecimento, facil foi sustentar aquella explicação.
Melchior encommendára muito á familia que vigiaste a moça, cujo espirito lhe parecia atrevido e tenaz; elle receiava que Helena ou fugisse de casa, ou recorresse a algum acto de desespêro. O summo padre desvellou-se em trazer a alma de Helena ao sentimento da resignação, A autoridade de seu caracter religioso, a influência que elle tinha no espirito de Helena eram armas poderosas, temperadas como amor verdadeiro e paternal que o ligava á donzella. Nada poupou; mas seus esforços não tiveram mais fructo, que os da familia. Helena mal podia tolerar a situação.
Uma vez, como ella descesse á chacara, sahiu Estacio a procural-a, não a encontrando senão ao cabo de alguns minutos. Achou-a ao pe do tanque, no lugar em que lhe falára poucos dias antes, sentada no mesmo banco de pau. Vendo-o, estremeceu; elle approximou-se contente de a haver encontrado emfim. O dia estava feio; grossas nuvens negras pejavam o ar, humidas de temporal proximo. Estacio convidou-a a recolher-se.
—Deixe-me estar aqui um instante mais, respondeu ella.
—Dous minutos apenas.
Sentou-se ao pe della e ficaram calados. Helena tinha uma taquara na mão; Estacio quiz tomar-lh'a; ella arremessou-a para longe. Ergueu-se então o moço e foi buscal-a; só então viu que estava molhada até certa altura; calculou que seria o fundo do tanque. O tanque era raso; não poderia dar a morte; mas a suspeita de que Helena não recuaria deante do suicidio aterrou naturalmente o espirito de Estacio. Parecendo-lhe que a causa não comportava o effeito, perguntou a si mesmo se os successos daquelles dias não teriam velado a consciencia da moça. Sentou-se de novo e falou-lhe com brandura.
Ao escutal-o, sentiu Helena como uma ressurreição de outras horas, que ella julgava escoadas para sempre; um sorriso lhe animou os labios sem côr, ao passo que os olhos doridos e murchos pareciam reviver de um resto de luz. Estacio falou-lhe de si, da tia, do padre e de Mendonça, dos proximos casamentos, da felicidade futura. Depois insistiu com ella para que entrasse. Uma brisa mais forte começava a agitar as árvores, e a tempestade ameaçava cahir de repente.
—Ainda não,—disse a moça; alguns minutos mais.
—Mas póde adoecer...
—Talvez, se todos quizerem a minha saude. Ha creaturas tão malfadadas, que aquelles mesmos que as desejam fazer venturosas não alcançam mais do que preparar-lhe o infortunio. Tal foi o meu destino. Seu pae e minha mãe não tiveram outro pensamento; meu proprio pae foi levado do mesmo impulso, quando me obrigou a ser complice de uma generosa mentira. Agora mesmo que elle me foge, com o fim unico de me não tolher a felicidade, arranca-me o ultimo recurso em que eu tinha posto a esperança.
—Helena! interrompeu Estacio.
—O ultimo, repetiu a moça.
Esvaira-se-lhe o sorriso, e o olhar tornara a ser opaco. Estacio teve medo daquella atonia e concentração; travou-lhe do braço; a moca estremeceu toda e olhou para elle.
A princípio foi esse olhar um simples encontro; mas dentro de alguns instantes era alguma cousa mais. Era a primeira revellação, tacita mas consciente, do sentimento que os ligava. Nenhum delles procurára esse contacto de suas almas, mas nenhum fugiu. O que elles disseram um ao outro, com os simples olhos, não se escreve no papel, não se póde repetir ao ouvido; confissão mysteriosa e secreta, feita de um a outro coração, que só ao ceu cabia ouvir, por que não eram vozes da terra, nem para a terra as diziam elles. As mãos, de impulso proprio, uniram-se como os olhares; nenhuma vergonha, nenhum receio, nenhuma consideração deteve essa fusão de duas creaturas nascidas para formar uma existencia unica.
O vento tornara-se mais rijo; uma lufada os despertou,—em ma hora, por que ha sonhos que deviam acabar na realidade do outro seculo. Estacio ergueu-se; sacudiu valorosamente o torpor da felicidade, e reassumiu o papel que seu pae lhe assignára ao pe de Helena. Ésta desviou os olhos e cravou-os na agua, fascinada e absorta. A ideia do suicidio roçaria devéras sua aza invisivel pela fronte da moça? Estacio foi a ella, pegou-lhe nas mãos e convidou-a a sahir dalli.
—Entremos,—disse elle pela terceira vez, olhe que vae chover.
Helena deixou-se levantar; um calafrio percorreu-lhe o corpo todo, e as mãos, que o moço ainda tinha entre as suas, estavam muito mais quentes que o natural.
—Ande repousar, continuou Estacio; póde adoecer, e não tem direito para tanto; nossa affeição não o consentirá nunca. Vamos.
—Amar-me-hão sempre? perguntou Helena.
—Oh! sempre!
—Impossivel! Ha uma voz no fundo de seu coração, que lhe dirá, de quando em quando, ésta triste palavra: aventureira!
—Helena!
—Não posso ser outra cousa a seus olhos, proseguiu a moça tristemente. Quem o convencerá de que a declaração de seu pae não foi obtida por artificios de minha mãe? Quem lhe dará a prova de que, cedendo aos rogos de meu pae, não fiz mais do que executor ura plano preparado ja? São dúvidas que lhe hão de envenenar o sentimento e tornar-me suspeita a seus olhos. Resista quem puder; é me impossivel encarar semelhante futuro!
Helena cahíra offegante no banco. Estacio falou-lhe com abundancia e ternura; jurou-lhe que sua familia era incapaz da minima suspeita; pediu-lhe por seu pae que não julgasse mal delles. Ella sorriu, mas foi um sorrir de incredula.
Grossos pingos de chuva começavam a rufar nas árvores. Estacio pegou na mão de Helena para conduzil-a a casa. A moça fugiu-lhe, indo collocar-se alguns passos adeante, onde a chuva lhe cabia mais em cheio na cabeça nua e no corpo levemente coberto. Quando Estacio, desvairado de terror, correu para ella, Helena affastou-se delle; mas nem seus pes o poderiam vencer nunca, nem lh'o permittiam agora as fôrças quebradas por tantas e tão profundas commoções. Elle alcançou-a; estendeu o braço em volta da cintura da moça, dizendo:
—Que capricho é esse? Vamos embora; eu quero que venha commigo para dentro.
Ao sentir o braço de Estacio, Helena estremeceu e fez um movimento para arredal-o de si; mas a fraqueza trahiu-lhe o instincto de seu melindroso pudor. Ella fitou no moço uns olhos de corça moribunda; as pernas fraquearam, e o corpo esmorecido iria a terra, se lh'o não sustivessem as mãos de Estacio.
—Deixe-me morrer! murmurou ella.
—Não! bradou o mancebo.
Com um gesto rapido, tomou nos braços, estendida, o corpo exhausto de Helena, e caminhou na direcção da casa. O vento flagellava-os; a chuva, que subitamente cahia a jorros, alagava-os sem misericordia; elle ia andando, o mais depressa que lhe permittia o pêso de Helena, cuja cabeça pendia para a terra, e de cujos labios brotavam trechos soltos de phrases sem sentido.
D. Ursula viu entrar aquelle doloroso expectaculo; correu a receber Helena, que Estacio depositou em um sopha, donde foi transferida ao leito. A febre, ja começada antes della sahir, tomára conta emfim da pobre moça. Um médico foi chamado á pressa; o padre Melchior correu por baixo d'agua até a casa de Estacio. As primeiras horas foram de anciedade e susto; o estado da doente era grave; assim o disse o médico; assim o tinham já sentido os corações amigos.
D. Ursula pagou naquella occasião os serviços que, em caso analogo, lhe prestára Helena, mau grado e pêso dos annos, que lhe não permittiam longas vigilias nem aturado trabalho. Velou a boa senhora á cabeceira da enferma, durante essa primeira noite de incerteza e terror. Mendonça, que alli fôra sem suspeitar nada, por que a doença que lhe disseram ter padecido Helena, suppunha elle ser passageira, e em tudo caso, estar quasi extincta, Mendonça recebeu essa triste notícia com a morte no coração.
Durante sete dias o estado de Helena apresentou alternativas que lançavam na alma dos seus a confiança e a desesperação. Algumas horas houve de delirio, durante o qual dous nomes volviam frequentemente aos labios da enfêrma,—o de Estacio e o de seu pae. Nas horas da razão, falava pouco, não proferia nenhum nome, salvo o de Melchior que ella queria ver juncto de si. O capellão obedecia docilmente. Ao pe della, via-a com pena, mas sem desesperação; primeiramente, por que elle aceitava sem murmurio os decretos da vontade divina; depois, porque não sabia ao certo se, em tal situação, era a vida melhor do que a morte. Em todo o caso consolava-a; e suas palavras cahiam no coração de Helena como um orvalho do ceu.
No quarto dia chegou a familia de Camargo, sabendo da doença de Helena apressou-se a ir a Andarahy. Ao ver Eugenia, a moça sorriu tristemente, lampejo de inveja, que para logo se apagou e morreu no coração.
Estacio mal ousava entrar na alcova da doente e não podia viver fóra della. Sua afflicção era patente. Elle promettia a si mesmo todos os sacrificios em troca da vida de Helena, espreitava uma esperança no rosto do médico, e interrogava o coração da tia e do padre. Na noite do setimo dia da scena do jardim, D. Ursula, que ficára ao pe de Helena, mandou chamar á pressa o sobrinho e o padre Melchior, que estavam na sala contigua. Accorreram os dous. Helena tivera uma syncope, que D. Ursula cuidára ser a morte. Voltando a si, leu a moça a sua sentença no rosto de todos tres.
—Ainda não, murmurou ella: ainda não é a morte.
D. Ursula chegou-se-lhe mais perto, beijou-a, disse-lhe algumas palavras de conforto.
—Deixe estar, respondeu ella, deixe que eu não morro; estou só muito doente.
Estacio buscou animal-a, mas a voz morreu-lhe ás primeiras expressões, e elle sahiu. Melchior acompanhou-o.
—Uma cousa poderia talvez saval-a, disse afflicto o moço; era o presença do pae. Vou mandal-o procurar por toda a parte. Havemos de achal-o; é preciso que o achemos.
Melchior approvou a ideia do mancebo: e não lhe disse que o remedio viria talvez tarde, se viesse. Estacio ordenou as cousas para a seguinte manhã. Voltaram á alcova da enferma. Ésta fechara os olhos como se dormisse. Houve então entre aquellas quatro paredes meia hora de silêncio, interrompido apenas, de quando em quando, pelos movimentos que a doente fazia, como a querer mudar de posição. No fim desse tempo, abriu os olhos e murmurou algumas palavras. Chegou o médico, viu-a e desenganou a familia.
Em quanto Melchior dava as ordens precisas para que Helena tivesse os socorros espirituaes, Estacio sahiu dalli, para ir, longe, desabafar seu desespêro; desceu á chacara, vagou por ella delirante, a soluçar como uma creança, ora abraçado a uma árvore, ora ajoelhado e pedindo a Deus a vida de Helena. Seu coração não conhecia o fervor religioso; mas a imagem da morte deu-lhe o que a vida lhe levára, e elle rezou, rezou sosinho, sem hypocrisia nem dúvida. Mendonça veiu achal-o nessa lucta derradeira entre a realidade e a esperança. Não o consolou; seu peito não tinha consolações que distribuir, porque tambem a dor lhe devastára o coração. Nos braços um do outro, choraram o mesmo bem que se lhes ia embora.
Um escravo veiu chamar Estacio á pressa; elle subiu tropego as escadas, atravessou as salas, entrou desvairado no quarto, e foi cahir de joelhos, quasi de bruços, juncto ao leito do Helena. Os alhos desta, ja volvidos para a eternidade, deitaram um derradeiro olhar para a terra, e foi Estacio que o recebeu,—olhar de amor, do saudade e de promessa. A mão pallida e transparente da moribunda procurou a cabeça do mancebo; elle inclinou-a sobre a beira do leito, escondendo as lagrymas e não se atrevendo a encarar o final instante. Adeus!—suspirou a alma de Helena rompendo o envolucro gentil. Era defuncta.
A noite foi cruel para todos. D. Ursula, profundamente abatida pela dor e pelas vigilias, não consentiu, ainda assim, que outras mãos amortalhassem Helena; ella mesma lhe prestou esse derradeiro e triste obsequio. A morte não diminuíra a belleza da donzella; pelo contrário, o reflexo da eternidade parecia dar-lhe um encanto mysterioso e novo. Estacio contemplou-a com os olhos exhaustos, o padre com os seus humidos. Melchior supportára a dor até o momento da definitiva separação; agora, que a moça se ia de vez, deixou-se abater emfim, ao pe daquelles pallidos restos, despôjo último de generosas illusões.
No dia seguinte, prestes a sahir o entêrro, as senhoras deram á donzella morta as despedidas derradeiras. D. Ursula foi a primeira que lhe prestou esse dever; seguiu-se Eugenia e seguiram as outras. Estacio viu-as subir, uma a uma, o estrado em que repousava a eça. Depois, quando ia fechar-se o feretro, caminhou lentamente para elle; trepou ao estrado, e pela ultima vez contemplou aquelle rosto,—séde ha pouco de tanta vida,—e a coroa de saudades que lhe cingia a cabeça, em vez de outra, que seu coração tinha direito de pousar nella. Emfim inclinou-se tambem, e a fronte do cadaver recebeu o primeiro beijo de amor.
Fecharam o feretro; ao moço pareceu que o encerravam a elle proprio. Sahindo o entêrro, deixou-se Estacio cahir n'uma cadeira, sem pensar nada, sem sentir nada. Pouco a pouco despovoou-se a casa; os amigos sahiram; um só de tantos ainda alli ficou, a lastimar consigo a noiva, tão cedo promettida e tão cedo roubada. Esse mesmo sahiu, emfim, não ficando mais do que a familia, cujo pae espiritual era Melchior.
Sosinho com Estacio, o capellão contemplou-o longo tempo; depois, alçou os olhos ao retrato do conselheiro, sorriu melancholicamente, voltou-se para o moço, ergueu-o e abraçou com ternura.
—Animo, meu filho! disse elle.
—Perdi tudo, padre-mestre! gemeu Estacio.
Ao mesmo tempo, na casa do Rio Comprido, a noiva de Estacio, consternada com a morte de Helena, e aturdida com a lugubre cerimonia, recolhia-se tristemente ao quarto de dormir, e recebia á porta o terceiro beijo de seu pae.