Title: O Napoleão de Notting Hill
Author: G. K. Chesterton
Illustrator: W. Graham Robertson
Release date: September 15, 2014 [eBook #46860]
Most recently updated: October 24, 2024
Language: Portuguese
The Project Gutenberg eBook, O Napoleão de Notting Hill, by Gilbert K. Chesterton, Translated by Claudio Naoto Fuzitaki, Illustrated by W. Graham Robertson
O Napoleão de Notting Hill |
GILBERT K. CHESTERTON
Tradução de Claudio Naoto Fuzitaki
Capa de Cristiano Roberto Rohling
Ilustrações de W. GRAHAM ROBERTSON
O texto inglês e as ilustrações originais estão em domínio público e podem ser encontradas em http://www.gutenberg.org/ebooks/20058
Na medida do possível sob a lei, Claudio Naoto Fuzitaki e Cristiano
Roberto
Rohling renunciaram a todos os direitos autorais e relacionados ou
vizinhos a este trabalho.
The original English text and illustrations are in public domain and can be found in http://www.gutenberg.org/ebooks/20058
To the extent possible under law, Claudio Naoto Fuzitaki and Cristiano Roberto Rohling have waived all copyright and related or neighboring rights to this work.
Para cada pequena cidade ou lugar
Deus fez as estrelas especialmente;
Os bebês olham para cima como corujas
E as veem acima enroscadas em uma árvore:
Você viu uma lua nas colinas de Sussex,
Uma lua de Sussex, parada,
Vi uma lua que era da cidade,
A maior lâmpada em Campden Hill.
Sim, o Céu está em toda parte em casa
A grande tampa azul que sempre se encaixa,
E assim é (fique calmo, pois já terminam,
Finalmente, minhas divagações),
E assim é, com o heroísmo;
Não terminará nem com o fim do mundo,
E embora os sinistros motores continuem girando,
Não tenha medo, meu amigo.
Não terminou com a urna de Nelson
Onde uma Inglaterra imortal assenta-se.
Nem em Austerlitz, onde altos jovens
Bebem a morte como o vinho.
E quando os pedantes nos indicaram
Quais frios acontecimentos mecânicos
Devem acontecer; nossas almas dizem no escuro,
“Talvez, mas há coisas melhores.”
Melhor que estas cercanias
Estes níveis suaves e desolados
Os tambores devem bater uma valsa de guerra
E a Morte deve dançar com a Liberdade;
Melhor que as barricadas retumbem
Matança abaixo e fumaça acima,
E a morte, o ódio e o inferno declaram
Que os homens encontraram algo para amar.
Longe de seu planalto ensolarado
Vi o sonho, as ruas onde pisava
As ruas retas iluminadas que espalhavam-se e encontravam-se
As ruas estreladas que apontavam para Deus.
Esta lenda de uma hora épica
Uma criança sonhei, e sonho ainda,
Sob a grande e cinza torre de água
Que atinge as estrelas em Campden Hill.
G.K.C.
Livro I |
A raça humana, a que muitos de meus leitores pertencem, diverte-se com jogos infantis desde o início dos tempos, e provavelmente vai fazê-lo até o fim, o que é um incômodo para as poucas pessoas crescidas. E um dos jogos prediletos é chamado de Mantenha o amanhã misterioso, e que também é chamado (pelos camponeses em Shropshire, não tenho dúvida) Engane o Profeta. Os jogadores ouvem com muita atenção e respeito a tudo o que os homens inteligentes têm a dizer sobre o que deve acontecer na próxima geração. Os jogadores então esperam até que todos os homens inteligentes estejam mortos, e os enterram com respeito. Então, fazem alguma outra coisa. Isto é tudo. Para uma raça de gostos simples, no entanto, é muito divertido.
A humanidade, como uma criança, é teimosa e adora segredinhos. E desde o início do mundo nunca fez o que os sábios dizem ser inevitável. Eles apedrejaram os falsos profetas, diz-se, mas eles poderiam ter apedrejado os verdadeiros profetas com um prazer maior e mais justo. Individualmente, os homens podem apresentar uma aparência mais ou menos racional, comer, dormir, ou planejar algo. Mas a humanidade como um todo é mutável, mística, inconstante, deliciosa. Os homens são homens, mas o Homem é uma mulher.
Mas, no início do século XX, o jogo Engane o Profeta se tornou bem mais difícil do que nunca. A razão era que havia tantos profetas e tantas profecias que era difícil evitar todas as suas ocorrências. Quando o homem fazia algo frenético, livre e totalmente seu, um pensamento horrível o feria depois: que seu ato poderia ter sido previsto. Sempre que um duque escalava um poste, quando um Superintendente ficava bêbado, ele não poderia ser realmente feliz, ele não poderia ter certeza de que não estava cumprindo algumas profecias. No início do século XX não se podia ver o chão em que pisavam os homens inteligentes. Eles eram tão comuns que um homem estúpido era absolutamente excepcional, e quando o encontravam, multidões na rua o seguiam, guardavam e davam-lhe algum alto posto no Estado. E todos os homens inteligentes se dedicavam a informar o que iria acontecer na próxima era, visões muito claras, mordazes e severas, e todas muito diferentes entre si. E parecia que o bom e velho jogo de enganar seus antepassados não poderia realmente ser ganho neste momento, porque os antepassados negligenciavam a carne, o sono e a prática da política, para que pudessem meditar dia e noite sobre o que seus descendentes estariam propensos a fazer.
Mas a forma como os profetas do século XX passaram a trabalhar foi a seguinte: eles pegavam uma coisa ou outra que certamente estava acontecendo no seu tempo, e então diziam que esta iria ocorrer cada vez mais até que algo extraordinário aconteceria. E muitas vezes acrescentavam que em algum lugar estranho esse algo extraordinário já havia acontecido, e que isso constituía um sinal dos tempos.
Assim, por exemplo, havia o Sr. HG Wells e outros, que pensavam que a ciência iria tomar conta do futuro, e assim como o automóvel é mais rápido que o coche, então alguma coisa linda seria mais rápida do que o automóvel e assim por diante para sempre. E surgiu, a partir de suas cinzas, o Dr. Quilp, que disse que um homem podia ser enviado tão rápido ao redor do mundo em sua máquina que poderia manter uma longa conversa com alguém de uma aldeia do velho mundo dizendo uma palavra de uma frase a cada vez que desse uma volta. E foi dito que a experiência havia sido tentada com um velho major apoplético, que foi enviado em volta ao mundo tão rápido que parecia (para os habitantes de outra estrela) uma faixa contínua de bigodes brancos, pele vermelha e tecido tweed, como um anel de Saturno.
Em seguida, houve a escola oposta. Entre eles, o Sr. Edward Carpenter, que achava que em breve deveríamos retornar à Natureza, e viver de forma simples e lenta, como os animais fazem. E Edward Carpenter foi seguido por James Pickie (do Pocohontas College), que disse que os homens melhoravam imensamente pela ruminação, comendo seu alimento de forma lenta e continuamente, à maneira das vacas. E ele disse que tinha, com os resultados mais encorajadores, colocado alguns citadinos de quatro num campo cheio de costeletas de vitela. Em seguida, Tolstoi e os Humanitários disseram que o mundo estava crescendo mais misericordioso, e, portanto, ninguém jamais teria o desejo de matar. E o Sr. Mick não só se tornou um vegetariano, mas posteriormente declarou o vegetarianismo condenado (“o derramamento”, como ele chamou finamente, “do sangue verde dos animais silenciosos”), e previu que os homens de uma era melhor viveriam apenas de sal. E então veio o panfleto do Oregon (onde a proposta foi tentada), o panfleto chamado “Por que o Sal deve sofrer?”, e houve mais problemas.
E por outro lado, algumas pessoas previam que as linhas de parentesco se tornariam mais estreitas e rigorosas. Entre elas, o Sr. Cecil Rhodes, que pensava que a única coisa do futuro seria o Império Britânico, e que haveria um abismo entre aqueles que eram do Império e aqueles que não eram, entre o chinês em Hong Kong e o chinês de fora, entre o espanhol no Rochedo de Gibraltar e do espanhol fora dele, semelhante ao abismo entre o homem e os animais inferiores. E da mesma forma seu impetuoso amigo, Dr. Zoppi (“o Paulo do anglo-saxonismo”), foi ainda mais longe, e declarou que, como resultado desse ponto de vista, o canibalismo deveria significar comer um membro da Império, e não comer um membro dos povos submetidos, que deveriam, segundo ele, ser mortos sem dor desnecessária. Seu horror à ideia de comer um homem da Guiana Inglesa mostrou as pessoas como elas não haviam compreendido seu estoicismo, que o consideravam desprovido de sentimento. Ele ficou, no entanto, em uma posição difícil, pois foi dito que ele tinha tentado o experimento, e, vivendo em Londres, tinha subsistido inteiramente de moídos de italianos. O seu fim foi terrível, pois quando ele tinha recém começado, Sir Paul Swiller leu seu grande artigo na Royal Society, provando que os selvagens não apenas faziam muito bem em comer seus inimigos, mas tinham direito por razões morais e de higiene, pois era verdade que as qualidades do inimigo comido, passavam para o comedor. A noção de que a natureza de um órgão de um homem italiano estava irrevogavelmente crescendo e florescendo dentro dele era mais do que o velho e gentil professor poderia suportar.
Havia também o Sr. Benjamin Kidd, que disse que a marca crescente de nossa raça seria o cuidado e conhecimento do futuro. Sua ideia foi desenvolvida com mais força por William Borker, que escreveu aquela passagem que todo estudante sabe de cor, sobre os homens em eras futuras chorando pelos túmulos de seus descendentes, e os turistas que estão sobre a cena da histórica batalha que deveria realizar-se alguns séculos depois.
E o Sr. Stead, também proeminente, que achava que a Inglaterra no século XX se uniria a América; e seu jovem tenente, Graham Podge, que incluiria os estados de França, Alemanha e Rússia na União Americana, o Estado da Rússia sendo abreviado para Ra.
Havia também o Sr. Sidney Webb, quem disse que que o futuro veria um aumento continuo da ordem e limpeza na vida das pessoas, e seu pobre amigo Fipps, que enlouqueceu e correu o país com um machado, cortando os galhos das árvores, sempre que não tivesse o mesmo número em ambos os lados.
Todos estes homens inteligentes estavam profetizando com toda a sorte de engenhos o que iria acontecer em breve, e todos eles fizeram isso da mesma maneira, tomando algo de “forte tendência”, como se diz, e esticando-o tanto quanto a sua imaginação aceitava. Isso, segundo eles, era o verdadeiro e simples caminho de antecipar o futuro. “Assim”, disse o Dr. Pellkins, em uma bela passagem, “quando vemos um porco em uma ninhada maior do que os outros porcos, sabemos que por uma lei inalterável do Inescrutável, este porco vai algum dia ser maior do que um elefante, da mesma forma como sabemos, quando vemos ervas daninhas e dentes de leão crescendo mais grossos em um jardim, que estes devem, apesar de todos os nossos esforços, crescer mais altos do que as chaminés e encobrir a casa, do mesmo modo que sabemos reverentemente reconhecer que, quando qualquer poder na política humana atinge considerável destaque por algum período de tempo, este vai continuar até atingir o céu.”
Certamente parece que os profetas haviam colocado as pessoas (envolvidas no velho jogo de Engane o Profeta) em uma dificuldade sem precedentes. Parecia muito difícil fazer qualquer coisa sem cumprir algumas de suas profecias. Mas havia, no entanto, nos olhos dos trabalhadores nas ruas, dos camponeses nos campos, dos marinheiros e das crianças, e especialmente as mulheres, um olhar estranho que manteve os homens sábios em um perfeito estado de dúvida. Eles não podiam imaginar a alegria imóvel em seus olhos. Eles ainda tinham algo na manga, pois eles ainda estavam jogando o jogo de Enganar o Profeta. Então nos sábios cresceu uma dúvida selvagem, que os agitava de cá para lá e passaram a gritar: “O que pode ser? O que pode ser? O que será de Londres daqui a um século? Há algo que não se tenha pensado? Casas de cabeça para baixo... mais higiênicas, talvez? Homens andando em mãos-pés flexíveis, talvez? ... Veículos lunares motorizados ... sem cabeça....” E assim, eles se agitavam e se perguntavam até que morreram e foram respeitosamente enterrados. Então o povo foi e fez o que queria. Não vou mais esconder a dolorosa verdade. As pessoas tinham enganado os profetas do século XX. Quando a cortina sobe nesta história, oitenta anos após a data presente, Londres é quase exatamente como é agora.
Poucas palavras são necessárias para explicar por que a Londres de daqui a cem anos será muito parecida com a de agora, ou melhor, dado que devo falar a partir de um passado profético, por que Londres, quando a minha história começa, é muito parecida daquela dos dia invejáveis enquanto ainda estava vivo.
A razão pode ser expressa em uma frase. As pessoas tinham perdido absolutamente a fé em revoluções. Todas as revoluções são doutrinárias, tais como a francesa, ou a que introduziu o cristianismo. Pois para o senso comum não se pode virar todo o existente, os costumes e compromissos, a menos que acredite-se em algo transcendente, algo positivo e divino. Agora, a Inglaterra, durante este século, perdeu toda a crença nisso. Passou a acreditar em algo chamado Evolução. E disse: “Todas as mudanças teóricas acabaram em sangue e tédio. Se mudarmos, temos de mudar lentamente e com segurança, como os animais fazem. As revoluções da natureza são as únicas bem-sucedidas. Não houve reação conservadora em favor das caudas.”
E algumas coisas mudaram. Coisas em que não se reparava muito sumiram de vista. Coisas que aconteciam poucas vezes passaram a não acontecer de todo. Assim, por exemplo, a força física real de governar o país, os soldados e policiais, ficaram cada vez menores, até quase desaparecer. As pessoas combinadas poderiam ter varrido os policiais que restaram em dez minutos: mas não o fizeram, porque não acreditavam que isso iria fazê-las algum bem. Elas tinham perdido a fé em revoluções.
A democracia estava morta, porque ninguém se importava qual classe governante governava. A Inglaterra era agora praticamente um despotismo, mas não hereditário. Alguém na classe oficial era nomeado rei. Ninguém se importava como e ninguém se importava quem. Ele era apenas um secretário universal.
Desta forma, tudo em Londres estava bem quieto. Aquela vaga e um tanto quanto depressiva confiança nas coisas acontecendo como sempre acontecem, que é para todos os londrinos um estado de espírito bem familiar, tinha se tornado uma condição constante. Não havia realmente nenhuma razão para qualquer homem fazer qualquer coisa além do puro hábito.
Portanto, não havia qualquer razão pelo qual três jovens que sempre caminharam em conjunto até o escritório do governo não deveriam caminhar juntos nesta manhã de inverno. Tudo nesta era tornou-se mecânico, principalmente os secretários do governo. Todos esses funcionários se reuniam regularmente em seus postos. Três desses funcionários sempre andavam para a cidade juntos. Toda a vizinhança os conhecia: dois deles eram altos e um baixo. E nesta manhã o secretário baixo estava apenas alguns segundos atrasado para se juntar aos outros dois que passavam por sua porta: ele poderia ultrapassá-los em três passos, ele poderia chamá-los facilmente. Mas não o fez.
Por alguma razão, que nunca será entendida até que todas as almas sejam julgadas (se é que elas serão julgadas, a ideia era, neste momento, classificada como culto fetichista), ele não juntou-se aos seus dois companheiros, mas caminhou firmemente atrás deles. O dia estava cinza, sua vestimenta era cinza, tudo era cinza, mas por algum impulso estranho ele andou rua após rua, distrito após distrito, olhando para as costas dos dois homens, que teriam virado-se ao som de sua voz. Agora, há uma lei escrita no mais escuro dos Livros da Vida, e é esta: Se você olhar para algo novecentas, noventa e nove vezes, você está perfeitamente seguro, se você olhar pela milésima vez, você está sob o terrível perigo de vê-lo pela primeira vez.
Assim, o funcionário do governo mais baixo olhava para as caudas dos casacos dos funcionários do governo mais altos, e rua após rua, esquina após esquina, vendo apenas caudas, caudas, e novamente caudas — quando, sem saber o porquê, algo aconteceu aos seus olhos.
Dois dragões negros estavam andando para trás na frente dele. Os dois dragões negros estavam olhando para ele com olhos malignos. Era verdade que dragões estavam caminhando para trás, mas eles mantinham os olhos fixos nele. Os olhos que ele viu eram, na verdade, apenas os dois botões na parte de trás de uma casaca: talvez alguma memória tradicional da insignificância dos botões deu um destaque imbecil ao olhar. A fenda entre as caudas era a linha do nariz do monstro: sempre que as caudas agitavam com o vento do inverno os dragões lambiam seus lábios. Foi apenas uma fantasia momentânea, mas para o pequeno funcionário ficaria gravada em sua alma para sempre. Ele nunca poderia voltar a pensar em homens vestidos de casacos, exceto como dragões andando para trás. Ele explicou depois, com bastante tato e cortesia, a seus dois amigos oficiais que (enquanto sentia uma consideração inexprimível para com eles) ele não poderia seriamente considerar o rosto deles como qualquer coisa exceto uma espécie de cauda. Era, ele admitiu, um belo rabo, uma cauda elevada no ar. Mas se, segundo ele, qualquer verdadeiro amigo deles desejasse ver seus rostos, para ver dentro dos olhos de suas almas, que ao amigo deve ser permitido andar com reverência atrás deles, de modo a vê-los por trás. Lá, ele veria os dois dragões negros com os olhos cegos.
Quando pela primeira vez os dois dragões negros saltaram no nevoeiro sobre o pequeno funcionário, tiveram meramente o mesmo efeito de todos os milagres — eles mudaram o universo. Ele descobriu o fato que todos os românticos sabem — que aventuras acontecem em dias sombrios, e não nos ensolarados. Quando a corda da monotonia é tensionada ao máximo, então arrebenta com o som de uma música. Ele mal havia notado o clima antes, mas com os quatro olhos mortos fixos nele, olhou em volta e percebeu o estranho dia morto.
A manhã estava invernal e turva, não enevoada, mas escureceu com a sombra da nuvem ou neve que impregna tudo num crepúsculo verde ou cobre. A luz que existe em tal dia não parece vir dos céus claros mas de uma fosforescência apegada às próprias formas. A carga do céu e das nuvens é como uma carga de água, e os homens movem-se como peixes, sentindo que eles estão no fundo de um mar. Tudo numa rua de Londres completa a fantasia, as carruagens e táxis lembram criaturas da profundeza com olhos de fogo. Ele ficou assustado inicialmente ao encontrar dois dragões. Agora descobriu que estava entre dragões marinhos que possuem o fundo do mar.
Os dois jovens que estavam na frente eram, como o pequeno, bem vestidos. As linhas de seus casacos e chapéus de seda tinham a luxuriante severidade que torna o almofadinha moderno, horrível como ele é, num exercício favorito do desenhista moderno: esse elemento que o Sr. Max Beerbohm admiravelmente expressa em falar de “certas harmonias entre o roupas escuras e a perfeição rígida do linho”.
Eles andavam com a marcha de uma lesma afetada, e falaram em largos intervalos, soltando uma frase a cada seis postes.
Eles passavam pelos postes de luz, sua fisionomia tão inabalável que numa descrição fantasiosa quase se poderia dizer que os postes de luz passavam pelos homens, como em um sonho. Então o homem pequeno, de repente correu atrás deles e disse:
— Quero cortar meu cabelo. Sabe de alguma pequena loja em qualquer lugar onde cortam seu cabelo propriamente? Continuo a cortá-lo, mas sempre volta a crescer novamente.
Um dos homens altos o olhou com o ar de um naturalista aflito.
— Ora, aqui é um lugar — gritou o pequeno homem, com uma espécie de alegria imbecil, quando a janela brilhante abaulada de um elegante salão de cabeleireiro brilhou abruptamente no nevoento crepúsculo.
— Sabe, frequentemente encontro cabeleireiros quando ando por Londres. Vou almoçar com vocês em Cicconani. Sabe, sou um grande apreciador de cabeleireiros. São muito melhores do que os desagradáveis açougueiros — e desapareceu pela porta.
O homem chamado James continuou a olhar, com um monóculo encaixado no olho.
— Que diabo fazemos desse sujeito? — perguntou ao seu companheiro, um jovem pálido com um nariz elevado.
O jovem pálido refletiu conscientemente por alguns minutos, e então disse:
— Acho que bateu na cabeça quando era criança.
— Não, não acho que é isso — respondeu o honorável James Barker. — Às vezes imaginava que ele era uma espécie de artista, Lambert.
— Bobagem! — gritou o Sr. Lambert, brevemente.
— Admito que não sei que julgamento fazer dele — retomou Barker, distraído. — Ele nunca abre a boca sem dizer algo tão indescritivelmente imbecil que chamá-lo de bobo parece a mais fraca tentativa de caracterização. Mas há outra coisa que é um pouco engraçada. Sabe que ele tem a maior coleção de laca japonesa da Europa? Já viu os seus livros? Todos os poetas gregos, medievais franceses e esse tipo de coisa. Já esteve em seus quartos? É como estar dentro de uma ametista. E ele move tudo e fala como... como um nabo.
— Bem, dane-se todos os livros. Os seus almanaques também — disse o ingênuo Sr. Lambert, com uma simplicidade amigável. — Você deve entender dessas coisas. O que você acha dele?
— Está acima da minha capacidade — retornou Barker. — Mas como você perguntou a minha opinião, digo que ele é um homem com gosto pelo absurdo, nonsense, como eles chamam, brincadeiras artísticas, e todo esse tipo de coisa. Acredito seriamente que já falou tantas bobagens que confundiu a própria mente e não sabe a diferença entre a sanidade e a insanidade. Foi dar uma volta no mundo mental, por assim dizer, e encontrou o lugar onde o Oriente e o Ocidente são um, e onde extrema idiotice é tão boa quanto a razão. Mas não posso explicar esses mecanismos psicológicos.
— Você não pode explicá-los para mim — respondeu o Sr. Wilfrid Lambert, com candura.
Enquanto passavam as longas ruas para seu restaurante, o crepúsculo de cor de cobre mudou lentamente para um amarelo pálido, e pelo tempo que chegaram estava discernível uma tolerável luz invernal. O honorável James Barker, um dos funcionários mais poderosos do Governo Inglês (por esta altura rigorosamente um funcionário), era um homem jovem magro e elegante, com um rosto branco bonito e tristes olhos azuis. Ele tinha uma grande quantidade de capacidade intelectual, do tipo peculiar que leva um homem de trono a trono até deixá-lo morrer carregado de honras sem ter nunca entretido ou iluminado a mente de ninguém. Wilfrid Lambert, o jovem com o nariz que parecia empobrecer o resto do rosto, também pouco contribuía para o alargamento do espírito humano, mas ele tinha a honrosa desculpa de ser um tolo.
Lambert poderia ser chamado de tolo; Barker, com toda sua esperteza, poderia ser chamado de estúpido. Mas mera burrice e estupidez afundavam na insignificância, na presença dos terríveis e misteriosos tesouros da loucura aparentemente armazenados na pequena figura que estava esperando por eles fora da Cicconani. O pequeno homem, cujo nome era Auberon Quin, tinha uma aparência composta de um bebê e uma coruja. Sua cabeça redonda, olhos redondos, parecia ter sido desenhado pela natureza brincando com um par de compassos. Seu escuro cabelo liso e a absurdamente longa sobrecasaca davam-lhe algo do olhar de um Noé criança. Quando ele entrava na sala de desconhecidos, confundiam-no com um menino pequeno, e queriam colocá-lo de joelhos, até que ele falasse, quando percebiam que um menino seria mais inteligente.
— Tenho esperado muito tempo — disse Quin, suavemente. — É muito engraçado finalmente vê-los subindo a rua.
Lambert olhou fixamente e perguntou:
— Por quê? Você nos disse para vir aqui mesmo.
— Minha mãe costumava dizer às pessoas para vir a lugares — disse o sábio.
Eles estavam prestes a entrar no restaurante com um ar resignado, quando seus olhos foram apanhados por algo na rua. O tempo, embora branco e frio, estava agora bastante claro, e no marrom maçante do pavimento de madeira e entre os terraços de cinza fosco estava se movendo algo que não podia ser visto nos arredores por milhas — que não podia ser visto, talvez, em toda Inglaterra — um homem vestido em cores brilhantes. Uma pequena multidão aglomerou-se ao redor.
Era um homem alto e imponente, vestido com um uniforme militar verde brilhante, salpicado com grandes revestimentos de prata. A partir do ombro balançava um manto verde de pelo curto, um pouco como a de um hussardo, o revestimento brilhava constantemente numa espécie de carmesim fulvo. Seu peito brilhava com medalhas; em volta do pescoço estava a fita vermelha e a estrela de alguma ordem estrangeira, e uma espada longa e reta, com uma empunhadura flamejante, que era arrastada e ecoava ao longo do pavimento. Nesta época, o pacífico e utilitário desenvolvimento da Europa tinha relegado todos os trajes como este para os museus. A única força restante, a pequena mas bem organizada polícia, se vestia de forma sombria e higiênica. Mas mesmo aqueles que se lembravam dos últimos guardas e lanceiros que desapareceram em 1912 devem ter reconhecido num relance que este não era, e nunca tinha sido, um uniforme inglês. E esta convicção teria sido aumentada pelo rosto aquilino amarelo, como de um Dante esculpido em bronze, que surgia, coroada de cabelos brancos, do colarinho verde militar. Era um rosto vivo e distinto, mas não um rosto inglês.
A grandiosidade com que o cavalheiro vestido de verde caminhou até o centro da estrada é difícil de expressar na linguagem humana. Pois, foi com uma simplicidade e arrogância enraizada, algo no mero mover da cabeça e do corpo, que fez os modernos comuns na rua olhar atrás dele, mas isto teve relativamente pouco a ver com gestos ou expressões realmente conscientes. Em matéria desses movimentos apenas temporários, o homem parecia estar bastante preocupado e curioso, mas estava curioso com a curiosidade de um déspota, e preocupado como que com as responsabilidades de um deus. Os homens que descansavam e perguntavam-se dele o seguiam com espanto pelo seu uniforme brilhante, em parte por causa desse instinto que nos faz seguir qualquer um que parece um louco, mas muito mais por causa desse instinto que faz todo homem seguir (e idolatrar) qualquer um que escolhe comportar-se como um rei. Ele tinha de tão sublime forma a grande qualidade da realeza, a inconsciência quase imbecil dos outros, que as pessoas iam atrás dele pela mesma razão que seguem os reis, para ver o que seria a primeira coisa ou pessoa que ele iria notar. E o tempo todo, como já dissemos, apesar do seu esplendor silencioso, havia sobre ele um ar como se estivesse procurando alguém, uma expressão de inquietude.
De repente, aquela expressão de inquietude desapareceu, ninguém podia dizer o porquê, e foi substituída por uma expressão de contentamento. Em meio a atenção da multidão de desocupados, o magnífico cavalheiro verde desviou-se do seu curso direto para o centro da estrada e caminhou para o lado desta. Ele chegou a uma parada em frente a um grande cartaz de mostarda Colman erguido sobre um tapume de madeira. Seus espectadores quase prenderam a respiração.
Ele tirou um pequeno canivete de uma pequena bolsa em seu uniforme, com que fez um corte no papel. Completando o resto da operação com os dedos, fez uma tira de cor amarela e de contorno totalmente irregular. Então, pela primeira vez, o grande ser dirigiu-se a seus espectadores-adoradores:
— Alguém pode — disse ele, com um agradável sotaque estrangeiro — emprestar-me um alfinete?
Lambert, que era o mais próximo, e que carregava inúmeros alfinetes com a finalidade de prender inumeráveis lapelas, emprestou-lhe um, que foi recebido com reverências extravagantes mas dignas e hipérboles de agradecimento.
O cavalheiro em verde, então, com toda a aparência de estar gratificado, e até mesmo orgulhoso, fixou o pedaço de papel amarelo ao adornos de seda verde e prata no seu peito. Então ele voltou seus olhos novamente, procurando insatisfeito.
— Algo mais que eu possa fazer, senhor? — perguntou Lambert, com a polidez absurda do inglês quando envergonhado.
— Vermelho — disse o estranho, vagamente —, vermelho.
— Desculpe?
— Peço-lhe desculpas, Señor — disse o estranho fazendo uma reverência. — Estava imaginando se algum de vocês dispõem de algo vermelho com vocês.
— Algo vermelho conosco? Bem, realmente... Não, não acredito que tenha... Já usei uma bandana vermelha, mas...
— Barker — perguntou Auberon Quin, subitamente —, onde está sua cacatua vermelha? Onde está a sua cacatua vermelha?
— O que você quer dizer? — perguntou Barker, desesperadamente. — Que cacatua? Você nunca me viu com qualquer cacatua!
— Eu sei — disse Auberon, vagamente tranquilizado. — Onde ela esteve esse tempo todo?
Barker virou-se, não sem ressentimento.
— Lamento, senhor — disse ele, breve, mas civilmente —, nenhum de nós parece ter nada vermelho para emprestar-lhe. Mas para que, se posso perguntar.
— Agradeço-lhe, Señor, não é nada. Posso, já que não há outra opção, suprir minhas próprias necessidades.
E de pé, após um segundo de pensamento com o canivete na mão, ele esfaqueou a palma da mão esquerda. O sangue descia com um fluxo tão cheio que atingiu as pedras sem gotejar. O estrangeiro tirou o lenço e arrancou um pedaço dele com os dentes. O pano foi imediatamente embebido em escarlate.
— Uma vez que é tão generoso, Señor, outro alfinete, talvez.
Lambert retirou outro, com os olhos salientes como de um sapo.
A roupa vermelha foi fixada ao lado do papel amarelo, e o estrangeiro tirou o chapéu.
— Tenho que agradecer a todos vocês, senhores — disse, e envolvendo o restante do lenço na mão sangrando, retomou a sua caminhada com uma imponência esmagadora.
Enquanto o restante parou, um tanto atônitos, o pequeno Sr. Auberon Quin correu atrás do estranho e o interpelou, com o chapéu na mão. Consideravelmente para o espanto de todos, dirigiu-se a ele no mais puro espanhol:
— Señor — disse na língua espanhola —, perdoe a hospitalidade, talvez indiscreta, para aquele que parece ser um distinto, mas solitário hospede em Londres. Honraria a mim e a meus amigos, com quem acabou de conversar, acompanhando-nos em um almoço no restaurante ao lado?
O homem com o uniforme verde demostrou grande prazer no mero som de sua própria língua, e aceitou o convite com uma profusão de reverências que mostra, no caso das pessoas do Sul, a falsidade da noção que cerimônia não tem nada a haver com sentimento.
— Señor, a sua linguagem é a minha, mas todo o meu amor para o meu povo não pode levar-me a negar a sua a posse para um anfitrião tão cavalheiresco. Deixe-me dizer que a língua é o espanhol mas o coração é inglês — e foi com o restante para o Cicconani.
— Agora, talvez — disse Barker, após os peixes e o xerez, intensamente polido, no entanto ardendo de curiosidade —, talvez seja rude perguntar por que fez aquilo?
— Fez o quê, Señor? — perguntou o convidado, que falou em um inglês muito bem, embora de uma forma indefinivelmente americana.
— Bem — disse o inglês, com alguma confusão —, quero dizer rasgou uma tira fora e ... er ... cortou a si mesmo ... e ....
— Explicar isso, Señor — respondeu o outro, com um certo orgulho triste —, envolve meramente dizer quem eu sou. Eu sou Juan del Fuego, o presidente da Nicarágua.
A forma com que o presidente da Nicarágua inclinou-se para trás e bebeu xerez mostrou que para ele essa explicação cobria todos os fatos observados e muito mais. No entanto, a testa de Barker ainda estava um pouco cerrada.
— E o papel amarelo — começou, com ansiosa simpatia — e o pano vermelho ....
— O papel amarelo e o pano vermelho — disse Fuego, com grandeza indescritível — são as cores da Nicarágua.
— Mas a Nicarágua… — começou Barker, com grande hesitação — A Nicarágua não é mais um...
— A Nicarágua foi conquistada como Atenas. A Nicarágua foi anexada como Jerusalém — exclamou o velho, com um fogo incrível.— O Yankee, o alemão e os poderes brutos da modernidade pisaram nela com cascos de boi. Mas a Nicarágua não está morta. A Nicarágua é uma ideia.
Auberon Quin sugeriu timidamente:
— Uma ideia brilhante.
— Sim — disse o estrangeiro, pegando a palavra. — Você está certo, generoso inglês. Uma ideia brilhante, um pensamento que queima. Señor, perguntou-me por que, no meu desejo de ver as cores do meu país, arranquei papel e sangue. Não consegue entender a santidade antiga das cores? A Igreja tem as suas cores simbólicas. E pensar o que essas cores significam para nós.. Pense da posição de alguém como eu, que não pode ver nada mas essas duas cores, nada mas o vermelho e o amarelo. Para mim todas as formas são iguais, todas as coisas comuns e nobres estão em uma democracia de combinação. Onde quer que haja um campo de calêndulas e o manto vermelho de uma velha, ali está a Nicarágua. Onde quer que haja um campo de papoulas e uma mancha amarela de areia, ali está a Nicarágua. Onde quer que haja um limão e pôr do sol vermelho, ali está o meu país. Sempre que vejo uma caixa de correio vermelha e um por do sol amarelo, há batidas do meu coração. Sangue e um pouco de mostarda podem ser minha heráldica. Se há lama amarela e lama vermelha na mesma vala, é melhor para mim do que estrelas brancas.
— E se — afirmou Quin, com igual entusiasmo — há vinho amarelo e vinho tinto no mesmo almoço, você não pode se limitar ao xerez. Deixe-me pedir algum borgonha, e completar, por assim dizer, uma espécie de heráldica da Nicarágua no seu interior.
Barker estava brincando com sua faca, e estava, evidentemente, decidindo se iria dizer algo, com o intenso nervosismo de um inglês que quer ser amável.
— Devo entender, então — disse enfim, com uma tosse — que você, ahem, era o presidente da Nicarágua quando fez sua -er- deve-se, é claro, concordar, heroica resistência a – er..
O ex-presidente da Nicarágua acenou com a mão.
— Não precisa hesitar ao falar comigo. Estou completamente ciente de que a tendência geral do mundo de hoje está contra mim e contra a Nicarágua. Não consideraria nenhuma descortesia se disser o que pensa dos infortúnios que puseram minha república em ruínas.
Barker pareceu imensamente aliviado e satisfeito.
— É generoso, presidente — disse, com alguma hesitação sobre o título —, e vou aproveitar a sua generosidade para expressar as dúvidas que, devo confessar, nós, modernos, possuímos sobre -er- a independência da Nicarágua.
— Assim, suas simpatias estão — disse Del Fuego, calmamente — com a grande nação que...
— Perdoe-me, perdoe-me, presidente — disse Barker, calorosamente —, minhas simpatias não estão com nação nenhuma. Acho que entende mal o intelecto moderno. Não desaprovamos o fogo e extravagância de repúblicas como a sua para que se tornem mais extravagantes em uma escala maior. Não condenamos a Nicarágua porque pensamos que a Grã-Bretanha deveria ser mais nicaraguense. Não desencorajamos nacionalidades pequenas porque queremos que as grandes nacionalidades tenham sua pequenez, a uniformidade de sua perspectiva, o exagero de seu espírito. Se diferimos com o maior respeito do seu entusiasmo da Nicarágua, não é porque uma nação ou dez nações estão contra você, contra vós está a civilização. Nós, modernos, acreditamos em uma grande civilização cosmopolita, uma que deve incluir todos os talentos de todos os povos...
— O Señor vai me perdoar — disse o presidente. — Posso perguntar ao Señor como, em circunstâncias normais, pega um cavalo selvagem?
— Nunca pego um cavalo selvagem — respondeu Barker, com dignidade.
—Exatamente — disse o outro —, e aqui termina a sua absorção dos talentos. É disto que me queixo do seu cosmopolitismo. Quando diz que quer todos os povos unidos, realmente quer dizer que deseja que todos os povos unam-se para aprender os truques do seu povo. Se beduínos árabes não sabem ler, algum missionário ou professor inglês deve ser enviado para ensiná-los a ler, mas ninguém diz: “Este professor não sabe como montar em um camelo, vamos pagar um beduíno para ensiná-lo.” Você diz que sua civilização irá incluir todos os talentos. Vai? Realmente quer dizer que no momento em que um esquimó aprender a votar em um Conselho Municipal, você aprenderá a caçar uma morsa? Recorrendo ao meu exemplo: na Nicarágua tínhamos uma maneira de capturar cavalos selvagens lançando as patas dianteiras, que era supostamente a melhor na América do Sul. Se você vai incluir todos os talentos, faça-o. Se não, permita-me dizer o que sempre disse, que algo do mundo se perdeu quando a Nicarágua foi civilizada.
—Alguma coisa, talvez — respondeu Barker —, mas algo que era uma mera destreza bárbara. Sei que não poderia lascar pedras como um homem primitivo, mas sei que a civilização pode fazer facas que são melhores, e confio na civilização.
—Está bem acompanhado — respondeu o ex-presidente da Nicarágua. — Muitos homens inteligentes confiaram na civilização. Muitos babilônios inteligentes, muitos egípcios inteligentes, muitos homens inteligentes no fim do Império Romano. Pode me dizer, num mundo onde é flagrante os fracassos das civilizações, o que torna a sua particularmente imortal?
— Acho que não entende muito bem, Presidente, o que é a nossa civilização — respondeu Barker. — Julga como se a Inglaterra ainda fosse uma ilha pobre e combativa; esteve fora da Europa faz muito tempo, muitas coisas aconteceram.
— E em que — perguntou o outro — se resume essas coisas?
— O resumo dessas coisas — respondeu Barker, com grande animação — é que nos livramos das superstições, e não somente das superstições que, com mais frequência e entusiasmo, são assim descritas. A superstição das grandes nacionalidades é ruim, mas a superstição das pequenas nacionalidades é pior. A superstição de reverenciar nosso próprio país é ruim, mas a superstição de reverenciar países de outras pessoas é pior. É assim em toda parte, e em uma centena de maneiras. A superstição da monarquia é ruim, a superstição da aristocracia é ruim, mas a superstição da democracia é a pior de todas.
O velho abriu os olhos com alguma surpresa:
— Então, a Inglaterra não é mais uma democracia?
Barker riu.
— A situação convida o paradoxo. Somos, em certo sentido, a mais pura democracia. Nós nos tornamos um despotismo. Não percebeu como continuamente na história a democracia torna-se despotismo? As pessoas chamam isso de decadência da democracia. É simplesmente o seu cumprimento. Por que ter o problema de numerar, registrar e emancipar todos os inúmeros John Robinsons, quando você pode lidar com somente um John Robinson com o mesmo intelecto ou a falta de intelecto de todo o resto? Os antigos republicanos idealistas fundaram a democracia baseado na ideia de que todos os homens são igualmente inteligentes. Acredite em mim, a democracia sã e duradoura é fundada no fato de que todos os homens são igualmente idiotas. Por que não devemos escolher um dentre eles como qualquer outro. Tudo o que queremos para o governo é um homem que não seja criminoso ou insano, que pode rapidamente olhar sobre algumas petições e assinar algumas declarações. Pense no tempo que foi desperdiçado discutindo a Câmara dos Lordes, os conservadores dizendo que deveria ser preservada porque era boa, e os radicais dizendo que deveria ser destruída porque era estúpida. Mas ninguém viu porque era estúpida, pois essa turba de homens comuns jogados lá por acidente de sangue era um grande protesto democrático contra a Câmara Baixa, contra a eterna insolência da aristocracia de talentos. Estabelecemos agora na Inglaterra, o que todos os sistemas têm tateado vagamente, o maçante despotismo popular sem ilusões. Queremos um homem à frente do nosso Estado, não porque ele é brilhante ou virtuoso, mas porque ele é um homem e não uma multidão vibrante. Para evitar a possibilidade de doenças hereditárias e coisas desse tipo, abandonamos a monarquia hereditária. O rei da Inglaterra é escolhido como um jurado em uma lista oficial de rotação. Além de que todo o sistema é tranquilamente despótico, e ninguém sequer levanta um murmúrio.
— Quer dizer — perguntou o Presidente, incrédulo — que vocês escolhem um homem comum que esteja a mão e fazem dele um déspota, que confiam nas chances de uma lista alfabética....
— E por que não? — gritou Barker. — Metade das nações históricas não confiaram nas chances dos filhos mais velhos de filhos mais velhos, e metade delas não obtiveram resultados razoáveis? Um sistema perfeito é impossível; mas ter um sistema é indispensável. Todas as monarquias hereditárias foram uma questão de sorte: assim são monarquias alfabéticas. Pode encontrar um profundo significado filosófico na diferença entre os Stuarts e os Hanoverians? Acredite em mim, me comprometo a encontrar um profundo significado filosófico no contraste entre a negra tragédia de A, e o sucesso contínuo de B.
— E vocês arriscam? Embora o homem pode ser um tirano, um cínico ou um criminoso.
— Corremos o risco — respondeu Barker, com perfeita placidez. — Suponha que ele é um tirano, ainda deve lidar com uma centena de tiranos. Suponha que ele é um cínico, é de seu interesse para governar bem. Suponha que ele é um criminoso, removendo pobreza e substituindo por poder, colocamos em cheque sua criminalidade. Em suma, através do despotismo substitutivo impusemos controle total num criminoso e controle parcial sobre todo o resto.
O velho cavalheiro da Nicarágua inclinou-se com uma expressão estranha nos olhos.
— Minha igreja, senhor, me ensinou a respeitar a fé. Não quero desrespeitar qualquer um de vocês, mas realmente quer dizer que confia num homem comum, o homem que pode estar ao seu lado, como um bom déspota?
— Confio — disse Barker, simplesmente. — Ele pode não ser um bom homem. Mas ele será um bom déspota. Pois, quando se trata de um simples negócio rotineiro de governo, ele vai se esforçar para fazer justiça ordinária. Não assumimos a mesma coisa em um júri?
O velho Presidente sorriu.
— Não sei se tenho qualquer objeção particular em detalhes para o seu excelente esquema de governo. Minha única objeção é bastante pessoal. É que se me perguntassem se gostaria de participar disto, perguntaria em primeiro lugar, se não seria permitido, como alternativa, ser um sapo em uma vala. Isso é tudo. Não se pode argumentar com a escolha da alma.
— Da alma — disse Barker, franzindo o sobrolho — não posso falar nada, mas atendendo-se ao interesse público..
De repente, o sr. Auberon Quin levantou-se.
— Se me dão licença, senhores, sairei por um momento para tomar ar.
— Sinto muito, Auberon — disse Lambert, gentilmente. — Sente-se mal?
— Não mal exatamente — disse Auberon, contido —, bem, na verdade. Estranha e ricamente bem. O fato é que quero refletir um pouco sobre essas belas palavras que acabam de ser proferidas. “Atendendo-se” ... sim, era essa a frase, “atendendo-se ao interesse público.” Não se pode tirar o mel de tais coisas sem ficar um pouco só.
— Será que ele está realmente fora de si? — perguntou Lambert.
O velho Presidente cuidava dele com olhos estranhamente vigilantes.
— Acredito que é um homem que não deseja nada, exceto uma piada. É um homem perigoso.
Lambert riu no ato de levantar macarrão à boca.
— Perigoso! Não conhece Quin, senhor!
— Todo homem perigoso — disse o velho sem mover-se — é o que só se preocupa com uma coisa. Eu mesmo já fui perigoso.
E com um sorriso agradável, terminou o café e levantou-se, inclinando-se profundamente, e entrou na neblina, que havia crescido novamente densa e sombria. Três dias depois souberam que havia morrido calmamente num alojamentos no Soho.
Em outro lugar, em meio ao mar escuro da névoa estava uma pequena figura abalada e com tremores, com o que poderia ser à primeira vista terror ou malária: mas que na verdade sofria de uma estranha doença, o riso solitário. Ele estava repetindo novamente para si mesmo com um rico sotaque — Mas, atendendo-se ao interesse público...
— Em um pequeno jardim quadrado de rosas amarelas, ao lado do mar — disse Auberon Quin — houve um ministro dissidente que nunca tinha ido a Wimbledon. Sua família não entendia a tristeza ou o olhar estranho em seus olhos. Mas um dia eles se arrependeram de sua negligência, pois ouviram que um corpo havia sido encontrado na costa, fustigado, mas usando botas de couro patente. Aconteceu dele não ser o tal ministro. Mas no bolso do homem morto havia um bilhete de volta para Maidstone.
Houve uma breve pausa enquanto Quin e seus amigos, Barker e Lambert, foram andando no meio da relva lamacenta dos jardins de Kensington. Então, Auberon retomou:
— Essa história — disse respeitosamente — é o teste de humor.
Eles caminharam cada vez mais rápido, atravessaram a grama alta quando começaram a subir uma ladeira.
— Percebo — continuou Auberon — que passaram no teste, e consideram a anedota dolorosamente engraçada, já que não dizem nada. Só o humor grosseiro é recebido com aplausos de taverna. A grande anedota é recebida em silêncio, como uma bênção. Sentiu-se muito abençoado, não é, Barker?
— Entendi — disse Barker, um tanto arrogantemente.
— Sabe — disse Quin, com uma espécie de alegria idiota — tenho muitas histórias tão boas quanto esta. Ouça isso.
E limpou um pouco a garganta:
— O dr. Policarpo era, como todos sabem, um bimetalista invulgarmente pálido. Pessoas de larga experiência diziam: “Lá vai o mais pálido bimetalista de Cheshire”. Uma vez isso foi dito de forma que ele ouviu: foi dito por atuário, sob um por do sol lilás e cinza. Policarpo se voltou para ele. “Pálido!”, gritou ferozmente, “Pálido! Quis tulerit Gracchos de seditione querentes”. Foi dito que nenhum atuário jamais se meteu com o dr. Policarpo novamente.
Barker concordou com uma sagacidade simples. Lambert só grunhiu.
— Aqui está outra — continuou Quin, insaciável. — Em um oco das colinas verde cinzentas da chuvosa Irlanda, viveu uma mulher muito velha, cujo tio sempre torcia para Cambridge na regata. Mas em seu oco verde cinzento, ela não sabia nada disto: não sabia que houve uma regata. Também não sabia que tinha um tio. Ela não sabia de nada, exceto de George I, de quem tinha ouvido falar (não sei porquê), e nessa memória histórica, ela confiava. Até que Deus quis que chegasse o dia quando descobriu-se que esse tio dela não era realmente seu tio, e vieram-lhe dizer isso. Ela sorriu em meio às lágrimas, e disse apenas: “A virtude é sua própria recompensa.”
Novamente houve um silêncio, e então Lambert disse:
— Parece um pouco misterioso.
— Misterioso! — exclamou o outro. — O verdadeiro humor é misterioso. Não percebe o principal incidente dos séculos XIX e XX?
— E qual é? — perguntou Lambert, breve.
— É muito simples — respondeu o outro. — Até então era a ruína de uma piada que as pessoas não a entendessem. Agora é a vitória sublime de uma piada que as pessoas não a entendam. Humor, meus amigos, é a santidade que restou para a humanidade. É a única coisa que causa medo. Olhe para a árvore.
Seus interlocutores olharam vagamente para uma faia que se inclinava em direção a eles a partir do cume da colina.
— Se — disse o Sr. Quin — eu dissesse que não viram as grandes verdades da ciência exibidas por aquela árvore, embora estejam escancaradas para um homem de intelecto, o que pensariam ou diriam? Simplesmente me considerariam como um pedante com uma teoria irrelevante sobre algumas células vegetais. Se dissesse que não veem naquela árvore a vil má gestão da política local, iriam me repudiar como um socialista maluco com alguma mania particular sobre parques públicos. Se dissesse que vocês são culpados da blasfêmia suprema de olhar para a árvore e não ver nela uma nova religião, uma revelação especial de Deus, poderiam simplesmente dizer que sou um místico, e não pensar mais em mim. Mas — e levantando uma mão pontifical — se digo que não podem ver o humor daquela árvore, e que eu vejo o humor dela, meu Deus! Poriam-se sob os meus pés.
Parou um momento, e depois retomou.
— Sim; um senso de humor, um estranho e delicado senso de humor, é a nova religião da humanidade! É para onde os homens vão se dirigir com o ascetismo dos santos. Farão exercícios, exercícios espirituais. Perguntarão: “Consegue ver o humor desta grade de ferro?” ou “Pode ver o humor deste campo de milho? Pode ver o humor das estrelas? Pode ver o humor dos pores do sol?” Quantas vezes ri sozinho até dormir por causa de um por do sol violeta.
— Isso mesmo — disse Barker, com um inteligente embaraço.
— Deixe-me contar uma outra história. Quantas vezes acontece que os deputado de Essex são menos pontuais do que se poderia supor. O deputado menos pontual de Essex foi, talvez, James Wilson, que disse, no instante de arrancar uma papoula...
De repente, Lambert se voltou e bateu sua bengala no chão numa atitude desafiadora.
— Auberon, pare. Não suporto isso. É tudo tolice.
Os dois homens olharam para ele, pois havia algo muito explosivo nas palavras, como se estivessem entaladas penosamente por um longo tempo.
— Você — começou Quin — não tem..
— Não me importo com uma maldição — disse Lambert, violentamente — se tenho “um senso de humor delicado” ou não. Não vou suportar isso. É tudo uma fraude para confundir-nos. Não há nenhuma piada naqueles contos infernais. Você sabe disso tão bem quanto eu.
— Bem — respondeu Quin, lentamente —, é verdade que eu, com meu processo mental gradual, não vi nenhuma piada neles. Mas, Barker, com seu sentido mais sutil, achou engraçado.
Baker ficou bem vermelho, mas continuou a olhar para o horizonte.
— Seu idiota – disse Lambert — por que você não pode ser como as outras pessoas? Por que não pode dizer algo realmente engraçado, ou segurar a sua língua? O homem que se senta em um chapéu em pantomina é uma visão muito mais engraçada do que você.
Quin o considerou firmemente. Eles haviam chegado ao topo da serra e o vento atingiu seus rostos.
— Lambert — disse Auberon —, você é um grande e bom homem, embora que eu seja enforcado se você aparenta isso. Mais ainda. É um grande revolucionário ou um salvador do mundo, e estou ansioso para vê-lo esculpido em mármore entre Lutero e Danton, se possível na sua atitude atual, o chapéu ligeiramente para o lado. Eu disse enquanto subia o morro que o novo humor era a última das religiões. Você fez do humor a última das superstições. Mas deixe-me dar-lhe um aviso muito sério. Tenha cuidado ao me pedir para fazer algo outré, como imitar o homem da pantomima, e me sentar no meu chapéu. Porque eu sou um homem cuja alma foi esvaziada de todos os prazeres, exceto a loucura . E por dois pence faria isso.
— Então faça — disse Lambert, balançando com impaciência sua bengala. — Seria mais engraçado do que a bobagem que conta.
Quin, de pé no alto do morro, estendeu a mão em direção à avenida principal do Jardim de Kensington.
— A duzentos metros de distância, estão todos os seus conhecidos elegantes com nada para fazer na terra exceto olhar para si mesmos e para nós. Estamos de pé sobre uma elevação sob o céu aberto, como se fosse um pico de fantasia, um Sinai de humor. Estamos num grande púlpito ou plataforma, iluminado com a luz solar, e metade de Londres pode nos ver. Tenha cuidado com o que sugerir para mim. Porque há em mim uma loucura que vai além do martírio, a loucura de um homem completamente ocioso.
— Não sei do que você está falando — disse Lambert, com desprezo. — Só sei que prefiro você preso na sua cabeça tola, do que falando tanto.
— Auberon! Pelo amor de Deus.... — gritou Barker, saltando para a frente, mas foi muito tarde. Faces de todos os bancos e avenidas se viraram em sua direção. Grupos pararam e pequenas multidões se reuniram, e a luz do forte sol pegou a cena toda em azul, verde e preto, como uma imagem em uma livro infantil. E no topo da colina o pequeno Sr. Auberon Quin estava, com destreza atlética considerável, de ponta cabeça, e acenando com suas botas de couro no ar.
— Pelo amor de Deus, Quin, levante-se e não seja um idiota — gritou Barker, torcendo as mãos — teremos a cidade inteira aqui.
— Sim, levante, levante-se, homem — disse Lambert, divertido e irritado. — Eu só estava brincando, levante-se.
Auberon o fez com um salto, e atirando seu chapéu acima das árvores, começou a pular em uma perna com uma expressão séria. Barker passou a bater o pé no solo descontroladamente.
— Oh, vamos para casa, Barker, e deixá-lo — disse Lambert —, alguns policiais adequados e corretos vão cuidar dele. Aí vêm eles!
Dois homens de aparência séria com uniformes discretos vieram até o morro na direção deles. Um deles trazia um papel na mão.
— Lá está ele, oficial — disse Lambert, alegremente. — Não somos responsáveis por ele.
O oficial virou-se para o travesso sr. Quin com um olhar silencioso.
— Meus senhores, não viemos aqui por causa do que acredito estão aludindo. Nós viemos do quartel-general anunciar a seleção de Sua Majestade, o Rei. É a regra, herdada o antigo regime, que a notícia deve ser trazida para o novo soberano imediatamente, onde quer que esteja; então o seguimos até o jardim de Kensington.
Os olhos de Barker estavam em chamas no seu rosto pálido. Ele era consumido com a ambição por toda sua vida. Com a magnanimidade embrutecida do intelecto, realmente acreditava no método de seleção de déspotas pelo acaso. Mas esta sugestão súbita, que a seleção poderia ter caído em cima dele, o enervou com prazer.
— Qual de nós — começou, mas o respeitoso funcionário o interrompeu.
— Não o senhor, sinto informar. Se me é permitido dizê-lo, sabemos de seus serviços para o governo, e seriamos gratos se fosse. A escolha recaiu ....
— Deus abençoe a minha alma! — disse Lambert, saltando dois passos para trás. — Não eu. Não diga que eu sou o autocrata de todas as Rússias.
— Não, senhor — disse o oficial, com uma leve tosse e um olhar para Auberon, que estava, naquele momento, colocando a cabeça entre as pernas e fazendo um barulho como uma vaca. — No momento, o cavalheiro a quem temos que parabenizar parece estar -er-er- ocupado.
— Quin? Não! — gritou Barker, correndo até ele — não pode ser. Auberon, pelo amor de Deus, componha-se. Você foi escolhido Rei!
Com a cabeça ainda de cabeça para baixo entre as pernas, o sr. Quin respondeu modestamente:
— Não sou digno. Não posso razoavelmente pretender me igualar aos
grandes homens que já empunharam o cetro da Grã-Bretanha. Talvez a
única peculiaridade que posso afirmar é que sou provavelmente o primeiro
monarca que expressou sua alma ao povo de Inglaterra com a cabeça
e corpo na presente posição. Isto pode dar-me, para citar um poema
que escrevi na minha juventude:
Um ofício mais nobre na terra
Do que por valor, poder cerebral, ou nascimento
Poderiam dar aos reis guerreiros antigos.
Assim, com o intelecto esclarecido por essa postura...
Lambert e Barker foram encima dele.
— Não entende? — gritou Lambert. — Não é uma piada. Eles realmente te escolheram rei. Por Deus! Devem ter gostos extravagantes.
— Os grandes bispos da Idade Média — disse Quin, chutando as pernas no ar, enquanto era arrastado mais ou menos de cabeça para baixo — tinham o hábito de recusar a honra da eleição três vezes e depois aceitá-la. Uma mera questão de detalhes me separa desses grandes homens. Aceitarei o cargo três vezes e recusá-lo depois. Oh! vou trabalhar duro para vocês, meus fiéis! Terão um banquete de humor.
Por então, já havia sido aterrizado de cabeça para cima, e os dois homens ainda estavam tentando em vão impressioná-lo com a gravidade da situação.
— Não me disse, Wilfrid Lambert, que eu teria mais valor público se adotasse uma forma mais popular de humor? E quando uma forma popular de humor deveria ser mais firmemente pregada senão agora, quando me tornei o queridinho de todo um povo? Oficial, — continuou ele, dirigindo-se para o mensageiro assustado — não existem cerimônias para comemorar a minha entrada na cidade?
— Cerimônias — começou o oficial, com constrangimento — foram mais ou menos esquecidas por algum tempo, e...
Auberon Quin começou a gradualmente tirar o casaco.
— Toda cerimônia — disse ele — consiste na inversão do óbvio. Assim, os homens, quando desejam ser padres ou juízes, vestem-se como mulheres. Por favor, me ajude com este casaco — e o segurou.
— Mas, Majestade — disse o oficial, depois de um momento de confusão e manipulação — está colocando-o com as caudas na frente.
— A inversão do óbvio — disse o rei, com calma — é o mais próximo a que podemos chegar de um ritual com nosso imperfeito aparato. Pode continuar.
O resto da tarde e noite foi para Barker e Lambert um pesadelo, que não poderiam apropriadamente compreender ou recordar. O rei, com seu casaco invertido, foi para as ruas que estavam à espera dele, e para o antigo palácio de Kensington, que era a residência real. Enquanto passava pequenos grupos de homens, os grupos se transformou em multidões, e emitiam sons que pareciam estranhos para acolher um autocrata. Barker andou atrás, seu cérebro cambaleando, e, enquanto a multidão crescia mais espessa, os sons se tornaram ainda mais incomuns. E quando alcançou o grande mercado local em frente à igreja, Barker sabia que tinha chegado, embora estivesse bem atrás, porque subiu uma gritaria como nunca antes havia recebido nenhum dos reis da terra.
Livro II |
Lambert estava de pé no lado de fora da porta dos aposentos do rei, atônico em meio a aquela agitação de espanto e ridículo. Estava de passagem para a rua, atordoado, quando James Barker cruzou com ele.
— Onde vai? — perguntou ele.
— Parar com toda essa tolice, é claro — respondeu Barker, e desapareceu dentro do quarto.
Entrou de cabeça, batendo a porta, e colocando seu incomparável chapéu de seda sobre a mesa. Sua boca se abriu, mas antes que pudesse falar, o rei disse:
— Seu chapéu, por favor.
Revolvendo os dedos, e mal sabendo o que estava fazendo, o jovem político o entregou.
O rei colocou-o em sua própria cadeira, e sentou-se nele.
— Um curioso costume antigo — explicou ele, sorrindo acima das ruínas. — Quando o Rei recebe os representantes da casa de Barker, o chapéu do último é imediatamente destruído dessa maneira. Representa a finalidade absoluta do ato de homenagem expressa na remoção do mesmo. Ele declara que nunca, até que o chapéu surja mais uma vez em sua cabeça (uma contingência que acredito firmemente ser remota), poderá a casa de Barker rebelar-se contra a coroa da Inglaterra.
Barker estava com o punho cerrado, e os lábios agitados.
— Suas piadas — começou ele — e minha propriedade.. — e, em seguida, explodiu com um palavrão, e parou de novo.
— Continue, continue — disse o Rei, acenando com as mãos.
— O que significa tudo isso? — exclamou o outro, com um gesto de racionalidade passional. — Está louco?
— Nem um pouco — respondeu o rei, agradavelmente. — Os loucos são sempre graves, enlouquecem por falta de humor. Está ficando muito sério, James.
— Por que não pode manter isso na sua vida privada? — queixou-se o outro. — Agora, tem muito dinheiro, e abundância de casas para bancar o tolo, mas no interesse público...
— Epigramático — disse o rei, apontando o dedo, infelizmente para ele. — Nenhuma de suas ousadas cintilações aqui. Quanto ao porquê de não fazer isso em particular, não consigo entender a sua pergunta. A resposta é de comparativa limpidez. Não o faço em particular, porque é mais engraçado fazê-lo em público. Parece pensar que seria divertido ser dignificado no salão de banquetes e na rua, e na minha própria lareira (eu poderia adquirir uma lareira) manter todos rindo. Mas isso é o que todos fazem. Todo mundo é sério em público, e engraçado em privado. Meu senso de humor sugere a inversão desta; sugere que se deve ser engraçado em público e solene em particular. Desejo fazer das funções de Estado, os parlamentos, coroações, e assim por diante, uma antiquada pantomina para o riso. Por outro lado, eu me tranquei sozinho em uma pequena despensa por duas horas por dia, onde sou tão digno que me sinto mal.
Por esta altura, Barker andava para cima e para baixo da sala, sua sobrecasaca batendo como as asas de um pássaro preto.
— Bem, você vai arruinar o país — disse secamente.
— Parece-me — disse Auberon — que a tradição de dez séculos está sendo quebrada, e a casa dos Barker está se rebelando contra a Coroa da Inglaterra. Seria com pesar (porque admiro a sua aparência) que seria obrigado a decorar a sua cabeça com os restos deste chapéu, mas...
— O que eu não consigo entender — disse Barker levando os dedos com um movimento frenético bem americano — é porque não se importa com nada exceto seus jogos.
O rei parou bruscamente o ato de levantar os restos de seda, deixou-os cair, e caminhou até Barker, olhando-o firmemente.
— Fiz uma espécie de voto de que não iria falar sério, o que sempre
significa responder perguntas tolas. Mas o homem forte será sempre
gentil com os políticos.
“A forma de meus olhares desdenhosos a ridicularizar,
Foi preciso um Deus para moldar”
se assim posso exprimir-me teologicamente. E por alguma razão que
não posso compreender minimamente, sinto-me impelido a responder a
essa pergunta de vocês, e para respondê-la como se realmente houvesse
tal coisa no mundo como um assunto sério. Pergunta-me por que não
ligo para nada mais. Pode dizer-me, em nome de todos os deuses que
você não acredita, por que deveria me importar com outra coisa?
— Não percebe as necessidades públicas comuns? — gritou Barker. — Como é possível que um homem da sua inteligência não percebe que é do interesse de todos...
— Você não acredita em Zoroastro? É possível que negligencie Mumbo-Jumbo? — devolveu o Rei, com animação surpreendente. — Um homem de sua inteligência me vêm com esses malditos princípios de ética vitoriana? Se, ao estudar as minhas características e maneiras, você detectar qualquer semelhança especial com o príncipe consorte, lhe asseguro que está enganado. Será que Herbert Spencer o convenceu, ele nunca convence ninguém, ele nunca por um momento louco convenceu a si mesmo, que é do interesse do indivíduo se sentir um espírito público? Acredita que, se você governa seu departamento mal, terá alguma chance, ou a metade da chance, de ser guilhotinado, que um pescador sendo puxado de dentro do rio por um pique forte? Herbert Spencer absteve-se de roubo, pela mesma razão que ele se absteve de usar penas em seus cabelos, porque era um cavalheiro inglês com gostos diferenciados. Eu sou um cavalheiro inglês, com gostos diferenciados. Ele gostava de filosofia. Eu gosto de arte. Ele gostaria de escrever dez livros sobre a natureza da sociedade humana. Eu gostaria de ver o Lorde Chamberlain andando na minha frente com um pedaço de papel preso ao rabo do paletó. É o meu humor. Entendeu minha resposta? De qualquer forma, disse a minha última palavra séria hoje, e minha última palavra séria confio para o resto da minha vida a este paraíso dos tolos. No restante da minha conversa com vocês hoje, que espero ser longa e estimulante, proponho conduzir em uma nova linguagem de minha criação baseado em movimentos rápidos e simbólicos da perna esquerda — e ele começou a piruetar lentamente em volta da sala com uma expressão preocupada.
Barker percorreu a sala, depois dele, bombardeando-o com as exigências e súplicas. Mas não recebeu nenhuma resposta, exceto no novo idioma. Ele saiu batendo a porta novamente, e doente como um homem vindo em terra. Como ele caminhou pelas ruas se viu de repente em frente ao restaurante Cicconani, e por algum motivo levantou-se diante dele a fantástica figura verde do general espanhol, de pé, como tinha visto ele pela última vez, na porta, com as palavras em sua lábios: “Não se pode argumentar com a escolha da alma.”
O rei saiu de sua dança com o ar de um homem de negócios legitimamente cansado. Ele vestiu um casaco, acendeu um charuto, e saiu para a noite purpura.
— Irei me misturar com o povo.
Passou rapidamente por uma rua no bairro de Notting Hill, quando de repente sentiu um objeto duro batendo em seu colete. Parou, colocou o seu monóculo, e viu um rapaz com uma espada de madeira e um chapéu de papel armado, usando aquela expressão de temor satisfeito com que uma criança contempla a sua obra quando bate alguém de forma dura. O rei olhou pensativo por algum tempo o seu agressor, e lentamente pegou um caderno do bolso no peito.
— Tenho algumas notas para o meu discurso fúnebre — e virou as folhas. — Discurso fúnebre por assassinato político; idem, se por ex-amigo... hum, hum. Discurso fúnebre por morte nas mãos de um marido afrontado (e arrependido), discurso fúnebre para o mesmo (mas cínico). Não estou certo de qual seria adequado para o presente ....
— Eu sou o rei do castelo — disse o menino, de forma truculenta, e muito satisfeito por alguma razão.
O rei era um homem bondoso, e gostava muito de crianças, como todas as pessoas que gostam do ridículo.
— Infante, estou contente por ser tão valente defensor da antiga e inviolável Notting Hill. Toda noite olhe acima, meu filho, onde levanta-se entre as estrelas, tão antiga, tão solitária, tão indizivelmente Notting. Enquanto estiver pronto para morrer pela montanha sagrada, mesmo que cercado por todos os exércitos de Bayswater...
O rei parou de repente, e seus olhos brilhavam.
— Talvez, talvez a mais nobre de todas as minhas concepções. Um reavivamento da arrogância das antigas cidades medievais aplicadas aos nossos gloriosos subúrbios. Clapham com uma guarda citadina. Wimbledon com uma muralha. Surbiton tocando o sino para chamar seus cidadãos. West Hampstead para a batalha com sua própria bandeira. Deveria ser feito. Eu, o rei, digo isso — e apressadamente presentou o menino com meia coroa, observando: — Para o fundo de guerra de Notting Hill — e então correu violentamente para casa com tal velocidade que as multidões o seguiam por milhas. Ao chegar a seu escritório, pediu uma xícara de café, e mergulhou em profunda meditação sobre o projeto. Finalmente, ele chamou o seu escudeiro favorito, o capitão Bowler, por quem tinha uma afeição profunda, fundada principalmente pela forma de seus bigodes.
— Bowler — disse ele —, não existe uma sociedade de pesquisa histórica, ou algo do qual sou membro honorário?
— Sim, senhor — disse o capitão Bowler, esfregando o nariz —, é um membro dos “Incentivadores do Renascimento Egípcio”, “Clube dos Túmulos Teutônico” , “Sociedade para a Recuperação de Antiguidades de Londres”, e …
— Admirável! — disse o rei. — O de “Antiguidades de Londres” é adequado. Vá para a “Sociedade para a Recuperação de Antiguidades de Londres” e fale com seu secretário, seu sub-secretário, seu presidente, e seu vice-presidente, dizendo: ’O rei da Inglaterra é orgulhoso, mas o membro honorário da Sociedade de Recuperação de Antiguidades de Londres é mais orgulhoso do que reis. Gostaria de dizer-lhe de certas descobertas que fiz no tocante as tradições negligenciadas dos bairros de Londres. As revelações podem causar alguma emoção, agitando memórias ardentes e tocar em velhas feridas em Shepherd’s Bush e Bayswater, em Pimlico e South Kensington. O rei hesita, mas o membro honorário é firme. Aproximo-me invocando os votos de minha iniciação, os Sagrados Sete Gatos, o Poker de Perfeição, e a Provação do Instante Indescritível (perdoem-me se misturá-los com o Clã-na-Gael ou algum outro clube a que pertenço), e peço que me permitam ler um artigo em sua próxima reunião: "As guerras dos bairros de Londres".’ Diga tudo isso para a sociedade, Bowler. Lembre-se com muito cuidado, pois é importante, e esqueci tudo completamente, e envia-me uma xícara de café e alguns dos charutos que mantemos para pessoas bem sucedidas e vulgares. Vou escrever o meu artigo.
A Sociedade para a Recuperação de Antiguidades de Londres encontrou-se um mês depois em um salão de ferro corrugado, nos arredores de um dos subúrbios ao sul de Londres. Um grande número de pessoas tinha se ajuntado lá sob grossos e flamejantes jatos de gases, quando o rei chegou, suado e genial. Ao tirar o sobretudo, perceberam que estava em traje de noite, com a liga da Jarreteira. Sua aparição na pequena mesa, adornada apenas com um copo de água, foi recebida com aplausos respeitosos.
O presidente (Sr. Huggins) disse que tinha certeza de que todos já tiveram o prazer de ouvir tais professores ilustres já há algum tempo (bravo, bravo). O sr. Burton (bravo, bravo), o sr. Cambridge, o professor King (uma exortação continuada), o velho amigo Peter Jessop, sir William White (gargalhadas), e outros homens eminentes que honram este pequeno empreendimento (aplausos). Mas havia outras circunstâncias que emprestam uma certa qualidade exclusiva para a ocasião presente (bravo, bravo). Até onde vai sua lembrança, e em relação a Sociedade de Recuperação de Antiguidades de Londres vai muito longe (aplausos altos), não se lembrava de que qualquer um de seus palestrantes que tivesse o título de rei. Ele iria, portanto, chamar o rei Auberon brevemente para tratar da palestra.
O rei começou por dizer que este discurso pode ser considerado como a primeira declaração de sua nova política para a nação.
— Nesta hora suprema da minha vida sinto que a ninguém, senão aos membros da Sociedade para a Recuperação de Antiguidades de Londres posso abrir meu coração (aplausos). Se o mundo ir contra minha política, e as tempestades de hostilidade popular começarem a subir (não, não), sinto que é aqui, com meus bravos recuperadores em torno de mim, que posso combatê-los melhor, com a espada na mão (altos aplausos).
Sua Majestade, em seguida, passou a explicar que, agora que a velhice se aproxima, propôs-se a dedicar sua força restante para trazer um sentido mais agudo de patriotismo local nos diferentes municípios de Londres. Como tão poucos deles conheciam as lendas de seus bairros próprios! Quantos havia que nunca tinha ouvido falar da verdadeira origem do Wink de Wandsworth! E que uma grande parte da geração mais jovem em Chelsea deixou de interpretar o velho Chuff Chelsea! Pimlico já não bombeava os Pimlies. Battersea tinha esquecido o nome de Blick.
Houve um breve silêncio, e então uma voz disse:
— Que vergonha!
O rei continuou:
— Sendo chamado, mesmo indignamente, a este grande papel, resolvi que, na medida do possível, essa negligência cessará. Não desejo glória militar. Não reivindico igualdade constitucional com Justiniano ou Alfred. Se posso passar na história como o homem que salvou da extinção alguns velhos costumes ingleses, se os nossos descendentes possam dizer que foi através deste homem, humilde como ele era, que os dez nabos ainda são consumidos em Fulham, e que o conselheiro da paróquia ainda raspa metade da cabeça em Putney, quando chegar a hora de descer até a última casa de Reis, vou procurar meus grandes pais com reverência mas não com medo no rosto.
O rei fez uma pausa, visivelmente emocionado, mas se recompôs, e retomou mais uma vez.
— Acredito que muito poucos de vocês, pelo menos, precisariam de mim para debruçar sobre as origens sublimes dessas lendas. Os próprios nomes de seus bairros testemunham para elas. Enquanto Hammersmith é chamado de Hammersmith, o seu povo vive na sombra do herói primordial, o ferreiro, que liderou a democracia da Broadway para a batalha até que enfrentou os cavalheiros de Kensington e derrubou-os no lugar que em honra do melhor sangue da aristocracia derrotada ainda é chamado Kensington Gore. Os homens de Hammersmith não deixarão de lembrar que o próprio nome de Kensington veio dos lábios do seu herói. No grande banquete da reconciliação realizada após a guerra, quando os oligarcas desdenhosos se recusaram a participar das canções dos homens da Broadway (que são até hoje de um caráter rude e popular), o grande líder republicano, com seu humor áspero, disse as palavras que estão escritas em ouro acima de seu monumento, ’Passarinhos que podem cantar e não cantam, deve-se fazê-los cantar.’ E a partir de então os cavaleiros do oriente foram chamados de Cansings ou Kensings. Mas vocês também têm ótimas lembranças, ó homens de Kensington! Mostraram que podem cantar, e cantar grandes canções de guerra. Mesmo após o dia escuro de Kensington Gore, a história vai não esquecer os três cavaleiros que guardavam a sua retirada desordenada do Hyde Park (chamado assim pelo esconderijo lá), os três cavaleiros por quem Knightsbridge foi assim nomeado. Nem vai esquecer o dia de sua reemergência, purificada no fogo de calamidade, purificada de suas corrupções oligárquicas, quando, de espada na mão, dirigiram o Império do Hammersmith de volta milha por milha, o empurraram até a Broadway, e o partiram, finalmente, em uma batalha tão longa e sangrenta que as aves de rapina deixaram seu nome acima. Homens o chamaram, com ironia austera, de Ravenscourt. Não devo ferir o patriotismo de Bayswater, ou o orgulho solitário de Brompton, ou que de qualquer outro município histórico, tomando estes dois exemplos como especiais. Eu os selecionei, não porque eles são mais gloriosos do que o resto, mas em parte por associação pessoal (eu mesmo sou descendente de um dos três heróis de Knightsbridge), e parto da consciência de que sou um antiquário amador, e não posso pretender lidar com tempos e lugares mais remotos e mais misteriosos. Não é para mim resolver a questão entre homens como Professor Hugg e Sir William Whisky se Notting Hill significa Nutting Hill (em alusão às madeiras ricas que já não a cobrem), ou se é uma corrupção de Notting-ill, referindo-se a sua reputação entre os antigos como um paraíso terrestre. Quando um Podkins e um Jossy confessam dúvidas sobre os limites do West Kensington (diz ter sido traçada no sangue de bois), não preciso ter vergonha de confessar uma dúvida similar. Vou pedir-lhes para me desculpar com o aprofundamento da história, e para me ajudar a lidar com o problema que hoje enfrentamos. Deve o espírito antigo dos municípios de Londres morrer? Devem nossos condutores de ônibus e policiais perder totalmente a luz que vemos tão frequentemente nos seus olhos, a luz sonhadora de
“Coisas velhas, infelizes e distantes
E lutas de muito tempo”
para citar palavras de um poeta pouco conhecido, que era meu amigo na minha juventude? Resolvi, como disse, na medida do possível, preservar os olhos de policiais e condutores de ônibus em seu presente estado de sonho. Pois o que é um estado sem sonhos? E o remédio proposto é como se segue:
— Para amanhã de manhã, vinte e cinco minutos depois das dez, se o céu poupar minha vida, pretendo fazer uma proclamação. Tem sido o trabalho da minha vida, e está semiacabado. Com a ajuda de um whisky com soda, vou terminar a outra metade à noite, e meu povo vai recebê-la amanhã. Todos estes bairros onde nasceram, e esperam colocar seus ossos, deverão ser restabelecidos em sua magnificência antiga, Hammersmith, Kensington, Bayswater, Chelsea, Battersea, Clapham, Balham, e uma centena de outros. Cada um deverá imediatamente construir uma muralha com portas para serem fechadas ao pôr do sol. Cada um deve ter uma guarda da cidade, armada até os dentes. Cada um deve ter uma bandeira, um escudo de armas, e, se conveniente, um grito de reunião. Não vou entrar em detalhes agora, meu coração está muito cheio. Eles poderão ser encontrados na proclamação em si. No entanto, todos deverão se inscrever nas guardas locais da cidade, para serem convocados por uma coisa chamada tocsin1, cujo significado estou estudando em minhas pesquisas em história. Pessoalmente, acredito que um tocsin é algum tipo de oficial muito bem pago. Se, portanto, acontecer de você ter algo como uma alabarda na casa, eu deveria aconselhá-lo a praticar com ela no jardim.
Neste ponto o rei cobriu o rosto com um lenço e rapidamente deixou o palco, coberto de emoções.
Os membros da Sociedade para a Recuperação de Antiguidades de Londres se levantaram num indescritível estado de confusão. Alguns estavam roxos de indignação, uns pouco intelectuais estavam roxos de tanto rir, a grande maioria encontrou suas mentes em branco. Conta uma tradição que um rosto pálido, com olhos azuis em chamas permaneceu fixo no palestrante, e após a palestra um menino de cabelos vermelhos saiu correndo da sala.
O rei levantou-se cedo na manhã seguinte e desceu três degraus de cada vez como um colegial. Depois de ter comido seu café da manhã às pressas, mas com apetite, ele convocou um dos mais altos funcionários do Palácio, e lhe presenteou com um xelim.
—Vai, e compra-me uma caixa de tintas de um xelim, que você vai conseguir, a menos que as brumas do tempo me enganem, em uma loja na esquina da segunda e mais suja rua que leva para a linha Rochester. Já solicitei ao mestre de Buckhounds para fornecer-me papelão. Pareceu-me (não sei porque) que caia dentro de suas especialidades.
O Rei estava feliz durante toda a manhã com o seu papelão e sua caixa de tintas. Ele estava envolvido na concepção dos uniformes e brasões de armas para os vários bairros de Londres. Pensou profunda e consideravelmente nisto. Sentiu a responsabilidade.
— Não posso imaginar porque as pessoas pensam nos nomes de lugares do campo como mais poéticos do que aqueles em Londres. Românticos superficiais pegam o trem e param em lugares chamados Hugmy-in-the-Hole1, ou Bumps-on-the-Puddle2. Enquanto poderiam, se quisessem, morar em um lugar com o nome, divino e tenebroso de St. John’s Wood3. Nunca fui à St. John’s Wood. Não ouso. Devo ter medo da noite inumerável de pinheiros, medo de encontrar um buraco vermelho-sangue e do bater das asas da águia. Mas todas estas coisas podem ser imaginadas, permanecendo-se dignamente no trem de Harrow.
E cuidadosamente retocou seu projeto para a vestimenta principal do alabardeiro da St. John’s Wood, um desenho em preto e vermelho, composta de um pinheiro e da plumagem de uma águia. Então se virou para outro cartão.
— Vamos pensar em assuntos mais leves — disse ele. — Lavender Hill! Poderia qualquer uma das suas glebas, vales e todo o resto produzir tão perfumada ideia? Pense em uma montanha de lavanda levantando-se em pungência púrpura nos céus de prata e enchendo as narinas dos homens com um novo sopro de vida, uma colina púrpura de incenso. É verdade que nas minhas poucas excursões de exploração num bonde barato, falhei em localizar o ponto exato. Mas deve estar lá; algum poeta o chamou pelo nome. Há pelo menos o suficiente para justificar as solenes plumas púrpuras (seguindo a formação botânica da lavanda) que tornei de uso obrigatório, na vizinhança de Clapham Junction. Depois de tudo, será assim em toda parte. Nunca fui realmente para Southfields, mas suponho que um esquema de de limões e azeitonas represente seus instintos austrais. Nunca visitei Parson’s Green, ou vi tanto o verde ou o pastor, mas certamente os chapéus verde-pálido que projetei devem estar mais ou menos no espírito. Preciso trabalhar no escuro e deixar meus instintos me guiar. O grande amor que tenho pelo meu povo, certamente me salvará de angustiar seu nobre espírito ou violar as suas grandes tradições.
Enquanto estava refletindo nesse sentido, a porta se abriu, e um funcionário anunciou o sr. Barker e o sr. Lambert.
O sr. Barker e sr. Lambert não estavam particularmente surpresos ao encontrar o rei sentado no chão em meio a um monte de esboços de aquarela. Eles não estavam particularmente surpresos porque a última vez que tinham sido convidados haviam o encontrado sentado no chão, rodeado por um monte de tijolos de criança, e da vez anterior cercado por um monte de tentativas inteiramente frustradas de fazer dardos de papel. Mas a tendência de observações da criança real, proferidas no meio deste caos infantil, era algo novo.
Por algum tempo deixaram-no balbuciar, consciente de que suas observações não significavam nada. E então um pensamento horrível começou a se apossar da mente de James Barker. Ele começou a pensar que as observações do rei significavam algo.
— Em nome de Deus, Auberon — gritou de repente, surpreendendo o calmo salão —, você não quer dizer que vai realmente ter essas guardas da cidade, muralhas e todo o resto?
— Terei, realmente — disse a criança, em uma calma voz. — Por que eu não deveria tê-los? Eu os modelei precisamente com seus princípios políticos. Sabe o que eu fiz, Barker? Eu me comportei como um verdadeiro Barkeriano. Eu... mas talvez não interesse a você, a minha noção de conduta Barkeriana.
— Ah, vá, vá em frente — gritou Barker.
— A minha noção da conduta Barkeriana — disse Auberon, calmamente — parece não só interessar, mas alarmá-lo. No entanto, é muito simples. Simplesmente consiste em escolher todos os Superintendentes sob qualquer novo regime pelo mesmo princípio pelo qual o déspota central é nomeado. Cada Superintendente, de cada cidade, sob a minha carta, deve ser nomeado por rotação. Portanto, meu caro Barker, tenha um sono tranquilo.
Os olhos selvagens de Barker brilharam.
— Mas, em nome de Deus, você não vê, Quin, que a coisa é bem diferente? O centro, não importa tanto, apenas porque todo o objetivo do despotismo é obter algum tipo de unidade. Mas se qualquer maldita paróquia pode ser encarregada a qualquer maldito homem...
— Vejo a sua dificuldade — disse o rei Auberon, calmamente. — Você sente que seus talentos podem ser negligenciados. Ouça! — E levantou-se com imensa magnificência. — Eu solenemente dou ao meu vassalo, James Barker, meu favor especial e esplêndido, o direito de substituir o óbvio texto da Carta das Cidades, e ser, em seu direito próprio, alto lorde Superintendente de South Kensington. E agora , meu caro James, está tudo bem. Bom dia.
— Mas... — começou Barker.
— A audiência terminou, Superintendente. — disse o rei, sorrindo.
Até que ponto sua confiança se justificava, exigiria uma descrição um tanto complicada de explicar. “A grande proclamação da Carta das Cidades Livres” apareceu no tempo devido, naquela manhã, e foi afixada em toda parte da frente do palácio por fixadores de cartazes, o rei os ajudando dando direções animadamente, e de pé no meio da estrada, com a cabeça de lado, contemplava o resultado. Também foi exibida, em cima e em baixo, nas vias principais por homens-sanduíche, e o rei foi impedido de fazer o mesmo por dificuldades próprias, sendo, de fato, encontrado pelo moço da estola e o capitão Bowler, lutando entre duas placas. Sua excitação teve de ser acalmada como a de uma criança.
A recepção que a Carta das Cidades encontrou nas mãos do público pode ser moderadamente descrita como uma mistura. Em certo sentido, era bastante popular. Em muitos lares felizes aquele notável documento legal foi lido em voz alta nas noites de inverno em meio a uma apreciação hilariante, quando todos já tinham decorado aquele clássico antiquado mas imortal que era sr. WW Jacobs. Mas quando foi descoberto que o rei tinha a intenção de exigir a sério as disposições a serem realizadas, de insistir que as grotescas cidades, com toques de emergência e guardas municipais, deveriam realmente vir a existir, iniciou-se uma confusão bem raivosa. Os londrinos não tinham nenhuma objeção particular ao rei fazendo papel de bobo, mas ficaram indignados quando se tornou evidente que ele quis fazer eles de bobos, e os protestos começaram a surgir.
O Alto Lorde Superintendente da Boa e Valente Cidade de West Kensington escreveu uma carta respeitosa ao rei, explicando que em ocasiões de Estado seria, é claro, o seu dever observar as formalidades que o Rei pensou adequadas, mas que era realmente estranho para um pai de família decente ser proibido de sair e colocar um cartão-postal em uma caixa postal sem ser escoltado por cinco arautos, que anunciavam, com gritos e explosões formais de um trompete, que o Alto Lorde Superintendente desejava enviar sua correspondência.
O Alto Lorde Superintendente de North Kensington, que era um próspero comerciante de tecidos, escreveu uma breve carta de negócios, como um homem queixando-se de uma empresa ferroviária, queixando-se da definitiva inconveniência causada pela presença dos alabardeiros, que ele tinha que levar por toda parte. Ao tentar pegar um ônibus para a cidade, descobriu que enquanto poderia encontrar espaço para si mesmo, os alabardeiros tinham dificuldade em entrar no veículo: dou fé, seu fiel servidor.
O Alto Lorde Superintendente de Shepherd’s Bush disse que sua esposa não gostava de homens em volta da cozinha.
O rei ficava sempre encantado ao ouvir essas queixas, oferecendo respostas lenientes e reais, mas como ele sempre insistia, com absoluto sine qua non, que as queixas verbais deviam ser apresentados a ele com a maior pompa de trombetas, plumas, e alabardas, apenas alguns espíritos resolutos estavam preparados para encarar o desafio dos pequenos meninos na rua.
Entre estes, no entanto, destacou-se o abrupto, eficiente e metódico cavalheiro, que governava North Kensington. E ele teve em pouco tempo, uma ocasião para entrevistar o rei sobre um assunto mais amplo e ainda mais urgente do que o problema dos alabardeiros e o ônibus. Esta foi a grande questão que, então e por muito tempo, agitou o sangue e enrubesceu o rosto de todos os construtores especulativos e agentes imobiliários de Shepherd’s Bush a Marble Arch, e de Westbourne Grove a High Street de Kensington. Refiro-me ao grande assunto das melhorias em Notting Hill. O esquema foi conduzido principalmente pelo Sr. Buck, o abrupto magnata de North Kensington, e pelo Sr. Wilson, o Superintendente de Bayswater. Uma grande avenida deveria ser conduzida através de três bairros, através de West Kensington, North Kensington e Notting Hill, a abertura em uma extremidade de Hammersmith Broadway, e a outra em Westbourne Grove. As negociações, compras e vendas, a intimidação e o suborno levou dez anos, e no final dela, Buck, que as conduziu quase sozinho, provou-se um homem do tipo mais forte de diplomacia e energia. E assim quando sua esplêndida paciência e ainda mais esplêndida impaciência finalmente trouxeram-lhe a vitória, quando os operários já estavam demolindo casas e muros ao longo da grande linha de Hammersmith, apareceu um obstáculo repentino que não contavam ou mesmo sonhavam, um obstáculo pequeno e estranho, que, como um grão de areia em uma grande máquina, abalou todo o vasto esquema e o paralisou. E o Sr. Buck, o tecelão, vestindo com grande impaciência sua indumentária oficial e convocando com desgosto indescritível seus alabardeiros, correu para falar com o rei.
Dez anos não haviam cansado o rei de sua piada. Havia ainda novos rostos para serem vistos olhando para ele usando os simbólicos chapéus que havia projetado, no meio das fitas pastorais da Shepherd’s Bush ou debaixo dos capuzes sombrios da estrada de Blackfriars. E a entrevista que foi prometida ao superintendente de North Kensington, antecipou com um prazer especial, pois “nunca apreciava toda a riqueza das vestes medievais, a menos que as pessoas obrigadas a usá-las não fossem muito irritadas, eficientes e metódicas”.
O sr. Buck era tal. Ao comando do rei, a porta da câmara de audiência foi aberta e um arauto apareceu nas cores púrpuras da comunidade do sr. Buck, estampada com a grande águia que o rei havia atribuído a North Kensington, em vaga reminiscência à Rússia, pois ele sempre insistiu em relacionar North Kensington como uma espécie de bairro semi-ártico. O arauto anunciou que o superintendente daquela cidade desejava uma audiência com o rei.
— De North Kensington? — disse o Rei, subindo graciosamente. — Que notícias traz de sua terra de altas colinas e mulheres justas? Ele é bem-vindo.
O arauto avançou para o quarto, e foi imediatamente seguido por doze guardas vestidos de purpura, que foram seguidos por um atendente ostentando a bandeira da Águia, que foi seguido por outro atendente tendo as chaves da cidade em cima de uma almofada, que foi seguido pelo sr. Buck com muita pressa. Quando o Rei viu seu forte rosto animal e os olhos fixos, ele sabia que estava na presença de um grande homem de negócios, e preparou-se conscientemente.
— Bem, bem – disse ele, alegremente descendo dois ou três passos de um estrado, e juntando as mãos lentamente —, estou contente de vê-lo. Não se importe, não se importe. Cerimônia não é tudo.
— Não entendo, vossa Majestade — disse o superintendente, impassível.
— Não se preocupe, não importa — disse o Rei, alegremente. — O conhecimento da corte não é de nenhuma maneira um mérito puro, fará melhor da próxima vez, sem dúvida.
O homem de negócios olhou para ele de mau humor sob as sobrancelhas negras e disse mais uma vez sem mostras de civilidade:
— Não entendo.
— Bem, bem — respondeu o rei, bem-humorado —, se você me perguntar, não me importo de lhe contar, porque não atribuo qualquer importância a estas formalidades em comparação com um coração honesto. Mas é usual (e isto é tudo, é usual) para um homem ao entrar na presença da realeza se deitar de costas sobre o chão e elevar seus pés para o céu (como a fonte do poder real) e dizer três vezes: ’Instituições monárquicas melhoram as maneiras.’ Mas a pompa, tal pompa é muito menos verdadeiramente digna do que a sua simples bondade.
O rosto do Superintendente estava vermelho de raiva, mas manteve silêncio.
— E agora — disse o Rei, de ânimo leve, e com o ar exasperante de um homem encerrando uma afronta — que tempo agradável estamos tendo! Deve achar as suas vestes oficiais bem quentes, meu Lorde. Eu as projetei para a sua própria terra coberta de neve!
— Elas são tão quentes como o inferno — disse Buck, brevemente. — Vim aqui a negócios.
— Certo — disse o rei, apontando um grande número de vezes com solenidade bastante inexpressiva —, certo, certo. Negócio, como o velho triste contente persa dizia, é negócio. Seja pontual. Levante cedo. Leve a caneta no ombro, porque você não sabe de onde você vem, nem porquê. Leve a caneta no ombro, porque você não sabe quando nem onde ir.
O Superintendente tirou uma série de papéis do bolso e os abriu violentamente.
— Vossa Majestade deve ter ouvido falar — começou ele, sarcasticamente — de Hammersmith e uma coisa chamada estrada. Estamos trabalhando faz dez anos, comprando propriedades, obtendo poderes compulsórios, fixando indenizações, acomodando interesses velados e, agora, no final, a coisa é interrompido por um idiota. O velho Prout, que era superintendente de Notting Hill, era um homem de negócios, e lidávamos com ele de forma bem satisfatória. Mas ele está morto, e o lote amaldiçoado caiu sobre um jovem chamado Wayne, que está metido em algum jogo que é completamente incompreensível para mim. Nós lhe oferecemos um preço melhor do que qualquer um poderia sonhar, mas ele não vai deixar a estrada passar. E o seu conselho parece estar apoiando-o. É uma loucura de verão.
O Rei, que estava desatento, envolvido em desenhar o nariz do superintendente com o dedo na vidraça, ouviu as duas últimas palavras.
— Que frase perfeita! “Loucura de Verão!”
— O ponto principal é — continuou Buck, obstinadamente — que a única parte que realmente está em questão é uma pequena rua suja, Pump Street, uma rua sem nada, exceto uma taverna, uma loja de brinquedos baratos, e esse tipo de coisa. Todas as pessoas respeitáveis de Notting Hill aceitaram a nossa compensação. Mas o inefável Wayne não cede Pump Street. Diz que é o superintendente de Notting Hill. Ele é apenas superintendente de Pump Street.
— Um bom pensamento — respondeu Auberon. — Gosto da ideia de um superintendente de Pump Street. Por que não deixá-lo em paz?
— E arruinar todo o esquema? — gritou Buck, numa explosão de espírito brutal. — Que eu seja amaldiçoado se o fazemos! Não. Pretendo enviar os trabalhadores para derrubar, sem mais delongas.
— Ataque pela águia purpura! — gritou o rei acalorado pelas associações históricas.
— Vou dizer — disse Buck, perdendo a paciência por completo — , se Vossa Majestade gastasse menos tempo insultando pessoas respeitáveis com seus brasões de armas bobos, e mais tempo com os negócios da nação...
O rei enrugou a testa, pensativo:
— A situação é ruim, o cidadão arrogante desafiando o rei em seu próprio palácio. A cabeça do cidadão deveria estar inclinada e o braço direito estar estendido; a esquerda pode estar levantada para o céu, mas isto deixo para o seu sentimento religioso privado. Estou afundado nesta cadeira, golpeado com fúria perplexa. Agora, de novo, por favor.
Buck abriu a boca como um cão, mas antes que pudesse falar, outro arauto apareceu na porta:
— O alto lorde Superintendente de Bayswater deseja uma audiência.
— Deixe ele entrar — disse Auberon. — Este é um dia alegre.
Os alabardeiros de Bayswater usavam um uniforme predominante verde, e a bandeira que foi levada depois deles era estampada com uma coroa de louro verde sobre um fundo prata, que o rei, no curso de suas pesquisas junto a uma garrafa de champanhe, tinha descoberto ser o trocadilho pitoresco de Bayswater4.
— É um símbolo adequado — disse o Rei —, a imortal coroa de louros. Fulham pode buscar riqueza, Kensington a arte, mas quando os homens de Bayswater se importaram com algo, exceto a glória?
Imediatamente atrás da bandeira, e quase completamente escondido por ela, veio o superintendente, em vestes esplêndidas de verde e prata com peles brancas e coroado com louro. Ele era um pequeno homem ansioso com bigodes vermelhos, originalmente proprietário de uma loja de pequenos doces.
— Nosso primo de Bayswater — disse o Rei, com prazer —, o que podemos servir a ele? O Rei falou distintamente a murmurar — carne, presunto, frango frio — sua voz morrendo em silêncio.
— Vim ver vossa Majestade — disse o superintendente de Bayswater, cujo nome era Wilson — a respeito de Pump Street.
— Acabei de explicar a situação para vossa Majestade — disse Buck, secamente, mas recuperando sua civilidade. — Não tenho certeza, porém, se vossa Majestade sabe o quanto a matéria afeta você também.
— Afeta a ambos, veja Majestade, como este projeto foi iniciado para o benefício de toda a vizinhança. Assim, o Sr. Buck e eu colocamos nossas cabeças juntos...
O rei aplaudiu.
— Perfeito — gritou em êxtase —! Suas cabeças juntas! Já posso visualizar! Não podem fazer isso agora? Oh, façam isso agora!
Um som abafado de divertimento parecia vir dos alabardeiros, mas o sr. Wilson parecia apenas perplexo, e o sr. Buck simplesmente diabólico.
— Acho.. — começou amargamente, mas o rei o deteve fazendo um gesto para ouvir.
— Quieto! Acho que ouvi alguma outra pessoa vindo. Pareço escutar outro arauto, um arauto cujas botas rangem.
Enquanto falava outra voz gritou da porta:
— O alto lorde superintendente de South Kensington deseja uma audiência.
— O alto lorde superintendente de South Kensington — gritou o rei —! Por que? É o meu velho amigo James Barker! Eu me pergunto o que ele quer? Se minhas afetuosas memórias de amizade não ficaram nebulosas, imagino que ele queira algo para si, provavelmente dinheiro. Como está, James?
O sr. James Barker, cuja guarda estava vestida num esplêndido azul, e cuja bandeira azul levava três de ouro pássaros cantando, entrou apressado, em suas vestes azuis e douradas, no quarto. Apesar do absurdo de todas estas vestes, vale a pena notar que aguentava melhor do que o resto, embora detestasse tanto quanto qualquer um deles. Ele era um cavalheiro e um homem muito bonito, e não poderia evitar, inconscientemente, de vestir mesmo o manto absurdo como deveria ser usado. Falou rapidamente, mas com a ligeira hesitação inicial que sempre demonstrou ao falar com o Rei, devido a supressão de um impulso de tratar seu velho conhecido da maneira antiga.
— Vossa Majestade, perdoe a minha intrusão. É sobre este homem em Pump Street.. Vejo que Buck está aqui, então provavelmente já ouviu o que é necessário...
O Rei varreu os olhos ansiosamente em volta da sala, que agora ardia com os ornamentos dos três bairros:
— Falta algo necessário.
— Sim, vossa Majestade — disse Wilson de Bayswater, um pouco ansioso. — O que vossa Majestade acha necessário?
— Um pouco de amarelo — disse o Rei, com firmeza. — Chame o superintendente de West Kensington.
Em meio a alguns protestos materialistas, ele foi chamado e chegou com os seus alabardeiros amarelos em suas vestes cor de açafrão, enxugando a testa com um lenço. Afinal de contas, como estava, tinha bastante a dizer sobre o assunto.
— Bem-vindo, West Kensington — disse o rei. — Há tempo desejava vê-lo sobre esse assunto da terra de Hammersmith ao sul da Casa Rowton. Será que você o receberá feudalmente do superintendente de Hammersmith? Só tem de homenageá-lo colocando o braço esquerdo em seu casaco e depois marchar para casa neste estado.
— Não, Majestade, preferiria não fazê-lo — disse o superintendente de West Kensington, que era um jovem pálido, com um bigode justo e suíças, que mantinha um laticínio de sucesso.
O rei bateu cordialmente no seu ombro:
— O velho forte sangue de West Kensington. Aqueles que lhe pedem homenagem não são sábios.
Então olhou novamente em volta da sala. Estava cheio de um por do sol rugindo de cor, e gostou da vista, possível para tão poucos artistas — a visão dos seus próprios sonhos em movimento e em chamas na sua frente. Em primeiro plano o amarelo das texturas de West Kensington delineou-se contra as roupagens azuis escuras de South Kensington. As cristas destes brilhavam subitamente em verde como as cores quase florestais de Bayswater que subiam detrás deles. E acima e detrás de todos, as grandes plumas púrpuras de North Kensington pretas, quase fúnebres.
— Algo está faltando.. — disse o Rei. — O que pode... Ah, aí está! Aí está!
Na porta apareceu uma nova figura, um arauto em vermelho flamejante. Ele gritou numa voz alta, mas sem emoção:
— O alto lorde superintendente de Notting Hill deseja uma audiência.
Não existe “hugmy” em dicionários, mas soa similar a “hug me” (abrace-me)
O Rei das Fadas, que foi, presumidamente, o padrinho do rei Auberon, deve ter favorecido muito o seu fantástico afilhado neste dia em particular, pois com a entrada da guarda do superintendente de Notting Hill havia uma certa adição mais ou menos inexplicável para o seu deleite. Os trabalhadores braçais miseráveis e homens-sanduíche que levavam as cores de Bayswater ou South Kensington, contratados apenas para o dia para satisfazer o passatempo real, ficavam na sala com um ar comparativamente compungido, e uma grande parte do prazer intelectual do rei consistia no contraste entre a arrogância de suas espadas e penas e a mansa miséria de seus rostos. Mas esses alabardeiros de Notting Hill, em suas túnicas vermelhas com cinto de ouro, tinham o ar de uma gravidade absurda. Eles pareciam, por assim dizer, tomar parte da brincadeira. Eles marcharam e desfilavam em suas posições com uma quase surpreendente dignidade e disciplina.
Eles carregavam uma bandeira amarela com um grande leão vermelho, nomeado pelo Rei como o emblema de Notting Hill, por causa de uma taverna no bairro que costumava frequentar.
Entre as duas linhas de seguidores avançou em direção ao rei um homem alto, de cabelos vermelhos jovem, de alta categoria e ousados olhos azuis. Ele teria sido chamado de bonito, mas que um certo ar indefinível causado pelo seu nariz ser grande demais para seu rosto, e seus pés para as pernas, dava-lhe uma aparência de estranheza e extrema juventude. Suas vestes eram vermelhas, de acordo com a heráldica do rei, e, sozinho entre os superintendentes, ele estava cingido com uma grande espada. Este era Adam Wayne, o superintendente intratável de Notting Hill.
O rei atirou-se para trás na cadeira, e esfregou as mãos.
— Que dia, que dia! — disse para si mesmo. Agora vai haver barulho. Não sabia que seria tão divertido. Estes superintendentes são tão indignados, tão razoáveis, tão certinhos. Este homem, pelo olhar em seus olhos, é ainda mais indignado do que o resto. Nenhum sinal em seus grandes olhos azuis, de ter ouvido falar de uma brincadeira. Ele vai reclamar dos outros, e eles vão reclamar dele, e todos vão ficar suntuosamente felizes em reclamar comigo.
— Bem-vindo, meu Lorde — disse ele em voz alta. — Quais são as novidades do Morro das Cem Lendas? O que tem para o ouvido de vosso Rei? Sei que problemas surgiram entre você e estes outros, nossos primos, mas estes problemas devem ser o nosso orgulho de se resolver. E não duvido, e não se pode duvidar, que o seu amor por mim não é menos sensível, nem menos ardente, que o deles.
O sr. Buck fez uma amarga careta e as narinas de James Barker se curvaram; Wilson começou a rir baixinho, e o superintendente de West Kensington fez o mesmo de uma forma discreta. Mas os grandes olhos azuis de Adam Wayne nunca mudaram, e ele gritou pelo corredor com sua voz singular e infantil:
— Trago a minha homenagem ao rei. Trago-lhe a única coisa que tenho: a minha espada.
E, com um grande gesto, a colocou no chão, e ajoelhou-se em um dos joelhos.
Houve um silêncio de morte.
— Como disse? — disse o Rei, sem expressão.
— Fala bem, senhor — disse Adam Wayne —, como sempre fala, quando diz que meu amor não é menor do que o amor deles. Pequeno seria se não fosse maior. Porque sou o herdeiro de seu projeto, a criança da grande Carta. Estou aqui pelos direitos que a Carta me deu, e juro, por sua coroa sagrada, que onde permaneço, permaneço firme.
Os olhos dos cinco homens se arregalaram.
Em seguida, Buck disse, com sua voz extremamente forte:
— Todo o mundo ficou louco?
O rei levantou-se, e seus olhos brilharam:
— Sim — gritou, numa voz de júbilo —, todo o mundo é louco, exceto Adam Wayne e eu. É certo como a morte o que lhe disse há muito tempo, James Barker. A seriedade envia os homens a loucura. Você é louco, porque se importa com política, tão louco como um homem que coleciona passagens de bonde. Buck é louco, porque ele se importa com o dinheiro, tão louco como um homem viciado em ópio. Wilson é louco, porque ele acha-se correto, tão louco como um homem que pensa que é o Deus Todo Poderoso. O superintendente de West Kensington é louco, porque acha que é respeitável, tão louco como um homem que pensa que é uma galinha. Todos os homens são loucos, exceto o humorista, que não se preocupa com nada e possui tudo. Pensava que só havia um humorista na Inglaterra. Tolos! Abram seus olhos bovinos; há dois! Em Notting Hill, naquela pouca promissora elevação, nasceu um artista! Tentaram estragar a minha piada, e me intimidar, tornando-se mais modernos, mais práticos, mais agitados e racionais. Oh, que festivo foi para eu responder, tornando-me mais augusto, mais gracioso, mais antiquado e maduro! Mas este rapaz viu como me mover. Ele me respondeu de volta, vanglória por vanglória, retórica por retórica. Ele levantou o escudo que eu não posso quebrar, o escudo da impenetrável pomposidade. Ouçam. Veio, meu Lorde, por Pump Street?
— Pela cidade de Notting Hill — respondeu Wayne, com orgulho —, do qual Pump Street é uma parte viva e alegre.
— Não é uma parte muito grande — disse Barker, com desprezo.
— Aquilo que é grande o suficiente para os ricos cobiçar — disse Wayne, elevando sua cabeça — é grande o suficiente para os pobres defender.
O Rei deu um tapa nas suas pernas, e agitou seus pés no ar por um segundo.
— Toda pessoa respeitável em Notting Hill — cortou Buck, com sua voz grossa e fria — apoia-nos e é contra ti. Tenho muitos amigos em Notting Hill.
— Seus amigos são aqueles que aceitaram o seu ouro para comprar outros lares, meu Lorde Buck — disse o superintendente Wayne. — Posso muito bem acreditar que são seus amigos.
— Eles nunca venderam brinquedos sujos, de qualquer maneira — disse Buck, rindo brevemente.
— Eles venderam coisas mais sujas — disse Wayne, calmamente. — Eles se venderam.
— Isso não é bom, meu Buckito — disse o Rei, rolando sobre a cadeira. — Não consegue lidar com essa eloquência cavalheiresca. Não pode lidar com um artista. Não pode lidar com o humorista de Notting Hill. Oh, nunc dimittis, pois vivi para ver este dia! Superintendente Wayne, permanece firme?
— Deixe-os esperar e ver — disse Wayne. — Se permanecia firme antes, acha que enfraquecerei agora que vi o rosto do Rei? Pois luto por algo maior, se pode haver algo maior que os lares do meu povo e o Senhorio do Leão. Luto por sua visão real, por seu grande sonho da Liga das Cidades Livres. Você mesmo me deu essa liberdade. Se eu fosse um mendigo e tivesse me atirado uma moeda, ou se eu fosse um camponês numa dança e tivesse me arremessado um presente, acha que teria deixado sua oferta ser levada por qualquer bandido na estrada?
— É demais, é demais — disse o rei. — A natureza é fraca. Preciso falar com você, irmão artista, sem mais disfarce. Deixe-me lhe fazer uma pergunta solene. Adam Wayne, alto lorde superintendente de Notting Hill, não acha isso esplêndido?
— Esplêndido — gritou Adam Wayne! Tem o esplendor de Deus.
— Desviou novamente — disse o rei. — Vai manter a pose. Engraçado, é claro, é sério. Mas, seriamente, não é engraçado?
— O quê? — perguntou Wayne, com os olhos de um bebê.
— Pare tudo, não jogo mais. O negócio todo da Carta das Cidades. Não é imenso?
— Imenso não é uma palavra indigna para o glorioso projeto.
— Oh, pare! Mas, é claro, entendo. Você quer que eu limpe o quarto destes bobos razoáveis. Quer os dois humoristas juntos sozinhos. Deixe-nos, senhores.
Buck lançou um olhar azedo em Barker, e com um sinal mal-humorado, saíram da sala como um desfile todo de azul e verde, de vermelho, ouro, púrpura, deixando apenas os dois no grande salão, o rei sentado em seu assento tablado, e a figura avermelhada ainda ajoelhado no chão ante a sua espada caída.
O Rei limitou-se a descer os degraus e bateu nas costas do superintendente Wayne.
— Antes das estrelas serem feitas — gritou ele — fomos feitos um para o outro. É muito bonito. Pensar na valente independência de Pump Street. Isso é real. É a deificação do ridículo.
A figura ajoelhada levantou-se ferozmente:
— Ridículo?! — gritou ele, com um rosto em fogo.
— Oh, pare, pare — disse o rei, impaciente —, não precisa manter isso comigo. Os áugures devem piscar algumas vezes por pura fadiga das pálpebras. Vamos aproveitar por meia hora, e não como atores, mas como os críticos dramáticos. Não é uma piada?
Adam Wayne olhou para baixo como um menino, e respondeu em uma voz constrangido:
— Não entendo a sua Majestade. Não posso acreditar que, enquanto luto por sua carta régia, sua majestade me abandona para estes cães caçadores de ouro.
— Oh, droga... Mas o que é isso? Que diabo é isso
O rei olhou para o rosto do jovem superintendente, e na penumbra da sala começou a ver que seu rosto estava muito branco e os lábios tremendo.
— Em nome de Deus, qual é o problema? — gritou Auberon, segurando seu pulso.
Wayne virou seu rosto, e as lágrimas brilhavam sobre ele.
— Sou apenas um menino, mas é verdade. Pintaria o Leão Vermelho em meu escudo mesmo que tivesse só o meu sangue.
Rei Auberon soltou a mão e ficou sem mexer, atordoado.
— Meu Deus do Céu! Será possível que alguém dentro dos quatro mares da Grã-Bretanha realmente leva Notting Hill a sério?
— Meu Deus do Céu! — Wayne disse apaixonadamente. — É possível que haja, dentro dos quatro mares da Grã-Bretanha um homem que não a leve a sério?
O rei não disse nada, mas apenas voltou a subir os degraus da tribuna, como um homem atordoado. Caiu novamente para trás em sua cadeira e chutou seus calcanhares.
— Se esse tipo de coisa continuar... — disse fracamente — Vou começar a duvidar da superioridade da arte à vida. Em nome dos Céus, não brinque comigo. Você realmente quer dizer que você (Deus me ajude!) um patriota de Notting Hill? Você é…
Wayne fez um gesto violento, e o Rei o acalmava freneticamente.
— Tudo bem, tudo bem, vejo que você é; mas deixe-me continuar. Você realmente propõe lutar contra estes renovadores modernos, com seus conselhos, inspetores e agrimensores e todo o resto?
— Eles são tão terríveis? — perguntou Wayne, com desdém.
O rei continuou a olhar como se ele fosse uma curiosidade humana.
— E suponho que você acha que os dentistas, pequenos comerciantes e senhoras solteiras que habitam Notting Hill, vão se reunir com hinos de guerra seguindo seu estandarte.
— Se eles têm sangue, irão — disse o superintendente.
— E acho — disse o Rei, com a cabeça para trás entre as almofadas — que nunca passou pela sua mente que... — sua voz parecia perder-se exuberantemente — nunca passou pela sua cabeça que qualquer um pensou que a ideia de um idealismo por Notting Hill é.. er.. um pouco.. pouco ridícula?
— Claro que pensam assim — disse Wayne.
— Qual era o significado de zombar dos profetas?
— De onde — perguntou o rei, inclinando-se para frente —, de onde em nome do Céu tirou essa ideia milagrosamente fútil?
— Você foi meu tutor, Senhor — disse o superintendente —, em tudo que é alto e honroso.
— Eh? — disse o rei.
— Foi Sua Majestade quem primeiro colocou meu patriotismo em chamas. Dez anos atrás, quando eu era um menino (tenho apenas 19), estava brincando na encosta de Pump Street, com uma espada de madeira e um capacete de papel, sonhando em grandes guerras. Num transe de raiva batia com a minha espada, e fiquei petrificado, pois vi que tinha te batido, Senhor, meu Rei, enquanto vagava em nobre segredo, cuidando do bem-estar das pessoas. Mas não precisava ter medo. Pois me ensinou a entender a realeza. Você nem se encolheu ou franziu a testa. Nem convocou nenhum guarda. Nem impôs punições. Mas, em palavras ardentes e augustas, que estão escritas na minha alma, para nunca mais serem apagadas, disse-me para sempre virar a minha espada contra os inimigos da minha cidade inviolada. Como um sacerdote apontando para o altar, me apontou para o monte de Notting. "Enquanto estiver pronto para morrer pela montanha sagrada, mesmo que seja cercado por todos os exércitos de Bayswater.” Não me esqueci das palavras, e tenho razão agora para me lembrar delas, pois é chegada a hora para coroar sua profecia. A colina sagrada está cercada pelos exércitos de Bayswater, e estou pronto para morrer.
O rei estava deitado para trás na cadeira, uma espécie de ruína.
— Oh, Senhor, Senhor, Senhor — ele murmurou. — Que vida! Oh vida! Tudo meu trabalho! Parece que fiz tudo isso. Então você é o menino de cabelos vermelhos que me bateu no colete. O que fiz? Deus, o que fiz? Pensei que tinha feito uma piada, e criei uma paixão. Tentei compor uma paródia, e parece estar no meio da transformação num épico. O que é feito com um mundo assim? Em nome do Senhor, a piada não era grande e ousada o suficiente? Abandonei meu humor sutil para diverti-lo, e parece-me que trouxe lágrimas aos seus olhos. O que deve ser feito para as pessoas entenderem que você escreve uma pantomima? Chamar as salsichas de festões clássicos, e fazer o policial cortar uma tragédia em duas por dever público? Mas por que estou falando? Por que estou fazendo perguntas a um cavalheiro jovem e bonito que é totalmente louco? Qual é o propósito? Qual é o propósito de qualquer coisa? Oh, Senhor! Oh, Senhor!
De repente, ele levantou-se.
— Acha mesmo que a sagrada Notting Hill não é absurda?
— Absurda? — perguntou Wayne, sem expressão. — Por que deveria?
O rei olhou para trás igualmente sem expressão:
— Como?
— Notting Hill — disse o superintendente, simplesmente — é um terreno elevado de terra comum, em que homens construíram casas para viver, onde eles nascem, se apaixonam, rezam, casam e morrerem. Por que devo achar absurdo?
O rei sorriu.
— Porque, meu Leônidas — começou, então, de repente, não sabia, sua mente era um branco total. Afinal, por que era um absurdo? Por que era um absurdo? Ele sentiu-se como se o chão de sua mente tivesse sumido. Ele sentiu o que todos os homens sentem quando seus principais fundamentos são duramente atingidos por uma pergunta. Barker sempre se sentia assim quando o rei dizia: "Por que se preocupar com política?"
Os pensamentos do rei estavam em uma espécie de debandada, não podia recolhê-los.
— A percepção geral é de ser um pouco engraçado — disse vagamente.
— Suponho — disse Adam virando-se com rapidez — que considera a crucificação como algo sério?
— Bem — começou Auberon —, admito que, em geral, achei que tinha um lado mais grave.
— Então está errado — disse Wayne, com incrível violência. — A crucificação é cômica. É primorosamente divertida. Era um tipo absurdo e obsceno de empalação reservado para as pessoas que foram feitas para serem ridicularizadas, para escravos e provinciais, para dentistas e pequenos comerciantes, como você diria. Vi a grotesca forca, que os garotos de rua romanos rabiscaram como uma piada vulgar, em chamas sobre os pináculos dos templos do mundo. E devo continuar?
O rei não respondeu.
Adam continuou, a sua voz ressoando no telhado.
— Esse riso com que os homens tiranizam não é o grande poder que acredita. Pedro foi crucificado, e crucificado de cabeça para baixo. O que poderia ser mais engraçado do que a ideia de um Apóstolo de idade respeitável de cabeça para baixo? O que poderia ser mais ao estilo de seu humor moderno? Mas qual foi o fim dele? De cabeça para baixo ou do lado certo, Pedro era Pedro para a humanidade. De cabeça para baixo ele paira sobre a Europa, e milhões se movem e respiram na vida da sua Igreja.
Rei Auberon levantou-se distraído:
— Há algo no que você diz. Parece que esteve pensando, jovem.
— Apenas sentindo, senhor — respondeu o superintendente. — Nasci, como os outros homens, num ponto da terra que amei, porque brinquei jogos de meninos lá, e me apaixonei, e conversei com os meus amigos em noites que eram noites dos deuses. E sinto o mistério. Estes pequenos jardins onde dissemos nossos amores. Essas ruas onde nós colocamos nossos mortos. Por que deveriam ser comuns? Por que deveriam ser absurdos? Por que deveria ser grotesco dizer que uma caixa de correio é poética quando, por um ano não podia ver uma caixa de correio vermelha contra o amarelo do anoitecer numa determinada rua sem ser sacudido por algo que Deus guarda em segredo, mas que é mais forte do que a alegria ou a tristeza? Por que alguém deveria levantar uma risada, ao dizer a “causa de Notting Hill”? Notting Hill, onde milhares de espíritos imortais brilham ora com esperança, ora com medo.
Auberon estava sacudindo a poeira de sua luva com uma nova seriedade em seu rosto, distinta da solenidade de coruja que era a pose de seu humor.
— É muito difícil — disse finalmente. — É uma dificuldade maldita. Vejo o que você quer dizer. Até concordo com você em certo ponto ou gostaria de concordar, se eu fosse jovem o suficiente para ser um profeta ou poeta. Sinto uma verdade em tudo que diz, até chegar às palavras ’Notting Hill’. E então lamento dizer que o velho Adão acorda morrendo de rir e acaba com o novo Adão, cujo nome é Wayne.
Pela primeira vez o superintendente Wayne ficou em silêncio, e ficou olhando sonhadoramente para o chão. A noite se aproximava, e o quarto tinha ficado mais escuro.
— Eu sei — disse ele, numa voz estranha, quase sonolenta. — Também há verdade no que diz. É difícil não rir com nomes comuns, digo apenas que não se devia. Tenho pensado num remédio, mas tais pensamentos são bastante terríveis.
— Que pensamentos? — perguntou Auberon.
O superintendente de Notting Hill parece ter caído em uma espécie de transe, nos seus olhos havia uma luz élfica.
— Sei de uma varinha mágica, mas é uma varinha que apenas um ou dois podem usar corretamente, e só raramente. É uma varinha de grande medo, mais forte do que aqueles que a usam, muitas vezes assustadora, muitas vezes perversa. Mas o que é tocado com ela nunca mais é totalmente comum, o que é tocado recebe uma magia fora do mundo. Se eu tocar, com esta varinha, as ferrovias e as estradas de Notting Hill, os homens irão amá-las, e terão medo delas para sempre.
— Do que diabo você está falando? — perguntou o rei.
— Ela fez paisagens medianas serem magníficas, e casebres durarem mais do que catedrais — continuou o louco. — Por que não poderia fazer de postes de luz mais mágicos do que as lâmpadas gregas? E um passeio de ônibus, como de um navio pintado. O toque dela é o dedo de uma estranha perfeição.
— O que é a sua varinha? — gritou o rei, impaciente.
— Aí está — disse Wayne, e apontou para o chão, onde a sua espada estava lisa e brilhante.
— A espada! — gritou o rei, e levantou-se em frente do estrado.
— Sim, sim — gritou Wayne, com voz rouca. — As coisas tocadas por ela não são vulgares, as coisas tocadas por ela...
O rei Auberon fez um gesto de horror.
— Vai derramar sangue por isso! — gritou. — Por um maldiçoado ponto de vista...
— Oh, vocês reis! — gritou Adam, em uma explosão de desprezo. — Quão humano são vocês, quão carinhosos, quão atenciosos! Fazem a guerra por uma fronteira, ou pelas importações de um porto estrangeiro! Derramam sangue pelos direitos de impostos, ou como a saudação de um almirante. Mas para as coisas que tornam a vida digna ou miserável, quão humanos são! Digo aqui, e sei bem o que eu falo, nunca houve guerras necessárias, mas as guerras religiosas. Nunca houve guerras justas, mas as guerras religiosas. Havia nunca nenhuma guerra humana, mas as guerras religiosas. Pois estes homens estavam lutando por algo que afirmava, pelo menos, ser para a felicidade do homem, a virtude do homem. Um cruzado pensou, pelo menos, que o Islã feria a alma de cada homem, rei ou funileiro, tudo o que poderia cair em seu domínio. Acho que Buck, Barker e estes abutres ricos ferem a alma de cada homem, ferem cada centímetro do chão, ferem cada tijolo das casas, tudo o que cai em seus domínios. Acha que não tenho o direito de lutar por Notting Hill, quando seu governo inglês tantas vezes lutou por tolices? Se, como dizem seus amigos ricos, não há deuses, e acima de nós há somente os céus escuros, para o que deve lutar o homem, mas pelo lugar onde teve o Éden da infância e o curto céu do primeiro amor? Se não houver templos e não são sagradas as escrituras, o que é sagrado, senão a própria juventude do homem?
O rei andou um pouco inquieto para cima e para baixo no estrado.
— É difícil — disse ele, mordendo os lábios — ser favorável a uma visão tão desesperada, tão responsável
Enquanto falava, a porta da sala de audiência abriu entreaberta, e pela abertura veio, como um súbito trino de um pássaro, a voz alta, nasal, mas bem-educada de Barker:
— Eu disse a ele de forma muito clara, o interesse público...
Auberon se voltou para Wayne com violência:
— Que diabos é isso? O que estou dizendo? O que você está dizendo? Você me hipnotizou? Malditos sejam seus misteriosos olhos azuis! Deixe-me ir. Devolva-me o meu senso de humor. Devolva-me, eu digo!
— Eu lhe asseguro solenemente — disse Wayne, inquieto, com um gesto, como sentindo sobre si — que não o tenho.
O rei caiu para trás em sua cadeira, e com uma gargalhada rabelaisiana:
— Não acho que tenha — exclamou.
Livro III |
Um pouco depois da ascensão do Rei apareceu um pequeno livro de poemas, chamado “Hinos no Monte”. Não eram bons poemas, nem um livro de sucesso, mas que atraiu uma certa atenção de uma particular escola de críticos. O próprio Rei, que era um membro desta escola, o avaliou na qualidade de crítico literário para “Direto dos Estábulos”, um jornal esportivo. Eles eram conhecidos como a Escola da Rede, porque um inimigo havia calculado malignamente que não menos do que 13 de suas delicadas críticas tinham começado com as palavras: “Li este livro deitado em uma rede: meio adormecido na sonolenta luz solar, Sob estas condições, gostavam de tudo, mas especialmente bobagens. “Depois de um livro autentico bom (e que, infelizmente, nunca encontramos), queremos um ricamente ruim.” Assim aconteceu que o seu louvor (como indicando a presença de uma riqueza ruim) não era universalmente procurado, e os autores se tornavam um pouco inquietos quando encontravam o olhar favorável da Escola da Rede.
A peculiaridade de “Hinos no Monte” foi a celebração da poesia de Londres como distinta da poesia do campo. Este sentimento ou afetação, naturalmente, não é incomum no século XX, e, embora às vezes exagerada, às vezes artificial, apresenta uma grande verdade na sua raiz, pois há um aspecto em que uma cidade deve ser mais poética do que o campo, uma vez que é mais próxima do espírito do homem, pois Londres, se não é uma das obras-primas do homem, pelo menos é um de seus pecados. A rua é muito mais poética do que um prado, porque a rua tem um segredo. A rua está indo para algum lugar, e um prado a lugar nenhum. Mas, no caso do livro chamado “Hinos no Monte” havia outra particularidade, que o rei apontou com grande perspicácia em seu comentário. Ele era naturalmente interessado no assunto, pois ele próprio tinha publicado um volume de letras sobre Londres sob o pseudônimo de “Margarida Sonhadora”.
Esta diferença, como o Rei apontou, consistiu no fato de que, enquanto
artífices como “Margarida Sonhadora” (a cujo elaborado estilo, o Rei,
com a assinatura de "Thunderbolt", foi
talvez demasiado severo) pensavam em elogiar Londres comparando-a
com a natureza do campo, ou seja, como um fundo a partir do qual todas
as imagens poéticas devem acontecer, o robusto autor de “Hinos no
Monte” elogiou a natureza do campo comparando-a com a cidade, e utilizado
a própria cidade como um fundo. — Pegue — disse o crítico —
as linhas tipicamente femininas de ‘Para o inventor do cabriolé’:
“Poeta, cuja astúcia esculpiu esta concha amorosa,
Onde dois habitam.”
— Certamente — escreveu o rei —, ninguém, mas uma mulher poderia
ter escrito essas linhas. Uma mulher tem sempre uma fraqueza por natureza,
sua arte é apenas bela como um eco ou sombra desta. Ela está louvando
o cabriolé por tema e teoria, mas sua alma ainda é de uma criança
à beira-mar, pegando conchas. Ela nunca pode ser totalmente da cidade,
como um homem pode; na verdade, não falamos (com sagrada propriedade)
de ‘um homem da cidade’? Quem já falou de uma mulher da cidade? Por
mais que, fisicamente, uma mulher possa estar na cidade, ela ainda
se modela pela natureza, ela tenta levar a natureza com ela, ela imagina
grama crescendo em sua cabeça, e... animais peludos para mordê-la
na garganta. No coração de uma cidade escura, ela modela o chapéu
como um flamejante jardim de flores de uma cabana. Nós, com o nosso
sentimento cívico nobre, modelamos o nosso como um pote de chaminé,
o estandarte da civilização. Para não ficar sem pássaros, ela prefere
cometer um massacre, para que ela possa transformar a cabeça numa
árvore, com aves mortas cantando para ela.
Esse tipo de coisa continuou por várias páginas, e depois o crítico
se lembrou de seu assunto, e voltou para ele.
“Poeta, cuja astúcia esculpiu esta concha amorosa,
Onde dois habitam.”
— A peculiaridade dessas boas embora femininas linhas — continuou
“Thunderbolt” — é, como já disse, que elogiam o cabriolé, comparando
a uma concha, a uma coisa natural. Agora, ouça o autor de ‘Hinos no
Monte’, e como ele lida com o mesmo assunto. Em seu belo noturno,
intitulado ‘O Último Ônibus’, ele alivia a melancolia rica e comovente
do tema através de uma súbita sensação de pressa ao fim:
“O vento em volta na esquina da velha rua
Balança súbito e rápido como um táxi.”
— Aqui a distinção é óbvia. ‘Margarida Sonhadora’ pensa que é um
grande elogio a um cabriolé ser comparado a uma das câmaras em espiral
do mar. E o autor de ‘Hinos no Monte’ pensa que é um grande elogio
para o imortal turbilhão ser comparado a um carro de praça. Ele certamente
é o real admirador de Londres. Não temos espaço para falar de todas
as suas aplicações perfeitas da ideia; do poema em que, por exemplo,
os olhos de uma senhora são comparados, não às estrelas, mas a duas
perfeitas lâmpadas de rua que orientam os andarilhos. Não temos espaço
para falar da fina letra, recordando o espírito elisabetano, em que
o poeta, em vez de dizer que a rosa e o lírio lutam em sua pele, diz
Quão perfeita é a imagem de dois ônibus em disputa!
Aqui, um pouco abruptamente, a revisão concluiu, provavelmente porque o rei teve de enviar a sua cópia, naquele momento, já que estava com alguma falta de dinheiro. Mas o Rei era um crítico muito bom, mesmo que não fosse como Rei, e tinha, em grande medida, acertado na mosca. “Hinos no Monte” não era nada como os poemas publicados originalmente em louvor da poesia de Londres. E a razão é que foi realmente escrito por um homem que não tinha visto nada além de Londres, e que ele a considerava, portanto, como o universo. Ele foi escrito por um bruto rapaz ruivo de 17, chamado Adam Wayne, que tinha nascido em Notting Hill. Um acidente em seu sétimo ano o impediu de ser levado para o litoral, assim, toda a sua vida se passou em Pump Street e na sua vizinhança. E a consequência foi que ele via as lâmpadas de rua como tão eternas quanto as estrelas, os dois fogos misturados. Ele via as casas resistindo como as montanhas, e assim escreveu sobre elas, como se escreveria sobre montanhas. A natureza coloca um disfarce quando fala a todo homem, e para este homem vestiu o disfarce de Notting Hill. A natureza significaria para um poeta nascido nas colinas Cumberland, um céu tempestuoso e rochas abruptas. A natureza significaria a um poeta nascido nos planos de Essex, um desperdício de esplêndidas águas e esplêndidos pores do sol. Portanto, a natureza significava para este homem Wayne uma linha de telhados violetas e lâmpadas cor de limão, o claro-escuro da cidade. Ele não acha inteligente ou engraçado elogiar as sombras e as cores da cidade, ele não tinha visto outras sombras ou cores, e assim as elogiou, porque eram sombras e cores. Ele viu tudo isso, porque era um poeta, embora na prática, um mau poeta. Muitos esquecem que, assim como um homem mau é ainda um homem, um mau poeta é ainda um poeta.
O pequeno volume de versos do sr. Wayne foi um fracasso completo, e ele se submeteu à decisão do destino com uma humildade muito racional, voltou para o seu trabalho, que era o de assistente numa loja de roupas, e não escreveu mais. Ele ainda manteve o seu sentimento sobre a cidade de Notting Hill, porque ele não poderia ter qualquer outro sentimento, porque era a parte de trás e a base de seu cérebro. Mas ele não parece ter feito mais nenhuma tentativa particular de expressá-lo ou insistir nisso.
Ele era um verdadeiro místico natural, um dos que vivem na fronteira do país das fadas. Mas ele foi talvez o primeiro a perceber o quão frequentemente os limites do país das fadas atravessam uma cidade lotada. Vinte metros dele (pois era muito míope) os sóis vermelhos, brancos e amarelos dos postes de luz se aglomeravam e se derretiam um nos outros como um pomar de árvores de fogo, o início do bosque da terra dos elfos.
Mas, curiosamente, foi porque ele era um pequeno poeta que teve o seu triunfo estranho e isolado. Foi porque foi um fracasso na literatura que ele se tornou um portento na história inglesa. Ele era um daqueles a quem a natureza havia dado o desejo sem o poder da expressão artística. Ele havia sido um poeta mudo desde do seu berço. Ele poderia ter sido tal até o seu túmulo, e levar na escuridão um tesouro não expresso de música nova e sensacional. Mas nasceu sob a estrela da sorte de uma coincidência única. Passou a ser a cabeça de seu município encardido num momento de brincadeira do Rei, no momento em que todos os municípios foram ordenados subitamente a irromper em bandeiras e flores. Fora da longa procissão dos poetas silenciosos, que passa desde o início do mundo, este homem se viu no meio de uma visão heráldica, onde ele poderia agir, falar e viver liricamente. Enquanto o autor e as vítimas igualmente tratavam a questão toda como uma farsa pública tola, este homem, por levá-la a sério, surgiu de repente num trono de onipotência artística. Armadura, música, estandartes, fogo da guarda, barulho dos tambores, todas as propriedades teatrais foram jogados na sua frente. Este pobre rimador, tendo queimado as suas próprias rimas, começou a viver essa vida de ar livre e poesia em ação que todos os poetas da terra sonharam em vão, a vida para qual a Ilíada é apenas um substituto barato.
Desde sua abstraída infância, Adam Wayne tinha desenvolvido fortemente e silenciosamente uma determinada qualidade ou capacidade, que nas cidades modernas é quase inteiramente artificial, mas que pode ser natural, e era primeiramente quase brutalmente natural nele, a qualidade ou capacidade do patriotismo. Ela existe, assim como as outras virtudes e vícios, em uma certa realidade não diluída. Ela não se confunde com outros tipos de coisas. Uma criança falando de seu país ou a sua aldeia pode cometer cada erro de Mandeville ou dizer cada mentira de Munchausen, mas em sua declaração não haverá mais mentiras psicológicas do que pode haver em uma boa música. Adam Wayne, como um menino, tinha por suas ruas sem graça em Notting Hill o mesmo sentimento antigo e último que veio de Atenas ou Jerusalém. Ele sabia o segredo da paixão, os segredos que tornam reais as antigas canções nacionais que soam tão estranhas para a nossa civilização. Ele sabia que o real patriotismo tende a cantar sobre as dores e esperanças desamparados muito mais do que a vitória. Sabia que nos nomes próprios está metade da poesia de todos os poemas nacionais. E acima de tudo, sabia o fato psicológico supremo sobre patriotismo, tão certamente conectado com este como a timidez que acomete todos os amantes, o fato de que o patriota nunca em nenhuma circunstância se orgulha da grandeza de seu país, mas sempre, e por necessidade, se orgulha da pequenez dele.
Tudo isso ele sabia, não porque ele era um filósofo ou um gênio, mas porque ele era uma criança. Qualquer um que queira subir num cortiço como Pump Street, pode ver um pequeno Adão alegando ser rei de um pavimento de pedra. E sempre vai estar mais orgulhoso se a pedra é quase demasiado estreita para manter os pés dentro dela.
Foi enquanto estava num sonho de batalha defensiva, marcando alguma faixa de rua ou uma fortaleza de passos como o limite do seu clamor arrogante, que o rei o tinha encontrado, e, com algumas palavras atiradas em zombaria, ratificaria por sempre os limites estranhos de sua alma. Daí em diante a ideia fantasiosa da defesa de Notting Hill em guerra tornou-se para ele uma coisa tão sólida como comer, beber ou acender um cachimbo. Ele eliminou suas refeições por isso, alterou seus planos por isso, ficou acordado no meio de várias noites. Duas ou três lojas eram para ele um arsenal, uma área era um fosso; cantos de varandas e voltas de degraus de pedra eram pontos para a localização de uma colubrina ou um arqueiro. É quase impossível transmitir a qualquer imaginação comum o grau em que ele havia transformado a paisagem de chumbo de Londres em ouro romântico. O processo começou quase na primeira infância, e tornou-se habitual como uma loucura literal. Sentiu mais intensamente à noite, quando Londres é realmente ela mesma, quando suas luzes brilham no escuro como os olhos de gatos inumeráveis, e o contorno das casas escuras tem a ousada simplicidade de colinas azuis. Mas para ele a noite revelou, em vez de esconder, e ele leu todas as horas em branco da manhã e à tarde, em uma frase contraditória, à luz da escuridão. Para este homem, de qualquer forma, o inconcebível havia acontecido. A cidade artificial tinha se tornado para ele a natureza, e sentiu as pedras do meio-fio e as lâmpadas de gás como coisas tão antigas quanto o céu.
Um exemplo pode ser suficiente. Caminhando ao longo de Pump Street com um amigo, ele disse, enquanto olhava sonhadoramente para a grade de ferro de um jardim pouco a frente:
— Como aquelas cercas agitam o sangue de uma pessoa!
Seu amigo, que também era um grande admirador intelectual, olhou diligentemente, mas sem qualquer emoção particular. Ficou tão preocupado com isso que voltou um grande número de vezes em noites calmas e olhou para a cerca, esperando que algo acontecesse com o seu sangue, mas sem sucesso. Por fim, perguntou a Wayne. Ele descobriu que o êxtase estava num ponto que nunca tinha notado a respeito da cerca, mesmo depois de suas seis visitas, o fato de que eram, como a grande maioria em Londres, afiadas no topo, à maneira de uma lança. Quando uma criança, Wayne tinha inconscientemente as comparada com as lanças nas imagens de Lancelot e St. George, e cresceu sob a sombra desta associação gráfica. Agora, sempre que olhava para elas, eram simplesmente as armas cerradas que faziam uma cobertura de aço em volta das casas sagradas de Notting Hill. Ele não podia limpar a sua mente deste significado mesmo que tentasse. Não era uma comparação fantasiosa, ou algo assim. Não é que as familiares cercas lembravam lanças, seria muito mais verdadeiro dizer que as familiares lanças ocasionalmente lembravam cercas.
Alguns dias depois de sua entrevista com o Rei, Adam Wayne andava como um leão enjaulado na frente de cinco lojas que ocupavam a extremidade superior da disputada rua. Eram uma mercearia, uma farmácia, uma barbearia, uma loja de velhas curiosidades e uma loja de brinquedos, que também vendia jornais. Foram estas cinco lojas que sua meticulosidade infantil selecionou pela primeira vez como os pontos essenciais da campanha de Notting Hill, a cidadela da cidade. Se Notting Hill era o coração do universo, e Pump Street era o coração de Notting Hill, este era o coração de Pump Street. O fato delas serem todas pequenas e uma ao das outras realizava o sentimento de conforto formidável e compacto que, como já dissemos, era o coração do seu patriotismo, e de todo o patriotismo. O merceeiro (que tinha licença para vinho e aguardentes) foi incluído porque podia fornecer provisões à guarnição; a loja de velhas curiosidades porque continha espadas suficientes, pistolas, alabardas, bestas e bacamartes para armar um regimento irregular inteiro; a loja de brinquedos e jornais porque Wayne considerava uma imprensa livre um centro essencial para a alma de Pump Street; a farmácia para lidar com surtos de doenças entre os sitiados; e o barbeiro porque estava no meio de todo o resto, e filho do barbeiro era um amigo íntimo com afinidade espiritual.
Era uma noite sem nuvens de outubro passando do púrpura até a pura prata ao redor dos telhados e chaminés da rua pouco íngreme, que parecia preta, afiada e dramática. Nas sombras profundas as frentes iluminadas a gás as lojas brilhavam como cinco fogos em uma fileira e, antes deles, obscuramente esboçado como um fantasma contra fornos do purgatório, passava de lá para cá a alta figura, como um pássaro com nariz de águia, de Adam Wayne.
Ele balançava seu bastão inquieto e parecia intermitentemente falar sozinho:
— Há, afinal, enigmas, mesmo para o homem que tem fé. Há dúvidas que permanecem mesmo depois que a verdadeira filosofia é concluída em cada degrau e rebite. E este é um deles. Será que a necessidade do ser humano normal, a condição humana normal, é maior ou menor do que os estados especiais da alma que clamam por uma glória duvidosa e perigosa? Esses poderes especiais do conhecimento ou do sacrifício que são possíveis apenas pela existência do mal? Qual deve vir primeiro para a nossas afeições, as sanidades duradouras da paz ou as virtudes meio maníacas de batalha? O que deve vir em primeiro lugar, o grande homem no cotidiano ou o grande homem na emergência? O que deve vir em primeiro lugar, para voltar ao enigma diante de mim, o dono da mercearia ou da farmácia? O que é mais certamente a estadia da cidade, o rápido cavalheiresco farmacêutico ou o benigno provedor merceeiro? Nessas últimas dúvidas espirituais, só é possível escolher um lado pelos instintos mais elevados, e para terminar a questão. Em qualquer caso, fiz a minha escolha. Que seja perdoado se escolho errado, mas escolho o merceeiro.
— Bom dia, senhor — disse o merceeiro, que era um homem de meia-idade, parcialmente calvo, com duros bigodes vermelhos e barba, a testa alinhada com todos os cuidados de um pequeno comerciante. — O que eu posso fazer por você, senhor?
Wayne tirou o chapéu ao entrar na loja, com um gesto cerimonioso, que, embora ligeiro, fez o comerciante olhá-lo com um pouco de espanto.
— Venho, Senhor — disse ele sobriamente —, apelar ao seu patriotismo.
— Por que, senhor — disse o dono da mercearia —? Isto soa como os tempos em que era um menino e estávamos habituados a ter eleições.
— Vamos tê-las novamente — disse Wayne, com firmeza — e coisas muito maiores. Escute, Sr. Mead. Sei as tentações decorrentes da filosofia muito cosmopolita de um merceeiro. Posso imaginar o que é sentar todos os dias cercado com mercadorias de todos os confins da terra, dos mares estranhos que nunca navegamos e florestas estranhas que não poderia mesmo visualizar. Nenhum rei Oriental já teve tais navios ou tais cargas provenientes do nascer e do pôr do sol, e Salomão, em toda a sua glória, não era rico como um de vocês. A Índia está em seu cotovelo — gritou ele, levantando a voz e apontando seu bastão para uma gaveta de arroz, enquanto o dono da mercearia fazia um movimento de algum alarme —, a China está diante de você, Demerara atrás de você, a América acima de sua cabeça e, neste momento, como um velho almirante espanhol, tem Túnis em suas mãos.
O sr. Mead deixou cair a caixa de tâmaras que estava levantando, e depois pegou-a novamente vagamente.
Wayne continuou com uma cor intensa, mas voz baixa:
— Digo, sei das tentações da visão de uma riqueza tão internacional, tão universal. Sei que não periga cair na estreiteza mecânica e empoeirada, como muitos comerciantes, mas sim ser muito amplo, ser muito geral, muito liberal. Se um nacionalismo estreito é o perigo do pasteleiro, que faz suas próprias mercadorias sob seus próprios céus, não menos é o cosmopolitismo o perigo do merceeiro. Mas venho a ti em nome do patriotismo que nem andanças ou iluminações nunca devem extinguir completamente, e peço que se lembre de Notting Hill. Pois, afinal, nesta magnificência cosmopolita, ela tem desempenhado um papel importante. As tâmaras podem vir das palmeiras da Berberia, o açúcar das ilhas estranhas dos trópicos, o seu chá das aldeias secretas do Império do Dragão. Para que este quarto fosse mobiliado, florestas podem ter sido devastadas sob o Cruzeiro do Sul, e leviatãs trespassados sob a Estrela Polar. Mas você mesmo, certamente não desprezível tesouro, o cérebro que maneja estes vastos interesses, ganhou pelo menos força e sabedoria entre essas casas cinzentas e sob este céu chuvoso. Esta cidade que lhe fez e, assim, que fez sua fortuna, está ameaçada de guerra. Venha e diga para os confins da terra esta lição. O petróleo é do Norte e frutos do Sul; o arroz da Índia e especiarias do Ceilão; ovelhas da Nova Zelândia e os homens de Notting Hill.
O merceeiro sentou-se por alguns momentos, com olhos fracos e boca aberta, parecendo um pouco um peixe. Em seguida, coçou a parte de trás de sua cabeça, e não disse nada. Então disse:
— Algo da loja, senhor?
Wayne olhou em volta de uma maneira confusa. Vendo uma pilha de latas de pedaços de abacaxi, apontou com o bastão em direção a elas.
— Sim — ele disse. — Vou levar estes.
— Todos estes, senhor? — disse o dono da mercearia, com interesse muito maior.
— Sim, sim, todos estes — respondeu Wayne, ainda um pouco confuso, como um homem que recebeu um banho de água fria.
— Muito bem, senhor, muito obrigado, senhor — disse o dono da mercearia com animação. — Pode contar com o meu patriotismo, senhor.
— Já conto com ele — disse Wayne, e saiu para se encontrar com a noite.
O merceeiro colocou a caixa de tâmaras de volta no seu lugar.
— Que pessoa agradável! É estranho como muitas vezes eles são agradáveis. Muito mais agradáveis do que aqueles que estão bem.
Enquanto isso, Adam Wayne ficou de fora na farmácia brilhante, vacilando de forma inconfundível.
— Que fraqueza! — murmurou. — Nunca me livrei dela desde a infância - o medo desta loja mágica. O merceeiro é rico, romântico, poético, no verdadeiro sentido, mas não é sobrenatural. Mas o farmacêutico! Todas as outras lojas estão em Notting Hill, mas esta está na terra dos elfos. Olhe para essas grandes taças coloridas queimando. Deve ser com elas que Deus pinta o pôr do sol. Ele é sobre-humano e o sobre-humano é tanto mais estranho quando é beneficente. Essa é a raiz do medo de Deus. Estou com medo. Mas devo ser um homem e entrar.
Ele era um homem, e entrou. Um rapaz baixo e moreno estava atrás do balcão com os óculos, e o cumprimentou com um sorriso brilhante mas inteiramente comercial.
— Uma boa noite, senhor — disse ele.
— Boa realmente, estranho pai — disse Adam, esticando suas mãos um pouco para a frente. — É nessas noites claras e suaves que sua loja se sobressai. Pois aparecem mais perfeitas, essas luas de verde, dourado e vermelho, que guiam de longe o peregrino da dor e da doença a esta casa de feitiçaria misericordiosa.
— Posso arranjar-lhe algo? — perguntou o farmacêutico.
— Deixe-me ver — disse Wayne, de forma amigável, mas vago. — Algum sal volátil.
— Uma garrafa de oito, dez ou dezesseis pences? — disse o jovem, jovialmente.
— Dezesseis, dezesseis — respondeu Wayne, com uma submissão selvagem. — Eu vim para perguntar-lhe, Sr. Bowles, uma pergunta terrível.
Ele parou e se recompôs.
— É necessário — ele murmurou —, é necessário ser diplomático, e de acordo com o apelo de cada profissão.
— Eu vim — retomou em voz alta — para fazer uma pergunta que vai de encontro com as raízes de suas labutas milagrosas, Sr. Bowles. Deve toda essa magia cessar? — E acenou com o bastão em torno da loja.
Não encontrando nenhuma resposta, continuou com animação:
— Em Notting Hill sentimos até no amago o mistério élfico de sua profissão. E agora Notting Hill está ameaçada.
— Algo mais, senhor? — perguntou o farmacêutico.
— Oh — disse Wayne, um pouco perturbado. Oh, o que é que os farmacêuticos vendem? — Quinino, acho. Obrigado. Deseja ser destruído? Conheci esses homens de Bayswater e North Kensington, sr. Bowles, eles são materialistas. Eles não veem nenhuma bruxaria no seu trabalho, mesmo quando é feito dentro de suas próprias fronteiras. Acham que o farmacêutico é comum. Eles pensam que ele é humano.
O farmacêutico pareceu fazer uma pausa, só um momento, recebeu o insulto, e imediatamente disse:
— E o próximo artigo, por favor?
— Alúmen — disse o superintendente, descontroladamente. — Recomeçando... É apenas nesta cidade sagrada que seu sacerdócio é reverenciado. Portanto, quando luta por nós não luta apenas para si, mas por tudo o que simboliza. Luta, não só por Notting Hill, mas pela terra das fadas, pois tão certo como Buck, Barker e tais homens se fortalecem, o sentido da terra das fadas, de alguma maneira estranha, diminui.
— Algo mais, senhor? — perguntou o Sr. Bowles, com alegria ininterrupta.
— Ah, sim, jujubas, purgante, magnésia. O perigo é iminente. Em todo este assunto senti que lutei não apenas pela minha própria cidade (apesar de que devo a ela todo o meu sangue), mas por todos os lugares em que estas grandes ideias poderiam prevalecer. Estou lutando não apenas por Notting Hill, mas por Bayswater, por North Kensington. Pois, se os caçadores de ouro prevalecerem, estes também perderão todos os seus antigos sentimentos e todo o mistério de sua alma nacional. Sei que posso contar com você.
— Ah, sim, senhor — disse o farmacêutico, com grande animação —, estamos sempre contentes de ajudar um bom cliente.
Adam Wayne saiu da loja com um profundo senso de realização na alma.
— É muita sorte — disse ele —, ter tato, para ser capaz de contar com os talentos peculiares e especialidades, do cosmopolitismo da mercearia e da necromancia do velho mundo do farmacêutico. Onde estaria sem tato?
Capítulo II - O Notável sr. Turnbull
Após mais duas entrevistas com homens das lojas, no entanto, a confiança do patriota em sua própria diplomacia psicológica começou a minguar vagamente. Apesar do cuidado com que considerava a lógica peculiar e a glória peculiar de cada loja separadamente, parecia haver algo que não respondia nos homens das lojas. Se era um ressentimento obscuro contra o não-iniciado bisbilhotando sua magnificência maçônica, ele não conseguia conjecturar.
Sua conversa com o homem que mantinha a loja de curiosidades começou encorajadora. O homem que mantinha a loja de curiosidades tinha, de fato, o encantado com uma frase. Ele estava de pé tristemente à porta de sua loja, um homem enrugado com uma barba grisalha pontuda, evidentemente, um cavalheiro que tinha descido no mundo.
— E como é que vai o seu comércio, estranho guardião do passado? — disse Wayne, afavelmente.
— Bem, senhor, não muito bem — respondeu o homem, com a voz paciente de sua classe, que é uma das coisas mais comoventes do mundo. — As coisas estão terrivelmente quietas.
Os olhos de Wayne brilharam de repente.
— Um grande provérbio, digno de um homem cuja mercadoria é a história humana: Terrivelmente quieto. Estas duas palavras são o espírito desta época, como senti desde meu berço. Às vezes, perguntei-me quantas outras pessoas sentiam a opressão dessa união entre quietude e terror. Vejo bem ordenadas ruas brancas e homens de preto que se deslocam nelas inofensivos e mal-humorados. Isso continua dia após dia, dia após dia, e não acontece nada, mas para mim é como um sonho do qual poderia acordar gritando. Para mim, a retidão de nossa vida é a retidão de um cordão esticado. Seu silêncio é terrível. Pode estalar com um barulho de um trovão. E você que se senta no meio dos escombros das grandes guerras, você que se senta , por assim dizer, em cima de um campo de batalha, sabe que a guerra era menos terrível do que esta paz maligna, sabe que os rapazes ociosos que portavam espadas sob Francis ou Elizabeth, o rude fidalgo ou barão, que balançavam aquela maça nas batalhas de Picardy ou Northumberland, podem ter sido terrivelmente barulhentos, mas não eram como nós, terrivelmente quietos.
Seja por um fraco embaraço de consciência quanto à fonte original e data das referidas armas, ou simplesmente uma enraizada depressão, o guardião do passado olhou um pouco mais preocupado.
— Mas não acho — continuou Wayne — que este silêncio horrível da modernidade vai durar, embora acho que por enquanto vai aumentar. Que farsa é essa liberalidade moderno! Liberdade de expressão significa, na prática, em nossa civilização moderna, que devemos falar apenas sobre coisas sem importância. Não devemos falar sobre religião, porque é antiliberal; não devemos falar de pão e queijo, porque estamos falando de compras; não devemos falar sobre a morte, porque é deprimente; é preciso não falar sobre o nascimento, porque é indelicado. Não pode continuar. Algo deve quebrar essa indiferença estranha, este estranho egoísmo sonhador, esta solidão estranha de milhões de pessoas em uma multidão. Algo deve quebrá-lo. Por que não você e eu? Não pode fazer nada além de guardar relíquias?
O lojista mostrou uma expressão clareando gradualmente, o que teria levado os antipáticos à causa do Leão Vermelho a pensar que a última frase foi a única frase para a qual ele havia anexado qualquer significado.
— Eu sou um pouco velho para entrar em um novo negócio — disse ele — e não sei bem o que seria de qualquer forma.
— Por que não... — disse Wayne, gentilmente tendo atingido o cume de sua delicada persuasão — Por que não um coronel?
Foi neste momento, com toda a probabilidade, que a entrevista começou a produzir resultados mais decepcionantes. O homem parecia inclinado a considerar a sugestão de se tornar um coronel como fora da esfera de discussão imediata e relevante. A longa exposição da inevitável guerra da independência, juntamente com a compra de uma duvidosa espada do século XVI por um preço exagerado, pareceu reassentar os assuntos. No entanto, Wayne saiu da loja um pouco infectado com a melancolia de seu proprietário.
A melancolia foi completada no barbeiro.
— Barba, senhor? — perguntou o artista de dentro de sua loja.
— Guerra! — respondeu Wayne, em pé na soleira.
— Como? — disse o outro, bruscamente.
— Guerra! — disse Wayne, calorosamente. — Mas não para algo incompatível com a beleza e as artes civilizadas. Guerra pela beleza. Guerra pela sociedade. Guerra pela paz. Uma grande oportunidade é oferecida para repelir a calúnia que, em desafio a vida de tantos artistas, atribui poltronaria para aqueles que embelezam e pulem a superfície de nossas vidas. Por que não podem cabeleireiros ser heróis? Por que não...
— Agora, saia! — disse o barbeiro, irascível. — Não queremos alguém do seu tipo aqui. Saia!
E avançou com a contrariedade desesperada de uma pessoa suave quando enfurecida.
Adam Wayne colocou a mão por um momento sobre a espada, então a soltou.
— Notting Hill — disse ele — precisará de seus filhos mais ousados — e virou-se tristemente para a loja de brinquedos.
Era uma daquelas pequenas lojas estranhas tão constantemente vistas nas ruas de Londres, que só devem ser chamados de lojas de brinquedos só porque brinquedos predominam sobre o todo, pois o restante das mercadorias parecem consistir de quase tudo no mundo. De tabaco, livros de exercício, doces, novelas, clipes de papel, apontadores baratos, cordões de botas e fogos de artifício baratos. Também vendia jornais, e uma fileira de cartazes de aparência suja pendurada ao longo da frente.
— Estou com medo — disse Wayne, quando entrou — que não estou lidando com esses comerciantes como deveria. Será que negligenciei o pleno significado do trabalho deles? Existe algum segredo enterrado em cada uma dessas lojas que nenhum mero poeta pode descobrir?
Ele deu um passo para o balcão com uma depressão que rapidamente dominou quando abordou o homem no outro lado — um homem de baixa estatura e cabelo prematuramente branco, e a aparência de um grande bebê.
— Senhor — disse Wayne —, estou indo de casa em casa nesta nossa rua, buscando despertar algum senso do perigo que ameaça agora a nossa cidade. Em nenhum lugar senti meu dever tão difícil quanto aqui. Pois o lojista da loja de brinquedo tem tudo o que nos resta do Éden antes das primeiras guerras começar. Senta aqui meditando continuamente sobre os desejos do tempo maravilhoso em que toda escada levava para as estrelas, e todos os jardins eram caminhos para a outra extremidade da Terra do Nunca. Acha que é impensado que eu bata o velho e escuro tambor do perigo no paraíso das crianças? Mas considere um momento, não me condene às pressas. Mesmo o próprio paraíso contém o rumor ou início desse perigo. Assim como o Éden que foi feito perfeito continha a terrível árvore. Para julgar a infância, mesmo pelo seu próprio arsenal de prazeres, você mantém tijolos; sem dúvida para o testemunho do instinto construtivo mais velho do que o destrutivo. Você mantém bonecas, você torna-se o sacerdote dessa a idolatria divina. Você mantém Arcas de Noé; perpetua a memória da salvação de toda a vida como um bem precioso, uma coisa insubstituível. Mas, senhor, mantém apenas os símbolos desta sanidade pré-histórica, esta racionalidade infantil da terra? Não mantém as mais terríveis? Que são essas caixas, aparentemente de soldados de chumbo, que vejo nessa caixa de vidro? Não são testemunhas de que o terror e a beleza, que o desejo de uma morte linda, não pode ser excluídos até mesmo da imortalidade do Éden? Não despreze os soldadinhos de chumbo, Sr. Turnbull.
— Não desprezo — disse Turnbull, da loja de brinquedos, brevemente, mas com grande ênfase.
— Estou feliz em ouvir isso — respondeu Wayne. — Confesso que temi por meus planos militares a inocência terrível de sua profissão. O que, pensei comigo mesmo, será que este homem habituado apenas com espadas de madeira que dão prazer, pensará sobre as espadas de aço que dão dor? Mas estou pelo menos em parte tranquilizado. Seu tom sugere-me que tenho pelo menos a entrada de um portão da terra das fadas — o portão através do qual os soldados entram, isso não se pode negar — devo, senhor, não mais negar, que é de soldados que vim falar. Permita que o seu emprego suave o faça misericordioso para com os problemas do mundo. Permita que a sua própria experiência prateada diminua as nossas tristezas sanguíneas. Pois há guerra em Notting Hill.
O mantenedor da loja de brinquedo pulou de repente, batendo as mãos gordas sobre o balcão.
— Guerra? — ele gritou. —Verdade, senhor? É verdade? Oh, que piada! Oh, que vista para os olhos cansados!
Wayne foi surpreso por essa explosão.
— Estou muito contente — gaguejou. — Não tinha noção.
Ele se pôs para fora do caminho a tempo de evitar Turnbull, que deu um salto sobre o balcão e correu para a frente da loja.
— Olhe aqui, senhor — disse ele —, olhe aqui.
Voltou com dois dos cartazes rasgados que estavam do lado de fora de sua loja na mão.
— Olhe para eles, senhor — disse ele, e atirou-os no balcão.
Wayne inclinou-se sobre eles, e leu sobre um
No outro lado, leu:
Wayne inclinou-se sobre eles novamente, evidentemente confuso, então olhou para as datas. Eles eram ambos de agosto, 15 anos antes.
— Por que mantém essas coisas antigas? — disse ele assustado, inteiramente fora de seu absurdo tato de misticismo. — Por que as pendura do lado de fora de sua loja?
— Porque — disse o outro, simplesmente — são registros da última guerra. Você mencionou guerra agora. Acontece ser o meu hobby.
Wayne ergueu os grandes olhos azuis com uma admiração infantil.
— Venha comigo — disse Turnbull, bruscamente, e levou-o para uma sala na parte de trás da loja. No centro da sala havia uma grande mesa. Nela foram estabelecidas linhas e linhas de soldadinhos de chumbo e estanho que faziam parte do estoque do lojista. O visitante não teria reparado nisso se não houvesse um certo agrupamento estranho deles, que não parecia nem inteiramente comercial ou totalmente casual.
— Você está familiarizado, sem dúvida — disse Turnbull, virando os olhos grandes em cima de Wayne —, com a disposição das tropas americanas e da Nicarágua na última batalha — e acenou com a mão para a mesa.
— Receio que não — disse Wayne. — Eu...
— Ah! Estava ocupado demais na época, talvez, com o caso Dervixe. Vai encontrá-lo neste canto — apontou para uma parte do chão onde havia um outro arranjo de soldados de criança agrupados aqui e ali.
— Parece — disse Wayne — estar interessado em assuntos militares.
— Não estou interessado em nada mais — respondeu o mantenedor da loja de brinquedos, simplesmente.
Wayne pareceu convulsionado com uma singular, suprimida emoção:
— Nesse caso, posso me aproximar com um grau incomum de confiança. Sobre a questão da defesa de Notting Hill, eu...
— Defesa de Notting Hill? Sim, senhor. Aqui, senhor — disse Turnbull, com grande perturbação. — Basta entrar neste quarto ao lado — e levou Wayne a outro quarto, onde a mesa estava totalmente coberta com um arranjo de tijolos de crianças. Um segundo olhar mostrou a Wayne que os tijolos foram dispostos na forma de um plano preciso e perfeito de Notting Hill. — Senhor — disse Turnbull, impressionantemente —, por um tipo de acidente, descobriu o segredo da minha vida. Como um menino, cresci entre as últimas guerras do mundo, quando a Nicarágua foi tomada e os dervixes exterminados. E a adotei como um hobby, senhor, como pode adotar a astronomia ou a taxidermia. Não tinha má vontade contra qualquer um, mas estava interessado na guerra como uma ciência, como um jogo. E de repente estava excluído. As grandes potências do mundo, depois de ter engolido todos as pequenas, chegaram a esse acordo confuso, e não houve mais guerra. Não havia nada mais para fazer, exceto o que faço agora, ler sobre as antigas campanhas em velhos jornais sujos, e recriá-las com soldadinhos de chumbo. Uma outra coisa me ocorreu. Pensei que seria uma fantasia divertida fazer um plano de como nosso distrito poderia ser defendido se fosse atacado. Isto parece interessá-lo também.
— Se fosse atacado — repetiu Wayne, admirado com uma enunciação quase mecânica. — Turnbull, ele será atacado. Graças a Deus, estou trazendo a pelo menos um ser humano, a notícia que é no fundo a única boa notícia para qualquer filho de Adão. Sua vida não tem sido inútil. Seu trabalho não tem sido um jogo. Agora, quando o cabelo já está grisalho, Turnbull, você terá a sua juventude. Deus não a destruiu, ele apenas a adiou. Vamos nos sentar aqui, e você deve explicar-me este mapa militar de Notting Hill. Pois eu e você temos que defender Notting Hill juntos.
Turnbull olhou para o outro por um momento, hesitou, e depois sentou-se ao lado dos tijolos e do desconhecido. Não levantou por sete horas, quando amanheceu.
A sede do superintendente Adam Wayne e seu comandante-em-chefe consistia de uma pequena leiteria sem muito sucesso na esquina de Pump Street. A manhã branca havia apenas começado a romper sobre os edifícios brancos de Londres quando Wayne e Turnbull estavam sentados na suja e sombria loja. Wayne tinha algo feminino em seu caráter, pertencia a essa categoria de pessoas que esquecem suas refeições quando estão fazendo algo interessante. Não tinha comido nada por 16 horas, exceto copos apressados de leite, e, com um copo vazio ao lado dele, estava escrevendo, desenhando, pontilhando e cruzando com inconcebível rapidez um lápis em um pedaço de papel. Turnbull era do tipo mais masculino, no sentido que a responsabilidade aumentava seu apetite, e com o seu mapa esboçado ao lado dele estava lidando vigorosamente com uma pilha de sanduíches de um pacote de papel, e uma caneca de cerveja da taberna do lado oposto, cuja persianas tinham acabado de serem fechadas. Nenhum deles falou, e não havia nenhum som no silêncio vivo, exceto o riscar do lápis de Wayne e o guinchar de um gato sem rumo. Finalmente Wayne quebrou o silêncio, dizendo:
— Dezessete libras, oito xelins e nove pences.
Turnbull assentiu e levou a caneca à cabeça.
— Isso — disse Wayne — não conta as cinco libras de ontem. O que fez com elas?
— Ah, isso é muito interessante! — respondeu Turnbull, com a boca cheia. — Usei essas cinco libras num ato gentil e filantrópico.
Wayne estava olhando com mistificação em seus olhos estranhos e inocentes.
— Usei estas cinco libras — continuou o outro — para dar a para não menos do que quarenta menininhos passeios em táxis londrinos.
— Está louco? — perguntou o superintendente
— É apenas o meu leve toque — respondeu Turnbull. — Esses passeios de táxi vão elevar o tom (elevar o tom, meu querido companheiro) dos nossos jovens de Londres, ampliar seus horizontes, preparar seus sistemas nervosos, torná-los familiarizados com os vários monumentos públicos de nossa grande cidade. Educação, Wayne, educação. Quantos excelentes pensadores apontam que a reforma política é inútil até que tenhamos uma população culta. Assim daqui a vinte anos, quando esses meninos estiverem crescidos...
— Louco! — disse Wayne soltando o lápis. — E com menos cinco libras!
— Está errado — explicou Turnbull. — Criaturas graves como você nunca entendem o quão mais rápido o trabalho realmente se passa com a ajuda de boas refeições e o absurdo. Despojada de belezas decorativas, a minha declaração era estritamente precisa. Ontem à noite dei 40 meias-coroas a 40 meninos, e os enviei por toda a Londres para tomar cabriolés. Disse-lhes, a cada um para dizer ao taxista para levá-los a este lugar. Em meia hora a partir de agora a declaração de guerra será afixada. Ao mesmo tempo que os táxis vão começaram a entrar, você vai ordenar a guarda, os meninos vão chegar em bloco, vamos mandar os cavalos para a cavalaria, usar os táxis de barricada, e dar aos homens a escolha entre servir em nossas fileiras e a detenção em nossas cavas e adegas. Os meninos podemos usar como batedores. O principal é que vamos começar a guerra com uma vantagem desconhecida aos outros exércitos: cavalos. E agora — disse terminando sua cerveja — vou inspecionar as tropas.
E ele saiu da leiteria, deixando o superintendente olhando.
Um ou dois minutos depois, o superintendente riu. Ele só riu uma ou duas vezes em sua vida, e o fez de uma forma estranha, como se fosse uma arte que não tinha dominado. Mesmo ele viu algo engraçado no golpe absurdo das meias-coroas e os pequenos meninos. Ele não viu o absurdo monstruoso de toda a política e toda a guerra. Ele apreciou isso a sério como uma cruzada, isto é, bem mais do que qualquer piada pode ser apreciada. Turnbull gostou em parte como uma piada, mais ainda, talvez, como uma reversão das coisas que ele odiava — a modernidade, a monotonia e a civilização. Para quebrar o vasto maquinário da vida moderna e usar os fragmentos como máquinas de guerra, usar ônibus como barricadas e chaminés como pontos de observação, era para ele um jogo que valia risco e problemas infinitos. Ele teve aquela preferência racional e deliberada que será sempre problemas para a paz do mundo, a preferência racional e deliberada por uma vida curta e alegre.
Um pedido sincero e eloquente foi enviado para o rei assinado com os nomes de Wilson, Barker, Buck, Swindon e outros. O pedido era que na próxima conferência a ser realizada na presença de Sua Majestade sobre a disposição final das propriedades em Pump Street, com todo o decoro político e com o respeito indizível que mantinham por sua Majestade, que eles pudessem vir vestidos normalmente, sem o traje designado para eles como superintendentes. Assim aconteceu que a companhia apareceu no conselho em casacos e que o próprio rei limitou seu amor a cerimônia ao aparecer (depois de sua forma usual), de vestido de noite com uma insígnia de uma ordem — neste caso não da Ordem da Jarreteira1, mas o botão do Clube de melhores amigos do velho Clipper, uma decoração obtida (com dificuldade) a partir de uma publicação infantil de meio penny. Assim também aconteceu que o único toque de cor na sala era Adam Wayne, que entrou com grande dignidade usando grandes vestes vermelhas e uma grande espada.
— Nós nos encontramos — disse Auberon — para decidir o mais árduo dos problemas modernos. Que possamos ser bem sucedidos — e sentou-se gravemente.
Buck virou a cadeira levemente, e cruzou as pernas.
— Sua Majestade — disse ele, muito bem-humorado — só há uma coisa que eu não consigo entender: por que este assunto não pode ser resolvido rapidamente? Aqui está uma pequena propriedade que vale mil para nós e não vale cem para qualquer outra pessoa. Nós oferecemos mil. Não é um bom negócio, pois deveríamos conseguir por menos, não é razoável e não é justo para nós, mas não vejo qual é a dificuldade.
— A dificuldade pode ser explicada facilmente — disse Wayne. — Podem oferecer um milhão e ainda não terão Pump Street.
— Mas escute, Sr. Wayne — gritou Barker, golpeando com fria emoção. — Escute bem. Não tem o direito de assumir uma posição como essa. Pode barganhar por um preço maior, mas não está fazendo isso. Está recusando o que você, e qualquer homem são, sabe ser uma oferta esplêndida simplesmente por malícia ou rancor - deve ser malícia ou rancor. E isso é realmente criminoso, é contra o interesse público. O Governo do Rei poderia justificadamente forçá-lo.
Com os dedos magros espalhados sobre a mesa, olhava ansiosamente para o rosto de Wayne, que não se mexeu.
— Poderia forçá-lo… — repetiu.
— E o fará — disse Buck, breve, voltando-se para a mesa. — Fizemos o melhor para ser decentes.
Wayne levantou os grandes olhos lentamente:
— Foi o Lorde Buck, quem disse que o rei da Inglaterra ‘fará’ algo?
Buck corou e disse, irritado:
— Quero dizer que deveria. Como disse, fizemos o nosso melhor para ser generosos. Desafio qualquer um a negar. Sr. Wayne, não quero ser grosseiro, mas permita-me dizer que você deveria estar na prisão. É criminoso parar obras públicas por um capricho. Senão, com o mesmo direito que você almeja, um homem poderia também queimar dez mil cebolas em seu jardim da frente ou fazer suas crianças correr nuas na rua. Pessoas foram obrigadas a vender antes. O rei pode obrigá-lo, e espero que o faça.
— Até que o faça — disse Wayne, calmamente —, o poder e o governo desta grande nação está do meu lado e não do seu, e desafio você a desafiá-los.
—Em que sentido — gritou Barker, com os olhos e as mãos febris —, o Governo está do seu lado?
Com um movimento, Wayne desenrolou um grande pergaminho sobre a mesa. Ele foi decorado nas laterais com esboços de aquarela de sacristões em coroas e grinaldas.
— A Carta das Cidades... — começou.
Buck lançou uma imprecação brutal e riu:
— Essa tola piada. Já não tínhamos o suficiente...
— E aí você fica — gritou Wayne, erguendo-se com uma voz como de trombeta — sem argumentos, insultando o rei diante do seu rosto.
Buck ergueu-se também com os olhos ardentes:
— Sou difícil de intimidar... — começou. Mas as palavras lentas do rei soaram com incomparável gravidade:
— Lorde Buck, devo lembrar-lhe que seu rei está presente. Não é sempre que ele precisa se proteger de seus súditos.
Barker se virou para ele com gestos frenéticos:
— Pelo amor de Deus não apoie o louco agora — implorou. — Deixe sua piada para outra hora. Oh, pelo amor do céus...
— Lorde Superintendente de South Kensington — disse o rei Auberon, firmemente —, não entendo suas observações, que são proferidas com uma velocidade incomum na corte. Nem seus bem-intencionados esforços para transmitir o resto com os dedos me ajuda materialmente. Digo que o Lorde Superintendente de North Kensington, a quem falava, não deve, na presença de seu soberano, falar desrespeitosamente de ordenanças de seu soberano. Discorda?
Barker se moveu inquieto na cadeira, e Buck amaldiçoou sem falar. O rei prosseguiu em um tom de voz satisfeito:
— Lorde Superintendente de Notting Hill, prossiga.
Wayne voltou seus olhos azuis para o Rei, e para a surpresa de todos, não aparecia neles triunfo, mas uma certa angústia infantil:
— Sinto muito, vossa majestade, temo que eu seja mais que igualmente culpado que o Lorde Superintendente de North Kensington. Estávamos debatendo um pouco ansiosos, e ambos nos excedemos. Fiz isso primeiro, tenho vergonha de dizer. O Superintendente de North Kensington é, portanto, relativamente inocente. Rogo a Vossa Majestade para direcionar a sua repreensão principalmente a mim. O Sr. Buck não é inocente, pois ele falou, sem dúvida, no calor do momento, de maneira desrespeitosa. Mas no resto da discussão, ele pareceu-me ter conduzido com ótimo temperamento.
Buck parecia genuinamente satisfeito, pois homens de negócio são todos sérios e focados, e, portanto, têm certo grau de comunhão com fanáticos. O Rei, por alguma razão, parecia, pela primeira vez em sua vida, envergonhado.
— Este gentil discurso do Superintendente de Notting Hill — começou Buck, agradavelmente —, parece-me mostrar que temos pelo menos uma relação amistosa. Agora veja, Sr. Wayne. Quinhentas libras lhe foram oferecidas por um imóvel que admite não valer cem. Bem, sou um homem rico e ainda sou generoso. Digamos mil e quinhentas libras, fechamos negócio e apertamos as mãos — e levantou-se, brilhando e rindo.
— Mil e quinhentas libras — sussurrou o Sr. Wilson de Bayswater —, podemos oferecer mil e quinhentas libras?
— Mantenho a oferta — disse Buck, com vontade. — O Sr. Wayne é um cavalheiro e me defendeu. Então suponho que as negociações estão encerradas.
Wayne fez uma reverência:
— Estão realmente encerradas. Sinto muito. Não posso vender a propriedade.
— O que? — gritou o Sr. Barker, levantando-se
— O senhor Buck falou corretamente — disse o rei.
— Sim, falei — gritou Buck, levantando-se também. — Eu disse...
— O senhor Buck falou corretamente — disse o Rei —, as negociações estão encerradas.
Todos os homens da mesa levantaram-se; Wayne sozinho levantou-se sem emoção.
— Então, tenho a permissão de Vossa Majestade para partir? Dei minha última resposta. — Você a tem — disse Auberon, sorrindo, mas sem levantar os olhos da mesa. E em meio a um silêncio mortal, o Superintendente de Notting Hill saiu da sala.
— Bem... — Wilson disse, voltando-se para Barker. — E agora?
Barker balançou a cabeça desesperadamente:
— O homem devia estar em um asilo. Mas uma coisa é clara: não precisamos nos preocupar mais com ele. O homem pode ser tratado como louco.
— É claro — disse Buck, virando-se para ele com uma decisão sombria. — Está completamente certo, Barker. Ele é um bom companheiro, mas deve ser tratado como louco. Vamos colocar de forma simples. Fale com qualquer homem em qualquer cidade, a qualquer médico em qualquer cidade, que há um homem a que ofereceram mil e quinhentas libras por uma coisa que ele poderia vender normalmente por quatrocentos, e que, quando perguntado por um motivo para não aceitar, clama pela santidade inviolável de Notting Hill e a chama de Montanha Sagrada. O que diriam eles? O que mais podemos ter do nosso lado além do senso comum de todos? Sobre o que mais se baseiam as leis? Vou te dizer, Barker, o que é melhor do que qualquer discussão. Vamos enviar operários no local para derrubar Pump Street. E se o velho Wayne disser uma palavra, o prenderemos como um lunático. Isso é tudo.
Os olhos Barker se acenderam:
— Sempre considerei você, Buck, se você não se importa que eu diga, como um homem muito forte. Conte comigo.
— E comigo, é claro — disse Wilson.
Buck se levantou de novo impulsivamente.
— Vossa Majestade — disse ele, brilhando com popularidade —, peço a Vossa Majestade que considere favoravelmente a proposta a que nos comprometemos. A clemência de Vossa Majestade e as nossas próprias ofertas foram em vão para aquele homem extraordinário. Ele pode estar certo. Ele pode ser Deus. Ele pode ser o diabo. Mas achamos que, para fins práticos, o mais provável é que ele está fora de si. A menos que essa suposição seja considerada na prática, todos os assuntos humanos vão ser despedaçados. Nós agimos sobre ela, e propomos o inicio das operações em Notting Hill de uma vez.
O Rei recostou-se na cadeira:
— A Carta das Cidades … — disse ele de forma eloquente.
Mas Buck, recuperando a seriedade, também foi cauteloso, e não mais cometeu o erro do desrespeito.
— Vossa Majestade — disse ele, curvando-se, não estou aqui para dizer uma palavra contra qualquer coisa que vossa Majestade tenha dito ou feito. É um homem muito melhor educado do que eu, e sem dúvida havia razões, com fundamentos intelectuais, para tais processos. Mas posso perguntar-lhe e apelar à sua boa natureza por uma resposta sincera? Quando elaborou a Carta das Cidades, contemplou a ascensão de um homem como Adam Wayne? Esperava que a Carta — seja uma experiência, um esquema de decoração, ou uma piada – - poderia realmente levar a isto? Parar um vasto plano de negócios, fechar uma estrada, estragar as chances de táxis, ônibus, estações de trem, desorganizar metade da cidade, arriscar uma espécie de guerra civil? Quais eram seus objetivos, eram estes?
Barker e Wilson olharam para ele com admiração, o Rei mais admirado ainda.
— Superintendente Buck — disse Auberon —, fala em público incomumente bem. Reconheço isso com a magnanimidade de um artista. Meu esquema não incluía o aparecimento do Sr. Wayne. Ai! Gostaria que minha força poética fosse grande o suficiente.
— Agradeço a Vossa Majestade — disse Buck, com cortesia, mas rapidamente. — As declarações de Vossa Majestade sempre são claras e estudadas, por isso pude deduzir. Como o esquema pretendido, qualquer que fosse, não incluía o aparecimento do Sr. Wayne, irá sobreviver a sua remoção. Por que não nos deixa limpar Pump Street em particular, que interfere com os nossos planos, e que, por declaração própria de Vossa Majestade, não interfere com os vossos.
— Pego! — disse o Rei, com entusiasmo e de forma bastante impessoal, como se estivesse assistindo a uma partida de críquete.
— Este homem, Wayne — continuou Buck —, seria internado por qualquer médico da Inglaterra. Mas só pedimos para que ele seja colocado diante deles. Enquanto isso os interesses de ninguém, nem mesmo com toda a probabilidade os dele, serão realmente prejudicados continuando com as melhorias em Notting Hill. Não nossos interesses, é claro, pois foi um trabalho árduo e calmo de dez anos. Não os interesses de Notting Hill, pois quase todos os seus habitantes educados desejam a mudança. Nem os interesses de vossa Majestade, pois disse, com seu senso característico, que nunca contemplou a ascensão do lunático. Nem mesmo os próprios interesses dele, pois o homem tem um bom coração e muitos talentos, e um par de bons médicos provavelmente seriam melhor para ele do que todas as cidades livres e montanhas sagradas na criação. Por isso, assumo, se posso usar uma palavra tão ousada, que vossa Majestade não vai oferecer nenhum obstáculo para o nosso processo de melhorias.
E o Sr. Buck sentou-se em meio a aplausos suaves mas animados de seus aliados.
— Sr. Buck — disse o Rei —, perdoe-me por diversos pensamentos belos e sagrados, onde você era geralmente classificado como um tolo. Mas há outra coisa a ser considerada. Suponha que envie seus trabalhadores e o Sr. Wayne faça uma ação lamentável, mas que, lamento dizer, acho que ele seja bem capaz — de quebrar-lhes os dentes?
— Pensei nisso, vossa Majestade — disse Buck, tranquilo —, e acho que é simples de se precaver. Vamos enviar uma forte guarda de, digamos, uma centena de homens, uma centena de alabardeiros de North Kensington — sorriu sobriamente — que vossa Majestade aprecia tanto. Ou cento e cinquenta. Imagino que toda a população de Pump Street é de apenas uma centena.
— Ainda assim eles podem juntar-se e dar-lhes uma surra — disse o Rei, em dúvida.
— Então digamos duzentos — disse Buck, alegremente.
— Pode acontecer — disse o Rei, inquieto — que um de Notting Hill lute melhor do que dois de North Kensington.
— Pode — disse Buck, friamente —, então digamos duzentos e cinquenta.
O Rei mordeu o lábio.
— E se ainda forem espancados? — disse violentamente.
— Vossa Majestade — disse Buck recostando-se em sua cadeira —, suponha que consigam. É claro que todas as questões de combate são meras questões de aritmética. Por exemplo, aqui temos cento e cinquenta soldados de Notting Hill. Ou, digamos duzentos. Se um deles pode lutar contra dois, podemos enviar, não quatrocentos, mas seiscentos, e acabamos com eles. Isso é tudo. Está fora de toda probabilidade que qualquer um deles possa lutar contra quatro de nós. Então, o que digo é que não corramos riscos. Acabemos com isso de uma só vez. Enviemos oitocentos homens e esmagamos ele - esmagamos ele quase sem sequer vê-lo. E continuamos com as melhorias.
E o Sr. Buck tirou um lenço e assoou o nariz.
— Sabe sr. Buck — disse o rei, olhando melancolicamente para a mesa —, a clareza admirável de sua razão produz em minha mente um sentimento, espero não ofendê-lo ao descrever como uma aspiração de socar sua cabeça. Irrita-me sublimemente. Que pode ser isto? A relíquia de um senso moral?
— Mas, Majestade — disse Barker, ansiosamente e com suavidade —, não recusa as nossas propostas?
— Meu querido Barker, suas propostas são tão condenáveis como suas maneiras. Não quero ter nada a ver com elas. Suponha que as pare completamente. O que iria acontecer?
Barker respondeu numa voz muito baixa:
— Revolução.
O Rei olhou rapidamente para os homens à volta da mesa. Eles estavam todos olhando para baixo em silêncio: suas sobrancelhas estavam vermelhas.
Levantou-se com uma rapidez surpreendente, e uma palidez incomum:
— Senhores, vocês me venceram. Portanto, posso falar abertamente. Acho que Adam Wayne, que é tão louco como um chapeleiro, vale mais que um milhão de vocês. Mas vocês têm a força, e, admito, o senso comum, e ele está perdido. Levem seus oitocentos alabardeiros e o esmaguem. Embora fosse mais esportivo levar duzentos.
— Mais esportivo — disse Buck, severamente —, mas muito menos humano. Nós não somos artistas, e ruas manchadas de sangue não são uma boa visão.
— É lamentável — disse Auberon. — Com cinco a seis vezes o seu número, não haverá nenhuma luta.
— Espero que não — disse Buck, levantando-se e ajustando suas luvas. — Não desejamos nenhuma luta, Majestade. Somos pacíficos homens de negócios.
— Bem — disse o rei, cansado —, a conferência finalmente terminou.
E saiu da sala antes que qualquer outra pessoa se mexesse.
Quarenta operários, uma centena de alabardeiros de Bayswater, duzentos de South Kensington e trezentos de North Kensington se reuniram ao pé de Holland Walk e marcharam sob a direção geral de Barker, que parecia corado e feliz em traje completo. No final da procissão uma figura pequena e mal-humorado permaneceu como um moleque. Era o rei.
— Barker — disse por fim, apelativo —, você é um velho amigo meu, entende meus passatempos como entendo os seus. Por que não pode deixá-lo sozinho? Tinha esperanças da diversão que pudesse vir deste negócio do Wayne. Por que não pode deixá-lo sozinho? Realmente não importa muito – o que é uma estrada para você? Para mim, é a piada que pode me salvar de pessimismo. Leve menos homens e me divirta por uma hora. Realmente e verdadeiramente, James, se você colecionasse moedas ou colibris, e eu pudesse comprar um com o preço de sua estrada, iria comprá-lo. Coleciono incidentes, aqueles raros, essas coisas preciosas. Deixe-me ter um. Pago algumas libras por ele. Dê a estes habitantes de Notting Hill uma chance. Deixe-os em paz.
— Auberon – disse Barker, gentilmente, esquecendo todos os títulos reais em um raro momento de sinceridade —, compreendo o que você quer dizer. Tive momentos em que esses passatempos me atingiram. Tive momentos em que simpatizava com seus humores. Tive momentos, pode não acreditar facilmente, em que simpatizava com a loucura de Adam Wayne. Mas o mundo, Auberon, o mundo real, não funciona como esses passatempos. Funciona sobre grandes rodas brutais de fatos – rodas em que você é a borboleta, e Wayne é a mosca na roda.
Os olhos de Auberon se fixaram francamente nos de Baker:
— Obrigado, James. O que diz é verdade. É só um consolo entre parênteses para eu comparar a inteligência de moscas favoravelmente com a inteligência das rodas, mas é da natureza das moscas morrer logo, e da natureza de rodas andar para sempre. Vá em frente com a roda. Adeus, meu velho.
E James Barker continuou, rindo, com a tez corada, batendo o bambu em sua perna.
O rei viu a cauda do regimento recuando com um olhar genuíno de depressão, o que o fazia parecer mais um bebê do que nunca. Então, girou e juntou as mãos.
— Em um mundo sem humor, o único a fazer é comer. E quão perfeita exceção! Como podem ter estas atitudes as pessoas dignas, e fingir que algo importa, quando o ridículo total da vida é provado pelo próprio método pelo qual é suportada? Um homem atinge a lira, e diz: "A vida é real, a vida é séria", e depois entra em um quarto e se estufa com substâncias estranhas por um buraco em sua cabeça. Acho que a Natureza era de fato um pouco maior em seu humor nesses assuntos. Mas todos nós voltamos a pantomina, como voltei neste caso municipal. A natureza tem suas farsas, como o ato de comer ou a forma do canguru, para o apetite mais brutal. E mantém estrelas e montanhas para aqueles que apreciam coisas ridículas mais sutis. — Ele voltou-se para o seu escudeiro. — Mas, como eu disse ’comer’, vamos fazer um piquenique como duas boas crianças. Basta correr e trazer-me uma mesa e uma dúzia de pratos, e muita champanhe, e sob estes galhos balançando, Bowler, vamos voltar para a natureza.
Levou cerca de uma hora para erguer em Holland Lane a refeição simples do monarca, durante o qual ele andava para cima e para baixo assobiando, mas ainda com um ar afetado de tristeza. Realmente tinha abandonado um prazer que tinha prometido a si mesmo, e tinha aquele sentimento de vazio e desgosto de uma criança quando se decepciona com uma pantomima. Quando ele e o escudeiro se sentaram, no entanto, e consumiram uma quantidade considerável de champanhe seco, seu animo começou a reviver lentamente:
— As coisas levam muito tempo neste mundo. Detesto todo este negócio Barkeriano sobre evolução e modificação gradual das coisas. Queria que o mundo tivesse sido feito em seis dias, e feito em pedaços de novo em mais seis. E gostaria de ter feito isso. A piada é boa no geral, o sol, a lua, à imagem de Deus, e tudo mais, mas é terrivelmente longa. Já desejou um milagre, Bowler?
— Não, senhor — disse Bowler, que era um evolucionista, e que tinha sido criado cuidadosamente.
— Então, eu desejo — respondeu o rei. — Tenho andado ao longo de uma rua com o melhor charuto no cosmos na minha boca, e mais Borgonha dentro de mim do que você já viu em sua vida, e desejo que o poste se transforme num elefante para me salvar do inferno da existência vazia. Acredite na minha palavra, meu evolucionista Bowler, não acredite quando lhe dizem que as pessoas procuraram um sinal, e que acreditavam em milagres porque eram ignorantes. As pessoas faziam isso porque eram sábias, imundamente, vilmente sábias - sábias demais para comer, dormir ou se colocar em seu lugar com paciência. Isto parece deliciosamente como uma nova teoria sobre a origem do cristianismo, o que por si só, é uma coisa de não mero absurdo. Beba mais vinho.
O vento soprava em volta deles enquanto se sentaram à pequena mesa, com seu pano branco e brilhantes copos de vinho, e jogava as copas das árvores de Holland Park umas contra as outras, mas o sol estava naquele temperamento forte, que torna o verde em ouro. O rei afastou seu prato, acendeu um charuto lentamente, e continuou:
— Ontem pensei que estava próximo de presenciar um milagre realmente divertido antes de virar comida para os vermes. Ver aquele maníaco ruivo acenando com uma grande espada, e fazendo discursos para seus seguidores incomparáveis, seria um vislumbre da Terra da Juventude de onde formos expulsos pelas Parcas. Tinha planejado algumas coisas deliciosas. Um Congresso em Knightsbridge com um tratado, eu na cadeira, talvez um triunfo romano, com o velho alegre Barker levado em correntes. E agora esses miseráveis pedantes vão acabar completamente com o requintado sr. Wayne. Suponho que vão colocá-lo em algum asilo privado de acordo com seus malditos preceitos humanistas. Pense nos tesouros que serão diariamente derramados ao seu guarda insatisfeito! Gostaria de saber se eles iriam me deixar ser seu guarda. Mas a vida é um vale. Nunca se esqueça, em qualquer momento de sua existência a considerá-la à luz de um vale. Este hábito gracioso, se não for adquirido na juventude...
O Rei parou, com seu charuto levantado, pois tinha deslizado seus olhos para o olhar assustado de um homem que escutava. Não se moveu por alguns momentos, então virou a cabeça bruscamente para a paliçada alta, magra, e como ripa que isolava amplos jardins e espaços similares da faixa de rodagem. De trás vinha um barulho curioso de escalada e raspagem, como algo desesperado preso em uma caixa de madeira fina. O Rei jogou fora seu charuto, e saltou para cima da mesa. A partir dessa posição, ele viu um par de mãos penduradas agarradas em cima do muro. Em seguida, as mãos tremeram com um esforço convulsivo, e entre elas surgiu uma cabeça – o chefe de uma as cidades do Conselho de Bayswater, seus olhos e bigodes com medo selvagem. Ele se impulsionou, e caiu do outro lado de bruços, gemendo sem parar. No momento seguinte, a madeira fina e esticada da cerca foi atingida por uma bala, reverberando como um tambor, e sobre ela vieram empurrando e xingando, com roupas rasgadas, unhas quebradas e rostos vermelhos, vinte homens correndo de uma vez. O Rei saltou os cinco pés da mesa para o chão. No momento seguinte a mesa foi arremessada, garrafas e copos voaram, e os detritos foram literalmente arrastados no chão pelo fluxo de homens que passaram, e Bowler foi levado junto com eles, como o Rei disse em seu famoso artigo de jornal, “como uma noiva raptada”. A cerca balançou e rachou sob a carga de alpinistas que ainda escalavam. Brechas enormes se abriam pela artilharia viva, e através delas o rei pode ver mais rostos frenéticos, como em um sonho, e mais homens correndo. Eram tão diversos como se alguém tivesse tirado a tampa de uma lata de lixo humano. Alguns estavam intocados, alguns estavam cortados, golpeados e sangrando, alguns estavam esplendidamente vestidos, alguns esfarrapados seminus, alguns estavam com o traje fantástico das cidades burlescas, alguns em monótonos trajes modernos. O Rei olhou para todos eles, mas nenhum deles olhou para o rei. De repente, se adiantou:
— Barker, o que é tudo isso?
— Vencido... — disse o político. — Vencido completamente... Inferno! — E lançou-se com as narinas trêmulas como a de um cavalo, e mais homens foram atrás dele.
Quase enquanto falava, a última tira da cerca em pé inclinou-se e quebrou, atirando, como uma catapulta, uma nova figura na estrada. Ele usava o vermelho flamejante dos alabardeiros de Notting Hill, e em sua arma havia sangue, e em sua face vitória. Em seguida, massas em vermelho brilhavam através dos vãos da cerca, e os perseguidores, com suas alabardas, vieram enchendo a pista. Perseguidos e perseguidores, igualmente, passavam pela pequena figura com olhos de coruja, que não tirava as mãos dos bolsos.
O rei sentiu pouco além da confusão de um homem preso numa torrente – o sentimento de homens procurando por bordas. Então aconteceu algo que nunca foi capaz depois de descrever, e que não podemos descrever por ele. De repente, na entrada escura, entre os portões quebrados de um jardim, apareceu enquadrado uma figura flamejante.
Adam Wayne, o conquistador, com o rosto atirado para trás, sua juba como um leão, estava com sua grande espada apontando para o alto, a vestimenta vermelha de seu trabalho batendo ao seu redor como as asas vermelhas de um arcanjo. E o Rei viu, não sabia como, algo novo e irresistível. As grandes árvores verdes e as túnicas vermelhas balançavam juntas com o vento. A espada parecia feita para a luz do sol. As máscaras absurdas, nascidas de seu próprio escárnio, se elevavam e abraçavam o mundo. Este era o normal, isto era sanidade, esta era a natureza, e ele mesmo, com sua racionalidade e seu desprendimento e sua sobrecasaca preta, ele era a exceção e o acidente, uma mancha preta sobre um mundo vermelho e dourado.
Livro IV |
O sr. Buck que, apesar de aposentado, frequentemente descia para suas grandes lojas de roupas em Kensington High Street, estava fechando as instalações, sendo o último a sair. Era um anoitecer maravilhoso de verde e ouro, mas isso não o incomodou muito. Se você tivesse chamado sua atenção, ele teria concordado com seriedade, pois os ricos sempre desejam ser artísticos.
Ele saiu para o ar frio, abotoando o casaco leve amarelo, e soltando grandes nuvens de seu charuto, quando uma figura correu até ele em outro casaco amarelo, mas desabotoado e com a parte de trás levantada pelo vento.
— Olá, Barker! — disse que o comerciante. — Algum de nossos artigos de verão? Está muito atrasado. Leis fabris, Barker. Humanidade e progresso, meu garoto.
— Oh, não começa — gritou Barker, batendo os pés no chão. — Fomos derrotados.
— Derrotados... Por quê? — perguntou Buck, mistificado.
— Por Wayne.
Buck olhou para o rosto branco feroz de Barker pela primeira vez, que brilhava à luz do lampião.
— Venha tomar uma bebida — disse ele.
Foram para um buffet almofadado deslumbrante, e Buck sentou-se de forma lenta e preguiçosa em um banco, e puxou sua cigarreira.
— Como isso aconteceu? — perguntou Buck, encarando-o com seus grandes olhos ousados.
— Como diabos vou saber? — gritou Barker. — Aconteceu assim, como um sonho. Como podem duzentos homens derrotar seiscentos? Como podem?
— Bem — disse Buck, friamente —, como é que o fizeram? Você deve saber.
— Não sei, não posso descrever — disse o outro, tamborilando na mesa. — Foi mais ou menos assim. Eramos seiscentos, marchávamos com essas malditas poleaxes de Auberon – as únicas armas que temos. Marchamos em dupla, lado a lado. Subimos por Holland Walk, entre as estacas altas que pareciam ir direto como flechas para a Pump Street. Estava perto do final da fila, e era uma longa fila. Quando o final dela ainda estava entre as altas estacas, a cabeça da fila já estava atravessando Holland Park Avenue. Então a cabeça mergulhou na rede de ruas estreitas do outro lado, enquanto eu e o resto da cauda chegamos na grande travessa. Quando também chegamos ao lado norte e surgiu uma pequena rua que apontava, de forma torta, para Pump Street, tudo parecia diferente. As ruas se torciam e se inclinavam tanto que a cabeça da nossa fila parecia completamente perdida: poderia muito bem estar na América do Norte. E todo esse tempo não vimos ninguém...
Buck, que estava preguiçosamente batendo a cinza do cigarro no cinzeiro, começou a espalhar as cinzas deliberadamente sobre a mesa, fazendo linhas cinzentas emplumadas, uma espécie de mapa.
— Mas, embora as pequenas ruas estivessem desertas (o que me dava nos nervos), enquanto nos aprofundávamos, algo começou a acontecer que eu não conseguia entender. Às vezes, com um longo caminho pela frente – como se fosse três voltas ou cantos à frente – de lá partia de repente uma espécie de ruído, barulhos e gritos confusos, e depois parava. Então aconteceu, algo que não posso descrever, uma espécie de tremor ou cambaleio que veio para a parte de baixo da fila, como se a fila fosse uma coisa viva, cuja cabeça tinha sido atingida, ou fosse um cabo elétrico. Nenhum de nós sabia por que estávamos nos movendo, mas nos movemos e empurramos. Então, nos recuperamos, e fomos pelas ruazinhas sujas, de cantos arredondados, e formas retorcidas. As pequenas ruas tortuosas começaram a me dar um sentimento que não posso explicar, como se fosse um sonho. Eu me senti como se as coisas tivessem perdido a razão, e nunca sairia do labirinto. Estranho ouvir-me falar assim, não é? As ruas eram bem conhecidas, todas no mapa. Mas o fato permanece. Eu não estava com medo de algo acontecer. Eu tinha medo de nada acontecer, de nada acontecer por toda a eternidade de Deus.
Ele esvaziou o copo e pediu mais uísque. Bebeu, e prosseguiu:
— E então algo aconteceu. Buck, é a verdade solene, que nada nunca aconteceu com você em toda a sua vida. Nada me aconteceu em toda minha vida.
— Nada aconteceu! — disse Buck, olhando. — O que você quer dizer?
— Nada jamais aconteceu — repetiu Barker, com uma obstinação mórbida. — Você não sabe o que algo acontecer significa. Senta-se em seu escritório esperando clientes, e os clientes vêm; anda na rua esperando os amigos, e os amigos te encontram; quer um drinque, e o obtém; sente-se inclinado a uma aposta, e a faz. Espera ganhar ou perder, e ganha ou perde. Mas coisas acontecendo... —, e ele estremeceu incontrolavelmente.
— Vá em frente — disse Buck, brevemente. — Continue.
— À medida que caminhava cansado pelos cantos, algo aconteceu. Quando algo acontece, acontece primeiro, e você vê depois. Acontece por si só, e você não tem nada a ver com isso. Isso prova uma coisa terrível, que existem outras coisas além de si mesmo. Só posso colocar desta forma. Demos uma volta, duas voltas, três voltas, quatro voltas, cinco. Então levantei-me lentamente da sarjeta de onde tinha caído meio sem sentidos, e foi abatido novamente por homens batendo em cima de mim, e o mundo estava cheio de rugir, e grandes homens caindo como pinos de boliche.
Buck olhou para o mapa com a testa enrugada.
— Isso foi em Portobello Road? —, perguntou ele.
— Sim — disse Barker —, em Portobello Road. Vi depois; mas, meu Deus, que lugar era! Buck, já foi pisoteado na cabeça por homens com sapatos de ponta de aço? Porque, quando tem essa experiência, como diz Walt Whitman, “você reexamina as filosofias e religiões”.
— Não duvido — disse Buck. — Se isso foi Portobello Road, não viu o que aconteceu?
— Sei o que aconteceu bem demais. Fui derrubado quatro vezes; uma experiência que, como disse, tem um efeito sobre sua atitude mental. E outra coisa aconteceu, também. Derrubei dois homens. Após a quarta queda (não havia muito derramamento de sangue, mais brutais empurrões e coisas atiradas, pois ninguém conseguia usar suas armas), após a quarta queda, me levantei como um demônio, e tomei um poleaxe da mão de um homem e golpeou onde vi o escarlate dos companheiros de Wayne, golpei de novo e de novo. Dois deles caíram, sangrando nas pedras, graças a Deus, e eu ri e me achei estatelado na sarjeta de novo, e me levantei novamente, e golpei de novo, e quebrei minha alabarda em pedaços. Machuquei a cabeça de um homem, no entanto.
Buck pousou o copo num estrondo, e cuspiu maldições pelo seu bigode espesso.
— Qual é o problema? — perguntou Barker, parando, pois o homem estava calmo até o momento, mas agora sua agitação era muito mais violenta do que a sua própria.
— O problema? — disse Buck, amargamente. — Não vê como esses maníacos nos pegaram. Por que dois idiotas, um palhaço e o outro um louco gritando, alteraram tanto homens sãos? Olhe aqui, Barker, vou dar-lhe um panorama. Um jovem muito bem-educado deste século está dançando em uma sobrecasaca. Ele tem em suas mãos uma alabarda do século XVII sem sentido, com a qual ele está tentando matar homens em uma rua de Notting Hill. Droga! Não vê como eles nos pegaram? Não importa como você se sentiu, é assim que pareceu. O rei iria colocar a maldita cabeça de lado e chamar isso de requintado. O superintendente de Notting Hill iria levantar seu maldito nariz e chamar de heroico. Mas em nome de Deus o que você teria chamado isso – dois dias atrás?
Barker mordeu o lábio:
— Não passou por isso, Buck. Não entende de combate – a atmosfera.
— Não nego a atmosfera — disse Buck, batendo na mesa. — Só digo que é a atmosfera dele. É atmosfera de Adam Wayne. É a atmosfera que você e eu pensamos já tinha desaparecido de um mundo educado para sempre.
— Bem, não desapareceu — disse Barker —, e se tiver quaisquer dúvidas, empresta-me um poleaxe, e vou lhe mostrar.
Houve um longo silêncio, e então Buck virou-se para seu vizinho e falou em um tom bem-humorado que vem de um poder de encarar fatos de frente – com que ele concluiu grandes barganhas.
— Barker, você está certo. Esta coisa velha – esta luta, voltou. Voltou de repente e nos pegou de surpresa. Por isso, a primeira batalha é de Adam Wayne. Mas, a menos que a razão, a aritmética e tudo mais tenham enlouquecido, a próxima e última deve ser nossa. Quando um problema surge, há apenas uma coisa a fazer – estudar essa questão e ganhar. Barker, uma vez que é luta, temos de compreender a luta. Preciso entender de lutas tão friamente e completamente como entendo de roupas, você deve entender a luta tão friamente e completamente como entende de política. Agora, olhe para os fatos. Continuo sem hesitação com a minha fórmula original. Luta, quando temos a força mais forte, é só uma questão de aritmética. Deve ser. Você me pergunta agora como duzentos homens podem derrotar seiscentos. Posso lhe dizer. Duzentos homens podem derrotar seiscentos quando os seiscentos se comportam como tolos. Quando eles esquecem as próprias condições em que estão lutando, quando lutam em um pântano como estivessem em uma montanha, quando lutam em uma floresta como se estivessem em uma planície, quando lutam nas ruas sem lembrar do objetivo das ruas.
— Qual é o objetivo das ruas? — perguntou Barker.
— Qual é o objetivo do jantar? — gritou Buck, furiosamente. — Não é óbvio. Esta ciência militar é mero senso comum. O objetivo de uma rua é levar de um lugar para outro; portanto, todas as ruas se juntam, por isso luta de rua é muito peculiar. Você avançou em uma colmeia de ruas como se estivesse avançando em uma planície aberta onde pode ver tudo. Em vez disso, estava avançando nas entranhas de uma fortaleza, com ruas apontando, ruas virando, ruas pulando em você, e todas nas mãos do inimigo. Sabe o que é Portobello Road? É o único ponto em sua jornada onde duas ruas laterais encontram-se frente a frente. Wayne concentrou seus homens nos dois lados, e quando deixou o suficiente de sua fila passar, a cortou em duas como um verme. Não vê o que teria salvado você?
Barker balançou a cabeça.
— A “atmosfera” não pode ajudá-lo? — perguntou Buck, amargamente. — Devo tentar explicações de forma romântica? Suponha que enquanto estava lutando cegamente com os habitantes vermelhos de Notting Hill que prenderam vocês por ambos os lados, ouvissem um grito atrás deles. Suponha, oh, romântico Barker, que por trás das túnicas vermelhas estivessem o azul e dourado de South Kensington, pegando-os pela traseira, envolvendo-os, e jogando-os nas suas alabardas.
— Se isso tivesse sido possível — começou Barker, xingando.
— Isso teria sido possível — disse Buck, simplesmente —, tão simples como a aritmética. Há um certo número de ruas que levam para Pump Street. Não há novecentos; não há nove milhões. Elas não crescem durante a noite. Não aumentam como cogumelos. Deve ser possível, com uma força tão esmagadora como temos, avançar por todas ao mesmo tempo. Em cada uma das artérias, ou caminhos, podemos colocar quase tantos homens como Wayne pode colocar no campo todo. Uma vez que façamos isso, nós o temos para a demonstração. É como uma proposição de Euclides.
– Acha que é certo? — Barker disse, ansioso, mas dominado pelo deleite.
— Vou dizer o que penso — disse Buck, levantando-se jovialmente. — Acho que Adam Wayne teve uma pequena luta espiritualmente incomum, e acho que estou confusamente com pena dele.
— Buck, você é um grande homem! — gritou Barker, levantando também. — Você me fez recuperar a sensatez novamente. Tenho vergonha de dizer isso, mas estava ficando romântico. Naturalmente, o que diz faz sentido adamantino. Luta, sendo física, deve ser matemática. Fomos espancados porque não fomos nem matemáticos, nem físicos, nem nada – porque merecíamos ser espancados. Mantenhamos todos os caminhos, e com a nossa força, devemos vencer. Quando vamos começar a próxima campanha?
— Agora — disse Buck, e saiu do bar.
— Agora! — gritou Barker, seguindo-o ansiosamente. — Quer dizer agora? É tão tarde.
Buck voltou-se para ele, batendo no chão.
— Acha que a luta está sujeita a leis trabalhistas? — disse, e chamou um táxi. — Para o portão da estação de Notting Hill — disse, e os dois foram embora.
Uma reputação genuína pode às vezes ser feita em uma hora. Buck, nos próximos sessenta ou oitenta minutos, mostrou-se realmente um grande homem de ação. Seu táxi levou-o como um raio do Rei para Wilson, de Wilson para Swindon, de Swindon para Barker novamente. Se seu curso foi irregular, teve a irregularidade de um relâmpago. Apenas duas coisas carregava, seu inevitável charuto e o mapa de North Kensington e Notting Hill. Havia, como repetidamente apontou, com toda a variedade de persuasão e violência, apenas nove formas possíveis de chegar a Pump Street dentro de um quarto de milha; três de Westbourne Grove, duas de Ladbroke Grove, e quatro de Notting Hill High Street. E tinha destacamentos de duzentos pessoas, estacionados em cada uma das entradas antes da última luz verde do estranho pôr do sol que afundava no negro céu.
O céu estava particularmente negro e sozinho foi um falso protesto contra o otimismo triunfante do superintendente de North Kensington. Mas isto foi posto de lado pelo infeccioso senso comum do superintendente:
— Não há tal coisa, como noite em Londres. Só tem que seguir a linha de postes de luz. Olhe, aqui está o mapa. Duzentos soldados púrpuras de North Kensington sob meu comando marcham até Ossington Street, duzentos mais sob o capitão Bruce, da guarda de North Kensington, até Clanricarde Gardens1. Duzentos soldados amarelos de West Kensingtons sob o superintendente Swindon atacam a partir de Pembridge Road. Mais duzentos de meus homens a partir das ruas do leste, afastando-se de Queen’s Road. Dois destacamentos amarelos entram por duas estradas de Westbourne Grove. Por fim, duzentos verdes de Bayswaters descem do norte através de Chepstow Place, e mais duzentos do superintendente Wilson, através da parte superior de Pembridge Road. Senhores, é mate em dois lances. O inimigo deve amontoar-se em Pump Street e ser cortado em pedaços, ou deve recuar atrás da Gaslight & Coke Co., e enfrentar meus quatrocentos, ou deve recuar até a Igreja de São Lucas, e enfrentar seiscentos do oeste. A menos que sejamos todos loucos, é claro. Vamos. Para seus aposentos e aguardem o sinal do Capitão Brace para avançar. Então só temos que caminhar por uma linha de postes de luz e esmagar esse absurdo por pura matemática. E amanhã seremos todos civis novamente.
Seu otimismo brilhava como um grande fogo na noite, e corria em volta do anel terrível onde agora Wayne estava mantido indefeso. A luta já havia terminado. A energia de um homem por uma hora salvou a cidade da guerra.
Nos dez minutos seguintes Buck caminhou para cima e para baixo em silêncio ao lado do aglomerado imóvel dos seus duzentos. Não tinha mudado sua aparência de qualquer forma, exceto uma eslinga sobre seu casaco amarelo para um estojo com um revólver. Assim, sua figura de moderna veste leve mostrou-se estranhamente ao lado dos uniformes pomposos púrpuras de seus alabardeiros, que obscuramente, mas ricamente coloriam a noite negra.
Finalmente o som de uma trombeta estridente alcançou a rua, era o sinal de avanço. Buck brevemente deu a ordem, e toda a linha púrpura, com seu aço pouco brilhante, moveu-se para o beco lateral. Diante deles estava uma inclinação de rua, longa, lisa, e brilhando no escuro. Era uma espada apontada para Pump Street, o coração em que nove outras espadas estavam apontados naquela noite.
Um quarto de hora marchando silenciosamente os trouxe quase ao alcance de ouvir qualquer tumulto na cidadela condenada. Mas ainda não havia nenhum som e não havia sinal do inimigo. Desta vez, pelo menos, eles sabiam que estavam fechando mecanicamente, e marcharam sob a luz da lamparina e do escuro sem nenhuma estranha sensação de ignorância que Barker tinha sentido ao entrar em país hostil por apenas uma avenida.
— Parem, apontar armas! — gritou Buck, de repente, e enquanto falava veio um barulho de pés andando ao longo das pedras. Mas as alabardas foram niveladas em vão. A figura que corria era um mensageiro do contingente do Norte.
— Vitória, Sr. Buck! — ele gritou, ofegante. — Eles foram derrubados. O superintendente Wilson de Bayswater tomou Pump Street.
Buck ficou excitado:
— Então, por qual caminho estão recuando? Deve ser por St. Luke para encontrar Swindon, ou pela companhia de gás para nos encontrar. Corra como louco para Swindon, e veja se os amarelos estão mantendo a estrada de St. Luke. Vamos manter esta, não tema. Nós os temos em uma armadilha de ferro. Corra!
Conforme o mensageiro correu para dentro da escuridão, a grande guarda de North Kensington continuou com a certeza de uma máquina. No entanto, pouco mais de cem metros depois apontaram novamente suas alabardas brilhando nas luzes dos postes em linha, pois novamente um barulho de pés foi ouvido sobre as pedras, e mais uma vez provou-se ser apenas o mensageiro.
— Lorde Superintendente, os amarelos de West Kensingtons mantêm a estrada por St. Luke por vinte minutos desde a captura de Pump Street. Não está a mais de duzentos metros de distância; eles não podem ter se retirado por esse caminho.
— Então, eles estão recuando por aqui — disse o superintendente Buck, com uma alegria final — e por sorte por uma estrada bem iluminada, embora bem torcida. Para frente!
Conforme se moviam ao longo dos últimos trezentos metros de sua jornada, Buck caiu, talvez pela primeira vez em sua vida, em uma espécie de devaneio filosófico, pois homens da sua especie sempre se tornam gentis, e melancólicos, pelo sucesso.
— Sinto muito pelo pobre velho Wayne, realmente sinto — ele pensou. — Falou esplendidamente por mim naquele Conselho. Ele golpeou o velho olho de Barker com espírito considerável. Mas não vejo o que um homem pode esperar quando ele luta contra a aritmética, para não dizer nada da civilização. E que farsa maravilhosa é todo este gênio militar! Suspeito que só descobri o que Cromwell tinha descoberto, que um comerciante sensato é o melhor general, e que um homem que pode comprar e vender homens pode liderar e matá-los. A coisa é simples como a adição de uma coluna numa caderneta. Se Wayne tem duzentos homens, ele não pode colocar duzentos homens em nove lugares ao mesmo tempo. Se foram expulsos de Pump Street, estão indo para algum lugar. Se não estão na igreja, estão nas obras. E assim temos eles. Nós, os homens de negócios, não devíamos ter nenhuma chance, mas as pessoas mais inteligentes do que nós têm abelhas em seus chapéus que os impedem de raciocinar corretamente, de modo que somente nós temos a razão. E assim eu, que sou comparativamente estúpido, vejo as coisas como Deus as vê, como uma vasta máquina. Meu Deus, o que é isso? — E colocou as palmas nos olhos e voltou-se para trás.
Então, pela escuridão, gritou numa terrível voz:
— Eu blasfemei contra Deus? Estou cego.
— O que? — gemia outra voz atrás dele, a voz de um certo Wilfred Jarvis de North Kensington.
— Cego! — gritou Buck. — Cego!"
— Estou cego também! — gritou Jarvis, em agonia.
— Tolos, todos vocês — disse uma voz grave atrás deles —, estamos todos cegos. As lâmpadas apagaram.
— As lâmpadas! Mas por quê? Onde? — gritou Buck, virando furiosamente na escuridão. — Como é que vamos chegar? Como vamos perseguir o inimigo? Onde eles foram?
— O inimigo foi... — disse a voz áspera por trás, e então parou em dúvida.
— Onde? — gritou Buck, como um louco.
— Eles passaram — disse a voz rouca — para as fábricas de gás, e usaram a sua chance.
— Grande Deus! — trovejou Buck, e pegou no revólver. — Quer dizer que eles acabaram...
Mas quase antes de ter falado as palavras, foi arremessado como uma pedra de catapulta para o meio dos seus próprios homens.
— Notting Hill! Notting Hill! — gritavam vozes assustadoras na escuridão, e pareciam vir de todos os lados, pois os homens da North Kensington, não familiarizados com a estrada, haviam perdido toda sua orientação no mundo negro da cegueira.
— Notting Hill! Notting Hill! — gritavam as pessoas invisíveis, e os invasores foram cortados horrivelmente com aço preto, com aço que não reluzia contra qualquer luz.
Buck, embora mutilado com o golpe de uma alabarda, manteve uma raivosa mas esplêndida sanidade. Ele tateou loucamente pelo muro e encontrou. Lutando com dedos rastejando ao longo do muro, encontrou uma abertura lateral e recuou com os restos de seus homens. Suas aventuras durante essa noite prodigiosa não podem ser descritas. Eles não sabiam se estavam indo em direção ou para longe do inimigo. Não sabendo onde eles mesmos estavam, ou onde os seus oponentes estavam, era mera ironia perguntar onde estava o resto de seu exército. Pois uma coisa tinha descido sobre eles que Londres não conhecia – escuridão, anterior a existência das estrelas, e eles estavam perdidos nela como se tivessem sido feitos antes das estrelas. Ocasionalmente, enquanto aquelas horas terríveis passavam, eles fustigavam na escuridão contra homens vivos, que os atingiram e a quem eles atingiam, com uma fúria idiota. Quando finalmente o amanhecer cinzento chegou, descobriram que tinham andado de volta para a beira da Uxbridge Road. Descobriram que nesses encontros horríveis sem visão, os soldados de North Kensington, Bayswater e West Kensington tinham se encontrado repetidamente e massacraram uns aos outros, e ouviram que Adam Wayne estava barricado em Pump Street.
O jornalismo tornou-se, como a maioria de tais coisas na Inglaterra sob o governo cauteloso e filosofia representada por James Barker, um pouco sonolento e muito diminuído em importância. Isto foi, em parte, devido ao desaparecimento de partidos políticos e das discussões públicas, em parte pelo compromisso ou impasse que havia feito guerras estrangeiras impossíveis, mas, principalmente, é claro, pelo temperamento de toda a nação, que era a de um povo em uma espécie de remanso. Talvez o mais conhecido dos jornais restantes fosse o Jornal da Corte, que era publicado em um escritório empoeirado, mas de aparência gentil em Kensington High Street. Pois quando todos os jornais de um povo passam anos cada vez mais fracos, decorosos e otimistas, o mais fraco, mais decoroso e mais otimista é o provável ganhador. Na competição jornalística que ainda estava em curso no início do século XX, o vencedor final foi o Jornal da Corte.
Por alguma razão misteriosa, o rei teve um carinho muito grande em ficar no escritório do Jornal da Corte, fumando um cigarro de manhã e olhando os arquivos. Como todos os homens basicamente ociosos, gostava muito de relaxar e conversar em lugares onde outras pessoas estavam trabalhando. Mas qualquer um teria pensado que, mesmo na Inglaterra prosaica de seus dias, poderia ter encontrado um centro mais movimentado.
Nesta manhã em particular, no entanto, saiu do Palácio de Kensington com um passo mais alerta e um ar mais agitado do que o habitual. Usava um extravagantemente fraque longo, um colete verde-claro, gravata preta bem completa, e curiosas luvas amarelas. Este era o seu uniforme como coronel de um regimento de sua própria criação, 1a dos Decadentes Verdes. Era uma bela visão. Caminhou rapidamente em frente ao Parque e da High Street, acendendo o cigarro enquanto andava, e abriu a porta do escritório do Jornal da Corte.
— Já ouviu a notícia, Pally? Já ouviu a notícia?
O nome do editor era Hoskins, mas o rei o chamava Pally, que era uma abreviação de Paladino das nossas liberdades.
— Bem, vossa Majestade — disse Hoskins, lentamente (era preocupado, cavalheiresco, com uma barba falha marrom) —, ouvi coisas curiosas, mas eu...
— Ouvirá mais delas — disse o Rei, dando alguns passos de uma espécie de dança africana. — Ouvirá mais delas, meu tribuno de sangue-e-trovão. Sabe o que vou fazer por você?
— Não, Majestade — respondeu o Paladino, vagamente.
— Vou colocar o artigo em fortes, arrojadas e empreendedoras linhas — disse o rei. — Agora, onde estão os seus cartazes sobre a derrota de ontem à noite?
— Não propus, vossa Majestade — disse o editor —, ter quaisquer cartazes exatamente...
— Papel, papel! — gritou o rei, descontroladamente. — Traga-me um papel tão grande como uma casa. Farei cartazes para você. Pare, tenho que tirar o meu casaco… — começou a tirar aquela roupa com um ar de definitiva intensidade, atirou-a alegremente na cabeça do Sr. Hoskins, envolvendo-o inteiramente, e olhou-se no espelho. — Sem casaco e com chapéu. Isso parece um subeditor. Na verdade, é a própria essência do subeditor. Bem — continuou ele, voltando-se abruptamente —, vêm junto com o papel.
O Paladino tinha acabado de livrar-se reverentemente das dobras da casaca do Rei, e disse perplexo:
— Lamento, vossa majestade...
— Oh, você não tem nenhuma iniciativa — disse Auberon. — O que é o rolo no canto? Papel de parede? Decorações para a sua residência privada? Arte para casa, Pally? Jogue-o aqui, e vou pintar os cartazes na parte de trás para que quando colocá-lo em sua sala vai colar o padrão original contra a parede — e o Rei desenrolou o papel de parede, espalhando-o pelo chão todo. — Agora dá-me a tesoura — gritou, e a pegou antes do outro poder se mexer.
Ele cortou o papel em cerca de cinco pedaços, cada um quase tão grande como uma porta. Então, pegou um lápis azul, e ficou de joelhos sobre o empoeirado papel de parede e começou a escrever em enormes letras:
Ele contemplou por algum tempo, com a cabeça de um lado, e levantou-se, com um suspiro.
— Não é intenso o suficiente. Não alarmista. Quero o Jornal da Corte ser temido, assim como amado. Vamos tentar algo mais contundente — e voltou a ficar de joelhos novamente. Depois de chupar o lápis azul por algum tempo, começou a escrever novamente. — Como fazer? – Escreveu:
— Acho — disse ele, olhando apelativamente, e chupando o lápis – que não poderia dizer ‘witoria’. Maravilhosa ‘witoria’ de Wayne ’? Não, não. Requinte, Pally, requinte. Já sei.
— (Nada como a nossa boa e velha tradução inglesa.) O que mais podemos dizer? Bem, algo para irritar o velho Buck? — E acrescentou, pensativo, em letras menores:
— Serão suficientes por enquanto — disse ele, e os dobrou ambos para baixo. — Cola, por favor.
O paladino, com um ar de grande terror, trouxe a cola de uma sala interna.
O Rei apertou a com o prazer de uma criança brincando com melaço. Em seguida, com suas composições enormes tremulando em cada mão, correu para o lado de fora, e começou colá-las em posições de destaque ao longo da frente do escritório.
— E agora — disse Auberon, entrando novamente com não diminuída vivacidade —, para o artigo principal.
Pegou outra das grandes faixas de papel de parede, e colocando-a em uma mesa, puxou uma caneta e começou a escrever com intensidade febril, lendo em voz alta cláusulas e fragmentos para si mesmo, e rolando-as em sua língua como se fosse vinho, para ver se tinham o puro sabor jornalístico:
— A notícia do desastre para nossas forças em Notting Hill, terrível como é (terrível como é? não, angustiante como é), pode fazer algo de bom se chama a atenção para a não-sei-qual-o-nome ineficiência (escandalosa ineficiência, é claro) dos preparativos do Governo. Em nosso atual estado de informações, seria prematuro (que palavra alegre!) lançar qualquer reflexão sobre a conduta do general Buck, cujos serviços sobre tantos campos atacados (ha, ha!), e cujas honrosas cicatrizes e louros, dão-lhe o direito de pelo menos ter o julgamento suspenso. Mas há um assunto sobre o qual devemos falar claramente. Temos estado em silêncio sobre isso por muito tempo, por sentimentos, talvez de cautela ou de lealdade enganados. Esta situação nunca teria surgido, se não fosse o que só se pode chamar de indefensável conduta do rei. É doloroso ter que dizer essas coisas, mas, falando no interesse público (plagiei o famoso epigrama de Barker), não devemos parar por causa da aflição que pode causar a qualquer indivíduo, mesmo o mais exaltado. Neste momento crucial de nosso país, a voz do povo exige como uma só língua, "Onde está o Rei?" O que ele está fazendo, enquanto seus súditos rasgam-se em pedaços nas ruas de uma grande cidade? São os seus divertimentos e suas dissipações (de que não podemos fingir ser ignorantes) tão cativantes que não pode dispensar algum pensamento para uma nação perecendo? É com profundo sentimento de responsabilidade, que avisamos aquela exaltada pessoa que nem sua grande posição, nem seus incomparáveis talentos irão salvá-lo na hora de delírio do destino de todos aqueles que, na loucura de luxo ou tirania, se encontrarem com os ingleses no raro dia de sua ira.
— Agora — disse o Rei —, vou escrever um relato da batalha por uma testemunha ocular. — E pegou uma quarta folha de papel de parede. Quase no mesmo momento Buck entrou rapidamente no escritório. Ele tinha uma bandagem em volta de sua cabeça.
— Disseram-me — disse com a sua habitual civilidade áspera —- que sua Majestade estava aqui.
— E de todas as coisas na terra — exclamou o Rei, com prazer —, aqui está uma testemunha ocular! Uma testemunha ocular que, lamento observar, tem atualmente apenas um olho para testemunhar. Pode escrever-nos um artigo especial, Buck? Tem um rico estilo?
Buck, com um autocontrole que quase se aproximou de polidez, ignorou qualquer genialidade enlouquecedora do rei.
— Tomei a liberdade, vossa Majestade — disse rapidamente —, de pedir ao sr. Barker para vir aqui também.
Enquanto falava, de fato, Barker veio para dentro do escritório, com sua habitual pressa.
— O que está acontecendo agora? — perguntou Buck, virando-se para ele com uma espécie de alívio.
— A luta ainda está em curso — disse Barker. — Os quatrocentos de West Kensington mal foram tocados na noite passada. Eles mal chegaram perto do lugar. Os homens do pobre Wilson de Bayswater chegaram, no entanto. Lutaram bem. Tomaram Pump Street. Que coisas loucas acontecem no mundo. E pensar que de todos nós foi o pequeno Wilson com os bigodes vermelhos que se saiu melhor.
O Rei fez uma nota em seu papel:
“A conduta romântica do Sr. Wilson.”
— Sim — disse Buck —, isto faz um ficar um pouco menos orgulhoso de si próprio.
O Rei repente dobrou ou amassou o papel e o colocou no bolso:
— Tenho uma ideia. Serei uma testemunha ocular. Vou escrever cartas da frente que serão mais lindas do que o real. Dê-me o meu casaco, Paladino. Entrei nesta sala um mero Rei de Inglaterra. Deixo como Correspondente Especial de Guerra do Jornal da Corte. É inútil me parar, Pally; é inútil agarrar meus joelhos, Buck; é inútil, Barker, chorar sobre o meu pescoço. "Quando o dever chama...”, o restante do sentimento me escapa. Receberá meu primeiro artigo esta noite em torno das oito horas.
E, correndo para fora do escritório, pegou um ônibus azul para Bayswater que estava passando.
— Bem — disse Barker, melancolicamente —, bem.
— Barker — disse Buck —, negócios podem ser menores do que a política, mas a guerra é, como descobri ontem à noite, bem mais como negócios. Políticos são demagogos arraigados que, mesmo quando têm um despotismo, não pensam em nada, senão a opinião pública. Então aprendem a atacar e correr, e estão com medo da primeira brisa. Agora, nós nos atemos a algo até conseguir. E nossos erros nos ajudam. Olhe aqui! Neste momento vencemos Wayne.
— Vencemos Wayne — repetiu Barker.
— Por que diabos não? — exclamou o outro, abanando as mãos. — Olhe aqui. Eu disse ontem à noite que os pegamos assegurando as nove entradas. Pois bem, eu estava errado. Deveríamos tê-los pego, mas por um evento singular, as lâmpadas se apagaram. Mas isso era certo. Já ocorreu a você, meu brilhante Barker, que um outro evento singular aconteceu desde o evento singular das lâmpadas apagarem?
— Que evento? — perguntou Barker.
— Por uma incrível coincidência, o sol nasceu — gritou Buck, com um ar de paciência selvagem. — Por que diabos não estamos assegurando todas esses caminhos agora, e passando sobre eles novamente? Isso deveria ter sido feito ao nascer do sol. O confuso médico não me deixou sair. Você estava no comando.
Barker sorriu tristemente:
— É gratificante para mim, meu querido Buck, ser capaz de dizer que antecipamos as suas sugestões com precisão. Fomos o mais cedo possível fazer um reconhecimento das nove entradas. Infelizmente, enquanto estávamos lutando entre nós no escuro, como um monte de trabalhadores braçais bêbados, os amigos do Sr. Wayne estavam trabalhando muito duro. A três centenas de metros de Pump Street, em cada uma dessas entradas, há uma barricada quase tão alta quanto as casas. Eles estavam terminando a última, em Pembridge Road, quando chegamos. Nossos erros... — gritou amargamente, e jogou o cigarro no chão. — Não fomos nós que aprendemos com eles.
Houve um silêncio por alguns momentos, e Barker recostou-se cansado em uma cadeira. O relógio do escritório fazendo tique-taque no silêncio.
Finalmente Barker disse de repente:
— Buck, já passou pela sua mente para que tudo isto? Um caminho de Hammersmith para Maida Vale era uma especulação extraordinariamente boa. Você e eu esperávamos muito dela. Mas vale a pena? Vai custar-nos milhares para esmagar este motim ridículo. Suponha que o deixemos em paz?
— E ser humilhado publicamente por um louco de cabelos vermelhos que seria internado por qualquer médico? — gritou Buck, levantando-se. — O que propõe fazer, Sr. Barker? Pedir desculpas ao admirável Sr. Wayne? Ajoelhar-se à Carta das Cidades? Apertar no seu peito a bandeira do leão vermelho? Beijar em sucessão cada sagrada lâmpada pública que salvou Notting Hill? Não, por Deus! Meus homens lutaram bem; eles foram vencidos por um truque. E vão lutar novamente.
— Buck, sempre admirei você. E estava muito certo no que disse outro dia.
— Em que?
— Ao dizer — disse Barker, levantando calmamente — que nós todos entramos na atmosfera de Adam Wayne e fora da nossa. Meu amigo, todo o reino territorial de Adam Wayne se estende a cerca de nove ruas, com barricadas no fim delas. Mas o reino espiritual de Adam Wayne estende-se... Deus sabe até aonde! Estende-se a este escritório, de qualquer maneira. O louco de cabelo vermelho que qualquer médico internava está preenchendo o quarto com sua alma que ruge de forma não-razoável. E foi o louco de cabelo vermelho que disse que a última palavra.
Buck foi até a janela, sem responder.
— Entende, claro — disse finalmente —, que nem sonho em desistir.
O rei, por sua vez, foi sacudindo ao longo do percurso no topo de seu ônibus azul. O tráfego de Londres como um todo não tinha, é claro, sido muito perturbado por estes eventos, pois o caso foi tratado como um motim de Notting Hill, e a área foi demarcada como se tivesse estado nas mãos de uma quadrilha de reconhecidos desordeiros. Os ônibus azuis simplesmente rodaram como teriam feito se uma estrada estivesse sendo consertada, e o ônibus onde o correspondente do Jornal da Corte estava sentado foi em volta de Queen’s Road em Bayswater.
O Rei estava sozinho no topo do veículo, e estava gostando da velocidade em que estava indo.
— Avante, minha beleza, meu árabe — disse ele, batendo no ônibus encorajador —, o mais rápido de toda sua limitada tribo. São as tuas relações com o teu motorista, me pergunto, as mesmas do beduíno e sua montaria? Será que ele dorme lado a lado contigo...
Suas meditações foram quebradas por uma parada repentina e chocante. Olhando por cima da borda, viu que os veículos foram parados por homens em uniforme do exército de Wayne, e ouviu a voz de um policial gritando ordens.
O rei Auberon desceu do ônibus com dignidade. A guarda ou piquete de alabardeiros vermelhos que pararam o veículo não eram mais do que vinte, e estavam sob o comando de um pequeno, escuro, e aparentemente inteligente jovem, bem visível entre os outros, vestido com um simples fraque, mas com uma faixa vermelha na cintura e uma espada longa do século XVII. Um chapéu de seda brilhante e óculos concluíam a roupa de uma maneira agradável.
— Com quem tenho a honra de falar? — disse o Rei, se esforçando para parecer Charles I, apesar das dificuldades pessoais.
O homem moreno de óculos levantou seu chapéu com igual gravidade:
— Meu nome é Bowles. Sou um químico. Também sou capitão da companhia O do exército de Notting Hill. Estou aflito de ter de perturbá-lo parando o ônibus, mas esta área é coberta por nossa proclamação, e interceptamos todo o tráfego. Peço a quem tenho a honra… Boas graças, peço o perdão de Vossa Majestade. Estou muito desconcertado em encontrar-me com o Rei.
Auberon levantou a mão com grandeza indescritível:
— Não com o Rei, com o correspondente de guerra especial do Jornal da Corte.
— Peço o perdão de Vossa Majestade — começou o Sr. Bowles, em dúvida.
— Chama-me de Majestade? Repito — disse Auberon, com firmeza —, sou um representante da imprensa. Escolhi, com um profundo senso de responsabilidade, o nome de Pinígero. Desejo um véu sobre o passado.
— Muito bem, senhor — disse Bowles, com um ar de submissão —, aos nossos olhos a santidade de imprensa é pelo menos tão grande como a do trono. Não desejamos nada mais que nossos erros e as nossas glórias sejam amplamente conhecidas. Posso perguntar, Pinker, se tem alguma objeção a ser apresentado ao superintendente e ao General Turnbull?
— O superintendente já tive a honra de conhecer — disse Auberon, simplesmente. —Nós velhos jornalistas, sabe, encontramos todo mundo. Estaria encantado em ter a mesma honra novamente. Também seria uma satisfação conhecer o General Turnbull. Os homens mais jovens são tão interessantes. Nós, da velha gangue de Fleet Street perdemos o contato com eles.
— Se importa de me acompanhar? — disse o líder da companhia O.
— De maneira alguma — disse Pinker. — Pode prosseguir.
O artigo do correspondente especial do Jornal da Corte chegou no devido tempo, escrito num papel muito grosseiro na arabesca caligrafia do rei, em que três palavras enchiam uma página, e ainda eram ilegíveis. Além disso, a contribuição era mais desconcertante no início, que era aberto com uma sucessão de parágrafos apagados. O escritor parecia ter tentado o artigo, uma vez ou duas vezes, em diversos estilos jornalísticos. Ao lado de um experimento estava escrito “Tentar o estilo americano", e começou o fragmento:
“O rei deve ir. Queremos homens corajosos. Tudo é um disparate muito…”. E depois parou, seguido pela nota “O bom e correto jornalismo é mais seguro. Experimentar”
A experiência em bom e correto jornalismo pareceu começar:
“O maior dos poetas ingleses disse que uma rosa por qualquer...”
Também parou abruptamente. A anotação seguinte, no lado era quase indecifrável, mas parecia ser algo como:
“Que tal o velho Steevens e a mot juste? Por exemplo:”
“A manhã cintilou um pouco cansada para mim sobre a borda cortante de Campden Hill e suas casas com nítidas sombras. Sob o contorno preto de papelão, levou algum tempo para distinguir cores; mas finalmente vi um amarelo acastanhado deslocando-se na obscuridade, e sabia que era a guarda de Swindon do exército de West Kensington. Estão sendo mantidos como reserva, e revestiram todo o cume acima de Bayswater Road. Seu acampamento e sua principal força está sob a Torre de Waterworks em Campden Hill. Esqueci de dizer que a Torre de Waterworks parecia escura.
Enquanto passava por eles e me aproximava da curva de Silver Street, vi as massas nubladas azuis de homens de Barker bloqueando a entrada da estrada alta como uma fumaça safira (bom). A disposição das tropas aliadas, sob a gerência geral do Sr. Wilson, parece ser a seguinte: O Exército Amarelo (se assim posso descrever os homens de West Kensington) está, como já disse, em uma faixa ao longo do cume, o seu ponto mais a oeste sendo o lado oeste de Campden Hill Road, cujo ponto mais distante ao leste está no início de Kensington Gardens. O exército Verde de Wilson alinha-se na Notting Hill High Road de Queen’s Road até o canto de Pembridge Road, curvando-se em torno da segunda, e estendendo-se trezentos metros em direção a Westbourne Grove. Westbourne Grove em si é ocupada por Barker de South Kensington. O quarto lado deste quadrado grosseiro, o lado de Queen’s Road, é mantido por alguns dos guerreiros púrpuras de Buck.
O conjunto assemelha-se a alguns antigos e delicados canteiros holandeses. Ao longo do cume de Campden Hill encontram-se açafrões dourados de West Kensington. Eles são, por assim dizer, a primeira franja inflamada do todo. Em Northward está o nosso jacinto Barker, com todos os seus jacintos azuis. Em volta para o sul-oeste correm os juncos verdes de Wilson de Bayswater, e uma linha de lírios violetas (adequadamente simbolizada pelo Sr. Buck) completa o conjunto. O exterior argento... (Estou perdendo o estilo. Deveria ter dito ‘Curvar como um batedor’ em vez de apenas ‘curvar’. Também deveria ter chamado os jacintos ‘repentinos’. Não posso continuar com isso. A guerra é demasiado rápida para este estilo de escrita. Peça ao office-boy para inserir mots justes.)
A verdade é que não há nada a relatar. Esse elemento comum que está sempre pronto para devorar todas as coisas belas (como o porco preto na mitologia irlandesa finalmente devora as estrelas e deuses); este elemento comum, como digo, tem a seu modo finalmente devorado as chances de qualquer romance, neste caso, o que uma vez consistia de combates absurdos, mas emocionantes nas ruas, degenerou-se em algo que é a prosa da guerra — degenerou-se em um cerco. Um cerco pode ser definida como uma paz mais o inconveniente de guerra. Naturalmente Wayne não pode aguentar. Não há mais possibilidade de ajuda de qualquer outro lugar do que de navios da lua. E mesmo se o velho Wayne tivesse abastecido sua rua com carne em lata até que toda a guarnição tivesse que se sentar sobre elas, não poderia resistir por mais de um mês ou dois. Na melancólica realidade, fez algo como isso. Abasteceu sua rua com comida de forma que não deve haver espaço extraordinariamente para se virar. Mas para que isso? Para aguentar um longo tempo e, em seguida, desistir em caso de necessidade, o que significa isso? Isto significa esperar até que suas vitórias sejam esquecidas, e em seguida, ser derrotado. Não consigo entender como Wayne pode ser tão inartístico.
E como é estranho que se vê uma coisa bem diferente quando se sabe que está derrotado! Sempre pensei que Wayne foi bastante bem. Mas agora, quando sei do que ele é feito, não parece haver nada mais do que Wayne. Todos as ruas parecem apontar para ele, todas as chaminés parecem inclinar-se para ele, acho que é um sentimento mórbido; mas Pump Street parece ser a única parte de Londres que sinto fisicamente. Acho, digo, que isto é mórbido. Acho que é exatamente como um homem se sente sobre o seu coração quando seu coração é fraco. ’Pump Street’ — o coração é uma bomba. E estou bem sentimental.
Nosso melhor líder na linha de frente é, sem sombra de dúvida, o general Wilson. Ele adotou sozinho entre os superintendentes o uniforme de seus próprios alabardeiros, apesar de que os trajes do século XVI não foram originalmente planejados para acompanhar suíças vermelhas. Foi ele que, contra uma defesa mais admirável e desesperada, partiu ontem à noite para Pump Street e a manteve pelo menos meia hora. Ele foi posteriormente expulso pelo general Turnbull, de Notting Hill, mas só depois de uma luta desesperada e a descida repentina da escuridão terrível que se mostrou ainda mais fatal para as forças dos generais Buck e Swindon.
O superintendente Wayne mesmo, com quem tive, com muita sorte, uma entrevista bem interessante, deu o testemunho mais eloquente da conduta do general Wilson e os seus homens. Suas precisas palavras foram as seguintes: ‘Tenho comprado doces em sua lojinha engraçada desde quando tinha quatro anos de idade. Nunca notei nada, tenho vergonha de dizer, exceto que ele falava pelo nariz, e não costumava lavar-se muito. Ele veio a nossa barricada como um demônio do inferno.’ Repeti esse discurso ao próprio General Wilson, com algumas melhorias delicadas, e ele parecia satisfeito com isto. Ele não parece, no entanto, satisfeito com nada tanto agora quanto com o uso de uma espada. Tenho direto da melhor autoridade que o general Wilson não raspou a face completamente ontem. Acredita-se nos círculos militares de que ele está cultivando um bigode...
Como disse, não há nada a relatar. Ando cansado para a caixa de correio no canto de Pembridge Road para postar meu artigo. Nada aconteceu, a não ser os preparativos para um particularmente longo e frágil cerco, durante o qual não pretendo estar na linha de frente. Enquanto olho acima de Pembridge Road para o crepúsculo, o aspecto da estrada me lembra que há uma nota a acrescentar. O general Buck sugeriu, com a perspicácia característica, ao general Wilson que, a fim de afastar a possibilidade de uma catástrofe como a que dominou as forças aliadas no último avanço em Notting Hill (a catástrofe, quer dizer, das lâmpadas apagadas), cada soldado deve ter uma levar uma lanterna acesa no pescoço. Esta é uma das coisas que realmente admiro no general Buck. Ele possui o que as pessoas costumavam chamar de ’humildade do homem de ciência’, isto é, ele aprende constantemente com seus erros. Wayne pode pegá-lo de alguma outra forma, mas não da mesma forma. As lanternas parecem luzes de fadas ao se curvarem em volta do final de Pembridge Road.”
"Depois: Escrevo com alguma dificuldade, porque o sangue escorre pelo meu rosto e faz padrões no papel. O sangue é algo muito bonito; e é por isso que está escondido. Se perguntar por que o sangue escorre pelo meu rosto, só posso responder que fui chutado por um cavalo. Se me perguntar sobre o cavalo, posso responder com algum orgulho que era um cavalo de guerra. Se me perguntar como um cavalo de guerra apareceu em nossa simples guerra pedestre, estou reduzido pela necessidade, tão dolorosa para um correspondente especial, de contar as minhas experiências.
Estava, como já disse, a postar meu artigo na caixa do correio, e de relance fui atraído pela curva brilhante de Pembridge Road, cravejado com as luzes dos homens de Wilson. Não sei o que me fez parar para examinar o assunto, mas tinha uma fantasia de que a linha de luzes, onde se misturara ao indistinto crepúsculo marrom, era mais indistinta do que o habitual. Tinha quase certeza de que, em um certo trecho da estrada onde havia cinco luzes agora havia apenas quatro. Estiquei meus olhos, as contei novamente, e havia apenas três. Um momento depois, havia apenas dois; um instante depois, apenas um; e um instante depois as lanternas perto de mim balançaram como sinos chocalhados, como se tivesse sido atingidas de repente. Queimaram e caíram, e o momento da queda deles foi como a queda do sol e das estrelas do céu. Deixou tudo em uma cegueira primal. Na verdade, a estrada ainda não estava legitimamente escura. Havia ainda os raios vermelhos de um por do sol no céu, e o crepúsculo marrom ainda aquecia, por assim dizer, com um sentimento de luz de fogo. Mas pelos três segundos após as lanternas virarem e caírem, vi na minha frente uma escuridão bloqueando o céu. E no quarto segundo sabia que essa escuridão que bloqueou o céu era um homem num grande cavalo, e fui pisoteado e jogado de lado, por um redemoinho de cavaleiros que varreu a esquina. Enquanto voltaram vi que eles não eram negros, mas escarlates; eram uma sortida dos sitiados, com Wayne cavalgando à frente.
Levantei-me da sarjeta, cego com o sangue de um ferimento superficial de pele, e, estranhamente, não me importando tanto com cegueira ou com a ferida. Por um minuto mortal depois que a incrível cavalgada tinha passado, houve um silêncio morto na estrada vazia. E então veio Barker e todos os seus alabardeiros correndo como demônios na pista deles. Era a sua obrigação guardar o portal que a surtida tinha quebrado, mas eles não contavam, e pequena culpa a deles, com a cavalaria. Como foi, Barker e seus homens fizeram uma perfeita esplêndida corrida atrás deles, quase pegando os cavalos de Wayne pelas caudas.
Ninguém pode compreender a surtida. Ela consiste apenas de um pequeno número da guarnição de Wayne. Turnbull mesmo, com a vasta massa dela, está, sem dúvida, ainda barricada em Pump Street. Missões deste tipo são bastante naturais na maioria dos cercos históricos, como o cerco de Paris em 1870, porque nestes casos, o assediado tem certeza de algum apoio externo. Mas o que pode ser o objetivo neste caso? Wayne sabe (ou se é muito louco para saber, pelo menos Turnbull sabe) que não há, e nunca houve, a menor chance de apoio do lado de fora, pois a massa dos modernos e sãos habitantes de Londres considera seu patriotismo farsesco com desprezo, tanto quanto desprezam a idiotia original que lhe deu origem, a loucura do nosso miserável Rei. O que Wayne e seus cavaleiros estão fazendo ninguém pode mesmo conjecturar. A teoria geral da rodada é que ele é simplesmente um traidor, e abandonou os sitiados. Mas os enigmas maiores, mas ainda solúveis não são nada em comparação com o pequeno enigma, mas sem resposta: de onde tiraram os cavalos?”
“Depois: Ouvi um conto extraordinário da origem do aparecimento dos cavalos. Parece que essa pessoa incrível, o General Turnbull, que está agora governando Pump Street, na ausência de Wayne, enviou na manhã da declaração de guerra um grande número de meninos (ou querubins da calha, como nós homens da impressa dizemos), com meias-coroas em seus bolsos, tomar táxis em todo Londres. Nada menos do que cento e sessenta táxis se reuniram na Pump Street; foram requisitados pela guarnição. Os homens foram libertados, os táxis usados para fazer barricadas, e os cavalos mantidos em Pump Street, onde foram alimentados e exercitados por vários dias, até que eles estivessem suficientemente rápidos e eficientes para ser usado neste passeio selvagem para fora da cidade. Se isto é assim, e ouvi da melhor autoridade possível, o método da surtida é explicado. Mas não temos nenhuma explicação de seu objetivo. Quando os azuis de Barker atravessavam a esquina atrás deles, foram parados, não por um inimigo, mas pela voz de um homem, e era um amigo. Red Wilson de Bayswater correu sozinho ao longo da estrada principal como um louco, acenando com uma alabarda arrancada de uma sentinela. Ele estava no comando supremo, e Barker parou no canto, olhando e desorientado. Podíamos ouvir a voz de Wilson alta e distinta no anoitecer, de modo que parecia estranho que a grande voz saísse do pequeno corpo. ‘Pare, South Kensington! Guarde esta entrada, e impeça-os de retornar. Vou persegui-los. Para a frente, Guarda Verde!’
Uma parede de uniformes escuros azuis e uma floresta de poleaxes estava entre mim e Wilson, pois os homens de Barker bloquearam a boca da estrada em duas linhas rígidas. Mas através deles e através do crepúsculo podia ouvir claramente as ordens e o clangor de armas, e ver o exército verde de Wilson marchar para o oeste. Eles eram os nossos grandes lutadores. Wilson os tinha preenchido com seu próprio fogo, em poucos dias eles haviam se tornado veteranos. Cada um deles usava uma medalha de prata de uma bomba, para vangloriar-se de que só eles de todos os exércitos aliados ficara vitorioso em Pump Street.
Consegui driblar o destacamento azul de Barker, que guardava o final de Pembridge Road, e, apertando o passo, alcancei a cauda do exército verde de Wilson enquanto descia a estrada em busca do rápido Wayne. O crepúsculo tinha-se aprofundado numa escuridão quase total, e por algum tempo, só ouvi o batimento do ritmo da marcha. Então, de repente houve um grito, e os grandes lutadores foram arremessados para trás, quase me esmagando, e as lanternas novamente balançaram e tilintaram, e narizes frios de grandes cavalos nos pressionaram. Eles haviam se virado e dado carga.
‘Seus tolos!’, veio a voz de Wilson, cortando nosso pânico com uma esplêndida raiva fria. ‘Não veem? Os cavalos não têm cavaleiros!’
Era verdade. Estávamos no meio de uma debandada de cavalos com selas vazias. O que poderia significar? Será que Wayne encontrou alguns dos nossos homens e foi derrotado? Ou jogou os cavalos em nós como uma espécie de ardil ou um novo modo louco de guerra, tal como ele parecia decidido a inventar? Ou será que ele e os seus homens querem fugir disfarçados? Ou será que querem se esconder nas casas?
Nunca admirei tanto o intelecto de qualquer homem (nem mesmo o meu próprio) tanto quanto o de Wilson naquele momento. Sem dizer uma palavra, simplesmente apontou a alabarda (que ainda segurava) para o lado sul da estrada. Como se sabe, as ruas até o cume de Campden Hill a partir da estrada principal são peculiarmente íngremes, elas são mais como caminhos bruscos de escadas. Estávamos em frente de Aubrey Road, a mais íngreme de todas; teria sido muito mais difícil subir com cavalos semi-treinados do que subir a pé.
‘Gire à esquerda!’ gritou Wilson. ‘Eles passaram por aqui’, acrescentou para mim, que estava ao lado do seu cotovelo.
’Por quê?’, atrevi a perguntar.
‘Não é possível dizer com certeza’, respondeu o general de Bayswater. ‘Vieram até aqui com muita pressa, de qualquer maneira. Eles simplesmente soltaram seus cavalos, porque não podiam levá-los para cima. imagino que estão tentando subir o cume de Kensingston ou Hammersmith, ou em algum lugar, e estão atacando aqui pois é um pouco além do fim da nossa linha. Malditos tolos, por não ter ido mais adiante na estrada, no entanto. Apenas escaparam do nosso último posto. Lambert está a pouco mais de 400 metros daqui. E eu o avisei.’
‘Lambert!’ , eu disse. ‘Não o jovem Wilfrid Lambert - meu velho amigo.’
‘Wilfrid Lamber é o nome dele’, disse o general, ‘costumava ser um citadino; um companheiro parvo com um nariz grande. Esse tipo de homem sempre é voluntário para alguma guerra ou de outra, e o que é mais engraçado, geralmente não é ruim nisso. Lambert é distintamente bom. Sempre considerei os amarelos de West Kensingtons como a parte mais fraca do exército, mas ele os conduziu juntos extraordinariamente bem, apesar de ser subordinado ao Swindon, que é um burro. No ataque de Pembridge Road na outra noite, ele mostrou grande coragem.’
‘Demonstrou maior coragem do que isso’, eu disse. ‘Ele criticou o meu senso de humor. Esse foi seu primeiro combate.’
Esta observação foi, lamento dizer, perdida no admirável comando das forças aliadas. Estávamos subindo a última metade de Aubrey Road, que é tão abrupta que se parece com um mapa antigo inclinando-se contra a parede. Existem linhas de árvores pequenas, uma por cima da outra, como em um mapa antigo.
Chegamos ao topo, arfando um pouco, e estávamos prestes a virar a esquina num lugar chamado (em antecipação cavalheiresca a nossas guerras de espada e machado) Tower Crecy, quando fomos subitamente abatidos no estômago (não posso usar nenhum outro termo) por uma horda de homens que se atirou sobre nós. Usavam o uniforme vermelho de Wayne; suas alabardas estavam quebradas; testas sangrando, mas o mero ímpeto de sua retirada nos atordoou enquanto estávamos no último cume da encosta .
‘O bom e velho Lambert!’, gritou de repente o impassível Sr. Wilson de Bayswater, com uma emoção incontrolável. ‘Maldito velho alegre Lambert! Ele já conseguiu! Ele está dirigindo-os de volta para nós! Hurra! Hurra! Avante, Guarda Verde!’
Viramos para o canto leste, Wilson correndo primeiro, brandindo a alabarda..
Pode perdoar um pouco de egoísmo? Todos gostam um pouco de egoísmo, quando toma a forma, como neste caso, de uma confissão vergonhosa. A coisa é realmente um pouco interessante, porque mostra como o hábito meramente artístico contamina homens como eu. Foi a ocorrência mais intensamente emocionante que já aconteceu em minha vida; e estava realmente animado sobre isso. E ainda, quando viramos a esquina, minha primeira impressão foi de algo que não tinha nada a ver com a luta. Fui aturdido pelos céus como por um raio, pela altura da torre de água de Campden Hill. Não sei se os londrinos geralmente percebem o quão alta se parece quando se está quase que imediatamente sob ela. Por um segundo, pareceu-me que mesmo a guerra humana era uma trivialidade aos pés dela. Por um segundo, senti-me como se antes estivesse ébrio de alguma orgia trivial, e agora estivesse sóbrio pelo choque desta sombra. Um momento depois, percebi que sob ela havia algo mais duradouro do que a pedra, e algo mais selvagem que a atordoante altura — a agonia do homem. E sabia que, em comparação a isso, esta torre esmagadora era uma trivialidade, era uma haste simples de pedra que a humanidade poderia quebrar como um palito.
Não sei por que falei tanto sobre esta velha torre de água boba, que na melhor das hipóteses era apenas um enorme fundo de tela. Era, certamente, uma paisagem sombria e terrível, contra a qual os nossas figuras eram aliviados. Mas acho que a verdadeira razão foi que, havia em minha própria mente uma transição tão cortante da torre de pedra ao homem de carne e osso. Pois o que primeiro vi quando me recuperei, foi a sombra da torre, como se fosse um homem, e um homem que eu conhecia.
Lambert estava no canto mais distante da rua que curva ao redor da torre, sua figura delineada pelo nascer da lua. Estava magnífico, um herói; mas parecia algo muito mais interessante do que isso. Estava, como aconteceu, quase exatamente na mesma atitude arrogante em que estava há quase 15 anos atrás, quando balançou sua bengala e atingiu-a no chão, e me disse que toda a minha sutileza era bobagem. E, na minha alma, acho que isso exigiu mais coragem dele do que a luta agora. Pois então estava lutando contra algo que estava em ascensão, elegante, e vitorioso. E agora está lutando (com o risco de sua vida, sem dúvida) simplesmente contra algo que já está morto, que é impossível, fútil; do qual nada foi mais impossível e inútil do que esta surtida. As pessoas hoje em dia menosprezam o sentido psicológico da vitória como um fator nos confrontos. Então, ele estava atacando um degradado, mas, sem dúvida, vitorioso Quin, e agora ele está atacando um interessante, mas totalmente acabado Wayne.
Seu nome me faz lembrar dos detalhes da cena. Os fatos foram os seguintes. Uma linha de alabardeiros vermelhos, dirigida por Wayne, estava marchando pela rua, perto da parede norte, que é, de fato, a parte inferior de um tipo de dique ou fortificação da torre de água. Naquele instante, Lambert e seus amarelos de West Kensingtons varreram a esquina abalando os homens de Wayne pesadamente, e empurram de volta alguns dos mais tímidos, como acabei de descrever, para os nossos braços. Quando nossa força atingiu a retaguarda de Wayne, todos sabiam que estava terminado. Seu barbeiro militar favorito foi atingido. Sua mercearia estava atordoada. Ele próprio foi ferido na coxa, e cambaleou para trás contra a parede. Nós o tínhamos em uma armadilha com duas garras. ‘É você?’ gritou jovialmente Lambert a Wilson para além das cercas de Notting Hill. ‘Este é segredo’, respondeu o General Wilson, ‘mantê-los sob a parede.’
Os homens de Notting Hill foram caindo rapidamente. Adam Wayne ergueu os longos braços na parede acima dele, e com um salto a escalou; era uma figura gigantesca contra a lua. Arrancou a bandeira das mãos do porta-estandarte abaixo dele, e sacudiu-a de repente acima de nossas cabeças, de modo que era como um trovão no céu.
‘Em volta do Leão Vermelho!’, gritou. ‘Espadas em torno do Leão Vermelho! Alabardas em torno do Leão Vermelho! Eles são espinhos ao redor da rosa.’
Sua voz e o estalido da bandeira causaram uma corrida momentânea, mas Lambert, cujo rosto idiota estava quase bonito com a batalha, sentiu por instinto, e gritou:
‘Largue a bandeira da sua casa, seu tolo! Largue isso!’
‘A bandeira do Leão Vermelho raramente se inclina’, disse Wayne, orgulhosamente, exibindo-a exuberantemente no vento da noite.
No momento seguinte sabia que a pobre teatralidade sentimental de Adam lhe custou muito. Lambert estava a um salto da parede, a sua espada em seus dentes, e atacou a cabeça de Wayne antes que ele tivesse tempo de sacar sua espada, suas mãos ocupadas com a enorme bandeira. Deu um passo para trás apenas a tempo de evitar o primeiro corte, e deixou cair o mastro de bandeira, de modo que a lâmina de lança no final dela apontou para Lambert.
‘A bandeira se inclina’, bradou Wayne, numa voz que deve ter assustado as ruas. ‘A bandeira de Notting Hill inclina-se para um herói.’ E com estas palavras, dirigiu a ponta de lança e metade do mastro de bandeira através do corpo de Lambert que caiu morto na estrada abaixo, uma pedra sobre as pedras da rua.
‘Notting Hill! Notting Hill!’, gritou Wayne, numa espécie de raiva divina. ‘Sua bandeira é ainda mais santa para o sangue de um inimigo valente! Para cima do muro, patriotas! Para cima do muro! Notting Hill!’
Com seu longo braço forte ele realmente arrastou um homem acima do muro como uma silhueta contra a lua, e mais e mais homens subiram lá em cima, puxando a si mesmos e sendo puxados, até que os grupos e multidões dos homens meio massacrados de Pump Street estavam no muro acima de nós.
‘Notting Hill! Notting Hill!’, gritou Wayne, incessantemente.
‘Bem, o que dizer de Bayswater?’, disse um homem trabalhador digno do exército de Wilson, irritado. ‘Bayswater para sempre!’
‘Nós ganhamos!’, Wayne gritou, batendo mastro de bandeira no chão. ’Bayswater para sempre! Ensinamos nosso patriotismo aos inimigos!’
‘Oh, vamos cortá-los e acabar com isto!’, gritou um dos tenentes de Lambert, que estava reduzido a algo que beirava a loucura com a responsabilidade de suceder ao comando.
‘Vamos tentar por todos os meios’, disse Wilson, sóbrio; e os dois exércitos se fecharam ao redor do terceiro.”
“Simplesmente não posso descrever o que se seguiu. Sinto muito, mas há tal coisa como a fadiga física, como a náusea física, e, devo acrescentar, como terror físico. Basta dizer que o parágrafo acima foi escrito cerca de 11 horas da manhã, e que agora é cerca de duas horas da tarde, e que a batalha ainda não terminou, e não é provável que termine. Basta dizer que além das ruas íngremes que levam desde a Torre de Água para a alta estrada de Notting Hill, sangue esteve correndo, e está correndo, em grandes serpentes vermelhas, que se enrolam na via principal e brilham na lua.”
"Depois: O toque final foi dado a toda esta futilidade terrível. Horas se passaram; amanheceu, os homens ainda estão balançando, lutando ao pé da torre e na esquina de Aubrey Road; a luta não terminou. Mas sei que é uma farsa.
Notícias acabam de chegar para mostrar que a incrível surtida de Wayne, seguida pela resistência incrível por uma noite inteira no muro da torre d’água, foi inútil. Qual era o objetivo desse estranho êxodo provavelmente nunca saberemos, pela simples razão de que todo aquele que sabia provavelmente estará cortado em pedaços no decorrer das próximas dois ou três horas.
Ouvi, cerca de três minutos atrás, que os métodos de Buck ganharam ao final. Ele estava perfeitamente correto, é claro, quando se pensa nisso, ao considerar que era fisicamente impossível para uma rua derrotar uma cidade. Enquanto pensamos que estava patrulhando as portas orientais com seu exército púrpura; enquanto estávamos correndo pelas ruas e acenando alabardas e lanternas, enquanto o pobre Wilson estava planejando como Moltke e combatendo como Aquiles para prender o superintendente selvagem de Notting Hill — o Sr. Buck, comerciante de tecidos aposentado, simplesmente pegou um táxi e fez algo tão simples como manteiga e tão útil e desagradável quanto. Desceu até South Kensington, Brompton, e Fulham, e gastando cerca de quatro mil libras de seus meios privados, levantou um exército de quase tantos homens; isto é, um grande exército suficiente para vencer, não apenas Wayne, mas Wayne e todos os seus inimigos presentes juntos. O exército, entendo, está acampado junto a High Street, Kensington, e preenche da Igreja até Addison Road Bridge. É para avançar por dez caminhos diferentes subindo para o norte.
Não posso suportar ficar aqui. Tudo torna isto pior do que o necessário. O amanhecer, por exemplo, chegou a Campden Hill; espaços esplêndidos de prata, com borda de ouro, rasgam o céu. Pior ainda, Wayne e seus homens sentiram o amanhecer; seus rostos, embora sangrentos e pálidos, são estranhamente esperançosos... insuportavelmente patético. Pior de tudo, no momento estão ganhando. Se não fosse por Buck e do seu novo exército poderiam apenas, e somente apenas, ganhar.
Repito, não aguento. É como assistir a essa velha peça maravilhosa de Maeterlinck (conhecem minha parcialidade para os saudáveis, alegres velhos autores do século XIX), em que se tem que observar a conduta tranquila de pessoas dentro de uma sala de estar, mesmo sabendo que há homens na porta cuja palavra pode explodir tudo com tragédia. E é pior, pois os homens não estão falando, mas se contorcendo e sangrando e caindo mortos por uma coisa que já está resolvida e decidida contra eles. As grandes massas cinzentas de homens ainda trabalham, puxam e balançam lá e para cá em torno da grande torre cinza, e a torre ainda está imóvel, como será sempre imóvel. Esses homens serão esmagados antes de o sol se por, e novos homens irão surgir e ser esmagados, e novos erros serão feitos, e a tirania vai sempre se levantar de novo, como o sol, e a injustiça sempre será tão fresca como as flores da primavera. E a torre de pedra vai sempre olhar para baixo. A matéria, em sua beleza brutal, sempre olha para baixo para aqueles que são loucos o suficiente para consentir em morrer, e ainda mais loucos, uma vez que consentem em viver.”
E assim terminou abruptamente a primeira e última contribuição do Correspondente Especial do Jornal da Corte nesse valorizado periódico.
O correspondente, como já foi dito, estava simplesmente triste e enjoado com a última notícia do triunfo de Buck. Ele desceu desleixado tristemente a íngreme Aubrey Road, que na noite anterior tinha subido em uma excitação tão incomum, e caminhou para a estrada principal vazia iluminada pelo amanhecer, procurando vagamente por um táxi. Não viu nada no espaço aberto, exceto algo reluzente azul e dourado, correndo muito rápido, que parecia à primeira vista algo como um besouro muito alto, mas acabou, para sua grande surpresa, por ser Barker.
— Já ouviu a boa notícia? — perguntou o cavalheiro.
— Sim —, disse Quin, com uma voz calma. — Ouvi as boas novas de grande alegria. Vamos pegar uma carruagem até Kensington? Vejo uma ali.
Eles pegaram o táxi, e foram, em quatro minutos, em frente às fileiras do multitudinário e invencível exército. Quin não tinha falado uma palavra em todo o trajeto, e algo nele tinha impedido o essencialmente impressionável Barker de falar também.
O grande exército, que se movia em Kensington High Street, chamava muitas cabeças para as inúmeras janelas, pois fazia tempo, de fato – mais do que a vida da maioria dos jovens – que um exército destes tinha sido visto em Londres. Em comparação com a vasta organização que agora estava engolindo quilômetros, com Buck na dianteira como líder, e o rei na traseira como jornalista, toda a história do problema era insignificante. Na presença daquele exército, os vermelhos de Notting Hill e os verdes de Bayswater eram igualmente pequenos grupos dispersos. Em sua presença todo o esforço em torno de Pump Street era como um formigueiro sob o casco de um boi. Todo homem que sentiu ou olhou aquela infinidade de homens sabia que era o triunfo da aritmética brutal de Buck. Se Wayne estava certo ou errado, sábio ou tolo, era um assunto muito justo para discussão. Mas era uma questão de história. Ao pé da Church Street, em frente à igreja de Kensington, fizeram uma pausa com um brilhante bom humor.
— Vamos enviar algum tipo de mensageiro ou nos anunciar a eles — disse Buck, virando-se para Barker e do rei. — Vamos enviar e pedir-lhes para se render sem mais confusão.
— O que vamos dizer a eles? — disse Barker, em dúvida.
— Os fatos são suficientes para o caso — respondeu Buck. — São os fatos que convencem uma rendição do exército. Vamos simplesmente dizer que os dois exércitos lutando agora são, no total, cerca de mil homens. Digamos que temos quatro mil. É muito simples. Dos mil combatentes, agora o inimigo tem no máximo trezentos, então com estes trezentos, agora tem de lutar contra quatro mil e setecentos homens. Deixe-os fazê-lo se os divertem.
E o superintendente de North Kensington riu.
O arauto despachado até Church Street em toda a pompa azul e dourada de South Kensington, com os três pássaros em seu tabardo, foi acompanhado por dois trompetistas.
— O que vão fazer quando se renderem? — perguntou Barker, a fim de dizer algo no silêncio repentino do imenso exército.
— Conheço Wayne muito bem — disse Buck, rindo. — Quando se submeter, irá enviar um arauto vermelho flamejante com o Leão de Notting Hill. Mesmo a derrota será agradável para ele, desde que formal e romântica.
O Rei, que caminhou até a cabeça da linha, quebrou o silêncio pela primeira vez:
— Não me espantaria se ele desafiar você, e não enviar o arauto depois de tudo. Não acho que conhece Wayne tão bem quanto pensa.
— Tudo bem, vossa Majestade, — disse Buck, tranquilamente — se não for desrespeitoso, demonstrarei meus cálculos políticos de uma forma muito simples, aposto dez libras por um xelim que o arauto retorna com a rendição.
— Tudo bem — disse Auberon. — Posso estar errado, mas a minha noção de Adam Wayne é que ele vai morrer em sua cidade, e que, até que esteja morto, esta não vai ser uma propriedade segura.
— A aposta está feita, vossa Majestade — disse Buck.
Outro longo silêncio se seguiu, no curso do qual Barker sozinho, em meio ao exército imóvel, caminhou batendo os pés em seu jeito inquieto.
Então, de repente, Buck inclinou-se para a frente:
— Vou tomar o seu dinheiro, vossa Majestade. Eu sabia. Lá vem o arauto de Adam Wayne.
— Não — gritou o rei, olhando a frente também. — Seu bruto, é um ônibus vermelho.
— Não — disse Buck, calmamente, e o rei não respondeu, pois por baixo do centro da espaçosa e silenciosa Church Street estava andando, sem sombra de dúvida, o arauto do Leão Vermelho, com dois trompetistas.
Buck tinha algo nele que lhe ensinou a ser magnânimo. Em sua hora de sucesso, sentiu-se magnânimo para com Wayne, a quem realmente admirava; magnânimo para com o Rei, por quem fora marcado tão publicamente, e, acima de tudo, magnânimo para com Barker, que era o líder titular deste vasto exército de South Kensington, que seu próprio talento tinha evocado.
— General Barker — disse ele, curvando-se —, se propõe a receber a mensagem do sitiado?
Barker também se curvou, e avançou para o arauto.
— Seu mestre, o Sr. Adam Wayne, recebeu nosso pedido para rendição? — perguntou ele.
O arauto transmitiu uma afirmativa solene e respeitosa.
Barker retomou, tossindo um pouco, mas encorajado.
— Qual a resposta que seu mestre enviou?
O arauto novamente inclinou-se submisso, e respondeu com uma espécie de monotonia:
— Minha mensagem é esta. Adam Wayne, alto lorde superintendente de Notting Hill, sob a Carta do Rei Auberon e as leis de Deus e toda a humanidade, livre e de uma cidade livre, cumprimenta James Barker, alto lorde superintendente de South Kensington, pelos mesmos direitos livre e honrado, líder do exército do sul. Com toda a amigável reverência, e com toda a consideração constitucional, deseja que James Barker deponha suas armas, e que todo o exército sob seu comando que deponha as armas também.
Antes que as palavras terminassem o rei correu para o espaço aberto com os olhos brilhando. O resto do pessoal e da vanguarda do exército ficou literalmente sem fôlego. Quando se recuperaram, começaram a rir além da contenção; a revulsão foi muito repentina.
— O alto lorde superintendente de Notting Hill — continuou o arauto —, não propõe, no caso de sua rendição, usar sua vitória para um destes fins repressivos que outros têm entretido contra ele. Permitirá suas leis livres e suas cidades livres, suas bandeiras e seus governos. Ele não vai destruir a religião de South Kensington, ou esmagar os velhos costumes de Bayswater.
Uma explosão de riso incontrolável subiu da vanguarda do grande exército.
— O rei deve ter tido algo a ver com este humor — disse Buck, batendo na coxa. — É muito deliciosamente insolente. Barker, um copo de vinho.
E em sua convivialidade ele realmente enviou um soldado ao restaurante em frente à igreja que trouxe dois copos para um brinde.
Quando o riso tinha morrido, o arauto continuou bastante monótono:
— No caso da rendição de seus exércitos e dispersão sob a superintendência de nossas forças, seus direitos locais serão cuidadosamente observados. No caso de não fazê-lo, o alto lorde superintendente de Notting Hill deseja anunciar que acaba de capturar a Torre de Água, logo acima, em Campden Hill, e que dentro de 10 minutos a partir de agora, isto é, recebendo através de mim a sua recusa, abrirá o grande reservatório e inundará todo o vale onde estão sob trinta metros de água. Deus salve o Rei Auberon!
Buck deixou cair o copo e fez um grande respingo de vinho sobre a estrada.
— Mas-mas... — disse, e em seguida, com um último e esplêndido esforço de sua grande sanidade, observou os fatos a sua frente.
— Temos que nos render — disse ele. — Não se pode fazer nada contra cinquenta mil toneladas de água descendo uma colina íngreme, a dez minutos daqui. Devemos nos render. Nossos quatro mil homens bem poderiam ser quatro. Vicisti Galilæe! Perkins, pode me pegar outro copo de vinho.
Desta forma, o vasto exército de South Kensington foi rendido e Império de Notting Hill começou. Um fato a mais neste contexto que talvez vale a pena mencionar - o fato de que, após a sua vitória, Adam Wayne fez com que a grande torre em Campden Hill fosse revestida com ouro e inscrita com um grande epitáfio, dizendo que era o monumento a Wilfrid de Lambert, o defensor heroico do lugar, e coroada com uma estátua, que não fazia justiça a seu grande nariz.
Livro V |
Na noite de três de outubro, vinte anos após a grande vitória de Notting Hill, que conseguiu o domínio de Londres, o rei Auberon saiu, como antigamente, do Palácio de Kensington.
Havia mudado muito pouco, exceto por um ou dois traços cinzentos em seu cabelo, pois o seu rosto sempre tinha sido velho, e o seu passo lento, e, por assim dizer, decrépito.
Se parecia velho, não era por causa de algo físico ou mental. Era porque ainda usava, com um conservadorismo pitoresco, o fraque e chapéu alto dos dias de antes da grande guerra. Dizia ele:
— Sobrevivi ao Dilúvio. Sou uma pirâmide, e devo me comportar como tal.
Enquanto ele passava pela rua os habitantes de Kensington, em suas pitorescas batas azuis, o saudavam como rei, e em seguida, olhavam para ele como uma curiosidade. Parecia estranho a eles que os homens tivessem alguma vez usado um traje tão élfico.
O Rei, cultivando a caminhada atribuída ao mais antigo habitante (seus amigos estavam agora confidencialmente o chamando "Velho Auberon"), foi a passos vacilantes para o norte. Ele fez uma pausa, com uma reminiscência em seu olho, no Portão Sul de Notting Hill, um dos nove grandes portões de bronze e aço, forjados com marcas de batalhas antigas, pela mão do mesmo Chiffy.
— Ah! – disse, balançando a cabeça e assumindo um ar desnecessário de idade, e um sotaque provinciano. — Lembro quando não havia nada disso aqui.
Passou pelo portão Ossington, com um grande leão no topo, feito em cobre vermelho e latão amarelo, com o lema: "Notting Ill" (Nada mal). O guarda em vermelho e ouro o saudou com sua alabarda.
O sol estava para se por, e as lâmpadas estavam sendo acesas. Auberon fez uma pausa para olhá-las, pois eram os melhores trabalhos de Chiffy, e seu olhar artístico nunca deixou de festar com elas. Em memória a Grande Batalha das Lâmpadas, sobre cada grande lâmpada de ferro havia uma figura velada, espada na mão, segurando sobre a chama uma capa de ferro ou extintor, como se estivesse pronto para usá-la se os exércitos do sul e do oeste mostrassem de volta suas bandeiras na cidade. Assim, nenhuma criança de Notting Hill poderia brincar nas ruas sem os próprios postes de iluminação lembrando-as da salvação de seu país naquele ano terrível.
— O velho Wayne estava certo de certa forma — comentou o rei. — A espada faz coisas bonitas. Agora tornou o mundo inteiro romântico. E pensar que as pessoas me consideravam um palhaço por sugerir uma Notting Hill romântica. Pobre de mim, pobre de mim! (Acho que é esta a expressão.) Parece outra vida.
Virando a esquina, encontrou-se em Pump Street, em frente das quatro lojas onde Adam Wayne tinha estudado vinte anos antes. Entrou ociosamente na loja do sr. Mead, o dono da mercearia. O sr. Mead estava um pouco mais velho, como o resto do mundo, e sua barba vermelha, que agora usava com um bigode, longa e cheia, estava parcialmente esbranquiçada e descolorida. Ele estava vestido com uma túnica longa e ricamente bordada de azul, marrom e vermelho, entrelaçado com um complexo padrão oriental, e coberta com símbolos obscuros e imagens, representando suas mercadorias que passavam de mão em mão e de nação para nação. Em volta do pescoço estava a corrente com o corte azul carraca em turquesa, que usava como o Grão-Mestre das Mercearias. A loja inteira tinha a aparência sombria e suntuosa de seu proprietário. Os produtos eram exibidos com destaque como nos dias antigos, mas agora estavam misturados e combinados com um sentido de tonalidade e de agrupamento, muitas vezes negligenciado pelas mercearias opacas dos dias esquecidos. Os produtos eram mostrados claramente, mas mostrou não tanto como um velho merceeiro mostraria seu estoque, mas sim como um virtuoso educado mostraria seus tesouros. O chá foi armazenado em grandes vasos azuis e verdes, inscritos com as nove palavras indispensáveis dos sábios da China. Outros vasos de um confuso laranja e roxo, menos rígido e dominante, mais humilde e sonhador, armazenavam simbolicamente o chá da Índia. Uma linha de caixas de um metal prateado continha simples carnes enlatadas. Cada uma tinha uma forma rude, mas rítmica, como uma concha, uma corneta, um peixe, ou uma maçã, para indicar o material que tinha sido enlatados.
— Vossa Majestade — disse o sr. Mead fazendo uma reverência oriental. — É uma honra para mim, mas ainda mais uma honra para a cidade.
Auberon tirou o chapéu:
— Sr. Mead, Notting Hill, seja dando ou tomando, nada faz sem honra. Acaso vende alcaçuz?
— Alcaçuz, senhor — disse Mead —, não é o menos importante dos nossos benefícios do coração escuro da Arábia.
E indo reverentemente em direção a uma caixinha verde e prata, feita sob a forma de uma mesquita árabe, prosseguiu a servir o seu cliente.
— Estava pensando, Sr. Mead — disse o Rei, pensativo. — Não sei por que eu deveria pensar sobre isso agora, mas estava pensando sobre vinte anos atrás. Lembra-se dos tempos de antes da guerra?
O merceeiro, tendo envolvido os palitos de alcaçuz em um pedaço de papel (inscrito com algum sentimento apropriado), levantou os olhos cinzentos grandes sonhadores, e olhou para o céu escuro lá fora:
— Oh sim, sua Majestade. Lembro-me dessas ruas antes do lorde superintendente começar a nos governar. Não me lembro muito bem como nos sentimos; todas as grandes canções e a luta mudam uma pessoa; e não acho que nós podemos realmente avaliar tudo o que devemos ao superintendente, mas me lembro de sua vinda a esta loja vinte e dois anos atrás, e me lembro das coisas que ele disse. O singular é que, tanto quanto me lembro, achei as coisas que ele disse estranhas na época. Agora são as coisas que eu disse, tanto quanto me lembro delas, que me parecem estranhas – tão estranhas quanto as travessuras de um louco.
— Ah! — disse o Rei, e olhou para ele com uma tranquilidade insondável.
— Eu achava que não havia nada demais em ser dono de uma mercearia — disse ele. — Isso não é bastante estranho? Não pensava nada sobre todos os lugares maravilhosos de onde meus bens vieram, e as formas maravilhosas de que são feitas. Não sabia que era para todos os efeitos práticos, um rei com escravos espetando peixes perto de uma piscina secreta, e coletando frutos nas ilhas sob o mundo. Minha mente estava em branco sobre isso. Era tão louco como um chapeleiro.
O rei virou-se também, e olhou para a escuridão, onde as grandes lâmpadas que comemoravam a batalha já estavam em chamas.
— E este é o fim do pobre velho Wayne? – disse, meio para si mesmo. — Inflamar a todos tanto que ele está perdido nas chamas. É essa a vitória que ele, meu incomparável Wayne, é agora apenas um num mundo de Waynes? Que conquistou e tornou-se comum por conquista? Deve o sr. Mead Senhor! Que mundo estranho, em que um homem não pode permanecer único, mesmo tomando o cuidado de enlouquecer!
E foi sonhador para fora da loja.
Parou em frente da próxima quase exatamente como o superintendente havia feito duas décadas antes:
— Como é invulgarmente assustadora, esta loja! Mas ainda de alguma forma encorajadora assustadora, convidativa assustadora. Parece algo de uma alegre velha história infantil onde está apavorado, e ainda assim sabe que as coisas sempre acabam bem. A maneira que aqueles pequenos frontões afiados são esculpidos como grandes asas pretas de morcego dobrados para baixo, e a forma como estas bacias de cor estranha abaixo brilham como gigantescos globos oculares. Parece uma cabana de um bruxo benevolente. Aparentemente, é uma farmácia.
Quase enquanto falava, o Sr. Bowles, o químico, veio a sua porta da loja com uma toga e capuz de veludo preto longo, monástica como era, mas ainda com um toque de diabólica. Seu cabelo ainda era muito preto, e seu rosto ainda mais pálido do que velho. O único ponto colorido que carregava era uma estrela vermelha feita de alguma pedra preciosa de tonalidade forte, pendurada em seu peito. Ele pertencia à Sociedade da Estrela Vermelha da Caridade, fundada sobre as lâmpadas exibidas por médicos e químicos.
— Boa noite, senhor — disse o químico. — Por que, mal posso estar enganado ao supor que seja Vossa Majestade. Entre e partilharemos uma garrafa de sal volátil, ou qualquer coisa que lhe agrade. Acontece que há um velho conhecido de sua Majestade na minha loja farreando (se me é permitido o termo) essa bebida neste momento.
O Rei entrou na loja, que era um jardim de Aladim com tons e matizes, pois o esquema de cor do químico era mais brilhante do que o esquema da mercearia, e isso foi combinado com delicadeza e ainda mais extravagancia. Nunca, se a expressão pode ser empregue, tal ramalhete de medicamentos havia sido apresentado a um olho tão artístico.
Mas mesmo o arco-íris solene da noite interior era rivalizado ou mesmo eclipsado pela figura de pé no centro da loja. Sua forma, que era grande e imponente, estava vestida com um veludo azul brilhante, cortado na forma mais rica renascentista, e cortado de forma a mostrar brilhos e lacunas de um maravilhoso limão ou amarelo pálido. Ele tinha várias correntes ao pescoço, e suas plumas, que eram de várias tonalidades de bronze e de ouro, pendiam para o grande cabo de ouro de sua espada longa. Ele estava bebendo uma dose de sal volátil, e admirando sua tonalidade opala. O rei avançou com uma mistificação ligeira para o vulto alto, cujo rosto estava na sombra, então disse:
— Pelo Grande Senhor da Sorte, Barker!
A figura tirou o chapéu emplumado, mostrando a mesma cabeça escura e face longa, quase equina que o rei tinha tantas vezes visto saindo de gola alta em Bond Street. Com exceção de uma mancha cinza em cada têmpora, estava totalmente inalterado.
— Vossa Majestade — disse Barker —, esta é uma reunião nobremente retrospectiva, uma reunião que tem um certo outubro dourado. Bebo pelos velhos tempos. — E terminou seu sal volátil com um sentimento simples.
— Estou muito contente em vê-lo novamente, Barker — disse o rei. —Faz realmente muito tempo desde que nos encontramos. Com minhas viagens para a Ásia Menor, e meu livro a ser escrito (é claro que deve ter lido “A vida do príncipe Albert para crianças”), dificilmente nos reunimos duas vezes desde a grande Guerra. Isso faz vinte anos.
— Pergunto-me — disse Barker, pensativo — se posso falar livremente a Vossa Majestade?
— Bem — disse Auberon —, é um pouco tarde no dia para começar a falar respeitosamente. Voe longe, meu pássaro da liberdade.
— Bem, vossa Majestade — respondeu Barker, baixando a voz —, não acho que a próxima guerra vá demorar tanto.
— O que quer dizer? — perguntou Auberon.
— Não vamos suportar mais esta insolência — explodiu Barker, ferozmente. — Não somos escravos porque Adam Wayne há vinte anos nos enganou com um cano de água. Notting Hill é Notting Hill; não é o mundo. Nós em South Kensington, também temos memórias – ay, e esperanças. Se eles lutaram por estas lojas de quinquilharias e alguns postes de iluminação, não devemos lutar pela grande High Street e pelo sagrado Museu de História Natural?
— Grande Céus! — disse que o Auberon atônito. — As maravilhas nunca cessarão? Duas grandes maravilhas já foram alcançados? Você virou altruísta, e Wayne virou egoísta? Você é o patriota, e ele o tirano?
— Não é de Wayne completamente a fonte do mal — respondeu Barker. — Ele, na verdade, está agora na maior parte do tempo envolvido em sonhos, e senta-se com a sua velha espada ao lado do fogo. Mas Notting Hill é o tirano, vossa Majestade. Seu Conselho e as multidões foram tão intoxicadas pelos velhos modos e visões de Wayne espalhando-se por toda a cidade, que tentam intrometer-se com todos, e governar a todos, e civilizar a todos, e dizer a todos o que é bom para eles. Não nego o grande impulso que sua velha guerra, tão selvagem como parecia, deu para a vida cívica do nosso tempo. Ela veio quando eu ainda era jovem, e admito ampliou minha carreira. Mas não vamos ver nossas próprias cidades desrespeitadas e frustradas no dia a dia por causa de algo que Wayne fez para nós todos, quase um quarto de século atrás. Aqui estou apenas esperando notícias deste assunto. Há rumores de que Notting Hill vetou a estátua do general Wilson que estavam colocando em frente a Chepstow Place. Se é assim, isto é uma violação descarada preto no branco das condições da nossa rendição a Turnbull após a batalha da Torre. Deveríamos manter nossos próprios costumes e autogoverno. Se é isso...
— É isso — disse uma voz profunda, e os dois homens se viraram.
Uma figura corpulenta de vestes purpuras, com uma águia de prata no pescoço e bigodes quase tão floridos como suas plumas, estava na porta.
— Sim — disse ele, reconhecendo a surpresa do Rei —, sou o superintendente Buck, e a notícia é verdadeira. Estes homens de Hill esqueceram que lutamos na Torre assim como eles, e que às vezes é tolice, como bem como vil, desprezar os conquistados.
— Vamos sair — disse Barker, com uma compostura sombria.
Buck o fez, e ficou rolando os olhos para cima e para baixo na rua iluminada por lâmpadas.
— Gostaria de esmagar tudo isso — murmurou —, embora tenha mais de sessenta. Eu gostaria...
Sua voz terminou em um grito, e recuou um passo, com as mãos aos olhos, como tinha feito nessas ruas vinte anos antes.
— Trevas! — gritou. — Trevas novamente! O que isto significa?
Pois na verdade cada lâmpada na rua tinha apagado, de modo que não se podia ver, mesmo as formas de outro, exceto vagamente. A voz do químico veio com alegria surpreendente para a opacidade.
— Oh, não sabe? Será que nunca te disseram que isso é a Festa das Lâmpadas, o aniversário da grande batalha que quase perdeu e acabou por salvar Notting Hill? Não sabe, vossa majestade, que nesta noite vinte e um anos atrás, vimos os uniformes verdes de Wilson avançando por esta rua, e empurrando Wayne e Turnbull para trás, para a companhia de gás, lutando com seu punhado como demônios do inferno? E que então, naquela grande hora, Wayne saltou por uma janela, e com um golpe de sua mão trouxe escuridão para toda a cidade, e depois com um grito como o de um leão, que foi ouvido por meio de quatro ruas, atacou os homens de Wilson, espada na mão, e os varreu, confusos como estavam, e ignorantes da região, limpando novamente a rua sagrado? E não sabe que nesta noite a cada ano todas as luzes são apagadas por meia hora, enquanto cantamos o hino de Notting Hill, no escuro? Já começa...
Pela noite veio um barulho de tambores, e em seguida uma forte onda
de vozes humanas:
“Quando o mundo estava na balança, havia noite em Notting Hill,
(havia noite em Notting Hill): mais nobre do que o dia;
Nas cidades onde estão as luzes e os serões brilham,
Dos mares e dos desertos veio algo que não conhecíamos,
Veio a escuridão, veio a escuridão, veio a escuridão sobre o inimigo,
E a velha guarda de Deus virou-se para baía.
Pois a velha guarda de Deus vira-se para baía, vira-se para baía,
E as estrelas caem antes de suas bandeiras no dia:
Pois quando os exércitos estavam ao nosso redor como um uivo e uma
horda,
Quando a cidadela estava caída e quebrada foi a espada,
A escuridão veio sobre eles como o Dragão do Senhor,
Quando a velha guarda de Deus virou-se para baía.”
As vozes estavam se elevando para um segundo verso, quando foram paradas
por um correr e um grito. Barker saltou para a rua com um grito de
“South Kensington!” e uma adaga desembainhada. Em menos tempo do que
um homem pudesse piscar, a rua inteira estava cheia de maldições e
lutando. Barker foi arremessado contra a loja de frente, mas usou
um segundo só para desembainhar a sua espada, bem como sua adaga,
e gritar: “Esta não é a primeira vez que atravesso o grosso de vocês”,
atirando-se de novo para a prensa. Era evidente que finalmente tinha
arrancado sangue, pois um protesto mais violento se levantou, e muitas
outras facas e espadas eram discerníveis na fraca luz. Barker, depois
de ter ferido mais de um homem, parecia a ponto de ser atirado de
volta, quando de repente Buck saiu para a rua. Ele não tinha arma,
pois gostava bastante da magnificência pacífica do grande burgo, em
vez do dandismo combativo que substituiu o velho dandismo sombrio
de Barker. Mas com um golpe de seu punho fechado, quebrou o vidro
da loja ao lado, que era a Old Curiosity Shop, e, mergulhando sua
mão, pegou uma espécie de cimitarra japonesa, e gritando: “Kensington!
Kensington!” – apressou-se a assistir Barker.
A espada de Barker foi quebrada, mas ele a posicionou sobre sua adaga. Enquanto Buck corria, um homem de Notting Hill atingiu Barker por baixo, mas Buck atingiu o homem por cima, e Barker ergueu-se novamente, o sangue escorrendo pelo rosto.
De repente, todos esses gritos foram abafados por uma grande voz, que parecia cair do céu. Foi terrível para Buck e Barker e o Rei, pois parecia sair dos céus vazios, mas foi mais terrível porque era uma voz familiar, e que, ao mesmo tempo que não ouvida há muito tempo.
— Acendam as luzes — disse a voz acima deles, e por um momento não houve resposta, mas apenas um tumulto.
— Em nome de Notting Hill e do grande Conselho da Cidade, acedam as luzes.
Houve novamente um tumulto e uma incerteza por um momento, em seguida, a rua toda e todo objeto nela surgiu de repente da escuridão, pois toda lâmpada voltou a vida. E, olhando viram, de pé em cima de uma varanda, perto do telhado de uma das casas mais altas, a figura e o rosto de Adam Wayne, seu cabelo vermelho esvoaçante, com algumas poucas mechas cinzentas.
— O que é isso, meu povo? É completamente impossível fazer uma coisa boa sem que imediatamente insistam em corrompê-la? A glória de Notting Hill, alcançada a sua independência, foi o suficiente para eu sonhar por muitos anos, enquanto estava sentado ao lado do fogo. Realmente não é o suficiente para vocês, que tiveram tantos outros assuntos para excitá-los e distraí-los? Notting Hill é uma nação. Porque deve se rebaixar a ser um mero Império? Desejam derrubar a estátua do general Wilson, que os homens de Bayswater tão justamente ergueram em Westbourne Grove. Tolos! Quem ergueu a estátua? Será que Bayswater a ergueu? Não. Notting Hill a ergueu. Não veem que é a glória de nossas conquistas que infectou as outras cidades com o idealismo de Notting Hill? Nós é que criamos não apenas o nosso lado, mas ambos os lados desta controvérsia. Ó muito humildes néscios, por que querem destruir seus inimigos? Vocês fizeram mais para eles. Vocês criaram seus inimigos. Deseja derrubar o martelo de prata gigantesco, que se levanta, como um obelisco, no centro da Broadway de Hammersmith. Tolos! Antes de Notting Hill se levantar, alguma pessoa passando por Hammersmith Broadway esperava ver um martelo de prata gigante? Desejam abolir a grande figura de bronze de um cavaleiro de pé sobre a ponte artificial em Knightsbridge. Tolos! Quem teria pensado nisso antes de Notting Hill surgir? Tenho ouvido dizer, e com profunda dor que ouvi, que o olho maligno de nossa inveja imperial foi até o horizonte remoto do oeste, e que se opuseram ao grande monumento preto de um corvo coroado, que comemora a batalha de Ravenscourt Park. Quem criou todas estas coisas? Estavam lá antes de virmos? Não pode se contentar com o destino que foi suficiente para Atenas, que foi suficiente para Nazaré? O destino, o propósito humilde, de criar um mundo novo. Os atenienses ficaram com raiva porque os romanos e florentinos adotaram sua fraseologia para expressar seu próprio patriotismo? Nazaré ficou com raiva por que se tornou o exemplo de pequena aldeia de que, como os esnobes dizem, nada de bom pode vir? Os atenienses pediram para que todos vestir a clâmide? Todos os seguidores do Nazareno são obrigados a usar turbantes? Não! Mas a alma de Atenas se espalhou e fez homens beber cicuta, e a alma de Nazaré se espalhou e fez os homens consentirem a serem crucificados. Então, a alma de Notting Hill se espalhou e fez homens perceber o que é viver em uma cidade. Assim como inauguramos nossos símbolos e cerimônias, assim eles inauguraram as deles, e estão tão loucos para de lutar contra eles? Notting Hill está certa, sempre esteve certa. Ela moldou-se pelas suas próprias necessidades, a sua própria condição sine qua non, que aceitou o seu próprio ultimato. Porque é uma nação que criou a si mesma, e porque é uma nação que pode destruir a si mesma. Notting Hill será sempre o juiz. Se for a sua vontade de por causa desta questão da estátua do General Wilson fazer guerra à Bayswater...
Um rugido de aplausos se intrometeu em suas palavras, e falar mais era impossível. Pálido, o grande patriota tentou falar de novo e de novo, mas mesmo a sua autoridade não poderia controlar as massas escuras rugindo na rua abaixo dele. Ele disse algo mais, mas não era audível. Finalmente desceu tristemente do sótão onde vivia, e se misturou com a multidão ao pé das casas. Encontrou o general Turnbull, e colocou a mão em seu ombro com uma estranha afeição e gravidade, e disse:
— Amanhã, meu velho, teremos uma nova experiência, tão fresca como as flores da primavera. Nós seremos derrotados. Você e eu passamos por três batalhas juntos e, de alguma forma ou de outra, perdemos este prazer peculiar. É uma pena que provavelmente não seremos capazes de trocar nossas experiências, porque, irritantemente, provavelmente estaremos os dois mortos.
Turnbull parecia vagamente surpreso:
— Não me importo muito em ser morto, mas por que diz que seremos derrotados?
— A resposta é muito simples — respondeu Wayne, calmamente. — É porque nós devemos ser derrotados. Entramos em buracos mais horríveis antes; mas em todas as vezes estava perfeitamente convencido que as estrelas estavam do nosso lado, e que deveríamos sair. Agora eu sei que nós não devemos sair, e isto tira de mim tudo aquilo que ganhei.
Enquanto Wayne falava ele se assustou um pouco, pois ambos os homens tornaram-se cientes de que uma terceira figura os estava ouvindo – uma pequena figura com os olhos imaginativos.
— É verdade, meu caro Wayne — disse o Rei, interrompendo —, que você acha que vai ser derrotado amanhã?
— Não há nenhuma dúvida sobre isso — respondeu Adam Wayne —, a verdadeira razão é a que acabei de falar mas como uma concessão para o seu materialismo, vou acrescentar que eles têm um exército organizado aliado de cem cidades contra a nossa única. Mas isso em si, no entanto, não teria importância.
Quin, com seus os olhos redondos, parecia estranhamente insistente:
— Está certo que será derrotado?
— Estou com medo — disse Turnbull, melancolicamente — que não pode haver nenhuma dúvida sobre isso.
— Então — gritou o rei, levantando os braços — dê-me uma alabarda! Alguém, dê-me uma alabarda! Desejo que todos os homens testemunhem que eu, Auberon, rei da Inglaterra, abdico agora, e imploro ao superintendente de Notting Hill para que permitir me alistar em seu exército. Dê-me uma alabarda!
Agarrou uma de um guarda de passagem, e, assumindo formação, marchou solenemente depois das colunas de alabardeiros gritando que estavam, por esta altura, desfilando pelas ruas. No entanto, ele nada teve a ver com a destruição da estátua do general Wilson, que ocorreu antes do amanhecer.
O dia estava nublado quando Wayne foi para a morte junto com todo o seu exército em Kensington Gardens; estava novamente nublado quando o exército foi engolido pelos vastos exércitos de um novo mundo. Houve um intervalo quase sobrenatural de brilho solar, em que o superintendente de Notting Hill, com toda a placidez de um espectador, olhou os exércitos hostis sobre os grandes espaços de vegetação do lado oposto; as longas tiras de verde, azul e ouro estavam sobre todo o parque em quadrados e retângulos como uma proposição de Euclides forjada em um rico bordado. Mas a luz do sol estava fraca, como se fosse úmida, e foi logo engolida. Wayne falou ao rei, com uma estranha espécie de frieza e apatia, como para operações militares. Era como havia dito na noite anterior, que ao ser privado de seu sentido de impraticável retidão, estava, de fato, sendo privado de tudo. Ele estava fora de lugar, no mar de um mundo apenas de compromisso e competição, de Império contra Império, do razoavelmente certo e do razoavelmente errado. No entanto quando seus olhos caíram sobre o rei, que marchava muito grave com uma cartola e uma alabarda, se animou um pouco.
— Bem, vossa Majestade, pelo menos deve se orgulhar hoje. Se os seus filhos estão lutando entre si, pelo menos os que ganham são vossos filhos. Outros reis Outros distribuíram justiça, você distribuiu vida. Outros reis governaram uma nação, você criou nações. Outros fizeram reinos, você os gerou. Olhe para seus filhos, pai! — e estendeu a mão para o inimigo.
Auberon não levantou os olhos.
— Veja como esplendidamente — gritou Wayne — novas cidades chegam, as novas cidades além do rio. Veja onde Battersea avança sob a bandeira da Cão Perdido; e Putney, não vê o Homem no Javali Branco brilhando em seu emblema quando o sol o ilumina. É a chegada de uma nova era, vossa Majestade. Notting Hill não é um império comum, é como Atenas, a mãe de um modo de vida, de uma maneira de viver, que deverá renovar a juventude do mundo como Nazaré. Quando era jovem me lembro, nos velhos tempos sombrios, sabichões costumavam escrever livros sobre como os trens ficariam mais rápidos, e todo o mundo seria um império, e como carros elétricos iriam para a lua. E mesmo quando criança, costumava dizer a mim mesmo: “Muito mais provável que comecemos as cruzadas novamente, ou adoraremos os deuses da cidade.” E assim foi. E estou contente, embora esta seja minha última batalha.
Enquanto falava, veio um estrondo de aço a partir da esquerda, e virou a cabeça.
— Wilson! — gritou, com uma espécie de alegria. — Red Wilson atacou nossa esquerda. Ninguém pode segurá-lo; ele come espadas. Ele é tão afiado como soldado quanto Turnbull, mas menos paciente, realmente excelente. Ha! E Barker está se movendo. Como Barker melhorou; quão bonito está! Não é apenas as plumas, mas também ter uma alma na vida diária. Ha!
E outro estrondo de aço à direita mostrou que Barker fechou Notting Hill no outro lado.
— Turnbull está lá! — gritou Wayne. — Eu o vejo empurrá-los de volta! Barker está marcado! Turnbull ataca… e ganha! Mas nossa esquerda está aberta. Wilson esmagou Bowles e Mead, e pode revelar nosso flanco. Em frente, guarda do superintendente!
E todo o centro moveu-se para a frente, o rosto, cabelo e espada flamejante de Wayne na vanguarda.
O rei correu de repente para a frente.
No instante seguinte, um grande sobressalto indicou que haviam encontrado o inimigo. E bem defronte deles, através da madeira de suas próprias armas, Auberon viu a Águia Púrpura de Buck de North Kensington.
À esquerda, Red Wilson assaltou as fileiras quebradas, sua pequena figura verde visível até mesmo no emaranhado de homens e armas, com os bigodes flamejantes vermelhos e a coroa de louros. Bowles o cortou na altura da sua cabeça e arrancou parte da coroa, deixando o resto ensanguentado, e, com um rugido de um touro, Wilson saltou sobre ele, e depois de um ruído de esgrima, mergulhou sua arma no farmacêutico, que caiu, gritando: “Notting Hill!” Em seguida, os habitantes de Notting Hill vacilaram e Bayswater varreu-os de volta em confusão. Wilson levou tudo adiante dele.
À direita, no entanto, Turnbull tinha levado a bandeira do Leão vermelho com uma arrancada contra os homens de Barker, e a bandeira dos Pássaros Dourados estava com dificuldades diante dele. Os homens de Barker caíram rapidamente. No centro Wayne e Buck estavam engajados, teimosos e confusos. A luta estava precisamente equilibrada. Mas a luta era uma farsa. Por trás dos três pequenos exércitos contra os quais o pequeno exército de Wayne estava engajado, apresentava-se o grande mar dos exércitos aliados, que pareciam ainda como espectadores escarnecedores, mas poderiam ter quebrado todos os quatro exércitos com o mover um dedo.
De repente, eles se moveram. Alguns dos contingentes da frente, os chefes pastorais de Shepherd´s Bush, com suas lanças e telas, foram vistos avançando, e os rudes clãs de Paddington Green. Estavam avançando por uma razão muito boa. Buck, de North Kensington, estava sinalizando descontroladamente, estava cercado e totalmente isolado. Seus regimentos eram uma massa de pessoas em dificuldades, ilhados num mar vermelho de Notting Hill.
Os aliados tinham sido muito descuidados e confiantes. Haviam permitido a força de Barker ser quebrada em pedaços por Turnbull, e no momento em que isso foi feito, o astuto velho líder de Notting Hill virou os homens e atacou Buck por trás e em ambos os lados. No mesmo instante, Wayne gritou: “Carga!” e o golpeou pela frente como um raio.
Dois terços dos homens de Buck foram cortados em pedaços antes de seus aliados poderem alcançá-los. Em seguida, o mar de cidades veio com suas bandeiras, como quebradores de linhas, e engoliram Notting Hill para sempre. A batalha não acabou, pois nenhum dos homens de Wayne iria se render, e durou até o pôr do sol, e ainda depois. Mas estava decidida, a história de Notting Hill foi encerrada.
Quando Turnbull viu isso, parou um momento de lutar, e olhou em volta dele. A luz do sol do entardecer atingiu seu rosto, ele parecia uma criança.
— Tive a minha juventude — disse ele. Então, pegando um machado, correu para o grosso das lanças de Shepherd’s Bush, e morreu em algum lugar dentro das profundezas de suas cambaleantes fileiras. Então a batalha rugia; todo homem de Notting Hill foi morto antes da noite.
Wayne estava só apoiado em uma árvore depois da batalha. Vários homens aproximaram-se dele com machados. Um atingiu-o. Seu pé parecia parcialmente escorregar, mas ele firmou a mão na árvore.
Barker surgiu depois dele, a espada na mão, tremendo de emoção:
— Quão grande agora, meu senhor, é o império de Notting Hill?
Wayne sorriu na escuridão crescente.
— Sempre tão grande quanto isto — disse ele, e varreu sua espada ao redor em um semicírculo de prata.
Barker caiu, ferido no pescoço, e Wilson pulou sobre o seu corpo como um tigre, apressando-se até Wayne. No mesmo instante, veio por trás do Lorde do Leão Vermelho um grito e um clarão amarelo, e uma massa de alabardeiros de West Kensington lavrou a encosta, na grama até os joelhos, tendo a bandeira amarela da cidade diante deles, e gritando em voz alta.
Ao mesmo tempo, Wilson caiu debaixo da espada de Wayne, aparentemente esmagado como uma mosca. A grande espada subiu novamente como um pássaro, mas Wilson pareceu subir com ele, e, com a espada quebrada, saltou para a garganta de Wayne como um cão. O mais importante dos alabardeiros amarelos alcançou a árvore e girou o machado acima de Wayne em dificuldades. Praguejando o rei virou sua própria alabarda, e disparou a lâmina no rosto do homem. Ele cambaleou e rolou ladeira abaixo, assim como o furioso Wilson que foi arremessado de costas novamente. E mais uma vez ele estava de pé, e novamente atacando a garganta de Wayne. Em seguida, foi arremessado novamente, mas desta vez rindo triunfante. Na sua mão estava o distintivo vermelho e amarelo que Wayne usava como superintendente de Notting Hill. Ele o rasgou do lugar onde esteve por vinte e cinco anos.
Com um grito, os homens de West Kensington cercaram Wayne, a grande bandeira amarela batendo sobre a sua cabeça.
— Onde está o seu distintivo agora, superintendente? — gritou o líder de West Kensington.
E subiu uma gargalhada.
Adam atacou um porta-estandarte e o levou cambaleando para a frente. Com a bandeira encurvada, agarrou as dobras amarelas e arrancou um fiapo. Um alabardeiro atingiu-lhe no ombro, fazendo uma ferida sangrenta.
— Aqui está uma das cores| — gritou, empurrando o fiapo amarelo no cinto. — E aqui — gritou, apontando para o seu próprio sangue — está a outra.
No mesmo instante, o choque súbito de uma forte alabarda deixou o rei atordoado ou morto. Nas visões selvagens enquanto a consciência desaparecia, viu novamente algo que pertencia a uma época totalmente esquecida, algo que tinha visto em algum lugar há muito tempo em um restaurante. Ele viu, com os olhos úmidos, vermelho e amarelo, as cores da Nicarágua.
Quin não viu o fim. Wilson, selvagem e alegre, saltou novamente para Adam Wayne, e a grande espada de Notting Hill girou novamente. Em seguida, os homens se abaixaram instintivamente com o ruído da espada descendo do céu, e Wilson de Bayswater foi esmagado e varrido no chão como uma mosca. Nada restou dele, exceto destroços; mas a lâmina que o quebrou estava quebrada. Ao morrer, estalou a grande espada e o encanto desta, a espada de Wayne estava quebrada no punho. Uma arremetida do inimigo forçou Wayne contra a árvore. Estavam muito perto para usar alabarda ou mesmo espada, pois estavam peito contra peito, até mesmo narina contra narina. Mas Buck conseguiu libertar sua adaga.
— Matem-no! — gritou, com uma voz abafada estranha. — Matem-no! Bom ou mau, ele não é nenhum de nós! Não se deixem cegar pelo rosto... Deus! Se não estivéssemos cegos o tempo todo! — e puxou o braço para trás para uma facada, e pareceu fechar os olhos.
Wayne não soltou a mão que estava pendurada no galho da árvore. Mas um poderoso suspiro passou sobre seu peito e toda a sua enorme figura, como um terremoto ao longo de grandes colinas. E com essa convulsão de esforço, arrancou o ramo da árvore, com farpas de madeira; e, balançando-o apenas uma vez, jogou a clava lascada em Buck, quebrando seu pescoço. O planejador da Grande Estrada caiu morto, com sua adaga em um aperto de aço.
— Para você e para mim, e para todos os homens valentes, meu irmão — disse Wayne, numa estranha oração — haverá bom vinho vertido na pousada do fim do mundo.
Os homens ao redor fizeram outros movimentos em direção a ele; era quase escuro demais para uma luta clara. Ele agarrou-se no carvalho novamente, desta vez colocando a mão em uma grande fenda e prendendo-se, por assim dizer, nas entranhas da árvore. A multidão toda, em torno de trinta homens, fez um esforço para afastá-lo dela, pendurando todo o seu peso e número, e nada se mexeu. A solidão não poderia ter sido mais imóvel do que aquele grupo de homens tensos. Então, houve um som fraco.
— A mão dele está escorregando — gritaram dois homens em júbilo.
— Você não o conhece — disse outro, tristemente (um homem da velha guerra). — É mais provável que seus ossos estejam quebrando.
—Não é nem um, nem outro. Meu Deus! — disse um dos dois primeiros.
— O que, então? — perguntou o segundo.
— A árvore está caindo.
— À medida que a árvore cai, assim deita-se — disse a voz de Wayne para a escuridão, e tinha o mesmo ar doce mas ainda horrível de estar por toda parte, vindo de uma grande distância, de antes ou depois do evento. Mesmo quando estava lutando como uma enguia ou golpeando como um louco, falava como um espectador. — À medida que a árvore cai, assim deita-se — disse ele. — Os homens chamaram de um texto sombrio. É a essência de toda a exultação. Estou fazendo agora o que tenho feito toda a minha vida, que é a única felicidade, que é a única universalidade. Estou agarrado a alguma coisa. Deixe-o cair, e deixe-o deitar. Tolos, vão passear e ver os reinos da terra, tão liberais, sábios e cosmopolitas, que é tudo que o diabo pode lhes dar, tudo o que ele poderia oferecer a Cristo, apenas para ser rejeitado imediatamente. Estou fazendo o que o verdadeiro sábio faz. Quando uma criança sai para o jardim e se apodera de uma árvore, dizendo: ‘Que esta árvore seja tudo o que tenho’, naquele momento suas raízes tomam posse no inferno e seus ramos sobre as estrelas. A alegria que tenho é a do amante que sabe quando uma mulher é tudo. É a de um selvagem que sabe quando seu ídolo é tudo. É a que tenho quando sei quando Notting Hill é tudo. Eu tenho uma cidade. Esteja ela de pé ou caída.
Enquanto falava, a turfa levantou-se como uma coisa viva, e dela subiram lentamente, como uma crista de serpentes, as raízes do carvalho. Então, a grande cabeça da árvore, que parecia uma nuvem verde entre as cinzas, varreu o céu de repente como uma vassoura, e toda a árvore balançou como um navio, esmagando todos na sua queda.
Num lugar onde havia escuridão total durante horas, havia também silêncio total por horas. Então uma voz falou da escuridão, ninguém poderia dizer de onde, e disse em voz alta:
— Então assim termina o Império de Notting Hill. Como começou em sangue, então acabou em sangue, e tudo continua como sempre.
E fez-se silêncio novamente, e novamente havia uma voz, mas não tinha o mesmo tom, parecia que não era a mesma voz.
— Se todas as coisas são sempre as mesmas, é porque são sempre heroicas. Se todas as coisas são sempre as mesmas, é porque são sempre novas. Para cada homem apenas uma alma é dada; e para cada alma é dado apenas um pouco de poder – o poder de, em alguns momentos, superar e engolir as estrelas. Se era após era este poder vem para os homens, seja o que for que tal poder fornece, é grande. O que faz os homens se sentirem velhos é ruim, um império ou uma loja miserável. O que faz os homens se sentirem jovens é bom, uma grande guerra ou uma história de amor. E no mais escuro dos livros de Deus está escrita uma verdade que é também um enigma. É das coisas novas que os homens se cansam – modas, propostas, melhorias e mudanças. São as coisas velhas que assustam e intoxicam. São as coisas velhas que são jovens. Não há cético que não sente que muitos duvidaram antes. Não há homem rico e volúvel que não sente que todas as suas novidades são antigas. Não há adorador da mudança que não sente sobre o pescoço o grande peso do cansaço do universo. Mas nós que fazemos as coisas antigas somos alimentados pela natureza com uma infância perpétua. Nenhum homem que está apaixonado pensa que qualquer um tenha se apaixonado antes. Nenhuma mulher que tenha uma criança pensa que houve coisas como crianças. Não há pessoas que lutam por sua própria cidade que sejam assombradas com o fardo dos impérios quebrados. Sim, ó voz escura, o mundo é sempre o mesmo, pois é sempre inesperado.
Uma pequena rajada de vento soprou a noite, e então a primeira voz respondeu:
— Mas neste mundo há alguns, sejam sábios ou tolos, a que nada intoxica. Há alguns que veem todos os seus distúrbios como uma nuvem de moscas. Eles sabem que enquanto os homens riem de sua Notting Hill, e estudam, escrevem ensaios e cantam sobre Atenas e Jerusalém, Atenas e Jerusalém foram apenas subúrbios tolos como Notting Hill. Eles sabem que a própria Terra é um subúrbio, e sentem-se apenas monótona e respeitavelmente entretidos enquanto movem-se sobre ela.
— São filósofos ou são tolos — disse a outra voz. — Não são homens. Homens vivem, como disse, regozijando-se de geração em geração com algo mais fresco do que o progresso: no fato de que de a cada bebê ser feito um novo sol e uma nova lua. Se nossa antiga humanidade fosse um único homem, talvez não aguentaria a memória de tantas lealdades, o peso de tantos diversos heroísmos, a carga e o terror de toda a bondade dos homens. Mas aprouve a Deus isolar a alma individual que só pode aprender de todas as outras almas por ouvir dizer, e a cada um a bondade e a felicidade vem com a juventude e a violência de um raio, tão momentânea e tão pura. E a desgraça da falha que se encontra em todos os sistemas humanos não os afeta realmente, não mais do que os vermes da sepultura inevitável afetam um jogo infantil em um prado. Notting Hill caiu; Notting Hill morreu. Mas isso não é um problema tremendo. Notting Hill viveu.
— Mas — respondeu a outra voz — se o que é conseguido através de todos estes esforços é apenas o contentamento comum da humanidade, por que os homens tão extravagantemente trabalham e morrem? Nada foi feito por Notting Hill que qualquer aglomeração de agricultores ou clã de selvagens não teria feito? O que poderia ter acontecido com Notting Hill se o mundo tivesse sido diferente pode ser uma questão profunda, mas há uma mais profunda. O que poderia ter acontecido ao mundo se Notting Hill não tivesse existido?
A outra voz respondeu:
— O mesmo que teria acontecido com o mundo e todos os sistemas estrelados se uma macieira tivesse seis maçãs em vez de sete; algo teria sido eternamente perdido. Nunca houve nada no mundo absolutamente como Notting Hill. Nunca haverá algo parecido com ela até o final do destino. Não posso acreditar em nada, mas que Deus a amou como Ele deve amar tudo o que é próprio e insubstituível. Mas mesmo isso não me importa. Se Deus, com todo os seus trovões, a odiava, eu a adorei.
E com a voz uma figura alta e estranha levantou-se para fora dos detritos na penumbra.
A outra voz veio depois de uma longa pausa, como se fosse rouca:
— Mas suponha que toda a questão fosse realmente um hocus-pocus. Suponha que qualquer significado que você pode atribuir a sua fantasia, o real significado de tudo era uma zombaria. Suponha que tudo era loucura. Suponha...
— Eu estava lá — respondeu a voz da figura alta e estranha — e sei que não era.
A figura menor parecia meio que levantar no escuro.
— Suponha que sou Deus — disse a voz —, e suponha que fiz o mundo em ociosidade. Suponha que as estrelas, que você considera eternas, são somente os fogos de artifício idiotas de uma criança perpétua. Suponha que o sol e a lua, que você louva alternadamente, são apenas os dois olhos de um vasto e sarcástico gigante, abertos alternadamente num piscar de olhos que nunca termina. Suponha que as árvores, aos meus olhos, são tão tolas quanto enormes cogumelos. Suponha que Sócrates e Carlos Magno são para mim apenas animais engraçados caminhando sobre as patas traseiras. Suponha que sou Deus, e tendo feito coisas, rio delas.
— E suponha que eu sou um homem — respondeu o outro. — E suponha que lhe dou a resposta que destrói até mesmo uma risada. Suponha que eu não ria em resposta, não blasfeme, não te amaldiçoe. Mas suponha que, levantando-me reto sob o céu, com todo o poder do meu ser, agradeça por este paraíso de tolos que fizeste. Suponha que eu te louve, com uma literal dor de êxtase, pela brincadeira que me trouxe tão terrível alegria. Se tivemos jogos de criança, e dado-lhes a seriedade de uma Cruzada, se encharcamos seu grotesco jardim holandês com o sangue dos mártires, transformamos um berçário em um templo. Pergunto-lhe, em nome dos Céus, quem vence?
O céu perto das cristas das colinas e árvores estava começando a mudar do preto ao cinza, com uma sugestão aleatória da manhã. A pequena figura parecia rastejar em direção a maior, e a voz estava mais humana:
— Mas suponha, amigo, suponha que, em um sentido mais amargo e mais real, tudo era uma farsa. Suponha que tinha havido, desde o início dessas grandes guerras, um que observava com um sentimento que está além da expressão, um sentimento de desapego, de responsabilidade, de ironia, de agonia. Suponha que havia alguém que sabia que era tudo uma brincadeira.
A figura alta respondeu:
— Ele não podia saber. Pois tudo não era uma brincadeira.
E uma rajada de vento soprou para longe algumas nuvens que selavam a linha do horizonte, e mostrou uma faixa prateada por trás de suas grandes pernas escuras. Em seguida, a outra voz veio, tendo rastejado ainda mais perto.
— Adam Wayne, há homens que confessam apenas no articulo mortis (momento da morte), há pessoas que se culpam somente quando já não podem ajudar os outros. Eu sou um destes. Aqui, sobre o campo do final sangrento de tudo, venho dizer-lhe claramente o que você nunca iria entender antes. Sabe quem eu sou?
— Eu conheço você, Auberon Quin — respondeu a alta figura —, e estarei feliz em aliviar seu espírito de qualquer fardo que tenha.
— Adam Wayne — disse a outra voz —, o que tenho que dizer, você não pode, em comum razão, ter prazer de me aliviar. Wayne, era tudo uma brincadeira. Quando fiz estas cidades, não me importava mais com elas do que me importo com um centauro ou um tritão, ou um peixe com pernas, ou um porco com penas, ou qualquer outro absurdo. Quando falei solenemente e encorajadoramente sobre a bandeira de sua liberdade e a paz de sua cidade, estava fazendo uma brincadeira vulgar com um cavalheiro honesto, uma brincadeira vulgar que durou 20 anos. Embora ninguém possa acreditar em mim, talvez, a verdade é que sou um homem um tanto tímido e de bom coração. Nunca ousei nos primeiros dias de sua esperança, ou nos dias centrais da sua supremacia, te contar isso; nunca me atrevi a quebrar a calma colossal do seu rosto. Só deus sabe porque deveria fazê-lo agora, quando minha farsa acabou em tragédia e à ruína de todas as pessoas! Mas digo agora. Wayne, tudo foi feito como uma brincadeira.
Houve um silêncio, e a brisa soprando refrescante deixou o céu mais claro, deixando grandes espaços na branca madrugada.
Finalmente Wayne disse, muito lentamente:
— Fez tudo isto apenas como uma piada?
— Sim — disse Quin, brevemente.
— Quando concebeu a ideia — continuou Wayne, sonhador — de um exército para Bayswater e uma bandeira para Notting Hill, não havia brilho, nenhuma sugestão em sua mente que essas coisas podiam ser reais e apaixonantes?
— Não — respondeu Auberon, virando o rosto branco e redondo para a manhã com uma maçante e esplêndida sinceridade. — Não tinha ideia nenhuma disso.
Wayne desceu e estendeu a mão.
— Não vou parar de agradecê-lo — disse com uma curiosa alegria em sua voz — pelo grande bem ao mundo que você trouxe. Tudo o que penso que lhe disse há pouco, mesmo quando pensei que a sua voz era a voz de uma irônica onipotência, é riso mais velho do que os ventos do céu. Mas deixe-me dizer o que é imediato e verdadeiro. Você e eu, Auberon Quin, durante toda a nossa vida fomos de novo e de novo chamados de loucos. E nós somos loucos. Somos loucos, porque não somos dois homens, mas um homem. Somos loucos, porque somos dois lóbulos do mesmo cérebro, e cujo o cérebro foi partido em dois. E se você pedir a prova disso, não é difícil de encontrar. Não é apenas que você, o humorista, tenha, nestes dias sombrios, sido despojado da alegria da gravidade. Não é apenas que eu, o fanático, tive que tatear sem humor. É que, embora parecemos ser opostos em tudo, temos sido opostos como homem e mulher, visando ao mesmo tempo a mesma coisa prática. Nós somos o pai e a mãe da Carta das Cidades.
Quin olhou para os restos de folhas e madeira, as relíquias da batalha e do tumulto, agora brilhando à luz do dia em crescimento, e finalmente disse:
— No entanto, nada pode alterar o antagonismo, o fato de que eu ri dessas coisas e você as adorava.
O rosto selvagem de Wayne ficou inflamado como de deus, enquanto virava-se para ser atingido pelo nascer do sol.
— Sei de algo que vai alterar esse antagonismo, algo que está fora de nós, algo que você e eu em todas as nossas vidas, talvez levamos muito pouco em conta. O igual e eterno ser humano irá alterar esse antagonismo, pois o ser humano não vê antagonismo real entre riso e respeito, o ser humano, o homem comum, que meros gênios como eu e você só podemos adorar como um deus. Quando os dias escuros e tristes vêm, você e eu somos necessários, o fanático puro, o humorista puro. Entre nós sanamos um grande erro. Levantamos as cidades modernas para a poesia que todo aquele que conhece a humanidade sabe que é infinitamente mais comum do que o comum. Mas, em pessoas saudáveis, não há guerra entre nós. Nós somos apenas os dois lóbulos do cérebro de um lavrador. O riso e o amor estão em toda parte. As catedrais, construídas nas eras que amavam a Deus, estão cheias de blasfemas grotescas. A mãe ri continuamente para a criança, o amante ri continuamente à amante, a esposa ao marido, o amigo ao amigo. Auberon Quin, estamos a muito separados, vamos embora juntos. Você tem uma alabarda e eu uma espada, vamos começar nossas andanças pelo mundo inteiro. Pois somos seus dois fundamentos. Venha, já é dia.
Na luz branca, Auberon hesitou por um momento. Então fez a saudação formal com sua alabarda, e foram embora juntos para o mundo desconhecido.