Nota de editor:
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existência de erros tipográficos neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
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Rita
Farinha (Jul. 2009)
BIBLIOTHECA DO CURA DE ALDEIA
D. MARIA AMALIA VAZ DE
CARVALHO
MULHERES E CREANÇAS
(NOTAS SOBRE EDUCAÇÃO)
Editores―JOAQUIM ANTUNES LEITÃO & IRMÃO
Rua do Almada 209―1.º andar
PORTO
MULHERES E CREANÇAS
A propriedade d'esta obra pertence:
Em Portugal á
Bibliotheca do Cura de
Aldeia.
No Brazil ao snr. Adriano de Castro, residente no Rio de Janeiro.
BIBLIOTHECA DO CURA DE ALDEIA
D. MARIA AMALIA VAZ DE
CARVALHO
MULHERES E CREANÇAS
(NOTAS SOBRE EDUCAÇÃO)
PORTO
Editores―JOAQUIM ANTUNES LEITÃO & IRMÃO
Rua do Almada 209―1.º andar
1880
TYP. DE ALEXANDRE DA
FONSECA VASCONCELLOS
29, Rua do Moinho de Vento, 29
Á
Minha querida mãe
Companheira constante e fiel de toda a minha vida,
offereço-lhe este livro humilde, que escrevi inspirada pelos
seus conselhos e pelo seu santo e nunca desmentido exemplo.
CAPITULO I
Falla-se hoje muito a respeito da dissolução
domestica, manifestada e provada constantemente por casos de divorcio,
suicidios, questões miseraveis entre parentes proximos,
rebelliões filiaes, etc., etc.
Surprehende a todos aquelles, que sem aprofundarem radicalmente as
questões sociaes, se preoccupam todavia com ellas um pouco
mais
do que o vulgo, que este mal que todos sentem e que poucos definem, que
este estado inquieto e doloroso que depois de agitar a familia assusta
e perturba a sociedade, se haja aggravado justamente na
época em
que o homem auxiliado por grandes e immortaes pensadores, tem adquirido
a mais elevada e justa noção do Bem que ainda lhe
foi dado alcançar no seu caminho de seculos.
[8]
A manifesta e clara contradicção que hoje mais do
que nunca existe entre as idéas e os factos desnorteia e
desanima ainda os espiritos mais penetrantes.
Como é que o homem que tem domado a materia a ponto de fazer
d'ella a escrava submissa da intelligencia; que forçou a
grande
e muda Natureza a tornal-o seu confidente e seu senhor; que arrancou ao
astro e á planta o segredo immortal da vida que os anima;
que
penetrou―investigador implacavel―nas catacumbas das mortas
religiões, e que ouviu de cada uma a palavra suprema que as
explica e desvenda; porque é que o homem que tem hoje a
percepção lucida e
completa do seu destino, não soube ainda prostrar, vencer,
amordaçar o animal indomito que vive dentro d'elle, que o
martyrisa, que o rebaixa, que o leva muitas vezes ao abysmo, quando o
não leva ao lodaçal? Se o bom e
o bello lhe revelaram a sua larga claridade benefica, porque se
não revigora elle, e se não robustece
n'esse grande banho de luz? porque não estabelece uma
harmonia
perfeita e intima entre a idéa que fórma dos
deveres e a
sua manifestação pratica e vizivel?
Depois de havermos concedido ás paixõe
Depois de havermos concedido ás paixões humanas o
imperio
relativo que ellas não podem perder, somos ainda
forçados
a confessar que na culpa d'esta desgraça que todos lamentam,
compete ás mulheres um grandissimo quinhão.
[9]
Concorrem ellas em grande parte para dar força ao impulso
que
contraria a marcha triumphante e apesar de tudo invencivel, que leva a
civilisação no
caminho da verdadeira luz. E concorrem por varias e complexas
razões que devem analysar-se e depois combater-se.
Ignorantes impoem resistencia inconsciente ás
transformações continuas do progresso.
Retrogradas por educação e por natureza, cada
innovação se lhes affigura ou uma cousa inutil,
ou uma cousa perigosa.
Amesquinhadas pela profunda escuridão intellectual em que
jazem
immersas, em vez de auxiliarem o homem no cumprimento difficil do dever
afastam-no pelo desdem, desanimam-no pela frivolidade,
cançam-no
com as exigencias loucas, gastam-lhe a força, o alento, as
aspirações arrojadas e grandes na
satisfação de desejos pueris, ou lhe destroem a
dignidade
e lhe annullam a energia obrigando-o a transigir com os desvairamentos
d'uma imaginação doentia.
Mas se as mulheres produzem este effeito funesto confesse-se para bem
da justiça que aos homens se deve o atrazo intellectual em
que
todas nós estamos.
Sentem elles, e a meu ver sentem muito bem, que para conservar este
equilibrio necessario á
manutenção da ordem na familia e na sociedade,
cumpre que a mulher se não
[10]
revolte contra a inferioridade a que
fatalmente a condemnam as leis, e contra a dependencia a que a
condemnam os costumes.
Para alcançarem porém esta submissão
voluntaria entenderam desde muito, que o melhor meio consistia em
condensar as trevas da ignorancia e da
superstição em torno d'aquella de quem
são forçados a fazer a
sua companheira na vida, o seu consolo nas horas da
provação, a mãe de seus filhos, a
carne da sua carne.
Terrivel contradicção, systema absurdo que tem
como
resultado a lenta desorganisação da familia
e que corrompendo a mulher atravez do homem, não
póde
deixar d'ir com o andar dos tempos corrompendo o homem atravez da
mulher.
D'um lado querem conservar-nos n'uma plana muito inferior á
sua, como
illustração, conhecimentos, intelligencia, isto
para que nunca nos venha á
idéa aspirar á perfeita igualdade dos direitos e
dos privilegios;
d'outro lado exigem de nós prodigios de virtude, de
abnegação, de paciencia, de que só
são capazes as almas bafejadas pelo sopro ideal da eterna
Perfeição.
A mulher precisa de ser moralmente mais forte do que o homem, para
conseguir levar a cabo a tarefa relativamente superior que a natureza e
a sociedade lhe impoem.
[11]
No dia em que se assentar este ponto como verdade incontestavel, o
mundo terá dado um dos seus passos mais gigantescos no
caminho
da felicidade.
Educar a mulher eis o grande problema que resta ainda a resolver.
Educar a mulher é arrancal-a na infancia ao seu
berço fôfo e tepido de beijos, e leval-a por
caminhos d'uma magestade austera que ella nunca trilhou.
É preparal-a para a grande lucta moral que é a
Vida, com
os cuidados com que Sparta, a guerreira cidade antiga, preparava os
seus filhos para as luctas do corpo, para as victorias da destreza
physica.
É associal-a pela comprehensão e pela sympathia a
todos os trabalhos e investigações do homem
moderno; é dar-lhe ao lado d'este um lugar honroso e
definido, não egual pois que são diversas as
attribuições de ambos, mas equivalente em
direitos e em deveres.
É fazer-lhe comprehender bem claro que as
seducções do corpo―seu orgulho supremo e seu
constante desvanecimento―quando não são reflexo
da
formosura e da robustez da alma, não passam d'um
laço
ignobil armado ao animal malefico e bravio que todo o homem encerra em
si.
Educar a mulher é leval-a a compenetrar-se do seu papel
providencial na familia, e achal-o grande, util, elevado, digno de
saciar as mais levantadas ambições,
[12]
e
tambem―o que é d'uma importancia capital―de pezar como uma
responsabilidade tremenda no animo mais altivo.
É dar-lhe uma idéa perfeita do dever e da
justiça, um Ideal a que tendam incessantemente as
aspirações do seu espirito, uma
religião que a
hypocrisia e os calculos interesseiros não maculem nem
amesquinhem, que se resuma para ella no sacrificio e no amor, mas
sacrificio sem voluptuosidades dissolventes e amor sem extasis
hystericos e sem raptos de paixão sensual.
Não basta porém exprimir tudo que se ousa esperar
da mulher de ámanhã, é preciso tambem
lançar um olhar demorado e justo ao que é a
mulher d'hoje.
Só assim poderão comprehender-se os erros que
é preciso desarreigar, os preconceitos que é
indispensavel destruir, a distancia enorme que temos de
transpôr
para chegar ao momento da sua completa e salutar
transformação.
II
As divisões sociaes que hoje em face dos homens educados nos
mesmos collegios, nas mesmas academias,
[13]
nas mesmas escolas
superiores, quasi que se não distinguem, ou se distinguem
apenas
por ligeiros cambiantes imperceptiveis ás vistas
superficiaes,
imperam ainda na mulher com extraordinaria força. Vamos pois
procurar ás diversas classes as suas femeninas
representantes, e
pincipiemos pela mulher da classe media, classe que considerada no seu
elemento masculino representa a intelligencia, a riqueza, o commercio,
a industria, o progresso d'um paiz.
A mulher d'essa classe especial divide-se em dous generos
accentuadamente distinctos: aquella que as vaidades sociaes ainda
não corromperam, e aquella que pretende offuscar com os
deslumbramentos da sua opulencia, as finas graças, as
exterioridades elegantes, os requintes herdados e tradicionaes que
pompeiam nas regiões mais elevadas da sociedade.
A primeira é evidentemente mais sympathica; é
laboriosa e
tem a rude sensatez plebeia da sua raça. Tem o amor dos
filhos,
um amor animal, um amor physico, mais instincto do que
religião.
Não
raciocina mas sente com uma energia poderosa e creadora.
É d'uma ignorancia absoluta, ingenua, profunda, quasi
sublime na
sua cegueira. Imagina-se porém investida d'um dever supremo
a
que todos se subordinam:―o de proporcionar por todos os meios ao seu
alcance o bem estar material do marido, e da familia.
[14]
Não tem conversação, não
tem espirito, não tem aquella doçura benevola e
intelligente que é para
o coração dos homens o que o algodão
em
rama é para o ninho das aves.
Quando aconselha irrita; quando quer guiar contraria, quanto tenta
convencer, despersuade.
É porém activa, aceada, robusta, fiel, e nas
horas de adversidade, de doença, de desfallecimento ou de
miseria, tem os carinhos rudes, tem a dedicação
humilde, tem a vigilancia perseverante, tem o exemplo energico e
fecundo por isso mesmo.
O homem anda lá fóra, na lucta, no trabalho, na
investigação, na sciencia; vae vivendo e vendo
como n'uma ascensão rude, desvendarem-se todos os dias
horisontes novos, vae estudando e sentindo como n'uma
iniciação progressiva dilatar-se-lhe o
espirito, clarear-se-lhe o entendimento.
Ella a esposa, a sua companheira, a sua melhor amiga, ignora os seus
combates, as suas glorias, as acres delicias do seu sacrificio, os
desanimos, as horas de impotencia, as aspirações,
os
arrebatamentos
triumphantes da victoria.
Percebe simplesmente se o marido está doente, se anda magro,
se
tem fastio, se tem roupa branca. Inventa-lhe pequenos pratos,
manipula-lhe remedios caseiros, vigia para que lhe não
faltem aquelles commodos
[15]
que elle aprecia, tem prodigios de
invenção espontanea para o envolver no bem estar
tão necessario aos que se consomem n'uma actividade sem
treguas.
De que ha de elle queixar-se? De nada.
É amado, é estremecido, obedecem-lhe cegamente,
tem a
certeza de encontrar ao seu lado sempre que o precise um sincero e leal
affecto.
Mas quando um sentimento superior o transporta, quando uma grande
idéa o levanta e ennobrece, quando um nobre desejo do bello
e do
bom lhe faz palpitar de enthusiasmo o coração,
é
debalde que elle busca junto de si o espirito que comprehenda o seu
espirito, que partilhe as suas impressões, que lhe revele
emfim
intima, absoluta, indestructivel, essa união ideal sem a
qual o
casamento é espiritualmente infecundo e incompleto.
Isto tem de esmorecer fatalmente o impulso que levava esse trabalhador,
esse homem de pensamento ou de sciencia á conquista e
á
posse da sua
felicidade.
Sem que elle talvez mesmo dê por isso, uma tristeza
indefinivel, vaga, sem traducção,
lança como que um sopro esterilisador sobre as suas mais
queridas
concepções. Falta-lhe alguma cousa que elle
precisava e que no entretanto não conhece nem sabe definir.
Falta-lhe o complemento do seu sêr!
[16]
Subamos agora na escala social mais um degrau.
O trabalhador incansavel venceu.
O dono da fabrica fez-se capitalista; o chimico enriqueceu com a sua
descoberta; o medico alcançou uma popularidade subita; o
industrial ganhou um milhão.
Elle é simples e modesto, lembra-se dos dias em que
trabalhava e
combatia, como dos seus dias melhores; não quer offuscar
ninguem, basta-lhe hoje como hontem lhe bastava a consciencia do seu
valor individual.
Ella porém a mulher―e eis a segunda variedade que acima
citamos―ella que deixou penetrar na sua alma ignorante o veneno da
vaidade, ella a quem o trabalho forçado já
não
absorve, e a
quem as distracções elevadas e nobres d'um
espirito culto
são vedadas, ella que não pensa, que
não medita,
que
não entendeu bem na sua acepção
levantada e digna
a
missão exercida pelo marido pois que se envergonhava da
pobreza
honesta em que vivera largo tempo, eil-a que deseja esmagar as que a
esmagaram n'outra época com o pezo da sua superioridade
social,
eil-a que opera a pouco e pouco, quasi imperceptivelmente, uma
influencia funesta no homem, que o corrompe, e que o arrasta.
Emquanto elle tivera as serenas e robustas
consolações do trabalho que a intelligencia
illumina, e a
que a intelligencia preside, tinha ella apenas na sua profunda
[17]
escuridão mental, as
pequenas
humilhações, as raivas mal dissimuladas, os
despeitos mal
contidos.
Não podendo ter a consciencia do seu dever o que a faria
sublime, só tivera a consciencia da sua
inferioridade, que a tornara mesquinha e redicula. Chegando o momento
da desforra exigi-a completa.
Leitora, quando tu vires passar triumphante, grosseiramente desdenhosa,
mal sentada nos flaccidos coxins d'um
coupé
de oito molas,
coberta de velludos e de rendas a altiva burgueza dos nossos dias,
lembra-te que é o fructo pernicioso da ignorancia combinada
com
a mais feroz vaidade.
Ninguem a excede no absurdo desprezo por tudo que está
abaixo d'ella, que é mais pobre, mais
humilde, menos cheio de lantejoilas e de falsos brilhantes.
Tem as refinadas atrocidades do paria que se vinga.
Como para ella ser pobre foi o maximo dos martyrios e a maxima das
humilhações envolve todos os
pobres no mesmo olhar de cruel desdem.
As filhas d'esta mãe são as
desgraçadas creanças que por ahi vendem a sua
mocidade e
os seus carinhos por um titulo avariado ou pelos milhões
d'um
negreiro enriquecido.
Não as accusemos, accusemos antes a perniciosa, a funesta
educação que receberam, germens que
teem no
Não as accusemos, accusemos antes a perniciosa, a funesta
educação que receberam, germens que
teem no passado as suas raizes damninhas e que vão estender
[18]
sobre o futuro a sua
sombra deleteria e esterelisadora.
Combater estes erros, lançar por terra estes preconceitos
deve ser a mira de todo o ser que pensa e crê!
III
Deixemos agora os
menages modestos
onde reina o trabalho ou os salões vulgarmente luxuosos onde
a
riqueza ostenta os seus vãos orgulhos, e penetremos no
boudoir
elegante, onde a mulher do
alto mundo proclama o que se lhe afigura a sua incontestavel
superioridade.
Ha um preconceito falsamente democrata, e digo
falsamente
porque a democracia tem
obrigação de ser justa, imparcial e intelligente,
que
attribue aos restos desmantelados da nossa aristocracia, todas as
culpas e todas as inferioridades.
Engano!
É verdade que a aristocracia portugueza avaliada no seu
conjuncto, se annullou pela ignorancia, como a aristocracia franceza se
annullou pelo desdem, e a prova temol-a nós em Inglaterra
onde esta classe que
[19]
não foi nunca ignorante nem desdenhosa, predomina com todo o
pezo d'uma robusta instituição de
seculos nos destinos politicos, economicos e sociaes da
nação.
Hoje porém, o que em Portugal resta de uma raça
que teve
todos os privilegios e todas as prepotencias, tenta instruir-se de boa
vontade, aspira a levantar-se pelo valor individual, e se raras vezes o
consegue, é que o passado exerce ainda a sua influencia
nefasta,
é que a decadencia e o abastardamento das raças
são uma verdade scientifica contra a qual nada
póde a
vontade humana.
A fidalga tradicional e lendaria, soberba, sem conseguir ser magestosa,
ignorante, cheia de preconceitos, de rediculos e de toda a especie de
idéas estapafurdias, olhando de muito alto com um pasmo
idiota
que aspira a ser desdenhoso, para as maravilhas d'uma
civilisação que não comprehende,
vae desapparecendo completamente até dos velhos solares da
provincia acastellados e altivos.
Morre sem deixar saudades e sem ter quem a substitua.
Hoje as representantes femeninas das altas classes se não
seguem
um caminho mais verdadeiro, mais util, mais fecundo em resultados
praticos, revestem ao menos a sua falsa percepção
da
idéa moderna,
d'um prestigio que á primeira vista agrada e seduz.
[20]
A educação d'ellas, uma
educação toda exterioridades brilhantes, se
não
é aquella de que carecem as mães, as perceptoras
de
futuro, estabelece comtudo e accentua incontestavelmente a sua
superioridade social sobre as gerações que as
precederam.
A influencia estrangeira e sobretudo a franceza, penetrou nas salas
desbotadas dos nossos palacios e nas luxuosas residencias da nossa
aristocracia moderna.
Se não temos a mulher de familia, a creadora de uma
geração robusta, conscienciosa, crente e
leal, temos a
mulher de sala, que é
uma nova face da transformação lenta por que
vão passando as idéas e os acontecimentos.
A mulher de sala é um producto exotico entre nós.
A França recebeu-a da Italia, cultivou-a, transformou-a,
deu-lhe
todos os requintes falsos, todos os donaires artificiaes, ergueu-lhe um
throno no seio das suas côrtes galantes, e deixou que
nós,
vendo-a de
longe a cubiçassemos e tentassemos transplantal-a para os
nossos
costumes chãos, para a nossa pobreza envergonhada e modesta.
Sahiu-nos uma cousa hybrida e estranha, que não
está em relação com o seu meio,
deslocada, inutil, mas em todo o caso attrahente para os olhos
superficiaes.
A mulher de sala falla umas poucas de linguas, com facilidade e
fluencia; escreve bem, com uma certa
[21]
graça adquirida que
não
occulta a frivolidade,
mas que a envolve em véu rendilhado; conversa com vivesa e
com
chiste, sabe dar aos pequenos
nadas da sua vida uma elegancia que illude os
incautos. Quem
a vê de longe, no scenario pomposo da sua opulencia, sente-se
deslumbrado; quem a observar de perto conhece que ella tem de facto
caminhado para se afastar das suas predecessoras, mas que o caminho que
vae trilhando é como o que ellas trilharam, um caminho
falso, um
caminho sem sahida.
O primeiro obstaculo que a separa da verdadeira luz, é uma
devoção inteiramente
errada, em que a idéa luminosa e fecunda prégada
pelo
Christo se subverte e se afoga n'uma onda de preconceitos e de mentiras
anti-christãs.
Se a mulher das classes inferiores estabelece entre si e o marido uma
barreira enorme―a sua ignorancia―a mulher mais culta e mais educada
das classes elevadas separa-se do marido, como se separa mais tarde dos
filhos isolando-se na esphera inaccessivel do seu intransigente
fanatismo.
Quando digo fanatismo, não quero referir-me a uma
crença
exaggerada e absoluta, que impere em todos os actos da vida, e que os
subordine ás suas austeras exigencias.
É um fanatismo elegante, um fanatismo de
alta
[22]
vida,
bastante indulgente para se
permittir todos os gozos sociaes, bastante severo para não
admittir que haja virtudes, merito, nobreza, sublimidade possivel
fóra do seu estreito gremio.
Aqui como alli é sempre o divorcio na familia debaixo de
qualquer dos aspectos.
Aqui porém mais completo ainda, visto que a vida da
sociedade
exige mais da mulher, visto que n'esta existencia de
representação exterior e pueril,
nem ao menos subsiste entre a mulher e o marido aquella intimidade
material, aquella protecção mutua que faz com que
o homem
seja o braço, o amparo, o sustentaculo, e a mulher o
desvelo, a
economia, a vigilancia continua, a dispensadora e reguladora de todos
os confortos materiaes da familia.
A mulher de sala vive para todos, menos para os seus.
Veste-se, despe-se, reza, confessa-se, recebe visitas, tagarella,
agrada, encanta, mas no meio d'este labyrintho de pequenas
occupações, de pequenos deveres, de pequenas
caridades
officiaes, de pequenas praticas devotas, ignora completamente e
absolutamente tudo que póde constituir a verdadeira
missão da mulher
no mundo e na familia.
Se alguem tivesse a ousadia de dizer-lhe:
―Julgas-te superior e moralmente fallando a mulher
[23]
do povo que ganha com o suor
do rosto ao lado do homem, o pão que os filhos
hão de
comer
á noite, tem sobre ti superioridade moral incontestavel.
Julgas-te instruida e não tens no teu pequeno cerebro
recheiado
de insignificancias bonitinhas, a noção
mais elementar dos milhões de cousas que precisas de saber
para
estares em harmonia com o teu tempo, para educares dignamente aquelles
em cujas mãos estão
os destinos de ámanhã.
Julgas-te virtuosa e não pratícas nem concebes
sequer nenhuma d'aquellas virtudes sãs que são a
dignidade, o imperio e a força da mulher.
Julgas-te religiosa e cada uma das tuas praticas acanhadas, cada um dos
teus preconceitos mesquinhos te aparta da verdadeira
religião
que allumia e esclarece os fortes.
Julgas-te boa esposa e boa mãe e vives sósinha
n'um mundo
teu, povoado de phantasias morbidas, onde teu marido e teus filhos
não penetram; não
tentas acompanhal-os, consolal-os, comprehendel-os; nunca te veio
á idéa que a mãe de familia
precisa de viver no coração dos seus,
identificada
completamente com
elles, para ser digna d'este sagrado nome!
Se alguem lhe dissesse isto ella julgaria ouvir fallar uma lingua
estranha, ou rir-se-ia com desdenhosa incredulidade.
[24]
Pois é necessario que ella entenda esta
lição, que ella ouça estas palavras, e
que pelo
seu esforço
permanente e consciencioso, ella tente sahir das trevas intellectuaes e
moraes em que a sua funesta e falsa educação a
teem
submergido.
IV
No meio do desalento profundo, da inconsolavel tristeza, que n'esta
época parece obumbrar de espessas nuvens a alma do homem, e
como
que vencer-lhe as aspirações e as energias,
erguemos a
voz
desauctorisada e humilde para apontar algumas das causas que produzem
effeitos tão deploraveis.
Temos visto a desharmonia que existe no lar domestico, e encontramos
como unico motor de tamanho desastre a desigualdade intellectual que a
educação estabelece e nutre entre os dous sexos.
Mas não se trata sómente de observar as causas e
os
effeitos, trata-se de pensar n'um remedio que seja efficaz para este
estado de cousas, que a prolongar-se indefinidamente produz a
dissolução social nos
seus aspectos mais dolorosos e mais repellentes.
[25]
Se a sociedade e a civilisação requintada e
corrupta dos nossos tempos ainda não ensinaram á
mulher o
caminho verdadeiro e util que tem a seguir, antes d'elle a teem
afastado mais e mais, ella póde ainda erguer-se do marasmo
intellectual em que se compraz, e mostrar ao homem que é
digna
de coadjuval-o na sua obra de reedificação, digna
de
acompanhal-o
na realisação pratica do que para elle,
desajudado e
só, não tem passado d'uma bella
concepção
theorica onde ás vezes transluzem não sei que
visos de
chimera.
Todos os seculos teem mais ou menos acceitado a herança dos
seculos precedentes.
Ao nosso cabe porém a gloria de ter renegado muitos erros do
passado, de ter proclamado a sua independencia, de ter produzido um
reviramento absoluto n'esse conjuncto de idéas, de
conhecimentos, de
aspirações e de theorias que constituem o
ideal
humano.
O que hoje se exige da mulher é positivamente o contrario do
que
a sociedade antiga affeiçoada por moldes diversissimos
exigia
até agora.
Este ponto d'uma importancia capital precisa de ser esclarecido a
fundo.
Á escravidão absoluta a que o nosso sexo se
curvou sob o imperio de religiões extinctas, á
bruteza
dilacerante em que elle viveu submerso entre as sombras das idades
barbaras, succedeu―e succedeu providencialmente―a
[26]
apotheose da
mulher divinisada pelo christianismo, aureolada por aquella poesia
artificial, exageradamente requintada e platonica dos trovadores da
Edade media, e aquella abnegação amorosa e
idealista dos
paladinos da cruz!
Essa transformação radical no destino da mulher
fez sentir a sua influencia até hoje, em phases e
gradações successivas e diversas.
Á castellã de repente acordada do seu lethargo
mental,
pela tiorba namorada do pagem, ou pela supplica ardente do cavalleiro,
succedeu a rainha das
côrtes de amor, a que erigia em dogma
ideal o adulterio, a que proclamava em sentenças
preciosas a quebra de todos os laços da
familia, a que
via no amor requintado, falsamente seraphico, um direito superior a
todos os direitos e deveres domesticos. Veio depois a gentil
pagã da Renascença, a inspiradora dos artistas, a
amante dos papas, a musa dos loucos poetas, a princeza dos festins,
erudita, apaixonada, intelligente, cheia de phantasias superiores, que
se era virtuosa se chamava Victoria Colonna, e se era dissoluta se
chamava Lucrecia Borgia.
A esta que correspondia ao seu meio social, que cumpria uma
missão civilisadora, que tinha o seu destino marcado, e a
sua
orbita descripta succedeu a mulher de sala do seculo XVII e do seculo
XVIII, de que
[27]
hoje
só temos a descendencia amesquinhada, decadente,
anachronica, e,
o que é peor de tudo, inutil quando não
é funesta,
ridicula quando não
é tambem perniciosa, o que lhe succede quasi sempre.
O homem que muitos seculos considerou a mulher um animal inferior e mal
domesticado, fez d'ella movido por influencias que não
podemos
historiar aqui, o seu luxo, a sua poezia, o enlêvo das suas
horas
de ocio, depois novamente a escrava dos seus vicios ou o instrumento
dos seus prazeres, e por fim um mero ornamento social, um brinquedo sem
importancia, uma creança indocil, ante a qual se curvava,
não
porque a respeitasse mas porque n'esta falsa e mentida
submissão
encontrava novos requintes de prazer.
Não comprehendeu porém que era victima da sua
propria
injustiça, que a corrupção da
mulher se convertia para elle em gangrena, que o seu amesquinhamento se
lhe communicava em villeza, que a sua ignorancia o fazia tambem
retrogradar, que ha relações reciprocas que
não
podem quebrar-se, e influencias mutuas a que os dous sexos ao mesmo
tempo divorciados e unidos, não podem por mais que queiram
furtar-se.
Hoje uma corrente de ar puro, a corrente das idéas
democraticas,
purificou a atmosphera viciada
[28]
onde uns poucos de seculos haviam
deixado os vestigios das suas paixões insalubres.
Tudo se transfigurou sob esta influencia benefica. Fez-se uma grande
claridade na alma dos povos e na dos individuos, o pensamento
reconquistou a sua independencia perdida, e uma voz firme e poderosa
bradou bem
alto:
―Não se tracta de continuar no caminho que iamos trilhando,
tracta-se de procurar uma nova
direcção que nos conduza á verdade.
Ouvir esta voz é renunciar aos erros do passado, e cumpre
que
nós mulheres renunciemos a elles, para não
caminharmos
por uma estrada opposta áquella por onde vão
subindo
fortes, illuminados, convencidos, os nossos paes, os nossos esposos, os
nossos irmãos.
Não é a uma penna tão obscura como
é a minha que pertence dar leis absolutas sobre um systema
de educação diverso do que hoje está
geralmente adoptado.
Limitar-me-hei rapidamente e apenas animada com a força da
consciencia, consultando o bom senso que é apanagio dos mais
humildes, e a
observação que póde ser partilha dos
mais pobres,
a indicar alguns dos obstaculos que nos separam moralmente d'aquelles
de quem sômos companheiras e de quem devemos ser auxilio e
complemento.
[29]
A vida da sociedade é uma vida toda de egoismo e de vaidade,
a
vida de familia uma vida de renunciamento e de
abnegação.
Para viver na sociedade a mulher só precisa de ser
exteriormente
agradavel, para viver na familia a mulher precisa de ser forte.
O mundo exige as graças, as garridices, as subtilezas do
espirito, as louçanias do tracto; a familia sem prescrever
inteiramente aquellas, exige acima de tudo a consciencia firme, a
idéa clara e definida dos deveres, o espirito do sacrificio,
e
aquella energia branda que resiste ás
tentações
dissolventes
do peccado.
Entendemos pois que os esforços de todos os educadores, de
todos
os que se preoccupam com o futuro da sociedade devem convergir para
annullar a mulher dos salões, e para crear e fortalecer a
mulher
da familia.
Não nos revoltamos contra as graciosas futilidades que hoje
constituem a educação feminina,
não as condemnamos a um completo ostracismo, desejamos
simplesmente vel-as collocadas no lugar que por sua natureza lhes
compete. São simples ornatos decorativos, como taes os
applaudimos e os queremos, não como fundo solido e base de
todo
o cultivo intellectual da mulher.
Tambem não pedimos para o nosso sexo a
emancipação,
[30]
essa utopia de que hoje se falla tanto
e com tantas banalidades impensadas.
O que nós desejariamos era vêr na mulher uma
personalidade
robusta e consciente, inaccessivel ás chimeras
da sentimentalidade, solidamente e despretenciosamente instruida, tendo
todas as noções praticas necessarias para
subordinarem o
seu destino ás leis do bom senso, ao alcance de todos os
descobrimentos e de todas as conquistas do seu tempo, comprehendendo o
bello debaixo de todos os seus aspectos; prompta para perdoar o mal mas
não para transigir com elle; sabendo resistir-lhe mas
sabendo
explicar as circumstancias que o attenuam ás vezes.
Tendo acima de todas as religiões a religião do
Bem,
sacrificando-se aos seus affectos, mas sacrificando-se principalmente
aos seus deveres.
Laboriosa como condição indispensavel da propria
dignidade.
O trabalho é a redempção.
Não ha mulher que não tenha conhecido mais ou
menos
fugitivas, mais ou menos traiçoeiras, mais ou menos
perigosas,
essas horas más chamadas
tentações. O trabalho é a salvaguarda
para essas
horas.
Os espiritos ociosos são os espiritos accessiveis.
[31]
No dia em que este novo ideal tiver tomado uma fórma
tangivel até para os mais humildes e para
os mais ignorantes a familia estará salva, porque
terá por esteio a moralidade.
Até então ha de haver as incertezas, as duvidas,
as vacillações, os desalentos que tornam esta
hora da vida das nações, uma hora contradictoria,
estranha, profundamente dolorosa, que já não tem
raizes no passado sem ter ainda um ficto no futuro.
Trabalhem todas as mães n'esta obra sublime, e como a
mythica
Minerva sahiu armada do cerebro olympico de seu pae, assim a mulher
sahirá do ninho em que se educou, já prompta para
receber
a pé firme o embate tempestuoso das paixões, que
se a
vencem a inutilisam e a degradam.
CAPITULO II
O falso luxo
I
Na nossa pequena sociedade de Lisboa, em que os meios estão
em
completo desequilibrio com os desejos, chega todos os annos um periodo,
o periodo que antecede o carnaval, em que nos julgamos mais ou menos
obrigados a sacrificar ao amor da sociabilidade.
Entendemos que uma sociedade civilisada não póde
viver sem festas e sem saraus, portanto é
necessario que sem hesitação façamos
tudo que nos
seja possivel, e mesmo impossivel, para darmos e recebermos saraus e
festas.
Ouço eu por ahi dizer e affirmar que os talentos
[34]
e os genios enxameiam como papoulas nas
seáras de abril.
Não duvido, não senhor; temos talento, temos
genio, temos
superioridade, temos phantasia, temos tudo quando quizerem.
O que nós não temos é uma cousa
pequena, humilde, despertenciosa, desdenhada.
Não temos
bom-senso.
Não quero aqui entrar na questão muito complexa e
muito
complicada de saber se as festas, se os bailes, se os jantares de gala,
se todas as ceremonias pomposas da vida mundana podem ter no
desenvolvimento da industria, no progresso da
civilisação
moderna
alguma influencia benefica.
Em outros paizes mais ricos, em outras nações
mais
industriaes, em outro regimen mais favoravel ao luxo creio que sim.
Entendo eu, porém, que as leis geraes não se
podem applicar a casos especiaes, e que nós não
podemos
conservar a vida falsamente luxuosa que é e
continuará a ser por muito tempo o nosso ideal supremo!
Em Lisboa haverá cem familias que estejam no caso de gastar
em superfluidades um rendimento avantajado.
Mas, como o amor da representação é o
nosso cunho
[35]
nacional,
como o desprezo pelos pobres é o timbre e o
brazão da
nossa sociedade, como o luxo é o sonho e a
aspiração constante de todos os
cerebros juvenis, provém d'aqui que dia a dia, se sente na
familia uma perturbação e uma desharmonia mais
graves que
o contentamento intimo e desinvejoso vae-se tornando uma flôr
rara, que só aqui ou alli enfeita
suavemente a fronte ignorante de uma collegial de quinze annos!
Depois, como se não póde vencer o impossivel,
mesmo as
que empregam os maximos sacrificios para apparecerem e brilharem,
depois de alcançado o fim a que aspiravam, ficam mais
tristes e
mais despeitadas do que antes de o ter realisado.
No baile, á luz opalina dos lustres, no aroma capitoso das
violetas, entre as magnificencias avelludadas das camelias, percebem―e
com que amargo desespero!―que o seu vestido não
está
fresco, que
estão machucadas as suas flores, que a ninguem illude o
amarellado artificial das suas rendas falsas, e que o
strass
não
póde substituir com muita vantagem os diamantes verdadeiros.
Oh! quantas privações, quantos sacrificios,
quantas luctas conjugaes, que scenas intimas, para
alcançarem aquella
toillete
mesquinha,
desbotada, humilhante, que parece ter malicias diabolicas em cada
[36]
uma das suas pregas, a rir-se
ferozmente no seu
fru-fru escarnecedor.
E a dona d'esse vestuario hybrido pensa de si para si com uma furia
concentrada, que põe manchas biliosas nas suas faces, e
chispas
sombrias nos seus olhos pisados.
―«Não consigo humilhar nenhuma das minhas
inimigas,
não venço nenhuma das minhas rivaes! As
pobres adivinharão todas as penas que esta hora de
ostentação me tem custado! as ricas
terão dó, um dó profundo da minha
miseria mal
disfarçada e mal occulta! Que ganhei eu com isto?»
Ganhou, minha senhora, ganhou alguma cousa, póde crer.
Ganhou a
certeza de que seu marido ou não a estima já, se
é
honesto e digno
e tem a alta comprehensão dos deveres da familia, ou
continua a
sentir o mesmo que até alli tinha sentido, uma
paixão insalubre ou uma indifferença bestial, e
n'esse
caso não passa de um homem tolo, ou de um homem
máu!
Ganhou o haver definido, de si para comsigo a sua propria
situação; ganhou o reconhecer bem a que especie
de marido
entregou o destino de seus filhos e o seu.
E não se diga que ha n'estas minhas palavras demasiada
acrimonia, ou injustiça flagrante.
[37]
O nosso defeito consiste positivamente n'isso: em dar pouca
attenção a todas as cousas; em ver os
resultados sem observar e sem julgar as causas; em perdermos
completamente de vista, que não ha effeito por mais
mesquinho
que não seja o corollario de uma lei importante.
Não quero, já se vê, condemnar sem
appello as senhoras que frequentam a sociedade e se habituam
á atmosphera artificial dos salões.
Quero provar simplesmente que entre cem senhoras que o fazem,
só
dez é que o podiam fazer, e que o nosso modo de ser social
se
não coaduna com esses costumes pomposos, restos e
herança
de um extincto regimen.
Para se saber quanto o luxo corrompe e adoece um paiz bastar-nos-hia
apontar para a França de Luiz XV e para a França
do
segundo imperio.
A historia e as chronicas d'esses dias de ominosa memoria
revelar-nos-hiam de um modo bem claro e bem frisante quanto
é
escorregadio o declive que do luxo exagerado conduz á
immoralidade, ao impudor da mulher e ás deshonestas
transigencias do homem.
[38]
Não queremos, porém, n'este estudo despretencioso
evocar a historia, nem revolver o lodo das passadas
corrupções.
Queremos simplesmente fallar ao bom senso das leitoras, e queremos
fallar chãmente, simplesmente, sem
declamações,
nem idéas
preconcebidas.
Todos sabem que o nivelamento das classes, a livre divisão
dos
bens, a democratisação das
fortunas, se teem conseguido debellar muitas e crueis
injustiças
sociaes do passado, teem sido tambem a destruição
das colossaes fortunas de outro tempo.
Hoje, quando essas fortunas por acaso existem, são creadas
pelo
trabalho em grande escala, pelas importantes emprezas commerciaes, pela
actividade devoradora de homens privilegiados.
Já se não fundam como antigamente em direitos
estaveis e
indestructiveis. São ephemeras, contingentes, dependem de
muitas
causas com que se não póde absolutamente contar.
Uma crise financeira, uma guerra européa, uma quebra
importante,
um abalo qualquer de credito, e eis por terra um edificio
assombroso e complicado que parecia dever resistir ao embate de todas
as tempestades, e que um sôpro logra alluir!
Ora, se isto tem relação com as grandes fortunas,
se nem ellas podem contar com o dia de ámanhã,
que
[39]
farão os que
não possuem mais que o necessario,
os que ás vezes nem isso possuem?
Antigamente, no modo por que estava constituida a hierarchia social,
uns tinham todos os bens, e outros soffriam todos os males; hoje como
todos teem eguaes direitos, todos querem ter eguaes regalias.
Seria isso muito bom, se a egualdade que existe entre as prerogativas
podesse existir tambem entre as riquezas, se em vez de haver pobres e
ricos, houvesse sómente ricos, cousa a que nem os mais
exaltados
socialistas se lembraram ainda de aspirar.
Ora, se está sobejamente provado que, principalmente no
nosso
pequeno paiz, ha uma minoria pequenissima que é rica, ha uma
maioria enorme que é miseravel, e ha, entre os dous
extremos,
uma classe, a mais importante―no fim de contas, visto que tem a
superioridade da educação e da
intelligencia, que é simplesmente remediada, porque
é que
não havemos de sujeitar o nosso regimen social ás
exigencias e necessidades d'essa classe, que é a
predominante,
senão pelo numero, ao menos pela influencia que exerce?
Essa classe póde conhecer as
distracções de uma agradavel intimidade, mas
não
as pompas decorativas, as ceremoniosas galas de uma vida de
salão apparatosa e futil.
[40]
Se os filhos d'essa classe olhassem para baixo e vissem as
privações, as luctas, as miserias dos
que só conseguem com o suor do rosto ganhar um
pedaço de
pão duro e cobrir pobremente o corpo emmagrecido, de certo
que
se sentiriam felizes, triumphantes, dignos de inveja, na sua
mediocridade aurea, na modesta fartura da sua vida domestica, nas
distracções intimas de
um circulo affectuoso e limitado.
Mas não! Olham para cima, vêem os ricos, os
potentados, os
dominadores do seculo, ouvem nas tentações febris
das
suas noites o tilintar
magnetico do ouro, vêem passar no fundo dos seus ligeiros
coupés, pallidas e desdenhosas mulheres, que medram como
flôres exoticas de fulva folhagem metallica na estufa das
suas
salas opulentas, sentem em si o desejo insaciado de todos os prazeres
que não teem, e sem prudencia, sem pudor, sem dignidade,
atiram-se ás especulações vergonhosas,
transigem
com a sua propria probidade, vendem, desde os bens que herdaram de seus
paes, até á consciencia que lhes veio de Deus, e
quando
conhecem que n'esta lucta ingloria, n'esta lucta impossivel
só
podem ser vencidos, já
não é tempo para retrocederem no funesto caminho
encetado!
E que não ha parar n'esta ingreme descida.
Teem-me dito por varias vezes que eu sou feroz
[41]
para com o sexo a que
pertenço;
que accuso com muita injustiça as mulheres de todos os males
que
teem succedido, que succedem ou que estão para succeder no
nosso
mesquinho planeta.
Ora eu, pelo contrario, estou convencida de que o meu orgulho, de que a
minha vaidade feminil me levam a dar ás mulheres uma
importancia
que mais ninguem lhes quer reconhecer.
Eu digo que d'ellas provéem todos os males, porque estou
convencida―talvez sem razão―que d'ellas podiam provir
todos os
bens.
Ainda no ponto de que se tracta é d'ellas toda a culpa, no
meu humilde entender.
Sim, porque no fim de contas, não são os pobres
maridos
que mais desejam figurar nos bailes e nos saraus, e que de boa vontade
sacrificam a commoda poltrona em que podiam dormir a sesta, o bom e
saboroso jantarinho que podiam comer, o livro util e proveitoso que
comprariam, para gastarem esse dinheiro n'uma
toilette
falsamente luxuosa,
n'uma
soirée
ridiculamente burgueza, n'um jantar de ceremonia cujos acepipes, na
opinião do conviva mais guloso, seriam só dignos
de
figurarem n'um banquete de theatro com pratos de... papelão.
São as mulheres que teem sempre a louca
ambição de figurarem ao par de outras mais ricas,
embora
[42]
n'essa lucta desigual
só consigam tornar bem visivel e bem grotesca a sua derrota!
São as mulheres que consideram os prazeres mundanos como o
indispensavel elemento para a sua completa felicidade.
São ellas que arrancam ás primeiras necessidades
do
ménage,
á
carne que os filhos devem comer, ás roupas brancas da
familia,
aos abafos do inverno, á lenha do fogão das
noutes frias,
á mobilia
commoda e confortavel das casas, ao peculio das doenças, ao
asseio e ao conforto domestico, o dinheiro com que adquirem esse luxo
ridiculo, esse luxo de
pacotille que não illude, nem excita a
commiseração de ninguem.
E quando ellas percebem no olhar e na bôcca dos que assistem
a
essa lucta absurda, um sorriso malicioso, uma faisca de ironico desdem,
são ellas que irritadas, desvairadas, fóra de si,
arrastam o marido á extravagancia, á
dissipação,
á prodigalidade, ao crime, e arrastam os filhos á
miseria
e á
desolação!
Nada mais funebre, mais triste, mais sombrio do que o interior de uma
d'essas casas, em que o necessario é sacrificado ao
superfluo,
em que o real é
sacrificado ás apparencias, em que o conforto intimo
é
sacrificado ao apparato exterior.
As criadas sujas, despenteadas, petulantes; as
[43]
creanças pallidas, anemicas, sem
educação e sem solas; com os dentes podres e
nodoas no
vestido; os moveis indiscretos na mal disfarçada miseria,
uma
unica casa elegante―a sala―falsa taboleta de uma vida de imposturas;
a roupa branca do marido encardida e grosseira, a
toilette
da mulher
vistosa e
mirabolante. As côres
tapageuses,
substituindo a qualidade fina e solida; a multiplicidade dos
arrebiques, substituindo a simplicidade opulenta do trajo.
Quem depois de conhecer dous annos estas galés conjugaes, se
resigna a viver n'ellas?
Os pequenos preferem o collegio sordido e brutal; o homem foge para o
botequim ou para outros sitios peiores; a mulher vive na rua, na
modista, no theatro, nas salas do seu conhecimento, no passeio, na
ociosidade e depois Deus sabe em que!
Eis a vida creada pelo immoderado amor do luxo.
Afastemos porém os olhos d'estes quadros sombrios e que no
entanto, leitora querida, tu bem sabes que não
são
carregados.
Imagine-se que transformada a sua educação, a
mulher se formava unicamente para o interior da sua casa.
D'essa casa não fugiriam de certo os amigos fieis
[44]
e dedicados, não se
excluiam as
pequenas reuniões
intimas, a musica, as conversações artisticas, as
leituras agradaveis, os alegres e joviaes serões.
O que se excluia sem appellação eram os inuteis
apparatos.
Como a mulher tinha em mira ser só agradavel aos seus,
deixava
logo de armazenar todas as suas armas―o espirito, a graça,
o
sorriso, a amabilidade―para distrahir os estranhos, para agradar aos
indifferentes.
Como desejava fugir ao tedio, á melancolia, ás
enervantes
tristezas da solidão, aprendia a dispensar as companhias
banaes,
fazendo seus companheiros, os melhores, os que nunca
atraiçoam,
os livros, a musica boa, as flôres, o trabalho.
Logo que, em vez de se enfastiar em casa, ella se, divertisse e se
achasse bem junto dos seus, elles começariam mesmo
involuntariamente a sentir-se aquecidos por essa boa e salutar
influencia.
Ninguem póde estar aborrecido ao pé de uma pessoa
que se diverte francamente.
O marido por mais que os negocios de fóra o preoccupem e
enfadem, por mais que as luctas da arte, do commercio, da politica, da
industria, o cansem e mortifiquem, ha de sentir forçosamente
um
raio de bom e salutar contentamento ao pé da esposa
[45]
que volitar em torno d'elle
viva e chalreadora como um pardal, fresca como uma flôr,
animada,
activa, cheia de invenções felizes, e de sincera
e
desaffectada alegria!
E depois, eliminado o luxo exagerado da existencia de qualquer familia,
eliminam-se ao mesmo tempo os cuidados mais lancinantes, as
preoccupações
mais absorventes, as luctas mais dolorosas, os despeitos mais
corruptores.
Temos visto varias vezes o seguinte: O homem trabalha para dar o
bem-estar á mulher, e rouba para lhe dar o luxo!
É que―note-se isso bem―o luxo quando não
é a atmosphera natural em que se nasceu e se tem sempre
vivido,
uma cousa que á força de estar
identificada comnosco, nós já nem se quer
percebemos―o
luxo quando é o fim a que aspira a nossa desenfreada
ambição, torna-se um elemento profundamente
desmoralisador.
Enerva o corpo, excita fatalmente a imaginação,
aggrava a
insaciabilidade natural aos desejos da mulher, dá-lhe a
idéa de requintes romanescos, de
aventuras, de amores vedados, attrahe um cortejo de voluptuosas
tentações.
A vida das salas é a consequencia inevitavel do amor do luxo
que
devora a mulher de hoje.
[46]
Não a mulher de uma certa e determinada classe, a mulher de
todas as classes sociaes.
A esposa do alto financeiro, do colosso da industria, deseja vestir-se
de um modo que logo de uma vez córte pela raiz na alma ainda
mais ambiciosa o desejo de a vencer.
Ora, como este desejo se nutre de difficuldades, todas as que
estão no mesmo caso d'ella travam a lucta e empregam os mais
loucos esforços para lograrem a palma.
As raras flôres da nossa velha aristocracia, não
querendo
ser desthronadas pelos potentados modernos, entram, já se
vê, no combate com grave transtorno das bolsas de seus
respectivos maridos.
A nenhuma d'ellas cabe completa victoria; se as rendas de Bruxellas que
guarnecem o vestido d'esta são mais preciosas, os diamantes
que
enfeitam o collo e os braços d'aquella são mais
raros; se
a
traine de velludo d'est'outra é mais
distincta, a tunica de setim e ouro da outra é mais
singular.
E o combate recomeça mais feroz, mais acceso, mais
desapiedado.
Cá em baixo a lucta toma as mesmas fórmas.
É a lucta da falsa riqueza, a lucta das pedras que fingem
brilhantes, das
imitações que
fingem rendas, dos vestidos concertados que fingem vestidos novos.
[47]
São mais profundos ainda os despeitos, é mais
desesperada ainda a energia que se gasta!
Quem vive esta vida ardente, inflammada de
ambições insalubres, exaltada de mesquinhas
invejas, corroida de miseraveis tricas, não póde,
não sabe, não tem forças para ser boa
esposa, boa
mãe, boa dona de casa!
Pintámos em traços rapidos a vida das nossas
mundanas;
procuraremos desenhar, se tanto nos fôr possivel, a vida que
ambicionamos e desejamos para a mulher de familia.
No dia em que ella a quizer adoptar, reconquistar-se-ha a serena
dignidade, a tranquilla doçura do lar domestico, que pouco a
pouco se vae tornando desflorido, melancolico e deserto.
II
Nas paginas antecedentes condemnava eu a vida de apparato, a vida da
sociedade, a
vida de
sala,
pela influencia corruptora que ella exerce nos costumes e nos
sentimentos, e pela absoluta desharmonia em que ella está
com a
moderna
concepção da familia e da sociedade.
[48]
No entanto não basta só lavrar a
condemnação de um modo de ser social,
é necessario
apontar o remedio, ou pelo menos apresentar um alvitre que á
nossa consciencia pareça proficuo e salutar.
As mulheres gostam da vida frivola e inutil dos salões,
pelos seguintes motivos:
―Porque as salas são o theatro dos seus triumphos e
conquistas.
―Porque é ahi que ellas são lisongeadas,
louvadas, incensadas e queridas.
―Porque os homens só prestam homenagem ás mais
bonitas, ás mais vaidosas, e ás mais ricas,
na realidade ou na apparencia.
Além d'estas causas que as levam a gostar da
representação e da pompa mundana, ha outras
dependentes
d'estas ou relacionadas com ellas, que as levam a aborrecer-se no
interior das suas casas.
Primeiramente, e acima de tudo, a falta de uma
educação solida e positiva, que as
faça encarar a vida debaixo do seu verdadeiro aspecto. Um
aspecto de seriedade e de justiça, assentando na
comprehensão de todos os deveres.
Segundo, a inhabilidade e a ignorancia, que as torna incapazes de
qualquer trabalho seguido. A falta de gosto natural ou de gosto
adquirido, para se entreterem, para se distrahirem, para revestirem de
uma
[49]
fórma
sympathica e attrahente as suas
obrigações de donzellas, de esposas, de
mães, de
donas de casa.
Terceiro, a inveterada frivolidade que herdaram, e que os exemplos
recebidos, e a falsa educação
mais aggravou e desenvolveu, tornando-a um perigo, o maior de todos os
perigos que ameaçam a familia.
Eu tenho repetido isto tantas e tantas vezes, que receio por fim
enfastiar as minhas leitoras.
É necessário antes de tudo
transformar radicalmente a educação das mulheres.
Muitas das cousas que hoje se ensinam é mister que deixem de
se ensinar.
Muitas outras que se encaram debaixo de um certo e determinado ponto de
vista, cumpre que se vejam sob outro aspecto inteiramente differente.
Outras ha ainda a que ninguem attende e que se não ensinam,
e é positivamente a essas que se
deve dar a maxima e a mais desvelada attenção.
Tratemos de apresentar exemplos das tres
asserções que acabamos de apresentar.
Das cousas inuteis que hoje se consideram ainda partes integrantes de
uma educação perfeita.
Ha a
dança: um talento
absolutamente dispensavel, que nas meninas só serve para
desenvolver a
coquetterie, o desejo de brilhar e de agradar.
A
tapeçaria: um pretexto
futil para estragar o
[50]
tempo. Em quanto a mão vae preguiçosamente
bordando a talagarça, a phantasia irrequieta da mulher, da
creança, corre e vôa por montes e valles,
á procura de um vedado ou de um impossivel ideal. Chama-se a
este genero especial de trabalho feminino, a
hypocrisia da preguiça.
Como estas duas cousas, ha muitas mais que não temos tempo
de enumerar, mas que se não são
nocivas como a primeira, são pelo menos inuteis como a
segunda.
Procuremos agora muitas das materias que se ensinam, e devem continuar
a ensinar-se, mas ás quaes a educação
tal como
está
rotineiramente estabelecida, não sabe dar a importancia e o
valor devido.
São a musica, a historia, as linguas, a geographia, a
arithmetica, etc., etc.
O primeiro cuidado de toda a mãe vaidosa ou illustrada,
intelligente ou mediocre, é que as suas filhas aprendam a
tocar
piano.
Muito bem.
É preciso, porém, advertir-se que a
monomania do piano, tal como ahi anda inoculada e
propagada,
é um flagello, um temivel flagello e nada mais.
A musica é de todas as artes aquella que mais falla aos
sentidos e á alma do homem.
Modera, dulcifica, adormenta,
consola, estimula,
[51]
apaixona, enternece e muitas
vezes, quando profanada e desvirtuada por sacerdotes sacrilegos,
enerva, abranda a energia e a vitalidade do espirito, e vence todas as
resistencias viris do caracter.
É uma amiga, póde ser uma cumplice.
Em todos os casos é um grande, um milagroso, um divino, um
terrivel poder.
Mas mesmo pelo papel importante que occupa, mesmo pela influencia
profunda que exerce, não é dado a todos
interpretal-a e
comprehendel-a.
Muitos ha que se submettem ao seu irresistivel dominio, sem saber
sequer adivinhal-o ou presentil-o.
Quantas vezes não temos visto uma pobre mulher
boçal, uma
modesta e ignorante creatura, chorar de commoção
ouvindo
as notas tristes de uma flauta
ou de uma guitarra!
Não tem a consciencia da commoção que
a perturba, mas vibram-lhe os nervos, latejam-lhe as fontes, toda ella
palpita e estremece como que agitada por uma potencia ignota.
Como todas as artes, a musica só póde ser
interpretada por quem a comprehenda com o seu espirito, e por quem a
sinta com o seu coração.
De outro modo é uma profanação e
é um escarneo.
Achamos, portanto a musica, um elemento poderosissimo
[52]
de educação, mas exigimos que haja
intelligencia e vocação nas pessoas que a
aprendem.
Não é fazer do piano um attributo indispensavel
de todo o
ensinamento elegante, e obrigar sem discernimento e sem escolha todas
as meninas a estudal-o e a atormentar com elle o ouvido do proximo.
Logo que se comprehenda bem o grande alcance da musica, a sua
influencia moralisadora, a sua missão artistica, as
mães
escolherão de entre as suas
filhas, aquella ou aquellas que mostrarem
predisposição
para este genero de estudo e auxiliarão por todos os modos o
desenvolvimento d'essa vocação.
O piano deixará de ser o flagello e a peste das
soirées
sem ceremonia, o
tormento dos visinhos proximos, o pezadello dos maridos, o martyrio das
proprias executantes. Não reinará exclusivamente
como
até aqui esse despotico e terrivel instrumento.
Não se dirá das meninas
bem
educadas:
toca
admiravelmente, subentendendo já o malfadado
piano.
Dir-se-ha mais acertadamente:
sabe
musica,
toca muito bem violoncello, ou
harpa, ou
rebeca, ou
piano mesmo, porque nós não
queremos condemnar
nenhum instrumento ao ostracismo, pelo contrario queremos livrar os
outros do ostracismo a que estão injustamente condemnados.
Com esta escolha sensata das pessoas que particularmente
[53]
devessem cultivar a sua
vocação
musical, muitos bens proviriam á
educação da
mulher.
A musica executada só por quem a entendesse, ouvida
só
por quem a apreciasse, tornar-se-hia, em vez de um ornato de vaidade,
uma elevada
distracção artistica.
Educaria e apuraria o gosto, exerceria a sua pura e civilisadora
influencia, seria o repouso depois do trabalho ou a
consolação no meio d'elle.
Os velhos mestres allemães com as suas largas e simples
harmonias, ouvidas á noute no serão
modesto da familia, ao pé de um ou dous amigos intelligentes
e sinceros, penetrariam o coração da mulher de
uma serenidade affectuosa e dôce, de um casto enternecimento
salutar!
O que dizemos da musica instrumental tem
applicação a todas as outras artes.
O canto, o desenho, a pintura, a escultura mesmo.
Todas merecem o nosso respeito, não como adornos pueris, mas
como elementos de util e fecunda
moralisação.
Sempre que a mãe ou que a educadora descubra em sua filha,
ou na
sua discipula, tendencia pronunciada para um ramo qualquer de
actividade intellectual,
[54]
deve por todos os modos facilitar e desenvolver essa
vocação espontanea.
Mas que a educação de todas não seja
pautada por um molde uniforme!
Mas, por Deus! que não se faça d'esta grande e
sublime
missão de cultivar um espirito infantil, uma
questão de
moda, uma questão de vaidade, uma
questão de mutua inveja mesquinha.
As linguas são hoje ensinadas com muito esmero.
Mas que applicação se dá a essa
sciencia adquirida em muitos annos de estudo e de pratica?
Uma applicação deveras ridicula!
Entre vinte das meninas que sabem hoje francez, inglez,
allemão
ou italiano, não ha quatro que
tenham lido Hugo ou Bossuet, Racine ou Montaigne, Shakspeare ou Milton,
Goethe ou o Dante, não ha quatro sobretudo que estejam aptas
para comprehenderem estes mestres do pensamento e da palavra.
E no entanto para que servem as linguas estrangeiras?
Não passam de meros instrumentos com os quaes adquirimos
noções, factos, idéas,
conhecimentos, que nos seriam estranhos sem ellas.
Na lingua de um povo está consubstanciado muito do que elle
é moral, physica e intellectualmente. Penetra-se
[55]
no caracter de uma
nação conhecendo a
fundo as locuções de que ella se serve.
E quem é que hoje encara as linguas d'este modo a
não ser
algum philosopho retirado na sua torre ideal, ou algum philologo
embebecido nos seus estudos?
É preciso que este conhecimento se vulgarise e se propague,
para
que as linguas estrangeiras tomem na educação o
lugar que
lhes compete.
A historia, que é um apontoado de datas e de nomes proprios,
de
dynastias e de batalhas, logo que passasse a ser na
educação das mulheres o que
ella é já no espirito dos criticos, seria um
estudo
attrahente, mais dramatico do que todos os romances, de uma realidade
mais poderosa e dominadora.
A geographia, que não é mais do que uma arida e
enfadonha
nomenclatura, animada pelo espirito da mãe intelligente,
levaria
a imaginação
infantil, não já pelos paizes chimericos, do
sonho e do
impossivel, mas por essas regiões pittorescas, onde tanto ha
que
vêr e que aprender.
Mais tarde as sciencias naturaes, a botanica, a mineralogia, a
biologia, abririam ao espirito já preparado, horisontes
larguissimos, onde pudesse espraiar-se livremente.
[56]
Assim educada, quer dizer, sabendo tudo que sabe hoje, mas classificado
por outra ordem, e encarado debaixo de outro aspecto, e muitissimas
cousas que hoje não sabe, mas ás quaes a
conduziria
naturalmente,
o novo methodo dos seus estudos, a mulher transfigurada, levantada,
fortalecida, podia aspirar a uma vida inteiramente diversa da que hoje
tem.
Teria grandes vantagens esta modificação profunda
no seu modo de ver, de pensar e de sentir.
Vulgarisada para todos a educação cujas bases
apontamos, desapparecia da sociedade essa entidade singular chamada
mulher
pedante.
É extraordinario mas é verdade, a ignorancia das
outras é que constitue o pedantismo d'esta.
Sendo uma excepção no seu meio, tem as qualidades
e os defeitos das
excepções.
Comprehende que é alvo da curiosidade, do pasmo, da
observação dos que a rodeiam, e a pouco e pouco
vae
cahindo n'uma
pose
artificial que a torna ridicula.
Poucas são as que téem a coragem de―tendo um
lado superior―se conservarem simples, desartificiosas, naturaes.
Lêram, estudaram, compararam; no meio da estupidez geral,
produzem um vago assombro que lentamente vae distinguindo n'ellas!
[57]
Oh! mas no dia em que a mulher instruida deixasse de ser uma
excepção admiravel, como ellas, as pobres
mulheres
pedantes se
sentiriam humilhadas e deslocadas!
A vida de sala iria pouco a pouco sendo o apanagio das frivolas e das
tôlas, e acabaria por desapparecer completamente.
A mulher dentro de sua casa sentir-se-hia bem, porque teria em si
recursos sufficientes não só
para entreter os seus, como tambem―e é isto o
principal―para se
entreter a si.
É essa a grande questão!
É preciso que as mães preparem o espirito de suas
filhas
de modo que ellas não precisem dos outros para viver
contentes.
E como se ha de conseguir este fim?
Educando-as para que ellas bastem a si proprias. Dando-lhes ao espirito
todos os recursos, ao corpo todo o vigor, ao caracter toda a austera
dignidade; cultivando e desenvolvendo todas as faculdades superiores
que ellas revelem, encadeando harmonicamente as suas
acquisições intellectuaes, para que
d'essa harmonia interior resulte para ellas uma exacta e elevada
comprehensão da vida!
E não é muito o que nós exigimos.
Somos a primeira a confessar que hoje ha muito
[58]
mais esmero e apuro do que havia
antigamente na instrucção que as classes
abastadas
dão ás suas filhas.
Pouco mais precisam de aprender; o que lhes falta é a
ligação logica entre as
varias cousas que aprendem, é uma
concepção mais
larga
das mesmas sciencias que adquirem, é o conhecimento das
proprias
armas que possuem, contra esse inimigo poderoso da mulher, chamado
Tedio.
Em nosso humilde entender classificariamos d'este modo os conhecimentos
indispensaveis a toda a mulher, para esta ser julgada apta a exercer o
sacerdocio de esposa, de mãe, e de dona de casa.
As linguas estrangeiras, consideradas como meios de adquirir
noções praticas, idéas
justas, factos positivos; como meios de comparar, de julgar, de
aquilatar, de exercer emfim o seu senso critico, de modo que o
desenvolvesse, elevasse e afinasse; como meios de conhecer as
differentes manifestações do bello
e de as poder relacionar entre si.
A Historia, com o fim de conhecer através d'ella a
humanidade de
todos os tempos, de seguir a sua lenta e continua
evolução, e de penetrar
lucidamente no sentido da palavra―progresso.
O conhecimento profundo e philosophico da historia moralisa, pacifica,
e revigora as crenças. Dá ao
[59]
espirito, além de notavel
perspicacia, grande justeza de pontos de vista.
Viriam depois, como já dissemos, a geographia natural, a
arithmetica, a geometria, as sciencias da natureza, e isto
harmonicamente, progressivamente, de deducção em
deducção,
sem esforço, ligando um conhecimento a outro conhecimento,
n'uma
cadeia logica e inquebrantavel.
Juntamente com estas
acquisições
uteis, e como que amenisando os
esforços que ellas por ventura custassem, a mãe
intelligente levaria sua filha a cultivar especialmente a arte para a
qual sentisse mais accentuada vocação.
Preparada por esta iniciação em que o espirito
fosse
exigindo dia a dia alimento mais substancioso e mais forte,
á
proporção que mais rico
de vigor e de vitalidade elle se sentisse, escusado é dizer,
que
nenhuma mulher deixaria de comprehender e de saborear com intimas
delicias o encanto novo e superior com que a arte illuminasse a sua
vida.
Seria uma ascensão gloriosa e lenta, ás alturas
onde se respira um ar mais puro e mais subtil.
D'alli, d'aquella montanha ideal, a que ella houvesse subido, levada
pela sciencia e pela arte, pelo estudo e pelo sentimento, ser-lhe-hia
facil descobrir o caminho que devesse seguir na vida. A idéa
do
[60]
dever, esta idéa que é o remate e a
corôa da educação perfeita,
apresentar-se-lhe-hia
como um resultado natural de todo o trabalho interior que no seu
espirito se houvesse feito.
Chegariamos emfim ao ponto que queremos attingir.
A educação deixaria de ser um fim e tornar-se-hia
o meio elevado e transformado de alcançar a
perfeição moral.
Resta, porém, fazer uma pergunta que está no
animo de todos.
Sujeitar-se-ha a mulher, assim arrancada de chofre á
banalidade
da esphera limitada em que tem vivido até agora, a cumprir
as
mesmas humildes
obrigações, que teem sido e
continuarão a ser a
sua tarefa quotidiana, e o seu quinhão na vida?
De certo que sim, e seguindo o mesmo methodo que seguimos para o seu
cultivo intellectual não nos será difficil provar
que
esses mesmos deveres, logo que sejam comprehendidos dignamente, em vez
de humilharem, são um triumpho para aquella que os sabe
exercer.
CAPITULO III
A velhice das mulheres
Nas nossas continuadas predicas ácerca da
transformação que é necessario
operar-se em tudo
que respeita á educação feminina,
levamos em mira
principal, duas cousas muito dignas de attender-se.
Primeiro: que a mulher torne quanto possa, independente de
circumstancias exteriores, a marcha do seu destino, quer dizer, que
ella não seja
forçada fatalmente a seguir um caminho para o qual haja no
seu
espirito instinctiva repugnancia, que ella dispense na sua vida
influencias estranhas e muitas vezes incompativeis com a sua indole.
Segundo: que ella se vá lentamente preparando na infancia e
na
sua tão curta e ephemera mocidade, para a quadra mais longa,
mais difficil e podemos hoje dizer, mais dolorosa da sua existencia: a
velhice.
[62]
Exemplifiquemos, para que melhor seja comprehendido o nosso raciocinio.
No que toca ao primeiro ponto, lancemos em roda os olhos e vejamos. Por
toda a parte encontraremos argumentos victoriosos.
No estado presente da educação a mulher
está sujeita a uma funesta dependencia, a qual mesmo sem
tendencia para exagerações declamatorias, se
póde chamar escravidão.
Assim como descuram dar ao seu corpo por meio da gymnastica a
força, a elasticidade, a ligeireza, o vigor, assim descuram
dar
á sua alma a energia, que a torne superior aos preconceitos,
e
ao seu espirito a forte e larga educação, que a
habilite
para
ganhar honestamente a sua modesta subsistencia.
Sente-se fraca, e pusillanime diante do trabalho, diante das luctas,
diante da desgraça.
Confessa a cada instante o medo pueril que a avassalla; medo de
não resistir ás
tentações que a covardia dos homens arma
á
insensatez da mulher; medo do riso alvar com que os tolos lhe
castigariam a viril energia; medo de se sujeitar ao trabalho incansavel
e tenaz que ha de dar-lhe a independencia, a dignidade, a livre posse
do seu destino.
Além do medo a impossibilidade absoluta.
Se nada sabe, o que ha de ella fazer?
[63]
Podia dirigir a contabilidade de uma casa de commercio importante.
As mulheres com o seu instincto de ordem, mais desenvolvido do que os
homens, são proprias para este genero de trabalho.
Podia, sendo medianamente illustrada, ser caixeira de um
estabelecimento de modas, de uma loja de papel, de um mercador de
fazendas, etc., etc. Tudo isto está em harmonia com a
delicadeza
dos seus orgãos.
Podia ensinar linguas, ensinar musica, ensinar e explicar as sciencias
que houvesse aprendido, a historia, a arithmetica, a litteratura, a
geographia.
Podia, tendo alguns fundos que houvesse herdado de seus paes,
estabelecer qualquer pequena industria, emfim, ter uma
acção propria, independente e
não subordinada aos caprichos alheios, ou ás
circumstancias eventuaes.
Mas como não sabe fazer nada d'isto, como a sua
educação a pôz e a conserva n'um estado
de absoluta e desoladora humildade, não tem senão
tres
caminhos a seguir.
Ou casar mesmo que não tenha pelo seu noivo nenhum
sentimento de
respeito; mesmo que o ache ridiculo ou estupido ou máu;
mesmo
que elle lhe seja imposto unicamente pelas conveniencias egoisticas do
seu
[64]
futuro; mesmo que
nenhum laço de sympathia a elle a prenda, e d'esta funesta
causa
escusado será dizer quantos males terriveis não
resultam
para a sociedade e para a familia!
Ou ficar a cargo dos parentes mais ricos, que por
commiseração a acolham, a alimentem, a vistam, a
protejam, e n'este caso soffre e decahe a sua dignidade propria, a alma
curva-se-lhe n'uma postura humilhante, deixa de ter responsabilidade,
de ter opinião, de ter individualidade emfim; constitue-se
um
ser mutilado cujo aspecto enfermiço faz tristeza e
dó, quando se não torna um temperamento azedo,
atrabiliario, perverso, folgando no espectaculo de todas as
desgraças alheias.
A terceira hypothese já todos a adivinharam infelizmente.
A mulher repellida da familia, porque a não quizeram inutil
e
pobre, não achando em si nem a coragem, nem a sciencia do
trabalho, lucta contra o mal que lhe revela as suas traidoras miragens,
mas se mão estranha a não soccorre e a
não
prende, succumbe, precipita-se e perde-se.
D'estas tres hypotheses exceptuamos, já se entende, todas as
mulheres que tiverem a suprema felicidade de encontrar no homem a quem
entregaram absolutamente o seu destino, além do noivo
escolhido
[65]
e preferido entre todos, o
protector mais util e mais dedicado.
Exceptuamos tambem as ricas, porque essas que não tinham em
si
proprias a independencia, adquiriram-na indirectamente por meio da sua
fortuna.
Mas a divisão infinita dos bens vae diminuindo mais e mais o
numero das ultimas, e a felicidade negativa que ha na maior parte dos
ménages tornando as meninas de pouca
edade impacientes
de sahirem da casa paterna, imprudentes e precipitadas na escolha, vae
diminuindo em não menor proporção
o numero das primeiras.
Como quer que seja, abandonemos essas duas cathegorias de
excepções e achamo-nos em frente de uma
numerosissima
maioria.
Os resultados que encontramos são, portanto, os seguintes:
A incapacidade absoluta da mulher dominar o seu destino, incapacidade
cujas causas já apontámos,
produz estes tres generos de victimas.
A mulher que casou, porque não podia deixar de o fazer, que
casou para ter pão, para ter casa, para ter luxo, para ter
protector, um editor responsavel da
[66]
sua vida, e que tendo sómente este objectivo, se
não occupou nem um instante em estudar e conhecer o homem a
quem ia para sempre entregar-se.
A creatura humilhada, dependente, parasita, vivendo das migalhas do
luxo que a rodeia.
A desgraçada que a sua fraqueza inteiramente desprotegida
perdeu e abysmou.
Nenhuma d'estas mulheres condemnadas ao descontentamento intimo,
á dolorosa inquietação da
consciencia, em resultado de uma causa identica, póde estar
satisfeita comsigo mesma.
O que fazem, pois, para fugirem de si? Procuram quanto sabem e como
podem, os outros.
As festas de uma folia burlesca, ou as festas de uma pompa
deslumbrante, o mundo, emfim, a convivencia, o barulho, tudo que
aturde, tudo que faz esquecer.
Ainda aqui os nossos calculos nos não illudiram.
A mulher procura o mundo, porque as alegrias que póde
encontrar
em si mesma, não só
lhe não bastam para illuminar com ellas o lar onde vive com
os
seus, como lhe não chegam para si propria se distrahir e se
contentar.
Entremos agora no segundo ponto que ha pouco tocámos.
[67]
A mocidade da mulher é forçosamente curta.
Aquella que se
compenetrar sensatamente d'esta idéa, o que deve fazer para
attenuar a amargura?
Preparar-se com dignidade, com resignação,
diremos mesmo com alegria para esse longo supplicio da mundana, que se
chama velhice.
O homem, desenvolvendo em muito mais larga escala e de um modo muito
mais variado a sua actividade complexa, póde gosar
até
á mais
avançada edade dos prazeres que por assim dizer mais
apreciou.
A ambição, as luctas da politica, as
lucubrações da sciencia, as argucias da
diplomacia, as
investigações da historia e da critica, e mesmo
os gosos ardentes da arte.
Vejam-se Gœthe, Miguel Angelo, Hugo, Beethoven,
Talleyrand, Thiers e tantos e tantos mais.
A mulher de hoje, a mulher educada por este acanhado ideal que a
domina, funda o seu fragil poder nas graças fugitivas da sua
formosura, no encanto juvenil da sua vivacidade, na sua elegancia, no
seu riso frivolo e pueril, no esplendor radiante do seu luxo, na sua
convivencia inutil e perfumada como a das flôres!
Um dia alveja-lhe na massa fulva, cendrada, ou
[68]
negra dos seus cabellos, um fio de
prata, o primeiro, invisivel para todos os olhos, mas que o espelho
revelou aos seus.
Esse fio traz preso a si a desventura!
Oh! ella reinou, dominou, teve subjugadas aos seus pés todas
as forças e todas as vontades!
A casa, mesmo sendo a casa um ninho fôfo e perfumado,
parecia-lhe
bem pequena e bem mesquinha para theatro dos seus triumphos.
Era das salas que ella gostava!
Do murmurio surdo, abafado, voluptuoso de
admiração, que ella excitava ao entrar nos
salões
pelo braço do seu pobre marido, muito enfastiado e
soberanamente
ridiculo!
Como todos gabavam o sabio decote do seu corpete, revelando com uma
indiscrição que accendia invejas e desejos em
torno
d'ella―invejas e desejos que a enroscavam como serpentes de fogo―a
brancura do seu collo e dos seus hombros, aquella brancura setinosa de
camelia, que o orvalho da madrugada humedeceu.
Como era magestosa a cauda do seu vestido! como as flôres e
as
perolas se ennastravam bem nas suas tranças opulentas! como
os
braceletes de brilhantes mordiam de raios iriados a
carnação explendida
dos seus braços!
[69]
Como a adoravam, como a detestavam ferozmente aquelles homens e
aquellas mulheres!
Cada olhar tinha a agudeza de uma lamina de aço!
Traspassavam-n'a, feriam-n'a, beijavam-n'a aquellas mudas caricias
insolentes, e aquelles odios violentos e felinos!
E a consciencia da sua formosura, da sua soberania omnipotente, do seu
prestigio invencivel, fazia-a vibrar toda como ao contacto de uma
pilha.
Sentia-se rainha. Tinha ditos graciosos, tinha repentes felizes, tinha
epigrammas implacaveis,
coquettismos crueis; era espirituosa, era bella,
era triumphante!
A casa, os filhos pequeninos, o marido, os livros, que são
tão bons companheiros da honestidade e da
modestia, onde ficara tudo isso? Nas brumas indecisas de um passado que
ella não queria ver.
Oh! que intensidade de vida n'estas horas!
Era só pensando n'ellas que vivera. Para que havia de
lêr,
para que havia de instruir-se, para que havia de ir perguntar
á
natureza muda, o segredo de todas as suas riquezas, para ella inuteis e
desdenhadas?
Era feliz porque era admirada.
[70]
Como desce o panno sobre o tablado cheio dos deslumbramentos de uma
magica, assim para ella descera agora o panno, sobre os prestigiosos
esplendores da sua vida de garridice e de vaidade, de luxo e de
loucura.
Aquelle cabello branco avisou-a sinistramente de que tudo acabara.
Se continúa a luctar com a velhice que nunca se deixa
vencer, achará só escarneos onde
antigamente achára cultos, só baldões
onde a
tinham acclamado em triumpho.
Se vae procurar as alegrias e as distracções
proprias d'essa nova phase da sua vida, o que é que encontra
em torno de si?
Não ficára ninguem no lar, que primeiro do que os
outros, ella havia desertado.
O marido andava lá fóra no trabalho absorvente,
ou na
dissipação criminosa. Como ella nada lhe
dera nos dias florentes da mocidade, elle tambem nada lhe queria dar
agora nas tardes glaciaes da velhice. Creára outros
interesses
ou outras affeições, seguira
outro rumo, outra ordem de idéas. Já agora
não era possivel tornarem-se a encontrar na terra.
Os filhos esquecidos, indifferentes, quasi estranhos, estavam no
collegio ou nas escolas, se o pae tinha tido piedade; estavam na
vergonhosa ociosidade,
[71]
na
vadiagem ignobil, se o pae tinha tido indifferença.
Em todos os casos, nada de commum podia haver entre essa mãe
frivola e vaidosa, e esses filhos
desprezados.
Os livros? Sim, os livros... Os que ella conhecera.
Eram romances.
Fallavam de paixões indomitas, de amores
mais fortes do que a morte, de aventuras
romanescas ao luar, com escadas de seda e capas
couleur de
muraille;
de juramentos feitos em voz soluçante na sombra voluptuosa
das
alamedas; de duettos de ternura cantados pelas Rosinas e pelos
Almavivas de torna-viagem.
Que lhe importava a ella tudo isso, que era agora o enlevo d'outras,
embebecidas na mesma mentira que a transviára, mas que aos
seus
cabellos brancos parecia uma ironia cruel!
Mas a natureza é sempre mãe, a natureza acolhe
até os mesmos parias.
Ella tem a sombra das suas arvores, a musica dos seus passaros, o aroma
das suas charnecas em flôr, as serenas linhas das suas
montanhas
azues! Ella tem a claridade pallida das suas estrellas, a doce
melopéa das suas fontes, o soturno e angustioso
[72]
bramido dos
seus
mares, a
influencia calmante das suas noites tepidas!
Acolherá a natureza aquella que tantos e tantos annos a
desconheceu? Não.
E não é que ella seja implacavel ou severa,
não é que ella saiba sequer das mesquinhas
miserias que
se agitam no seu seio. É porque não é
na
velhice que a alma póde iniciar-se n'um culto novo.
É que para tudo é indispensavel uma aprendizagem
gradual,
é que a vasta creação
só tem consolos tranquillisadores, caricias adormecedoras,
para
os velhos, quando teve para os moços sonhos, sorrisos,
radiosas
esperanças.
É que a alma, que ao desabrochar não soube ser
sensivel
á enternecedora poesia das cousas, nunca
saberá entender na hora triste do declinar, a sua ineffavel
e
divina linguagem! é que os longos horisontes de purpura e de
ouro sabem vestir de bemditas claridades a alma dos velhos, quando os
velhos se recordam, e vêem docemente descer a noute cheia de
estrellas e de harmonias mysteriosas sobre uma vida que teve por
companheiros o trabalho, o amor puro, o sacrificio, a
abnegação!
Resta apenas como pasto e alimento a estas almas que andaram em busca
da felicidade por toda a parte, menos no lugar tão proximo e
tão accessivel,
[73]
onde ella estava,
resta-lhe apenas a falsa
devoção.
É lá que ellas vão buscar refugio.
Vivem nas egrejas, procuram um confessor que tenha a jesuitica
paciencia de revolver com ellas o montão de flôres
murchas
do passado, a ver se
ainda de lá vem o vestigio da extincta fragrancia, praticam
fervorosamente toda a casta de superstições
rediculas; entram em associações
pseudo-caridosas, gastam
o resto da vida de outra fórma não menos redicula
e
não menos balofa do que gastaram os dias da juventude.
E de vez em quando, para maior espanto nosso, morre uma em cheiro de
santidade entre a piedosa confraria.
O que é pois necessario e indispensavel para todas
nós?
É que possamos viver sem o auxilio dos outros, e tirando
unicamente dos intimos mananciaes do nosso espirito e da nossa alma,
elementos para construir com elles a nossa propria felicidade.
Quando a mulher depois de ter recebido uma
educação robusta, depois de ter desenvolvido as
suas
faculdades no sentido mais amplo e mais favoravel, depois
[74]
de estar apta a viver de pouco, a
dispensar tudo que seja luxo ou vaidade, de ter dado uma
applicação util ás suas
aptidões especiaes,
depois de ter
adquirido uma larga somma de idéas geraes, de
noções e de pensamentos justos, quando a mulher
emfim,
tendo a consciencia de que mesmo sósinha na vida,
saberá
grangear dignamente o seu pão, olhar em torno de si,―forte,
intelligente e instruida―e entre os homens que a rodearem, e que a
preferirem, fixar a sua escolha n'um homem, esse póde
sentir-se
justamente ufano.
Não haverá n'este consorcio nenhuma
especulação e nenhum calculo.
Ella está apta a julgal-o, a estudal-o, a entendel-o, por
isso
foi raciocinada a sua escolha. Elle achou uma companheira fiel do seu
destino, um guia incorruptivel, um precioso auxiliar.
Trabalharão ambos.
Commerciante ou sabio, poeta ou diplomata, artista ou especulador,
negociante ou politico, sempre a
coadjuvação de uma intelligencia cultivada e
flexivel,
penetrante e fina, será de incalculavel utilidade ao homem.
Não viverão de certo nos arrobamentos e
transportes dos romanescos e rapidos amores; terão um fim
commum, o bem proprio e o bem de seus filhos.
[75]
Terão meios identicos, o
trabalho, a mais escrupulosa dignidade de vida, o estudo
perseverante, a
economia e a paz.
Como o casamento foi um acto em que não entrou a
paixão
irreflectida, a precipitação
estupida, ou o calculo inevitavel, ha muito mais garantia de que essa
união seja duradoura e feliz. Como a phantasia da mulher
é irrequieta e audaz, logo que ella faça o
seu fito de alguma cousa de maior e de mais elevado,
deixarão de
ser perigosos os seus caprichos.
O homem, preparando-se para casar, tambem não
dirá comsigo: Vou buscar um encargo.
Dirá com muito mais propriedade: Vou buscar um auxilio.
Eis inteiramente deslocado o velho ponto de vista.
Provirá d'esta nova interpretação do
casamento o haver muito menos mulheres solteiras.
As que houver, porém, terão o seu lugar, o seu
destino, a sua tarefa.
Trabalharão.
Não ha ninguem que querendo e sabendo, se não
possa tornar util, e produzir em bem, tudo que consome em sustento.
Descrescerão de certo as industrias que vivem do luxo e da
dissipação, mas crear-se-hão
outras novas,
[76]
mais
necessarias, e para as quaes a mulher poderá levar as suas
faculdades felizes, ás quaes só
falta educação condigna. E quando para todas
chegar a
velhice será como a corôa e o remate de um
monumento sublime.
Ha muito quem alcunhe de pretensão esta minha teima de
attribuir
todos os males da familia á falsa
educação das
mulheres.
Como se ellas fossem tudo!
Como se d'ellas dependesse tudo!
É que realmente, directa ou indirectamente, pela sua
influencia
immediata ou pela sua longinqua influencia, o caso é que
muitos
males, que muitas desgraças, que muitas immoralidades se
lhes
devem!
Cherchez la femme, direi eu sempre,
por mais que achem vaidosa pretensão feminina esta minha
idéa.
CAPITULO IV
A dissolução dos costumes e o casamento
Os philosophos, os moralistas, os observadores clamam continuamente
contra a dissolução dos
costumes modernos, ou descrevem-na com o pungente
realismo
da sua solta e desbragada
ironia.
Uns accusam, outros fulminam, outros contentam-se com chascos e satyras
de Juvenaes
au petit pied.
Poucos são os que ao passo que apontam o mal, indiquem o
remedio, ou pelo menos o caminho que deve seguir-se para chegar a
alcançal-o.
As theorias são optimas, a pratica é deploravel.
Ninguem é já tão ignorante e
tão desallumiado da scentelha sagrada, que confunda o bem
com o
mal, mas o criminoso desleixo de todos, é mais funesto
á
[78]
sociedade e
á
familia, do que a idéa confusa que
em épocas menos adiantadas se formava dos deveres de cada
um.
Sim, a familia parece corroida por um occulto verme, que pouco a pouco
vae dando a essa arvore frondosa, cheia de fructos e de flores, um
aspecto morbido e doentio que entristece e causa profundo assombro aos
que de perto lhe observam o progressivo definhar.
Mas não basta mostrar ao mundo este indicio da sua
decadencia
moral, cumpre investigar as causas para oppôr um dique aos
effeitos desastrosos que todos os dias se vão mais
claramente
revelando.
Este dever é de todos; dos grandes e dos humildes.
Não ha
ninguem que não esteja interessado igualmente na
destruição de tão
terrivel flagello.
Tragam uns os esplendores do talento que vê de cima, e que
das
alturas onde paira, derrama luz clara sobre os que labutam na sombra;
tragam outros o bom senso, a experiencia, a fé e a boa
vontade.
Parece que metade do caminho está vencido, porque se
muitos,―se
a maioria―anda transviada, todos pelo menos sabem definir o ideal a
que aspiram, o fim que desejam attingir e do qual involuntariamente se
afastam.
O grande mal da nossa época é―quem tal o
diria?―é
[79]
a preguiça
intellectual. Todos trabalham
mais ou menos, porém ha poucos que meditem e que pensem.
O seculo desoito foi o seculo do pensamento; o seculo desenove
é o seculo da industria.
Predomina a materia, aspira-se ao bem-estar do corpo, aos gozos da
riqueza, ao sybaritismo refinado e artistico e pouco se attende
á voz prophetica d'essa Cassandra, chamada philosophia, que
debalde clama aos homens que elles vão por um caminho
errado,
que trilham uma estrada que não é a verdadeira,
visto que
a não illumina e lhe não mostra os
precipicios, a verdadeira e eterna luz.
Os males que affligem a sociedade, que affrouxam os laços da
familia, que contaminam e dissolvem lentamente os costumes,
provém de uma causa, composta de muitas causas complexas, e
para
combater a qual devem juntar-se os esforços de todos os que
amam
o bem.
Ninguem considera o casamento como elle precisa de ser considerado,
não já sob um ponto de vista mystico e
sentimental,
porém no seu verdadeiro aspecto, nas suas
relações
inilludiveis com a sociedade e com a verdadeira moral.
Como sempre, é á mulher que aqui me dirijo,
é com a mulher que eu fallo. O homem tem-se em muita
[80]
conta para dar
attenção
á minha debil
e desautorisada voz.
A mulher attender-me-ha porque é em vista da sua felicidade,
da
felicidade de seus filhos, da solidez e do aconchego de seu ninho, que
eu lhe estou aqui fallando.
O casamento não é um contracto puramente social,
não é uma união só filha da
religião e do sentimento, não é uma
sancção legal de
affectos egoistas e de paixões indomadas, de tudo isso tem
alguma cousa, mas é muito mais sério, mais
sagrado e mais
santo do que isso tudo.
Se esta quadra transitoria e convulsa que atravessa a
geração de que fazemos parte, é
triste como nenhuma outra, essa tristeza provém
principalmente
das imperfeições que maculam o casamento, das
duvidas que assaltam todos os espiritos ao vêr tão
longe
da sua resolução definitiva o problema importante
da familia.
Por toda a parte o desconsolo, o desalento, a duvida, a melancolia
insanavel dos que, depois de haverem sonhado um esplendido e estrellado
sonho, despertam para as agras tristezas da realidade e nada encontram
que corresponda ás radiosas esperanças com que se
haviam
embalado.
É que realmente depois da escuridão caliginosa,
da
[81]
noute lugubre e sinistra
que durante seculos envolveu a humanidade, fizeram-lhe esperar tanto,
evocaram diante do seu deslumbrado olhar tantas
apparições
luminosas, apontaram-lhe para um ideal tão levantado,
fizeram-lhe crêr em tão divinas utopias, que todos
os desalentos se desculpam ao vêr quão pouco a
realidade dos factos correspondeu a todos esses sonhos por ora
infecundos.
Mas não percamos a fé; sem ella o mundo
caminhará sem ter outro norte que não seja o
perigoso conselho das suas paixões desordenadas.
Se ainda pouco está feito, appellemos para o futuro e vamos
preparando essa evolução pacifica e
luminosa de que já talvez nenhum de nós aproveite
os resultados beneficos.
Esqueçamos este egoismo feroz e improductivo que nos faz
desanimar em todas as emprezas de que não possamos com
mão soffrega e impaciente colher
os fructos embora prematuros e mal sasonados.
Não ha nada mais triste do que ouvir o modo desdenhoso,
quasi
sacrilego, com que os moços de hoje, os moços de
ambos os
sexos, fallam do casamento e da familia.
[82]
Elles duvidam, rindo com ironia ignobil de tudo que n'outro tempo
amavam devotamente. Foram-se os bardos sentimentaes e um tanto
rediculos, diga-se a verdade! que amavam sem esperança, mas
com
ternura apaixonada, as queridas perfidas, que desprezavam o seu
desinteressado affecto.
A litteratura, que é o espelho das sociedades, tem por
feição a ironia mordente, a analyse fria, a
dissecação anatomica mais positiva e mais crua.
O desdem pela mulher manifesta-se sob todas as fórmas, e
debaixo de todos os aspectos.
Se acabaram as declamaçães de
Benedicto e de
Antony contra
a tyrannia esmagadora
da instituição conjugal, apparecem em logar
d'estas os
quadros mais abjectos da dissolução e da
decadencia a que
chegou o casamento e com elle a mulher.
No limiar da adolescencia os que não alardeiam um cynismo
falso
e tão ridiculo como os transportes romanticos do passado,
calculam arithmeticamente o que póde provir-lhes em
beneficios
liquidos d'aquillo a que chamam um
bom casamento.
Não attendem ás qualidades moraes, que
não podem apreciar nem conhecer; quando muito,
lançam no
orçamento como uma verba de certa importancia as vantagens
physicas da noiva escolhida.
Nenhum grande pensamento os exalta, nenhuma
[83]
idéa definida e clara da
missão que aceitam os
eleva a seus proprios olhos.
Pelo seu lado a
noiva, a
creança radiosa que enfeitam todas as galas e todas as
flôres dos vinte annos, gaba-se em confidencia ás
amigas
intimas, de que
já não tem
illusões e que
conhece a
vida, a vida de que ella não leu ainda sequer a
primeira pagina!
Casa porque a familia quer, casa porque encontrou aquelle rapaz em dous
bailes, porque o achou
interessante,
sympathico,
muito
amavel, porque emfim é um
bom partido,
segundo
diz o papá!
Outras vezes casa porque gosta d'elle, mas gosta d'elle
instinctivamente, animalmente, sem o conhecer, sem saber se essa
mão que aperta nas suas mãos
virginaes, será sempre em todas as crises, em todas as
occasiões da vida, a mão de um homem honrado.
No dia em que se acham ligados indissoluvelmente o seu primeiro
sentimento é um sentimento de surpreza, quasi de susto.
Dizem então os frivolos e os superficiaes: o
melhor tempo é o da lua de mel.
Engano! Esses dias são os dias da vertigem, mas
não são os dias da felicidade.
Cada defeito que os dous mutuamente se descobrem, é como uma
semente envenenada que ha de germinar mais tarde.
[84]
Não se lembram do futuro, saboreiam com a volupia da
paixão sensual os prazeres ephemeros d'essa hora que passa.
No
fundo, bem no fundo do pensamento, n'um escaninho escuro em que ambos
fogem de entrar, porque sabem que lá os espera a
desillusão, teem guardadas muitas das tristes descobertas
que
fizeram n'aquellas horas de abandono, de loucura, de extasi, em que as
suas almas se embeberam voluptuosamente.
Elle sabe já que a mulher
é frivola, é ignorante, é vaidosa, que
vê no casamento as alegrias da
vaidade, antes de ver os deveres e os sacrificios;
ella tem a certeza de que todas aquellas promessas
radiosas
não passam de uma chimera que o tempo desfará,
que o
marido não tem as delicadezas que satisfariam a alma da
mulher
ainda a menos exigente, e a menos ambiciosa.
Na ebriedade d'aquelles primeiros tempos perdoam-se mutuamente os
defeitos, que parecem até graciosos, lindos e feiticeiros.
O que os entristecerá mais tarde, o que avincará
de rugas
de mau prenuncio o rosto do marido, e fará encher de
insondavel
tristeza o coração da
mulher, não é mais que a resultante das pequenas
e
todavia fataes concessões e desculpas que reciprocamente
fizeram
os noivos aos defeitos que viram apparecer nas
[85]
primeiras horas da convivencia, nos
risonhos dias do noivado.
Ella sahiu do aconchego tepido da
familia, das doçuras do lar paterno, dos braços
amoraveis
da
mãe; vem acostumada a quererem-lhe muito, a ser muito
estimada e
amada. Em casa conheciam-lhe os gostos, as
inclinações,
os habitos e os defeitos, porque
a par das boas qualidades ha sempre no coração
humano um
recanto onde se abrigam as deficiencias de caracter e de genio.
Aquillo que os paes, as mães e as pessoas que de mais perto
conviviam com
ella lhe
perdoavam, é desculpado tacitamente por
elle
no
extasi e na delicia ineffavel do noivado; porém, mais tarde
tudo isso
servirá de base a accusações asperas,
e a censuras
amargas.
Ella, pelo seu lado, retrahir-se-ha,
offendida e triste ante as imperfeições que
outr'ora
desculpava, e para as quaes hoje é intolerante e severa.
Por isso, a mãe, quando dá o ultimo
abraço á filha que parte para os
braços do noivo
expede dilacerantes soluços de
afflicção, e
lamenta-se
desesperadamente.
―É um estranho, pensa a mãe, pouco viveu com
ella; mal a
conhece, viu-a apenas nos saráus, á
luz viva do gaz, cercada de adorações, risonha,
feliz, espirituosa
[86]
e
delicada. Eu tambem fui assim... Mas como me
custou a
aprendizagem da vida! E como esta é devéras
tão
outra e differente do
que suppunha!
Pobre creança!
Isto pensam as mães, com aquelle sagrado affecto que nunca
se
desmente, e que não trepida ante nenhum sacrificio, por mais
arduo e assombroso que seja.
Mas, de quem é a culpa, bom Deus?
Sobre quem deve recahir a culpa das nuvens que se acastellaram no
futuro da vida dos noivos, a culpa das horas longas e plumbeas que os
esperam, das
recriminações azedas, que farão
explosão
mais tarde, e que levarão áquelle dôce
lar
tranquillo
o desassocego, a duvida, a desillusão, e a algida tristeza
desconsoladora de vermos as ridentes chimeras que se desfazem
lugubremente, e que nunca mais resurgirão?
A culpa deve caber tanto a um como a outro, tanto á mulher
como ao marido.
O noivado é uma iniciação augusta, uma
escóla onde devemos aprender a ser justos e tolerantes.
O que hoje transparece vagamente, o defeito que aponta subtil e timido
em meio das alegrias do noivado, será pouco tempo depois
injustamente considerado uma cousa horrivel e monstruosa.
E mister que o marido e a mulher se não julguem
[87]
a suprema e alta
perfeição, e que sejam
complacentes para as maculas e defeitos a que ninguem escapa.
O homem, com a sua vida ruidosa e trabalhadora de militar, de
negociante, de artista e de proprietario terá impaciencias,
phrenesis e agastamentos. Quando a sua natureza se expandir livremente
e sem peias, não será o mesmo que estava mezes ou
annos
atraz aos pés da noiva, submisso, trémulo e
feliz,
não medindo o mundo senão pelo ambito aquecido
pelo bafo
da sua gentil amada; perderá todo esse ar de
humildade e
de escravidão, e, sem o querer, ha de ferir a pobre
creatura,
machucar-lhe os mimosos caprichos e offender-lhe a ingenua e nativa
delicadeza.
A mulher com o seu pouco ou nenhum conhecimento das difficuldades da
administração de uma casa, ante o enorme peso das
responsabilidades que prevê, terá
hesitações,
duvidas e receios, que lhe farão rebentar muitas e repetidas
vezes as lagrimas, no principio da sua difficil e tão
ambicionada
posição de senhora e dona de casa.
Quando o marido recolher da rua, da praça, das officinas,
das
academias, desgostoso, com o
coração mordido pelo infortunio, magoado pela
ingratidão de um amigo, pela falsidade de um outro em que
cégamente confiara, pelas mil contrariedades emfim da vida,
[88]
e precisar de uma boa e querida
palavra de affecto, de um conselho leal e sincero, de uma
consolação
benigna, a mulher deve esquecer-se de si, velar resolutamente as
feridas que sangram, para só pensar no
marido de
que é solidaria
companheira, e de cuja consciencia viril deve ser amoravel directora.
Nas mãos da mulher está a tranquillidade, o
socego, a ventura e a honestidade do lar, porque ella deve ser a
perseverança inalteravel, a bondade suprema e inexgotavel, a
intelligencia allumiada pela doce luz que dimana do
coração.
Que a mulher saiba perdoar, que a mulher desculpe o egoismo, a dureza,
as coleras bruscas do marido, e verá como este
saberá
fingir que ignora que tambem n'ella existem maculas, que tambem n'ella
avultam defeitos.
Se deseja ser perdoada, que perdôe ella primeiro, que
dê o
exemplo, e os resultados d'essa condescendencia serão de
maravilhoso alcance.
Ah! é preciso repetil-o mil vezes, dêmos um
caracter de austera seriedade ao casamento, respeitemol-o, cerquemol-o
de garantias duradouras, se não quizermos que a familia se
desmanche, e que a immoralidade triumphe.
Que as noivas antes de pensarem na inveja que o seu vestido branco e a
grinalda de flôr de laranjeira
[89]
causarão ás suas
mais intimas amigas, entrem no
seu novo lar, resolvidas a crearem a felicidade do ente, que apesar de
viril e forte ha de ter durante a vida muitas horas de abatimento e
tristeza, que só os beijos de uma esposa honesta espancam.
Que se compenetrem as noivas, que dos primeiros dias do noivado depende
a paz dos dias futuros, a saude, a educação e o
porvir
dos filhos.
Passados os primeiros dias, volvidos os primeiros mezes, sendo o marido
intelligente e a mulher bondosa, tendo ambos uma completa
noção do justo e da verdade, poderão
facilmente
escolher o caminho que os leve mais direitos á felicidade,
de
que tantos casados andam distantes porque se não souberam
corrigir a tempo, e porque deixaram que se expandissem em espraiada e
opulenta rama os defeitos que ambos conheceram e viram com olhos
benevolamente complacentes, e só então
complacentes! de
noivos.
No campo não é raro ouvir-se ás
aldeãs a quem se pergunta se se dão bem com a
vida de
casadas, o seguinte dizer quasi invariavel na bocca d'essas mulheres:
―Ao principio tivemos as nossas
turras, mas a gente, como o outro que diz, foi-se
habituando
um ao outro, e agora não ha que se lhe diga; o que elle
quer, quero eu tambem.
[90]
Ao principio tinhamos as nossas
turras... ouviram? É que no campo ao primeiro
beijo segue-se bem cedo a primeira recriminação;
é
que no campo o noivado dura menos, mas em
compensação
descobrem-se brutalmente as differenças de genio e as
desigualdades que a pouco e pouco vão desapparecendo.
A mulher, porém, que é sempre mulher, quer ande
vestida
de sedas, quer ande envolvida em saragoça, póde
com a sua
benefica e pacificadora influencia, tanto no campo como na cidade,
desculpando o marido, conseguir que este lhe desculpe e lhe attenue as
imperfeições e defeitos que estão
fatalmente inherentes, ai de nós! á mesquinha
natureza
humana.
CAPITULO V
As mães e as filhas
Venho ainda hoje fallar ás mães a respeito das
suas
filhas. Creio que é um meio de ser ouvida com
attenção.
Se as mães são pela maior parte das vezes a causa
inconsciente dos males que affligem a educação de
seus filhos, não é d'ellas a culpa, que
só
levam em mira o bem e a felicidade dos queridos fructos das suas
entranhas.
Mas o amor das mães é cego como um instincto, e
como tal precisa de ser guiado e dirigido.
Entregues a si, transviadas pelas noções
incompletas que já lhes eivaram de erros funestos a
educação que receberam na infancia, ouvindo mais
a voz da propria vaidade, que a voz austera da razão, as
mães continuam a suppôr que na
educação de uma menina
[92]
se deve attender antes de tudo ás
exterioridades brilhantes, que farão
d'ella a favorita
dos salões mundanos, a elegante e afamada cultora de todas
as
delicadas frivolidades sociaes.
Desde a burgueza, que, apenas sahe dos desfiladeiros sombrios da
miseria, já cuida tão
sómente em hombrear com as duquezas que inveja de longe,
até á mais aristocratica descendente das antigas
paladinas, todas teem as mesmas noções
falsissimas
ácerca da educação que suas filhas
devem receber.
Não estudam os diversos espiritos que se propoem a adornar
com as mesmas galas sediças; para ellas uma
educação
de
senhora não varia.
Segue sempre a mesma norma absurdamente anachronica.
Os filhos são reclamados pela escola, pelo lyceu, pelo
instituto, e teem de sujeitar-se ás regras acanhadas e
incompletas da educação official; as filhas,
debaixo da direcção mediata ou immediata das
mães, começam no lar domestico a sua
aprendizagem, que
é como que a opposição systematica a
todos os
instinctos poderosos de que a natureza as dotou.
Turbulentas, como é natural que sejam as
creanças, aprendem a suffocar a espontanea e salutar
actividade
dos seus pequenos membros. A primeira obrigação
que
reconhecem é a
de não
fazerem bulha.
[93]
Tornam-se taciturnas e sonsas.
O habito de contrariarem incessantemente os impulsos tão
naturaes da sua idade, como que lhes abre o caminho para a hypocrisia,
o peior e o mais vulgar dos vicios femininos.
Sentindo continuamente pesar-lhe sobre a cabeça uma
pressão despotica, de que não podem
reconhecer a justiça, aspiram instinctivamente ao
livramento,
teem surdas revoltas intimas, de que nenhum olhar sonda os segredos.
Não se desenvolvem na plena liberdade da natureza, ha nos
seus
corpos miudinhos um aspecto de enfezamento e de fraqueza que faz pena.
A vaidade maternal cuida então de as enfeitar; o vestuario
das
suas pequenas joias torna-se para as mães―para as
mulheres―um
negocio de alta e gravissima importancia.
Não ha nada que as satisfaça; os bordados finos,
as
rendas, as sedas, as plumas, os velludos, tudo se combina para adornar
o gracioso e querido anjo.
Dous resultados inevitaveis:
A immobilidade a que este luxo condemna as suas victimas pequeninas, e
a feroz vaidade de que elle lhes lança n'alma a primeira
semente, que mais tarde ha de desatar-se em venenosos fructos.
A pequena assim vestida julga-se forçosamente de
[94]
uma essencia superior
ás
que não podem competir
com ella em opulencia; de um lado levanta-se o orgulho, de outro lado
rasteja a inveja.
O gosto de ser contemplada, admirada, de excitar
emulações raivosas, de ser apontada como um
modelo de elegancia infantil, accende no espirito da creança
a
funesta luz que mais tarde ha de allumiar os erros da mulher.
Quando sôa emfim a hora em que o espirito exige a sua
indispensavel cultura, o mesmo systema que até alli dominou
na
educação da pequenina
continúa a fazer sentir a sua corruptora influencia.
«―Quero que a minha filha se não possa
envergonhar de apparecer ao pé das mais ricas!―diz a
mãe enfatuada na sua funesta vaidade.
Chamam-se os professores de dança, de musica, de linguas, de
desenho, ou conduz-se a menina ao collegio mais afamado em prendas
d'este genero.
Algumas mães exigem tambem que as filhas aprendam a
bordar
a lã, a
bordar a ouro, a
bordar sobre escomilha, a fazer
crochet,
flôres, pequenos trabalhos de agulha, proprios para
ornamentação de um
quarto de pensionista ingenua.
Outras, mais dadas á sciencia, querem uns elementos
[95]
de geographia, alguma
historia sagrada e profana, uma leve tintura de arithmetica.
Por cima de tudo isto um pó dourado de
devoção elegante, ministrada pelo director das
consciencias do
high-life.
Não se admitte de modo nenhum que um velho sacerdote obscuro
e
despretencioso, cujos sermões
não tenham fama, cujas predicas não sejam
ouvidas, entre
suspiros e lagrimas, pelas devotas da aristocracia, inicie a pequena
neophyta nos mysterios subtis da doutrina catholica.
É indispensavel um padre galante, perfumado, estrangeiro,
que
torne o ensino da religião alguma cousa de artistico e de
adocicado como elle.
Saber bem doutrina constitue um dos
deveres de uma educação primorosa, e no entanto a
filha
que aprendeu, a mãe que a mandou ensinar, ignoram todos os
deveres a que esta sciencia, a ser bem comprehendida, as obrigaria.
Sabem doutrina como sabem grammatica; quer dizer repetem de
cór
umas certas e determinadas regras de que não percebem a
applicação
pratica.
Aos quinze annos a menina preparada por estes elementos tem a sua
educação completa.
Quer seja filha de um duque, quer seja filha de um fabricante, quer o
seu destino a reserve para receber
[96]
n'uma sala faustuosa os altos
personagens da politica e da diplomacia, para fazer parte da
côrte, para conviver n'um pé de intimidade com
todos os
grandes, e com todos os opulentos; quer ella tenha de partilhar as
luctas obscuras de um modesto empregado, de um industrial de poucos
haveres, de um artista desprotegido, é a mesma a sua
educação
moral, physica e intellectual.
Está do mesmo modo preparada para as luctas e para os
combates
da vida; tem a mesma força nos musculos, tem as mesmas
faculdades no espirito, tem as mesmas noções na
consciencia.
A burgueza ou a fidalga, com tanto que tenham dinheiro, teem os mesmos
direitos, as mesmas
aspirações, ambicionam para suas filhas o mesmo
lugar na sociedade.
Mas o que deve confessar-se uma vez por todas é que esta
educação, toda vaidade,
toda orgulho frivolo, toda inutil ostentação,
convem tão
pouco á filha da aristocracia e da opulencia, como
á filha da burguezia e da mediocridade.
Uma, collocada nos altos pincaros sociaes, precisa de ter o juizo recto
e seguro para conhecer os homens, a graça ondeante e fina
para
os attrahir, o conhecimento profundo dos seus interesses e
paixões, para os conciliar entre si; precisa de fallar a
cada um
[97]
a linguagem mais
propria para o convencer e dominar; precisa de ser, junto de seu marido
um auxiliar proficuo com que elle conte, uma intima e fiel alliada, que
o ajude a conservar dignamente a posição que
herdou dos
seus avós ou que conquistou com o braço e com o
pensamento.
A outra, n'uma esphera que é inferior á da
primeira, segundo o ponto de vista social, mas que de feito lhe
é superior, porque inclue mais altos e mais complexos
deveres―a
outra precisa de descer com seu marido á arena onde combatem
os
modernos trabalhadores, precisa de lhe ser em tudo e por tudo ajuda,
guia e conselho, precisa de acceitar para si terriveis
responsabilidades, para as quaes nenhuma lição a
preparou!
Dir-me-hão que o
nivelamento democratico das modernas sociedades dá a todos
os
mesmos direitos, porque dá a todos os mesmos deveres; que a
mãe opulenta e nobre que cria suas filhas nos
fôfos ocios
da riqueza não sabe se em breve terá de vel-as
curvadas ao peso da maxima miseria, assim como a mulher de um humilde
empregado não sabe se verá sua filha ascender a
uma
prospera e brilhante
posição, elevada por um d'esses casamentos que
são
vulgares, como d'antes eram raros.
D'accordo, meus senhores; mas essa hypothese
[98]
em cousa alguma destróe a minha
asserção, pois o que eu disse e repito
é que a educação
feminina, tal como hoje a entendem, para nenhuma classe da sociedade,
para nenhuma posição brilhante ou precaria
é util ou conveniente.
Que desenvolvimento moral, physico ou intellectual, póde
adquirir-se partindo de tão errados
principios?
A que fim se aspira, que fim se attinge, alcançando uma
educação que tem por unica base a vaidade?
Pois a mulher, que levou annos e annos da sua vida a adquirir
conhecimentos inuteis, está porventura armada para resistir
ás tentações,
ás adversidades, ás miserias, aos combates da
vida?
Imagine-se, em contraposição a esta falsa
cultura, que constitue o que os burguezes embebecidos em comico
enthusiasmo chamam uma
educação
muito fina, imagine-se que as mães, juntando-se
n'uma piedosa cruzada, conseguiam crear uma
instituição
moderna, onde suas filhas recebessem a educação
que hoje
lhes poderia servir, para se tornarem uteis na sociedade e na familia.
Quantas vezes não tenho eu acariciado em sonhos
[99]
a idéa d'essa
escola-modelo, onde a creança
aprendesse a ser mulher, onde a mulher aprendesse a ser mãe!
onde uma direcção harmonica e
intelligente presidisse ao desenvolvimento do espirito e ao
desenvolvimento não menos sagrado do corpo; onde a moral
caminhasse a par da sciencia, onde a primeira
noção que o
entendimento feminino recebesse fosse esta: «Todo o trabalho
nobilita e exalta a quem o executa com a consciencia de cumprir um
dever!»
Eu não quizera por certo proscrever da
educação da mulher as graças, que
são para ella o que o
perfume é para a flôr.
Não queria vêr o mundo convertido n'um viveiro de
pedantes,
enfronhadas em sciencia
e tornando antipathica a virtude, á força de lhe
darem ares dogmaticos.
Se a leitora suppõe de mim tal
abominação, é que eu bem pouco tenho
conseguido revelar-me aos seus olhos.
O meu intento é outro; permitta-me que lhe torne aqui bem
palpavel.
V. exc.
a, minha senhora, tem uma filha, um
pequenino anjo, louro e
risonho, que é n'este mundo o seu enlevo, como que um
bocadinho
do céu azul, que lhe cahiu no seio n'um dia
abençoado.
Tome o meu conselho: não siga na
educação do
[100]
seu pequeno amor o systema que
sua mãe seguiu comsigo, que as suas amigas seguem com as
filhas
que teem.
Córte de uma vez este fatal nó gordio da
tradicção, do costume, da rotina, que faz morrer
em flôr tantas innovações beneficas.
Tenha a coragem das suas opiniões; inutilise esse formoso e
rico
enxoval que umas modistas banaes inventaram por ordem sua; deite
fóra essas sedas, essas rendas, esses instrumentos de
perdição para a alma pequenina que Deus lhe
confiou.
Vista sua filha simplesmente, com um aceio gracioso e poetico, que
revele os seus desvelos de mãe, mas que não
denuncie as
suas vaidades de rica.
Bem vê que, livre de todo aquelle fausto que a incommodava,
como
um laço de fita incommoda uma ave, a sua doce pequenina se
sente
mais livre e mais contente.
Eu bem sei que ainda ha pouco uma amiga sua, passando por ella, a mediu
dos pés á
cabeça, muito espantada e um pouco desdenhosa, perguntando a
si
mesma se v. exc.
a já não
era tão rica
como ella julgou; mas em compensação d'esta
pequena
ferida de seu amor proprio, houve uma creança pobre, que ao
parar junto da sua filhinha, ousou estender a bocca de rosas, e
beijal-a com um dôce e fraterno beijo,
[101]
como os anjos se dão
entre si, e para os quaes Deus do alto da sua gloria teve sempre um
sorriso bom!
Que importam os desdens dos parvos e dos mediocres aos que
não
teem as invejas dos miseraveis a pezarem-lhe na cabeça como
uma
eterna
maldição!
Quando a sua filha passa com o seu vestidinho branco, muito simples e
muito aceiado, as mães pobres sorriem-se com amor por dous
motivos, ambos santos: porque ella não humilha ninguem, e
deixa
uma esmola de pão e um rasto de luz no seu caminho de anjo
inconsciente.
Oh! como são doces ao coração das
mães as bençãos que se desfiam como um
rosario de perolas sobre a cabeça loura de seus filhos.
Quando a intelligencia já viva e luminosa da sua filha lhe
pedir
cultivo, como as flores pedem agua, não a force a um
trabalho
pesado e tenaz, nem tão pouco lhe dê da vida uma
idéa tão frivola,
que ella só aprenda o que é superfluo para
não
dizer inutil.
Abra-lhe com a sua mão maternal tão delicada e
tão
subtil o vasto livro da natureza, e deixe que ella, enlevada e curiosa,
o folheie cheia de amor e de fé. Toda a sciencia se encerra
n'isto, minha senhora.
Faça-a penetrar na alma de todas as cousas para
[102]
que a vida se não
conserve
aos seus olhos inanimada e esteril.
Em vez de lhe ensinar a doutrina morta que vem nos livros, leve-a
brandamente por um declive suave a comprehender o espirito d'essa lei,
que é feita de tanto amor!
Conte-lhe as miserias occultas que ha n'este mundo, ensine-a, ou antes,
deixe que ella adivinhe como essas miserias se consolam pela esmola do
pão e pela esmola do carinho, e, quando ella voltar do
albergue
da desgraça, ao seu lado, calada, pensativa, com os olhos
cravados nas nuvens alaranjadas do poente, pergunte-lhe
então
baixinho, com a sua voz de
mãe, a unica que nunca perturba nem afugenta os sonhos de
uma
virgem:―Comprehendes agora as palavras do Christo:
Ama a
Deus sobre todas as cousas e ao proximo como a ti mesmo?
Só este commentario das lições do
Justo póde fazer com que ellas dêem
abençoados fructos!
Em vez de lhe occultar os mil subterfugios com que a maldade humana
tenta avassallar e corromper a innocencia, innocule-lhe lentamente com
a sua palavra serena e firme a força necessaria para vencer
e
dominar as astucias criminosas e traiçoeiras.
Faça-lhe sentir com a lição e com o
exemplo que a mulher tem quasi sempre em si o seu peior inimigo,
[103]
e que este inimigo, que toma
todas as fórmas
imaginaveis, é sempre no
fundo o
mesmo! o orgulho.
Que ella comprehenda bem que o dominio que a mulher exerce pela sua
bondade nobilita aquelle que se lhe submette, emquanto que o
despotismo, que tem como origem a belleza e a graça
artificial
das
seducções, rebaixa o homem que o acceita, e a
mulher que
o põe em acção.
Nas cousas triviaes da vida pratica prepare-a para todas as
eventualidades.
Que se não ache deslocada n'um throno, nem atraz d'um
balcão.
Eis o ideal.
Ha uma dignidade que está comnosco, que participa da nossa
propria assencia, que provém da
noção elevada que nós temos dos nossos
direitos e
dos nossos deveres, e que é portanto independente de
qualquer
circumstancia exterior.
É d'esta dignidade que uma educação
justa e forte deve dar á mulher, e que em todas as
peripecias da
vida, por mais desusadas e estranhas, a deve acompanhar.
Ter bastante humildade para exercer sem repugnancia os trabalhos menos
delicados, e bastante superioridade para comprehender a idéa
do
dever que os exalta e sobredoira; ver na vida, primeiramente as
[104]
obrigações, depois as
distracções, eis aquillo que todas as
mães devem ensinar ás suas filhas.
No dia em que todas o souberem, teremos então, em vez das
creanças fracas e inuteis, que o homem ora protege, ora
escravisa, segundo o impulso das suas ephemeras paixões, uns
seres pensantes, conscios da sua força, sem
ambições desregradas
de um poder que lhes não deve pertencer, sem a hypocrita
humildade, que faz de cada mulher uma victima pouco sympathica.
As salas terão menos estatuetas de
biscuit amaneiradas e ridiculas, mas a familia
terá mais elementos na vida e duração;
os pianos deixarão
de suspirar em noutes de luar as suas sentimentaes confidencias; mas a
verdadeira comprehensão da arte, da
religião, e da poesia penetrará como por encanto
nos entendimentos feminis.
Teremos emfim ao lado do batalhador das modernas lides uma companheira,
não só digna d'elle,
porém capaz de o levantar a um nivel que elle ainda,
desacompanhado e desprotegido, não pôde
desgraçadamente attingir.
CAPITULO VI
Leitura para nossas filhas
«Minha querida amiga:
Disse-me hontem que sua filha tinha esgotado a pequena bibliotheca
infantil, que a muito custo colligio para ella, e que esse candido e
luminoso espirito, de quinze annos exige energicamente mais alimento
que a nutra e que a deleite.
Pergunta-me a respeito da leitura que ha de permittir a sua filha, a
minha opinião, o meu conselho.
É um caso difficil este que me propõe.
Lili é uma graciosa e excepcional creatura; tem a logica
inflexivel das creanças intelligentes, tira
rapidamente a conclusão das premissas que submettam ao seu
criterio. A leitura póde fazer-lhe muito mal ou muito bem;
não póde de modo algum ser-lhe
indifferente.
[106]
A minha amiga seguindo as tradicções que
já encontrou assentes, pergunta-me se póde deixar
ler a sua filha
Paulo e Virginia, esse
idyllio que tem cem annos e que ameaça ser eterno, ou
Jocelyn, o poema mais perigosamente mystico que eu
conheço. Falla-me no
Genio do Christianismo,
de
Chateaubriand, e nas tragedias sacras de Racine.
Não se lembra para sua filha de nenhum outro escripto e
lembrou-se justamente d'aquelles que só lhe podiam fazer
mal.
Antes de mais nada, responda-me francamente: quer fazer de sua filha
uma mulher solidamente instruida ou então uma mulher
ignorante?
Quer que ella saiba resistir ás
tentações que forçosamente ha de
encontrar na
vida, ou quer que ella se conserve na mais completa e absoluta
inexperiencia até á edade em que ha de entregal-a
ao
homem que tem de ser seu marido?
Da resposta a estas duas perguntas é que tudo depende,
porque
segundo a idéa que a minha amiga fórma da
educação de uma mulher,
segundo o systema que tenciona pôr em pratica com
relação
á educação de sua filha, o futuro
d'esta ha de
levar um outro caminho.
Eu não posso dizer-lhe positivamente: faça isto,
faça aquillo.
[107]
Posso apenas contar-lhe o que fiz.
Minha filha tem hoje vinte seis annos, é casada,
é mãe, e tem sabido cumprir a dupla e difficil
missão que a sorte lhe confiou.
Não sei se deva attribuir os meritos que todos lhe
reconhecem
á educação que procurei
dar-lhe; parece-me, porém, que sem falsa modestia poderei
confessar, que os meus cuidados não foram de todo
inefficazes, e
que o muito que pensei e meditei sobre o caracter da minha querida
filha, me ajudou a guial-o no caminho do seu
aperfeiçoamento.
Ha gente que diz que as mulheres não devem ler.
Não sei se alguma vez tem ouvido essas opiniões
estupidas ou perfidas; não lhes dê credito minha
boa amiga.
Eu não acho merito algum á mulher ignorante, que
se
resigna ao cumprimento dos seus obscuros deveres de todos os dias.
Segue rotineiramente um caminho de que não conhece as
difficuldades, e se não se afasta d'elle é
porque não sabe de nenhum outro.
A mulher deve ler, mas se mais tarde no pleno uso das suas faculdades
mentaes, e da sua força moral, ella póde ler tudo
sem
perigo, é indispensavel
que uma educação anterior a tenha preparado e
fortalecido, é indispensavel que haja o maior cuidado na
cultura
[108]
intellectual que ella
deve receber na infancia e na adolescencia.
Diz-me a minha amiga, que a maior parte dos romances são
immoraes, que os que não são
immoraes nos intuitos são perigosamente exaltados ou
revellam ao
espirito da mocidade quadros que ella não deve conhecer:
diz-me
que a historia de todos os povos não é mais que
um
amontoado confuso de crimes e de vicios, que a sciencia está
em
contradicção
absoluta com as verdades de religião, e no meio das duvidas
que
se desnorteiam e assaltam quasi que prefere condemnar sua filha a uma
ignorancia que ao menos a conserve simples de
coração e
tranquilla de
espirito.
Tenho duas objecções a fazer-lhe minha amiga, e
parece-me
que ambas hão de impressionar o seu esclarecido
entendimento.
Em primeiro logar, se consultar bem a sua consciencia, verá
que
transige por fraqueza e por preguiça com a ignorancia de sua
filha.
Prefere que ella não tenha quasi nada, a ter de se entregar
a
trabalho difficilimo de escolher com o mais delicado dos escrupulos o
que ella deve saber.
Em segundo logar, essa ignorancia, que para a mulher lhe parece o porto
socegado e tranquillo onde ella repousará affoutamente,
parece-me a mim um
[109]
banco de
perfidas areias onde facilmente ella póde
naufragar.
Já estou d'aqui prevendo a sua
objecção.
Mas eu não quero tal que minha filha seja ignorante. Pelo
contrario, dei-lhe uma excellente educação. Aqui
não se tracta senão das leituras que depois
de educada eu lhe devo permittir ou recusar.
Minha amiga, creia isto que lhe vou dizer. Se sua filha não
souber senão o que tem aprendido
até agora, de poucos recursos fica munida para combater na
grande batalha em que vae entrar.
Ensinou-lhe o cathecismo, bem sei; Lili fez já a sua
primeira
communhão, e respondeu ao exame de doutrina com admiravel
facilidade, e com uma memoria impecavel.
E depois?
Em que é que essas noções a auxiliam
para que ella chegue a conceber o bem absoluto, a eterna
justiça, o Espirito Supremo que anima a grande natureza?
É preciso que ella forme de Deus uma larga e fecunda
idéa, e as manifestações da sua
grandeza não estão no cathecismo,
estão espalhadas n'essa
creação universal que ella não sabe
ver e que ella não
conhece.
Conhece a historia pelos pequenos opusculos cheios de todas as maculas
e impurezas, que deixaram chegar ás suas mãos
infantís.
[110]
Não será uma irrisão dizer que ella
conhece a historia?
Sabe os nomes dos reis, as datas dos seus nascimentos e mortes,
coroações e consorcios, e os filhos que
tiveram e as cidades e villas que conquistaram; mas que idéa
tem
ella d'essa historia sublime, que participa do drama e da
epopêa,
que tem paginas doloridas e paginas brilhantes, que tem cantos
triumphaes, e gemidos de lutuosa angustia, d'essa historia em que
estão registradas tantas luctas heroicas, tantas conquistas
immortaes, e que se chama a historia da humanidade?
Não lhe parece que deve ser um estudo elevado, fortificante,
robustecedor, que faz conhecer melhor, os esforços titanicos
que
o homem tem empregado para alcançar a quasi omnipotencia que
hoje possue?
Do homem rude, primitivo, inhabil, rodeiado de perigos para o corpo e
de chimeras para o espirito, esmagado pela força brutal da
natureza, sem comprehensão do destino que o esperava e da
missão a que vinha, até ao homem dos nossos dias,
ao rei,
ao victorioso, ao vencedor, ao que tem dominado todas as tyrannias que
o dominavam, que differença enorme vae, minha querida amiga!
Entre o pária errante das selvas pre-historicas e esse
triumphador que se chama Newton ou Goethe,
[111]
Claude Bernard ou Victor Hugo, ha a
distancia de uns poucos de milhares de seculos, que é
preciso
conhecer ao menos pelos marcos milliarios que teem assignalado a
passagem dos mais illustres caminhantes n'essa estrada luminosa que se
chama civilisação.
É isso que eu chamo conhecer a historia.
D'essa sciencia o espirito de sua filha, curioso, ávido,
aberto para todas as grandes cousas, só
póde colher proveito, um enorme proveito cujo alcance mal
lhe posso explicar!
Dir-me-ha que n'essa historia ha crimes ignobeis, ha quadros
revoltantes, ha homens condemnados cujo contacto póde ferir
o
delicado e original espirito de uma creança.
Oh! mas tambem ha martyrios, sacrificios,
abnegações, arrojos sublimes!
Se ha criminosos, tambem ha heroes; se ha algozes, tambem ha martyres;
se ha monstros, tambem ha santos.
Deixe que no cerebro da creança se faça a
mysteriosa elaboração de que ha de sahir o culto
pelo que
fôr bello e bom, o odio raciocinado e violento a tudo que
fôr abjecto e vil, a compaixão virtuosa e
divina para tudo que fôr fragil e ignorante!
Ponha nas mãos de sua filha todos os cantos d'essa
epopêa
enorme. Faça-lhe lêr com
attenção essa historia,
[112]
e quando ella tiver chegado
á ultima pagina,
será mulher. Uma mulher instruida, uma mulher forte, capaz
de
ser esposa digna, e mãe desvellada, tendo aprendido a
conhecer,
comparar, julgar e a pensar.
Não sei se comprehendeu bem a idéa que procurei
expôr-lhe. Apontei a traços largos a
direcção
una que deve dar
ás leituras de sua filha. Isto a que chamei conhecer a
historia, não é, como viu, ler
simplesmente os historiadores.
É lêr, dominada por uma idéa de elevada
critica, que as conversações d'uma mãe
intelligente podem dar, todas as que tenham trazido a este thesouro
formado pelos seculos, algum conhecimento precioso e util.
Os bons historiadores como Macaulay e como Herculano, os poetas que
vivificam e animam o passado, que entram no espirito de todos os
seculos, como Michelet: os viajantes intrepidos, os exploradores, os
navegantes, os homens de sciencia, conquistadores tambem e dos mais
gloriosos; os moralistas, os criticos, todos aquelles que buscam
lealmente a verdade e que aspiram ao aperfeiçoamento do
homem.
Fallei-lhe de Michelet e deixe-me dizer-lhe o que penso d'elle.
É o coração mais apaixonado de
justiça que eu conheço, o que o não
priva de ser injusto muitas vezes;
[113]
mas tem uma alma tão grande, tem uma
comprehensão tão viva do bello, tem faculdades
artisticas
tão poderosas, que para mim não ha companheiro
melhor
para um espirito moço.
Deixe que sua filha leia muito Michelet.
É um grande mestre. Atravez d'elle ella saberá
sentir melhor, amar com um amor mais intelligente a natureza.
Michelet tem a doçura misericordiosa que redime e levanta os
humildes e anima os fracos, tem a paciencia que penetra no intimo dos
sêres mais inferiores, e que o illumina de uma luz
sympathica.
Sabe fazer ver tudo, sabe explicar todos os mysterios.
É um genio que tem alguma cousa de propheta.
Como é bom, divinamente bom, o contacto d'aquelle espirito,
dá bondade e força.
«Para elle não ha na natureza, nada que tenha
vida, e não tenha alma!
Da planta ao mollusco, e do mollusco ao homem tudo que vive ama, e tudo
que ama tem direito ao nosso amor.
Doce philosophia que nos ensina o segredo de todas as misericordias!
Minha querida, ainda que para mim Michelet seja o melhor dos poetas,
não entendo que das leituras de
[114]
uma menina se deva proscrever
implacavelmente a outra poesia.
Quando digo isto refiro-me á poesia rimada, á que
canta
no ouvido, com uma musica que é muitas vezes
traiçoeira.
Procure no entanto que seja o mais tarde possivel, que essas vozes de
sereia penetrem no ouvido de sua filha.
Oh! é que é preciso muita força para
resistir á influencia dissolvente que ellas teem em
nós.
Nunca perca de vista que a vida é um combate, um rude e
terrivel
combate, e elles os que cantam e os que choram em vez de inocularem no
espirito a força de que este precisa, tornam-n'o debil,
amollecem-n'o, em voluptuosidades enervantes.
Ninguem tem medo de Lamartine.
As mães dão-n'o a ler ás suas filhas,
os noivos dão-n'o de presente ás suas noivas.
Para todos elles é o mais puro dos poetas, um cysne que
nunca
maculou as suas pennas brancas no lodaçal das
paixões
insalubres!
Não se illuda com este juizo que universalmente se formou a
respeito de Lamartine e dos melancolicos da sua escola.
Que maior perigo para uma alma juvenil do que a
aspiração a um ideal impossivel? do que a sede de
[115]
venturas irrealisaveis e do
que o sonho de amores que não existem?
E depois os poetas inconsolados e inconsolaveis não ensinam
a
luctar contra as magoas da vida. Ensinam a curvar a cabeça
aos
golpes da fatalidade, ensinam a chorar covardemente, a deliciar-se nas
agonias, a saborear a doçura debilisadora das lagrimas!
Saudemos os que combatem virilmente, os que vencem a
desgraça, os que furtam a sua alma ás
languidas tristezas da desesperança, saudemos os que
são fortes, alegres e bons.
É d'essas intelligencias eleitas, que sua filha deve
sómente alimentar-se.
Ella ha de querer ler romances.
É natural.
Os romances são a fantasia, e na vida das mulheres a
fantasia tem um grande logar.
É na escolha d'esses que precisa ter o maior cuidado.
Proscreva sem dó, da bibliotheca de sua filha, as obras
primas dos romancistas francezes.
Balzac é um anatomista implacavel.
Os seus romances matam a flôr da fé na alma dos
innocentes.
Georg Sand é um bello anjo revoltado.
[116]
Tem o orgulho de Satanaz na imaginação de uma
mulher apaixonada.
Octave Feuillet tão fino, tão delicado,
só deve ser lido depois dos trinta annos.
Daudet um delicioso romancista, começou a escrever n'uma
época doentia; ha n'elle um não sei que de
morbido que
entristece e que faz mal.
Escusa de procurar minha amiga.
Nós as mulheres para quem a vida já
não tem segredos, adoramos esses escriptores, porque elles
contam-nos o que já tinhamos adivinhado, relembrando-nos o
que
tinhamos sentido; descrevem-nos o que tinhamos a curiosidade de
conhecer, mas as creanças que os lerem devem experimentar
bem
dolorosas surprezas.
É a litteratura ingleza a mais rica, a mais fecunda no
genero que procura.
Walter Scott um verdadeiro poeta, reviverá para sua filha as
scenas mais pittorescas de um passado aventuroso.
Puros amores, enthusiasticos guerreiros, heroismos nacionaes,
sentimentos caracteristicos de uma raça energica e arrojada,
incidentes romanescos, mas de um romanesco são, tudo que tem
o
poder de enlevar e attrahir a imaginação colorida
e ardente de uma mulher de poucos annos.
[117]
Não ha creações femininas mais
diliciosamente virginaes do que as do romancista escossez.
As suas mulheres, como as mulheres de Sakspeare, como as mulheres de
Dickens, são feitas de um raio de luar, de uma petala de
rosa,
de um canto de rouxinol.
O crime nem de leve se approximou d'ellas; o vicio, de envergonhado,
córa na sua presença;
não conhecem as más
tentações, as vigilias
ardentes, os sonhos que perturbam e agitam a alma das outras mulheres.
Que doces e queridos exemplos! que bellas e radiosas companheiras.
As escriptoras inglezas seguiram a tendencia moralisadora da sua
nação.
Os livros de algumas d'ellas teem a graça d'um narrar
discreto e
nuancé.
Não se queixe de que não póde dar
á sua filha romances que a distraiam, sem a inquietarem.
Dickens o mais energico e convencido dos moralistas, Mrs. Graswell,
Broute, Georges Elliot e muitos mais que não tenho tempo de
enumerar, ahi estão para desmentirem.
Que sua filha entremeie a leitura de escriptores mais instructivos com
esta outra leitura amena e agradavel, e verá como ella
aprende a gozar da companhia
[118]
dos bons
livros, e a dispensar as futeis
distracções mundanas que esterelisam o espirito,
e o
tornam mesquinho e baixo.
Assim, absorvida pelo estudo bem dirigido, pelas elevadas
distracções intellectuaes, assim
educada, fortalecida, illucidada, verá como ella chega
á
edade propria de escolher o seu destino, possuindo um são
criterio, uma penetração delicada, uma firmeza de
principios que a ponha ao abrigo de qualquer
tentação menos digna.
Conhecendo o bem e o mal, e comprehendendo o que um e outro significam
e valem, saberá o que
não sabem os ignorantes, saberá escolher o
caminho que tém de seguir se lhe confiarem a escolha.
Parece-me que para chegar a este fim a leitura, o cuidadoso cultivo da
intelligencia devem ser auxiliares preciosos, não
acha?»
Encontramos esta carta nos papeis velhos de uma excellente amiga nossa,
e sem a corrigir vimos offerecel-a ás nossas leitoras.
CAPITULO VII
As dactas d'uma vida
A ida para o collegio
―Então achaste o que procuravas?
―Achei. Eu tinha consultado a este respeito a baroneza de
S.,
que tem, como sabes, immenso juizo. Indicou-me o collegio de M.
me
Maubry.
Uma franceza elegantissima.
Parece-me que fiquei muito bem servida.
―Tu é que foste ao collegio fallar com a directora?
―Pois a quem havia eu de confiar similhante encargo? Fui, vi, julguei
por meus proprios olhos, e fiquei satisfeita.
―O collegio está bem situado?
[120]
―Sim. Está n'um sitio muito central, muito concorrido, tudo
muito á mão. Um constante vai-vem de carruagens,
que nas
horas de recreação ha de
distrahir immenso as creanças.
―E a respeito de jardim para ellas correrem?
―Tem um jardim pequeno, mas muito bonito,
muito bem tratado, á ingleza. Conhece-se
á primeira vista a obediencia e a docilidade das discipulas,
olhando para o jardim. Nem um vestigio de travessuras
infantís. Uma limpeza ideal nas pequenas ruas
arêadas.
Fui lá na hora do recreio da tarde; andavam as meninas
passeiando e conversando com uma gravidade! uma compostura!.. pareciam
senhoras em miniatura!.. Achei engraçadissima aquella
parodia de
uma das nossas salas.
―Ainda bem que me contas isso tudo, Mathilde. Ando com vontade de
metter as minhas pequenas em um collegio, porque estão de
uma
maldade!.. Não pára nada com ellas! Importunam-me
extraordinariamente. Tu sabes. Nem eu nem o pae gostamos de barulho, e
dous diabretes em uma casa pequena, é de se morrer.
Decido-me
pelo teu collegio. Perguntaste o que lá ensinam.
―Oh! a esse respeito podes estar descansadissima.
[121]
Uma perfeita educação de senhora. M.
me
Maubry
é o typo da parisiense delicada e graciosa.
Tem um cuidado inexcedivel com as maneiras das discipulas, com o seu
modo de se apresentarem, com a sua
toilette.
Disse-me ella que tinha por systema, dar-lhes desde muito cedo o gosto
de agradarem na sociedade, de excitarem em torno de si uma
sensação
agradavel... impregnal-as d'aquella graça especial que
constitue
a mulher do mundo!.. Approvo immenso aquella maneira superior de
entender a vida social.
―Mas não me fallaste ainda da
instrucção que recebem as discipulas...
―Oh! já se vê, correspondente ao resto.
Linguas... nas linguas M.
me Maury tem um apuro
especial. Piano,
canto, um pouco de historia, de geographia, dança, desenho,
varios bordados, etc., etc. Creio que é o sufficiente para
brilhar entre as primeiras.
M.
me Maubry segue o systema moderno no que elle
tem de muito
aproveitavel. Ministra a
instrucção brincando por assim dizer. Ha
concertos
semanaes em que figuram as melhores discipulas; ha cursos de
conversação; ha noutes em que se lê
alto, se recita ou se representa. N'uma palavra, o fim d'ella
é
tornar deleitoso o estudo, e desenvolver a
emulação entre
[122]
as discipulas. Como verdadeira
franceza, percebeu que a vaidade é o motor principal da
mulher e...
―Minha querida, interrompeu n'este momento o marido da
oradora;
faze o que quizeres, visto que tive a imprudencia de te jurar que
educarias tua filha conforme te aprouvesse e sem que eu nunca entrasse
n'isso; mas o que desde já te affirmo é que a tua
M.
me
Maubry é uma corruptora inconsciente da mocidade, e que a
tua
filha nunca passará de uma boneca!
Durante as ferias
―Mamã, eu antes quero o laço côr de
rosa...
―Pois faz a Lili muito mal. O azul fica-lhe muito melhor. Olha que no
baile
infantil
hão de estar muitas companheiras tuas do collegio. Que
alegria para ellas se te virem feia!
―Alegria, mamã? Alegria porque? As meninas do meu collegio
são todas minhas amigas, hão de
gostar muito de me ver bonita e bem vestida.
―Assim será, minha filha, mas as
mamãs d'ellas é que com
certeza hão de ter inveja de mim se tu
fores a mais linda, a mais bem vestida, a que dançar melhor!
[123]
Chega-te aqui Lili! Deixa-me annellar os teus cabellos. Assim
é
que ficas bonita, ouviste? Levanta os teus olhos para mim,
são
tão bonitos os teus
olhos!..
―A mamã quer que eu levante os olhos? M.
me
Maubry ralha
commigo por eu os levantar de mais. Diz ella que uma menina deve andar
sempre de olhos baixos, deve córar de vez em quando... nunca
se
deve rir com vontade.
―M.
me Maubry diz-te isso?..
―Diz, mamã, e que assim é que as senhoras
agradam e se tornam amaveis.
―Então, minha Lili, tu e a mamã divertiram-se
muito no tal
baile infantil?
―Ah! papá, não imagina! Dancei muito, e todos me
disseram que eu era a menina mais bonita que lá estava.
―É verdade! a Lili estava encantadora. Não
imaginas como
a elogiaram! Todas me perguntaram onde ella aprendeu a
dançar.
―E a mim tambem, mamã.
As outras meninas perguntaram-me onde era o meu collegio.
―Vês! dizias tu, meu maridinho ralhador, que M.
me
Maubry
era uma professora má. Vê o
triumpho
[124]
que teve a
nossa filha no primeiro dia em que appareceu em publico!
Lili, corada de alegria, foi dar uma pirueta defronte do espelho.
A primeira communhão
Acabou agora mesmo de vestir-se. Branca, branca que parece uma pomba.
O véu de gaze cahe em prégas soltas e ondeantes
por sobre
aquelle corpo esbelto e franzino, de 14 annos; a corôa de
rozas
emmoldura-lhe deliciosamente a fronte eburnea e levemente sombreada por
uns toques de infantil melancolia.
Acha-se linda, e sente que todos que a virem hão de achal-a
assim!
Dentro da sua alma resôa como que um cantico de orgulho!
Vae ser noiva do Senhor, vae receber pela primeira vez no puro
tabernaculo do seu coração a visita mysteriosa do
Esposo!
O seu director espiritual, um moço sacerdote francez, fino,
louro, delicado, com uma voz branda e persuasiva, com umas
mãos
brancas, de cardeal, com uns gestos lentos e graves de irreprehensivel
bom gosto, acabou hontem de a conduzir até aos umbraes
[125]
d'essa nova vida, em
que ella vae penetrar já consciente do que é e do
que
vale.
Que doçura mystica tinham as palavras d'aquelle padre!
Eram ternas, unctuosas, de uma graça desconhecida!
Até alli para ella a religião fôra um
não sei quê de vago, triste e indefinivel, mais
para assombro e terror do que para delicioso extasi...
O Christo macilento e ensanguentado, com a fronte coroada de espinhos,
e o corpo cravejado de prégos, dera-lhe a idéa de
uma
angustia desoladora e desesperada, que ás vezes enchera de
lagrimas a sua pequenina alma de dez annos.
Porque seria que, á voz do moço confessor, o
Martyr do Calvario como que se tinha transfigurado aos olhos d'ella?
O padre pintara-o bello, radiante de mocidade, prodigo de ineffaveis
esperanças, chamando a si as almas virginaes, e
promettendo-lhe
a eternidade no amor, a radiosa alegria das nupcias celestiaes.
Era uma nova musica, a que elle fizera vibrar aos ouvidos da gentil
neophyta, que sentia, sem saber como, inundal-a uma alegria anciosa, um
pungitivo arrebatamento, inteiramente desconhecido ao seu passado!
[126]
E olhava para o espelho, e sentia-se bella, moça, radiosa de
vida e de esperanças, com um profano desejo de alegrias
novas,
de triumphos ignorados a alvoroçar-lhe o seio juvenil.
E agitando em torno de si as prégas fluctuantes do
véo de
noiva do Christo, baixou os olhos languidos sobre o livro das
orações e leu em voz baixa e
palpitante as palavras sagradas, na lingua melodiosa em que se
habituara, por um requinte de aristocracia, a fallar com Deus:
«
Oh! venez le bien-aimé de mon
coeur! venez, Agneau de Dieu, chair adorable, venez servir de
nourriture á mon âme! Que je te voie, ô
le Dieu de mon coeur, ma joie, mes délices, mon amour, mon
tout!
«
Qui me donnera des ailes pour voler vers
toi! Mon âme éloigneé de toi,
impatiente
d'être remplie de toi, languit, te souhaite avec ardeur et
soupire après toi, ô mon Dieu, ô mon
unique bien, ma
consolation!
Embrase moi, mon Dieu, brule, consume mon coeur de ton amour... Mon
bien-aimé est à
moi»
O que, traduzido na nossa lingua, decididamente reputada impropria para
fallar com a Divindade, significa pouco mais ou menos a seguinte
edificante
declaração de amor:
«Vem, amado da minh'alma! cordeiro de Deus!
[127]
carne que eu adoro! vem servir-me
de alimento ao coração! Quero ver-te, oh Deus
amado,
minha
alegria, minha delicia, meu amor, meu tudo!
«Quem me dera azas com que voasse para ti!
«Minh'alma afastada da tua presença almeja por se
impregnar de ti, enlanguece, deseja-te com ardor, e suspira por ti, oh
meu Deus, oh meu unico bem, minha consolação!
«Abraza-me oh Deus! queima, consome o meu
coração com as chammas do teu amor!..
«És meu, oh bem amado, pertences-me!»
Na volta do baile
Lili vem extraordinariamente pallida e pensativa! As brancuras
opalisadas do alvorecer penetram atravez dos vidros da carruagem, e
como que cingem de uma graça ideal os contornos delicados do
seu
rosto, que o capuz de baile emmoldura em alvas rendas.
Dançou até ás seis da
manhã; vem cansada, abatida, toda ennovellada nos
fôfos coxins do seu
coupé, mas vem pensando muito.
É que o viu no baile, e lhe disseram que
elle seria o seu marido.
O pae antes d'ella partir de casa―vestida de tulle e rendas, coroada
de myosotis, e com um collar
[128]
de perolas lacteas e iriadas, a
affagar voluptuosamente a transparencia rosea do seu collo―o pae,
antes d'ella partir, dissera-lhe gravemente, mas com uma gravidade em
que havia muito affecto:
―
Elle é moço,
é nobre, é herdeiro de uma casa riquissima.
A familia deseja este enlace. Não te quero
forçar, Lili; mas, se gostares d'elle, approvarei com
enthusiasmo essa affeição!
―É moço e nobre, pensára Lili
comsigo. Hei de amal-o por força. Terá maneiras
distinctas, um
porte correcto, um sorriso levemente desdenhoso. E dirá
amo-te,
com uma graça
fina e superior!
Depois, á proporção que o baile se ia
approximando, com o esplendor prestigioso dos seus lustres, com o
capitoso aroma das suas montanhas de flores, com as prismaticas
scintillações dos seus diamantes,
com o ruge-ruge que fazem ouvir as serpentes e as sedas, Lili pensava
que era positivamente uma cousa agradabilissima ser rica!
―Irei muitas vezes ao baile, ouvirei em torno de mim o murmurio
discreto de admiração que
enlouquece as mulheres, terei vestidos de velludo negro, com diademas
de brilhantes a morderem o ouro fulvo dos meus cabellos!
Invejar-me-hão, e quando eu sahir acclamada e triumphante
das
salas em que fôr rainha,
[129]
deixarei no meu caminho um rasto de admirações
apaixonadas!
Vira-o no baile, fallara com elle, tinham dançado juntos.
Percebera que o noivo que lhe destinavam era um pobre rapaz, ignorante
e enfatuado, muito feliz de ser nobre, de ser rico, e de haver mulheres
que em torno d'elle cubiçassem o seu titulo futuro e a sua
riqueza presente.
Apesar d'isso, Lili estava contente.
Era ella que
elle preferira, e visto
que
elle era
rico, teria carruagens, daria bailes e festas, teria um modo original,
severo e elegante de vestir-se, as suas amigas imitariam a mobilia das
suas salas, e o feitio dos seus chapéus, seria uma das raras
mulheres que sabem gozar, em toda a sua plenitude, a vida social no que
ella tem de fastoso e brilhante.
Que importa que
elle não
saiba dizer
amo-te com a voz que Lili tinha
sonhado!
A troco do seu ouro, ouviria dos labios d'ella sem
hesitação e sem lagrimas as palavras mysteriosas
que a mulher pura só deve dizer ao eleito do seu
coração, as palavras magicas:
Sou para sempre tua!
[130]
Dez annos depois
Já lhe não chamam Lili. É condessa.
Tem um palacio magestoso e severo, povoado com obras primas de todas as
artes e de todas as
civilisações.
As festas que ella dá são citadas pela sua pompa
severa e
artistica, pela sua graça principesca, pelos requintes de
bom
gosto que as singularisam entre todas.
Tem um povo de criados correctamente respeitosos, que obedecem a cada
um dos seus accenos.
As suas carruagens quando passam ao trote largo dos finos cavallos
inglezes excitam a admiração
dos entendidos e a inveja dos profanos.
A condessa nunca está só.
Hoje uma recepção a que não
póde faltar, ámanhã um baile, no outro
dia um
jantar diplomatico, e as mil praticas da sua
devoção
aristocratica, e
as pequenas
soirées intimas que
dá, e as festas a que preside em sua casa, e que o seu gosto
escrupuloso e cultivado dirige desde os minimos accessorios.
Tudo isto lhe prende o tempo, a absorve e a distrae.
Tem duas filhas... que uma governante ingleza educa e acompanha.
[131]
Tem um filho... que está no collegio.
Tem marido... que anda sempre por fóra!
Será feliz? Quem ha que o possa dizer? Na sua pallida fronte
marmorea não se reflecte senão uma
sombra.
É a mulher do mundo na sua accepção
mais genuina.
Viveu e vive da monstruosa vaidade que desde a infancia lhe deram por
exclusivo alimento.
Sabe que é bella, invejada, cubiçada, admirada,
odiada até!
Isto basta-lhe, isso a sacia e satisfaz!
Na velhice
Está sentada ao fogão na vasta sala opulenta
povoada como outr'ora por tudo que ha mais bello e mais luxuoso.
Um grande candieiro espalha, atravez do seu globo fosco, uma luz
discreta e tranquilla sobre a mesa oval cheia de bagatellas preciosas.
A condessa está só, e os seus olhos
baços e amortecidos seguem as chammazinhas iriadas do
fogão com uma insistencia pensativa.
Com a formosura perdeu a força dominadora que a tornava
poderosa
e querida.
[132]
Os amigos da hora dos triumphos povoam agora as salas illuminadas e
festivas onde suas filhas já casadas segundo as
conveniencias da
alta posição que occupavam, continuam a vida de
que sua
mãe lhes
déra o exemplo tentador.
O seu confessor começa a sentir-se cansado do escrupulo
esmiuçador com que a condessa aproveita os longos ocios da
solidão para esgravatar piedosamente nos mais escuros
escaninhos
da consciencia.
―Minha senhora, diz-lhe o bom do abbade, que já
não era
o moço almiscarado dos dias
da mocidade, e que ganhára em abdomen o que perdera em
mystica
elegancia; minha senhora, não nos percamos em funestos
exageros.
Deus não quer a morte do peccador, snr.
a
condessa.
Nem essa distracção ultima lhe ficára.
As praticas adocicadas do confessionario, aquelles extasis a um tempo
deliciosos e pungitivos, as confidencias segredadas a meia voz, a
analyse fina e delicada dos peccados mais subtis, tudo isso lhe falta
para suprema distracção.
No fim de contas a sua vida não fôra mais do que
um sonho
frustrado, a carreira impetuosa e desvairada atrás de uma
sombra
que fugia sempre!
Não tivera as livres e salutares expansões da
alegria infantil, não tivera os sonhos cariciosos e ideaes
[133]
da adolescencia,
não fôra filha, nem amante, nem
esposa, nem mãe!
Agora já não saberia ao menos ser avó!
E pelos recantos sombrios do aposento enorme, a condessa julgou ver
deslisar uma pequenina figura de cabeça annellada e loura,
uma
figurinha que dava pelo nome de Lili!
Era o phantasma saudoso de sua infancia que passara!
―Minhas filhas―murmurou baixinho a altiva senhora,―perdoae-me pelo
amor de Deus, assim como n'este momento eu perdôo
á minha
mãe!
CAPITULO VIII
Casamentos pobres e casamentos ricos
Uma das accusações mais frequentes que hoje se
dirigem aos homens é que elles são egoistas,
interesseiros, que introduzem o calculo e as finanças no que
devia ser um impulso espontaneo do coração, que
confundem um pouco nos seus sonhos do futuro o mercantilismo e o amor.
Eu, que não gosto de julgar sem ter conhecido ao menos as
causas
que produzem um certo e determinado effeito, lembrei-me de observar de
perto, nos costumes e praticas de todos os dias, se eram realmente bem
cabidas as censuras frisantes que por ahi ouço continuamente
á porção mais
feia da humanidade.
Uma cabana e o teu
coração! eis o que antigamente
soluçavam aos pés das suas deusas de
biscuit os trovadores de algodão em
rama.
[136]
Um
rez de chaussée muito commodo e quatro
contos de réis de rendimento! eis o minimo a que
hoje aspiram nas suas suspirosas alegrias os pretendentes mais
positivistas da nossa quadra utilitaria e mercantil.
Mudou a tal ponto o coração humano, que
já os sinceros e impetuosos sentimentos não
possam acclimatar-se n'elle?
Isto caminha n'uma tal e tão rapida decadencia, que tudo que
era
bom, honesto, sincero no amor, tenha fugido assustado para outras
regiões ainda inexploradas?
Sinceramente não o acreditamos.
Em primeiro logar, em todas as épocas e em todos os paizes,
o
desinteresse absoluto, o completo desprendimento dos bens da terra, foi
cousa muito rara, e muito para notar-se com espanto.
Que o digam os claustros sem conto, povoados de pallidas monjas
juvenis, que o mundo expulsava do seu seio, por não
têr
que lhes dar nenhuma das
alegrias naturaes que são o apanagio mais caro da mulher!
Se alguma differença temos que apontar são as
conquistas
alcançadas pela familia, nos terrenos que até
aqui
usurpara o egoismo e a
ambição do homem.
Mas, admittindo mesmo que se accentue na nossa época, com
uma certa força o interesse pessoal, que
[137]
é um dos
elementos mais esterilisadores que póde
existir na sociedade, não demos só ao homem a
culpa de essa tendencia nefasta.
É incontestavel que á
proporção que as
civilisações se desenvolvem, crescem as
necessidades,
cresce o amor do luxo, sem que para todos cresçam
proporcionalmente os meios de satisfazer essas
aspirações
fataes.
Não é portanto espantoso, que o homem, ainda o
mais
dedicado e crente, antes de tomar aos hombros o pesadissimo encargo da
familia, meça as suas
forças, calcule com precisão mathematica os meios
de que
dispõe para cumprir as obrigações que
acceita, e muitas vezes diante da grande
desproporção que
encontra entre aquelles e estas, suffoque a voz do sentimento e siga os
austeros e aridos conselhos da razão!
É que a familia, tal como está constituida na sua
generalidade, estabelece um grandissimo desequilibrio entre os deveres
do homem e os deveres da mulher.
Se a esta, em face da consciencia e da razão, cabe a tarefa
mais
espinhosa, a missão mais elevada e mais complexa, nem por
isso,
logo que ella fecha os ouvidos a esta voz superior que tão
poucas escutam e que
tão poucas entendem, se acha realmente forçada a
outra
[138]
cousa que não
seja consumir sem produzir, receber sem dar, acceitar
protecção, amparo, ajuda, sem
pagar estes beneficios com beneficios equivalentes.
Queixam-se do homem porque elle conta com o dote da noiva, e este entra
com bastante peso na balança dos seus affectos.
Que dizem então da mulher que casa para ser livre, para ser
independente, para ter diamantes e rendas preciosas, para frequentar os
bailes, os theatros, os passeios, para ser uma taboleta ambulante do
luxo real ou do luxo hypothetico do
ménage?
Imagine-se, por instantes um rapaz moço, intelligente, cheio
de
aspirações sãs, de boa
vontade e de energia, dotado de ricas faculdades intellectuaes, capaz
de conquistar á força de perseverança,
de trabalho e de privações, um lugar distincto na
sciencia ou
na industria, na politica ou no magisterio.
Não tem dinheiro, ou tem apenas uma pequena fortuna que o
pae lhe legou, juntamente com um nome honrado.
Sente a natural aspiração de completar a sua
existencia,
unindo-se á mulher que mais ou menos lhe povoou os sonhos de
adolescente.
Não tem tempo para escolher; absorve-o o trabalho a que
forçosamente tem de consagrar quasi todas as suas horas.
[139]
Não tem um conhecimento profundo da natureza feminina.
Os nossos costumes com as suas reservas hypocritas, com as suas
precauções restrictas, que
dão idéa pouco lisongeira do pudor e da castidade
das
mulheres portuguezas, oppoem-se a que o homem tenha d'ellas um
conhecimento que não seja frivolo, ridiculo, superficial―o
conhecimento que se adquire em uma sala entre duas quadrilhas
sensaboronas, ou n'um camarote durantre um entre-acto cheio de tedio.
Não póde pôr-se pelo mundo á
busca de uma excepção: o molde das nossas meninas
da sociedade varia muito pouco.
Todas sabem bordar a matiz, tocar a
Somnambula e o
Trovador ao
piano, fazer
housses de crochet, papaguear em duas ou tres
linguas puerilidades comicas, dançar os
Lanceiros
e
criticar as
amigas intimas.
N'estas circumstancias o que póde fazer o pobre
moço?
Ou resistir ás solicitações impetuosas
da mocidade, á necessidade instinctiva que sente do
conchêgo de
familia, d'aquelle
sweet home que tanto
imperio tem no coração de todo o homem de
pensamento e de
trabalho; ou tem de contentar-se com a escolha feita á
pressa de uma d'essas rachiticas flôres de salão.
É desinteressado no sentido mais amplo da palavra,
[140]
tem aquellas santas
utopias que são a suprema riqueza dos vinte annos; na sua
escolha impera tudo menos o calculo e a arithmetica.
Prefere, pois, uma noiva pobre.
Applaudem-lhe a generosa imprevidencia; gabam-lhe os sentimentos
honestos e cavalleirosos; envolve-o um certo prestigio durante uns
poucos de mezes.
Os mezes da
lua de mel.
―Portou-se admiravelmente!―exclamam as
mamãs, contemplando com ar piedoso as
filhas sem dote, e envolvendo na sua furia rancorosa os
dandys que andam á pesca de noivas
ricas, pelas aguas turvas da nossa sociedade.
Resultado pratico de tudo isto: seis mezes depois de casado, o nosso
pobre heroe vê-se a braços com
todos os encargos de um
ménagea
que falta o conchêgo e a alegria. Como não teve
tempo de
fazer-se amado, como o amor é no fim de contas um genero
carissimo que o coração das meninas de hoje
prodigalisa
muito pouco, encontra em casa ao voltar das luctas quotidianas, a que
se arrojou com novos alentos e nova fé, um acolhimento frio,
um
rosto desconsolado, uma mulher que finge
resignação e que
só tem
despeito, porque o casamento lhe não deu nenhumas das
frivolas
vantagens que lhe promettera.
Tinha sonhado com
toilettes
elegantes, uma
robe
[141]
de chambre bordada, uma touca de
manhã como as que desenha a phantasia pittoresca dos
caixeiros da
Mode Illustrée, queria
uma casa de jantar elegante com mobilia
en vieux
chêne,
aparadores carregados de finas porcellanas, um criado de casaca preta e
modos de embaixador, passando discretamente, sem fazer barulho, por
cima do
parquet suisso,
cuidadosamente encerrado.
Gostava de ter um
boudoir todo de
seda côr de perola onde ella podesse ler,
preguiçosamente deitada no no seu pequeno
fauteuil
muito
flascido, diante de um
guéridon cheio
de
violetas e de
gardenias, os ultimos romances, as
revistas estrangeiras, as criticas musicaes dos mestres mais famosos.
Sempre tivera a esperança de fugir pelo casamento
á pressão sordida da miseria paterna.
Detestava a vida que tinha levado em solteira, fazendo ella propria os
vestidos para ir ao baile, cerzindo redes nas botinas de setim branco,
com os dedos picados, um roupão de chita amarrotado, e o
coração cheio de rancor e inveja ás
que tinham o
luxo e o conforto que ella não tinha.
Aquelle homem apparecera-lhe.
Era pobre, é verdade, mas disseram-lhe que
tinha talento, que tinha
ou que ia ter
uma
posição;
acceitara-o por cansaço, por desalento, porque se
impacientava já de esperar mais tempo.
[142]
Levara comsigo os mesmos sonhos que a tinham perseguido, imaginava
casas imprevistas, edificava hypotheses extravagantes; á
força de ambicionar a riqueza, acabava por se convencer que
havia de ser rica.
E agora!
Tudo que a cercava era tão mediocre!
Se tivesse pachorra, se tivesse boa vontade, podia enfeitar com plantas
o seu pequenino quarto de trabalho, pôr ao menos umas
cortinas de
cassa branca na janella.
Não tendo a riqueza, podia ter o aceio; não tendo
o luxo, podia ter a graça.
Os livros bem dispostos sobre a mesa, cujo tapete ella propria houvesse
feito ao serão, uma jarra de
louça com um ramo de madresilva ou de rosas de maio, as
cadeiras
agrupadas com um certo ar de intimidade e de alegria, um aspecto de
pobreza satisfeita que faz tão bem á alma!
Vestiria um simples roupão de fazenda clara, sem enfeites,
mas
de um feitio elegante e gracioso, os cabellos bem penteados, uma
flôr presa nas tranças.
Iria ella mesma á cosinha arranjar uns pratinhos de que elle
gostasse, o pobre trabalhador que á noute voltaria cansado,
mas
cheio de fé robusta e de profundas crenças,
porque o amor
o amparava e lhe sorria!
[143]
Dentro de uma gaiola, na janella da casa de jantar, haveria um canario
muito alegre, não tanto ainda assim como ella, a pequenina
ménagere muito atarefada,
muito contente, espalhando na sua casa modesta e pobre um perfume de
virtude, de castidade, de ternura animadora e sã!
Mas quem é que a tinha educado para cumprir este programma
tão simples e tão difficil?
Quem lhe tinha communicado com o leite a noção
d'estes graves e honestos deveres?
A mãe que a passeara de baile em baile, á cata de
um marido?
Os livros que ella lêra e que fallavam de duetos apaixonados
entre um bardo
pelintra
e uma menina romantica com olheiras e muito pó de arroz?
O marido ao principio quer luctar; procura educal-a elle, já
que
a familia a não educou; vem de fóra muitas vezes
preoccupado com os seus estudos, com um problema scientifico que deseja
resolver, com uma especulação industrial que
talvez lhe
dê a paz e a aurea mediocridade a que tanto aspira, por amor
da
sua querida mulhersinha... não importa!
Sacode como um peso importuno todos os pensamentos que o absorviam,
senta-se ao pé d'ella, porque a vê triste,
enfastiada, com
um certo desleixo no aspecto que lhe aperta o
coração, procura não reparar,
[144]
para a casa
sem arranjo a que falta aquella poesia do lar que tanto o captivou nas
suas scismas de rapaz; conversa, afaga-a, desenrola diante do olhar
d'ella vago e distrahido um horisonte de futuras alegrias.
Um dia, porém, descobre com magoa que ninguem
jámais
poderá sondar nem comprehender, que tudo que elle esperou um
dia
assenta n'uma base chimerica; que essa mulher, a quem associou a sua
vida, em vez de ser-lhe amparo, guia, consolação,
conselho, em vez de luctar ao lado d'elle para conquistarem ambos a
ventura dos filhos, o dôce e tranquillo socego da velhice,
vive
toda absorta n'um sonho de imaginarias riquezas; que empallidece de
raiva de vêr as outras ricas emquanto ella é
pobre; que
amaldiçôa todos os dias o alimento que elle lhe
ganha
laboriosamente, porque lhe não é servido em
pratos do Japão; que olha com desdem para os modestos
presentes
que elle á custa de longas economias consegue comprar-lhe;
que
detesta emfim tudo que elle ama; que tem o tedio invencivel de tudo que
elle julgou, por muito tempo, o resumo de todas as suas alegrias!
N'essa hora dolorosa e que tem de soar fatalmente na vida de quasi
todos estes obscuros luctadores, alguns, os mais fracos,
amaldiçoam tambem a sua austera
[145]
e honrada pobreza, e
tractam de fugir-lhe atirando-se a todos os turvos mares da
especulação e do mercantilismo!
Outros―os fortes―afastam-se com desdem de aquella que, sem talvez
saber o que fazia, tentava arrastal-os por um declive funesto, e
isolam-se n'um mundo onde não querem a companhia de ninguem.
Ha tambem os que, despertando do sonho em que andaram embebidos,
descrêem de tudo em que um dia acreditaram e cedem
á
convicção fatal
de que no mundo não ha cousa alguma que seja digna,
desinteressada e sem liga de calculos vis.
A verdade é que mais ou menos todos se arrependem e todos o
deixam ver!
Este exemplo é que vae a pouco e pouco destruindo no
coração dos moços a idéa
de que a familia, em vez de roubar o alento e a força ao
homem, os robustece e lhes dá mais solidos alicerces.
No dia em que as mulheres tiverem coragem para supportarem com alegria
e com intrepidez a pobreza que tanto as assusta, verão como
a
base do casamento deixa de ser o calculo que hoje o macula.
Se o homem, que é por natureza egoista, comprehender que
unindo
a sua vida á vida d'uma mulher dedicada, adquire novas
forças para a lucta em que anda empenhado, é
incontestavel que deixará de considerar
[146]
como
unico elemento de prosperidade futura o dote da noiva que houver
escolhido.
Não basta ter coragem e ter intrepidez para supportar as
privações da pobreza; é preciso
antes de tudo compenetrar-se bem da idéa de que a pobreza
tem
grandes alegrias defezas aos ricos; que a modestia dos meios
não
obsta a que possamos enflorar a vida dos que amamos, com aquelle
dôce e poetico conchego, que é para a alma um
ninho mais
tepido e mais macio, do que as pompas magestosas que envolvem
theatralmente a vida dos millionarios.
CAPITULO IX
A uma noiva
Minha querida Maria:
A tua carta conta-me as tuas primeiras e adoraveis alegrias de noiva.
Estás radiante!
Subiste ao
setimo céo da
ventura humana e crês que não é
possivel cahir de lá.
Fallas-me do teu véo branco, da tua corôa, das
palavras enternecidas que
elle te
disse, das opulencias do teu enxoval, do teu quarto de cama
á Pompadour, do amor que tens ao teu
maridinho, do
futuro que sonhas radioso, eu sei;
fallas-me de tudo, filha, e eu li esse poema gentil da tua mocidade com
um verdadeiro enternecimento bem sincero.
Fallas-me de tudo, digo eu; engano-me.
[148]
Não me fallaste de uma cousa importantissima, filha.
Não me fallaste da panella.
Sou eu, pois, que vou fallar-te, com a mais profana das irreverencias,
d'este assumpto que é um dos mais graves n'um
ménage
que principia.
Credo! exclamas tu com aquella
moue
engraçadissima, que eu te conheço do collegio, e
que sempre teve a habilidade de me fazer rir immenso.
―«Pois eu sei lá sequer se ha em minha casa uma
panella!
Pois eu hei de misturar as confidencias extaticas da minha mysteriosa e
ideal felicidade com a relação das minhas
cassarolas! Que
tem este
amor que me enleva e me arrebata, com a comida que se manipula na
cosinha! Deixa que eu te descreva as rendas e os setins com que me
enfeito para lhe agradar a
elle; mas, por Deus,
pelo amor da
arte, da poesia, da delicadeza feminil, não queiras que eu
ajunte a essas descripções uma nova receita de
refugado.»
Ouve-me, filha; ninguem attende por ahi estas verdades, que
são elementares, tudo quanto ha de mais elementar.
Sabes onde se fabríca e se consolída a felicidade
de um
ménage?
Na cosinha.
[149]
Sabes de onde sahe muitas vezes a ruina de uma casa?
Da cosinha.
Sabes qual é a origem de tantas doenças que por
ahi nos desconsolam com os seus aspectos repulsivos?
A cosinha.
E tu entrando na vida conjugal, acceitando o
encargo d'almas, porque a dona da casa acceita-o,
recebendo
nas tuas pequenas mãos delicadas a responsabilidade complexa
de
mãe de familia, tu pobre querida ignorante, ousas dizer
desdenhosamente que nem sabes sequer se em tua casa ha cosinha.
Pois sabe.
Estás habituada a evocar com a aerea ligeireza dos teus
longos
dedos brancos as notas immortaes em que Beethoven, Rossini, Mayerbeer
nos legaram as mysteriosas riquezas da sua alma?
Gostas dos delicados lavores inventados, pela paciencia feminal, dos
bordados custosos, das matizadas sedas, de todo esse conjunto de
graciosas futilidades em que nós dispendemos horas e horas
da
nossa vida?
Pois, minha querida, logo que a mulher penetra no limiar da sua casa de
esposa tem de antepôr tudo que é util a tudo que
é
agradavel, tem de adoptar
[150]
como suprema divisa da
sua vida a palavra―sacrificio!
E não creias que isto seja uma dolorosa e inutil
mutilação do teu ser.
Quanto mais te sacrificares, crê que maior e que melhor te
has de sentir.
Será como um progressivo ascender a uma esphera superior.
Cá em baixo ficam as pequenas vaidades, as frioleiras
inuteis,
as puerilidades infantis, os despeitos raivosos, toda a
expressão mesquinha e imperfeita do teu organismo;
lá em
cima está a larga
tranquillidade que ha de envolver-te como um delicioso banho tepido, a
consciencia plena de haveres attingido o fim para que foste creada, a
certeza divina da felicidade que communicas em torno de ti, a
satisfação do
dever preenchido, tudo emfim que nos eleva, que nos depura, que nos faz
comprehender o motivo para que viemos a este mundo―aqui para
nós―eminentemente estupido!
Não te deslumbrem, pois, as primeiras alegrias da tua
lua
de mel.
Entre parenthesis, é esta uma phrase que eu abomino, pela
simples razão de a achar falsa, e causadora de falsas e
funestas interpretações da vida conjugal.
[151]
A
lua de mel é uma
mentira; não existe, ou, se existe, não deve de
modo nenhum existir, o que vem a dar na mesma.
Esse periodo officialmente consagrado, que se funda em toda a especie
de
impostura, deve ser abolido sem appellação por
todos os
pares honestos que se estimem e prezem.
Imagine-se por um instante que os novos conjuges assumiram a
liberdade de formularem em palavras tudo que tivessem no pensamento, o
que diziam um para o outro:
«Já conheço todos os teus defeitos,
já sei que hei de vir a dar-me muito mal comtigo: achei-te
ainda
agora profundamente ridiculo n'aquella phrase que me disseste; mas como
estamos na
lua de
mel,
deixa-me que te beije com transporte, que te recite ao piano o idyllio
apaixonado da minha ventura, que olhe para ti com a sentimentalidade
piégas com que os caixeiros romanticos olham para as
namoradas,
que minta emfim conscienciosamente, como compete a quem se acha de
posse de uma posição official e a quem
não póde renunciar sem desdouro!»
Não seria profundamente ridiculo este dialogo?
Pois sabe, minha querida, que em cada cem casaes, oitenta podiam em boa
consciencia traval-o entre si.
[152]
Muitas vezes a
lua de mel
não passa de uma dolorosa iniciação.
Mais tarde as circumstancias modificam-se, o que nos parecia prenuncio
de desgraças transforma-se em tranquilla felicidade; os
caracteres, que no fundo se repelliam, embora na apparencia se
afagassem, adaptam-se e identificam-se em resultado da ultima
convivencia; a paz domestica conquista-se, com esforços
meritorios de parte a parte; o que ha pouco era mentira, torna-se uma
verdade luminosa e pura.
E o que prova tudo isto, minha amiga?
É que o tempo mais difficil da nossa vida de casadas
é
aquelle que os tolos e os impostores chamam, seguindo a estupida rotina
de seculos, o mais delicioso!
Sou adoravelmente feliz, porque ainda não conheço
bem meu marido, nem meu marido me conhece a mim...
Palavra, que acho isto uma esplendida
interpretação da vida domestica!..
Commentem bem esta phrase implicitamente incluida em todos os louvores
que se tecem á celebre
lua de mel,
e ahi téem os
divorcios, os adulterios, os intimos dramas conjugaes, as luctas
atr,
e ahi téem os
divorcios, os adulterios, os intimos dramas conjugaes, as luctas
atrozes em que dous entes se dilaceram até que n'elles morra
a
alma e o corpo!
[153]
Mas, minha Maria, que longe me arrastou esta digressão
apaixonada.
Perdoa-me.
Se bem me lembro, estavamos ambas muito mais
terra a terra.
Eu tinha conseguido fazer-te largar o teu piano de Erard, as tuas
aquarellas e os teus bordados, e tinha-te arrastado até
á
cosinha de tua casa, cuja
existencia tu teimavas em ignorar.
Talvez tu penses, minha pobre amiga, que esse
senhor,
discreto, ameno, gracioso,
condescente, que acha graça a tudo que tu dizes, que
concorda
com todas as tuas opiniões, que ás vezes se
ajoelha
submissamente aos teus pés, e te diz
baixinho―adoro-te!―com
uma expressão de
tenor em
disponibilidade, que se delicia com as tuas
toilettes, que dá muita
attenção á variedade artistica do teu
penteado, que é, emfim,
todo teu no
sentido falso
d'esta palavra, pensa tudo quanto diz, e se conservará por
muito tempo n'esse adoravel e massador diapasão?..
Enganas-te.
Elle enfastia-se soberanamente do seu papel, estuda-te com ar
sorrateiro, e pede a Deus que acabe o periodo em que tem de renunciar
á sua individualidade, para se conformar com os usos e
costumes
da sociedade elegante, de que faz ou quer fazer parte.
[154]
Acabado que seja esse periodo que tem limites determinados, dize-me tu
qual o meio de que tencionas usar para o prenderes junto de ti, para
que elle comece então a ser sincera e dignamente
o
teu
marido, isto é, o teu melhor e mais fiel amigo,
para que a vossa vida commum assente em bases solidas e perduraveis.
Julgas que basta para isso vestires o teu mais bonito vestido,
penteares o teu bello cabello louro do modo mais excentrico e original,
dizeres com a tua voz sonora e grave os paradoxos mais scintillantes,
mostrares-lhe as riquezas com que uma esmerada
educação
povoou o teu espirito?
Innocente creatura! não conheces o que é o
homem, o animal mais prosaico e positivo da
creação!
O que elle quer depois das suas luctas com os outros homens, das
farças que é obrigado a representar para o
publico, dos
combates em que é alternativamente vencido e vencedor, o que
elle quer é descanso, conchego, esquecimento de todos os
artificios que vão lá por fóra, e
sobretudo
(não te horrorises, minha sonhadora!) e sobretudo
commodidades
physicas.
Dá-lhe a melhor das poltronas, o mais confortavel dos
gabinetes,
o mais suave e caricioso dos sorrisos, e, principalmente,
dá-lhe
um bom
jantar.
[155]
Cheguei emfim, ao ponto a que tendia desde o principio d'esta carta.
Confesso que me custou! Isto de mulheres!..
Tu provavelmente imaginas que um bom jantar é cousa que
pertence exclusivamente aos dominios do bom cosinheiro.
Como te enganas!
Em primeiro logar, não ha nada peior que um
bom cosinheiro.
Um
bom cosinheiro é a
ruina de uma casa, é um envenenador de barrete branco,
é um assassino de abdomen tranquillisador e hypocrita.
Um
bom cosinheiro começa
por nos dar cabo da bolsa, o que é terrivel; acaba por nos
dar
cabo do estomago, o que é simplesmente irremediavel.
Todos os
restaurants luxuosos
possuem a prenda de um
bom cosinheiro.
Põe um pobre homem a jantar durante dous annos a fio n'um
d'esses
restaurants
elegantes, e depois conta-me por miudos em que estado miseravel vaes
dar com elle.
Destruida esta primeira idéa, deixa-me ainda dizer-te uma
cousa que tu não sabes.
A mesa não tem tal a importancia insignificante que tu
embirras em querer dar-lhe.
Sendo o estomago um dos orgãos principaes da
[156]
humanidade, é absurdo
desdenhar d'esse modo o que tem com tão elle estreitas
relações.
Se eu fosse pedante era capaz até de te provar que o livro
que
descrevesse o que o homem tem comido nas épocas primitivas e
nas
quadras de
civilisação refinada e perfeita, nos periodos de
barbaria
e nos tempos de desenvolvimento e de progresso, seria o livro mais
completo da historia universal da humanidade.
O alimento faz o homem.
Os antigos scandinavos,
os reis do
mar, os impetuosos e bravios caçadores de
uroch, brancos, athleticos, sanguinarios, de olhos
azues
metallicos e faiscantes; alimentavam-se nos seus festins cyclopicos da
carne quasi crua dos animaes que matavam.
Nero gostava de saborear as contorsões de agonia das
murêas
que creava nos
seus viveiros, e que alimentava muitas vezes com o corpo palpitante dos
escravos, e nas festas voluptuosas e crueis que dava na sua
Casa
de ouro,
emquanto
dançavam as bailarinas gaditanas e egypcias, os convivas,
coroados de rosas, esperavam que o peixe tivesse soltado o ultimo
arranco de vida para se servirem do saboroso acepipe.
Não vês atravez d'estes dous exemplos uma
raça de instinctos barbaros, e uma
civilisação
pavorosa e apodrecida?
[157]
O homem moderno enfraquecido pela degeneração
progressiva
de umas poucas de gerações, tendo de
dispender uma enorme porção de energia e de
força nas luctas incessantes a que o obrigam as infernaes
exigencias da nossa época, precisa, por assim dizer, de ser
reconstituido dia a dia.
É n'isto que as mulheres não pensam bastante.
Depois em um
ménage,
sobretudo de medianos haveres, a mesa relaciona-se com tres
questões de uma alta importancia.
Primeiro, a questão da saude, que sobreleva a todas.
Segundo, a questão da economia de que depende a paz, a
alegria,
o socego, a elegancia modesta da vida intima; o bom humor do marido, a
toilette fresca e garrida da esposa, a alvura da
toalha
pezada de linho adamascado, tudo que emfim constitue o conforto e a
alegria domestica.
Terceiro, a fidelidade do marido ás modestas mas saborosas
iguarias da sua mesa de familia.
O jantar tem de ser bem feito, economico e salubre. Eis o grande
problema.
Para o resolveres não te fies n'uma cosinheira muito
estupida,
muito suja e muito rotineira, nem n'um altivo sujeito cheio de theorias
estapafurdias e de nomes francezes estropiados.
[158]
Fia-te em ti.
É o mais seguro, o mais razoavel, aquillo que teu marido te
ha de agradecer mais.
Não estragues as tuas finas mãos de duqueza,
não desças á humilhante
posição
de
cordon bleu da tua propria casa, mas dirige tu
esse ramo tão importante de
administração domestica.
Estuda essa sciencia tão util e tão
descurada que se chama
chimica culinaria, e
verás como a saude dos que tens debaixo da tua guarda ha de
progredir com isso.
Não te injuries, nem te afflijas então quando
conheceres que o sorriso que teu marido negou ás sabias
architecturas do teu penteado, lhe desabrocha nos labios franco e
alegre em frente de um caldo feito sob a tua
direcção, de
um
roastbeef temperado pelas tuas
mãosinhas de fada, de um novo acepipe que inventastes e que
lhe despertou o esmorecido appetite.
A arte de ser esposa e de ser mãe funda-se n'um segredo
muito simples.
Não se trata de sermos felizes á custa dos que
são nossos; trata-se de fazermos felizes os nossos,
á nossa propria custa.
Começamos pelo sacrificio, e acabamos pela apotheose!
Mas que de cousas eu fui buscar para te dar uma
lição de
azeites e
vinagres.
[159]
Ai! filha, é que tenho aprendido á minha custa
que na
terra não ha nada pequeno, e que todas as cousas que de
perto se
nos afiguram mesquinhas, estão de tal maneira ligadas e
relacionadas entre si, que formam unidas este grande conjuncto que se
chama a vida.
CAPITULO X
O dever de ser bonita
Dizia uma das mais espirituosas escriptoras da França,
aquella
para quem Theophile Gauthier inventou o gracioso epitheto de
bas
lilas,
livrando-a d'este modo da terrivel, grotesca e immerecida alcunha de
bas
bleu, que
o
primeiro e mais sagrado dever da mulher é ser bonita.
Abaixo o paradoxo! bradou logo em torno a turba-multa das feias,
furiosas contra a sentença que as punha por assim dizer
fóra da lei.
Foi necessario entrar em explicações, e todas
nós vemos então a comprehender o que Madame de
Girardin
entendia pela belleza feminina.
Ser bonita no fim de contas não é ter
fórmas esculpturaes―isso já passou de moda,
não é ter
feições perfeitas―não ha nada mais
profundamente monotono e massador; não é ter
collo de
alabastro, cabellos de
[162]
ebano, labios de
rubis,
dentes de
perolas, olhos de
diamante preto,
testa de
marfim, etc., etc., etc.
―Deixemos isso aos artifices mais ou menos engenhosos, que trabalham
com as sobreditas materias, e aos
trovadores
mais ou menos
choramigas, que manejam as sobreditas rimas; não
é saber
olhar com
expressão ardente ou languida consoante o genero da
phisionomia;
saber sorrir com malicia ou com ternura, saber inclinar-se meiga e
scismadora ao influxo do um sentimento occulto, ou erguer a
cabeça altiva e triumphante com a plena consciencia da
propria
formosura!
Ser bonita, ser bella, na accepção elevada e
completa d'esta palavra, é possuir a graça
mysteriosa que
prende os que param junto de nós, que attrahe os que
vão
passando ao nosso lado.
Resta agora analysar os fios tenuissimos de que se tece este divino
encanto da mulher!
A graça de que eu fallo é feita principalmente de
intelligencia e de bondade.
O primeiro dom concede-o Deus, e aperfeiçoa-o e depura-o a
vontade humana; o segundo adquire-se á custa de sacrificios
cccultos, de abnegações
intimas, de aspirações continuas e incessantes
para a
suprema perfeição!
Todos podem ser bons!
[163]
É preciso que os espiritos se compenetrem profundamente
d'esta
verdade, que é o primeiro passo para a conquista do bem, que
todos ambicionam e que tantos julgam vedado.
Não ha terreno, por mais duro, inhospito e ingrato, a que um
cultivo cuidadoso e vigilante não possa arrancar
flôres.
No homem―e quando digo
homem,
refiro-me geralmente á humanidade―, no homem ha preso,
algemado, vencido, um robusto animal de tendencias bravias, que lucta
continuamente para reconquistar a perdida
liberdade.
Foi a acção civilisadora de seculos sem conta que
domou essa féra de funestos instinctos; é a
pressão continuada e constante de uma vontade energica, de
uma razão esclarecida, de uma
percepção profunda de todos os deveres, que
conserva e sustem intimidado e submisso o terrivel selvagem.
Uns precisam de desenvolver n'esta porfia assidua, mais tenacidade e
mais força, outros de indole nativamente branda e pacifica,
podem deixar adormecer de vez em quando a accesa vigilancia.
São no fim de contas os primeiros que teem maior
merecimento.
Ser bom é quasi sempre um esforço, mas para ser
meritorio
cumpre que este esforço seja tão
invisivel
[164]
para todos os
olhos, que a analyse ainda a mais perspicaz não chegue a dar
por
elle. A bondade é o supremo attractivo da mulher, aquelle
que
mais acção exerce em torno de si.
A bondade é pois a verdadeira belleza feminina.
Imaginae que a ella se reune a intelligencia, e tendes o ideal da
perfeita formosura, da unica que só se apaga e extingue com
a
vida, da que excita os grandes, os eternos, os sãos e
robustos
amores.
O culto pagão da belleza plastica é um dos erros
que mais
ha de custar a destruir, e que no entanto se acha tão
deslocado
no ideal moderno, como se achava no seu verdadeiro lugar, no velho
mundo que a
revolução deitou por terra alluido e decomposto!
A mulher transviada por esta falsa comprehensão do seu
destino,
só aspira a ser bonita no sentido futil e exterior da
palavra,
só inveja as que possuem os ephemeros encantos de que foi
desherdada, e não percebe que a belleza interior
é
aquella cuja gloriosa conquista, accessivel para todos, lhe podia dar a
realeza e o predominio.
A quantas meninas sentimentaes de olheiras roxas e phrases sonoras
não temos nós ouvido lamentar a
pouca duração dos affectos terrestres, a
inconstancia do homem, a ingratidão
cruel que faz
definhar as suas victimas em desolador abandono!
[165]
Apesar do aspecto ridiculo de que estas romanticas e elegiacas
creaturas se revestem, que ninguem se ria d'elles!
Victimas se chamam, e victimas são de certo, mas
não de imaginarias perfidias ou de tragicas aventuras.
São victimas da sua educação falsa, da
sua sentimentalidade piégas, da idéa inteiramente
errada que formam da vida pratica.
Imaginaram que haviam de ser eternamente amadas, amadas com extasis
poeticos, com grandes discursos inflammados, com acompanhamento de
viola franceza e de epistolas em verso, que tivessem de mais em amor, o
que tivessem de menos em grammatica; sonharam ser as pallidas Julietas
apaixonadas, recebendo á luz branca da lua, as confidencias
convulsas dos seus Romeos de obra grossa; e para attingirem este ideal
dos seus desejos suppozeram que lhes bastavam a alvura da tez, o brilho
do olhar, a frescura dos labios, a abundancia dos cabellos, e por cima
de tudo isto a garridice, a pretensão, a ignorancia e a
toilette!
Em muito menos tempo do que é preciso para murchar uma rosa,
os proprios homens se enfastiaram.
E eil-as inconsolaveis e inconsoladas, maldizendo a
traição masculina, que lhes não deu
mais que o castigo merecido!
[166]
Houve tempo em que a mulher feia tinha como unico refugio o convento.
Felizmente, porém, esse tempo vae longe.
O homem já não exige da companheira do seu
destino, como condição unica de felicidade,
encantos que murcham com os annos.
Assenta em mais solidas bases a ventura conjugal.
Mulheres, sêde boas, cultivae o espirito, e allumiae a
consciencia; na vida do homem ha horas escuras; que a luz que sabeis
diffundir as illumine.
A sociedade tem desfiladeiros sombrios, tem
selvas ignotas,
como o
inferno do Florentino, aprendei a guiar com a
vossa pequena
mão branca e macia os robustos luctadores, que ás
vezes
param no limiar d'esses caminhos, com a vista incerta e o passo
hesitante.
E isso que hoje se exige de vós.
Eu vou mais longe que
madame de
Girardin, na sua arrojada proposição que
tão poucos
comprehenderam.
Quando vejo um homem sou capaz de adivinhar a que genero pertence a
mulher que elle tem por esposa; quando entro n'uma casa basta-me
vêr a
disposição dos moveis, a escolha dos livros, o
aspecto
das creanças, a expressão das
cousas
mudas,
para poder afiançar se a dona d'essa casa, a divindade
modesta e
tutelar d'esse pequeno templo, é digna do seu titulo sagrado
de esposa e mãe.
[167]
É que tudo falla, para quem sabe ouvir, e a mulher
sobretudo―natureza expansiva e vibratil―põe uma
indiscrição involuntaria em cada objecto de
que se rodeia.
Mais de uma vez tenho ouvido vozes femininas levantarem-se em favor da
emancipação politica e social do seu sexo.
Pobres sêres hybridos e incompletos são de certo
os que teem tão acanhada idéa do destino da
mulher.
No dia em que esta fôr emancipada, cahirá para
sempre do throno que tem seculos por degraus.
É que a emancipação politica seria a
abdicação domestica, quer dizer, a mais dolorosa
catastrophe que tem affligido as sociedades.
Imagino que nenhuma verdadeira mulher a acceitaria!
A familia tal como a entendem todos que sabem sentir e pensar,
é
o refugio onde se vae buscar paz e esquecimento; é o templo
onde
encontram
direito de asylo os parias que andam cá
fóra aos baldões da ira popular; é o
lugar
querido, inaccessivel onde os athletas do pensamento acham momentos de
alegria descuidada, onde os mineiros cansados da sciencia, os que andam
pelos antros obscuros arrancando segredos aos seios da natureza,
procuram a clara e festiva luz dos affectos simples, onde os politicos
esquecem a maldade
[168]
e a
mesquinhez humana, onde os diplomatas fallam verdade, onde os
argentarios fecham os ouvidos ao tinir metallico do ouro, onde os que
caminham levando no coração as terriveis hydras
do odio e
da
inveja se assentam por instantes embevecidos na musica matinal de umas
vozes infantis que chilrêam, de uma voz crystallina que
adverte,
aconselha e consola.
Os que roubarem a familia ao incansavel trabalhador d'estas eras de
febre e de combate, roubam-lhe a força, a energia, a
consciencia, a dignidade, o amor, roubam-lhe tudo emfim!
Emancipar a mulher é atacar na sua base a familia,
é trazer para dentro do lar as paixões
tumultuosas da praça publica, é destruir o mais
doce dos
poderes a que o homem se curva, o temivel poder da fraqueza feminina!
E não se diga que eu combato a mulher quando combato a sua
libertação absoluta perante a
sociedade e perante a lei.
Os que pretendem furtal-a á tutella salutar, que a
contém na esphera que lhe é propria, é
que são os seus peiores inimigos.
Dentro, porém, d'essa esphera quantos serviços
ella deve fazer e não faz!
Exemplifiquemos: A mulher é na generalidade ambiciosa.
Qualidade que não está de todo em todo desligada
[169]
de peccado, mas qualidade util
na maior parte dos seus resultados.
Esta ambição pela influencia latente que exerce
no animo masculino leva-o, não poucas vezes a arrojados
commettimentos e a grandes e nobres cousas.
Até um certo e determinado limite, é portanto
benefica a ambição da mulher.
Transviada, porém, do seu verdadeiro fito, quantas vezes
esta
ambição mal dirigida por uma
educação eivada de mesquinhos preconceitos
não
arrasta o homem até á infamia, á
deshonra,
á quebra de todos os pudores, ao suicidio!
A garridice, o amor da
toilette, das
pequenas futilidades elegantes, o gosto do luxo, das graciosas
invenções da moda, ahi está uma das
graças, um dos elementos do dominio da mulher.
Mas ainda n'este ponto cumpre que uma razão clara, que uma
percepção definida do dever, a guie, a dirija, a
constranja nas suas tendencias muitas vezes exageradas.
Não ha nada mais agradavel n'um
ménage do que uma mulher
moça, fresca, elegante,
da graciosa e simples elegancia que provém do gosto apurado
e
distincto; os requintes de luxo exterior são, por assim
dizer,
na vida do homem, uma superfluidade necessaria, são um
conchego
para o corpo, uma caricia para a alma,
[170]
mas que nunca o luxo conduza a
familia á mais leve transigencia indelicada, que nunca a
mulher
lhe sacrifique um só dos seus deveres!
Todos são igualmente respeitaveis; todos estão
unidos entre si por uma cadeia de élos inquebrantaveis.
Na mulher ainda mais do que no homem, o abuso das qualidades uteis leva
ás mais funestas consequencias.
Para a mulher ainda é mais delgada a linha do dever.
O caminho é estreito, difficil, sinuoso: para
áquem d'elle ou para além d'elle está
o erro.
Por isso quantas senhoras ás vezes dizem:
«Queixam-se de nós porque somos garridas, e se nos
vêem modestas, sem prendermos a minima
attenção ás futilidades perigosas do
luxo, condemnam-nos ou fogem do nosso lado.
«Queixam-se de nós porque somos ignorantes, mas se
o nosso
espirito se accende em curiosidades scientificas, se lêmos,
se
estudamos, se tentamos ir um pouco além dos limites impostos
ao
nosso sexo, somos alcunhadas de pedantes, e de
preciosas
ridiculas!
«Queixam-se de nós porque somos devotas,
supersticiosas, porque levamos ao exagero as praticas do catholicismo,
porque nos deixamos guiar mysteriosamente pela mão occulta
do padre, mas se procuramos livrar-nos
[171]
d'este jugo, se queremos a independencia absoluta do espirito
e da consciencia, chamam-nos
livres pensadoras, e
os homens sentem medo instinctivo de entregar a sua honra nas nossas
mãos.»
E por aqui adiante uma longa jeremiada n'este teor.
Eu, porém, mesmo concedendo que ha um fundo de incontestavel
verdade no que dizeis, respondo-vos, minhas senhoras, que é
positivamente porque a vossa missão é difficil
que ella
tem tamanha
importancia e póde adquirir de dia para dia uma importancia
ainda maior.
No dia em que comprehenderdes claramente o vosso destino, sabereis
então o que é ter a
graça, a elegancia, o encanto exterior, sem que vos
contaminem
as criminosas vaidades; o que é ser intelligente, instruida,
reflexiva sem conhecer o pedantismo, e a ridicula pretensão;
o
que é ter o ideal religioso, sem o
manchar com superstições, preconceitos,
intolerancias
funestas; o que é aproveitar cada uma das vossas riquissimas
faculdades equivalentes, mas não iguaes, das do homem, sem
que a
vossa inercia as esterilise, sem que a vivacidade nervosa do vosso
temperamento as leve a extremos e demazias altamente funestas
á
familia e á sociedade da qual é aquella o mais
perfeito
reflexo.
CAPITULO XI
O trabalho das mulheres
O preconceito mais funesto, que ainda nasceu e medrou n'este mundo,
é o que considera o trabalho uma escravidão
deshonrosa.
Começa hoje a irradiar os seus primeiros clarões
rubros a
aurora do dia que ha de vêr o trabalho santificado, que ha de
assistir á divina apotheose d'esse bemfeitor supremo da
humanidade, d'esse amigo de todas as horas, que conforta os animos
desconsolados, que levanta os animos abatidos, que distráe
de
todos os tédios, que lucta contra todas as inercias.
Por emquanto, sobretudo entre nós, é rara a
mulher bastante superior para confessar que trabalha, e o que
é peior de tudo, é rara a mulher que
trabalha sem absoluta e incontestavel precisão.
[174]
Mais d'uma vez temos visto senhoras, que pela sua
educação mais apurada e mais completa deviam
estar a cima
de tão profunda ignorancia dos seus deveres, confessarem que
não gostam de fazer nada, que são
preguiçosas, que
não
téem com que se distrahir, que os dias lhes parecem seculos,
etc., etc.
E no entanto qual será a creatura bastante desfavorecida de
Deus, para não poder aproveitar proficuamente as horas do
dia,
sempre curtas para quem as sabe empregar bem?
Fallemos primeiramente das meninas solteiras de pouca edade; para
essas, logo que queiram tornar-se dignas do alto destino que as espera,
pouco será sempre o tempo para se instruirem, para
adquirirem os
varios e complexos conhecimentos de que carecem antes de exercerem a
sua missão complexa.
Não são sómente os futeis ornamentos
superficiaes em que ellas devem pôr a mira; a par d'esses,
que
tambem são indispensaveis, ha todo um mundo, que a mulher
ignora, e cuja exploração lhe
enriqueceria o espirito de thesouros incomparaveis.
E depois, mesmo os frivolos adornos, que constituem uma alta
educação mundana, podem ter uma
significação elevada, um sentido occulto, uma
alma emfim, logo que se não considerem
um
todo, mas uma parte insignificante do mais alto e
perfeito conjuncto;
[175]
logo que occupem o lugar que lhes compete, na
classificação harmoniosa e bem graduada das
varias riquezas que formam um espirito.
Saber cantar, saber tocar piano, saber fallar as linguas, saber desenho
e pintura, que vale tudo isso quando se não tenha uma
idéa elevada e
synthetica, que ligue entre si estas diversas
acquisições
intellectuaes, e que por assim dizer as vivifique?
O que é preciso antes de tudo, é comprehender a
musica e
a sua influencia poderosa nas almas e nos organismos; é
saber
usar com aproveitamento esses instrumentos que se chamam linguas, as
quaes por si, só, tomadas abstractamente, nada significam e
para
nada servem; é estudar a natureza sob os seus multiplos
aspectos
e transplantal-a para a tela ou para o papel; é ter emfim um
ideal, que sobredoire todas estas prendas, que superficialmente
entendidas e superficialmente executadas, não teem valor nem
tem
utilidade alguma na vida pratica.
Basta a qualquer espirito feminino entrar n'este caminho, que
imperfeitamente acabamos de apontar, e, sem que elle mesmo tenha a
consciencia d'isso, as suas idéas hão de
dilatar-se e
encadeiar-se
por uma successão logica, e dar á vida um novo e
imprevisto aspecto.
As meninas bem educadas das nossas altas classes
[176]
sociaes, teem todas uma grande
facilidade em fallar varias linguas; aproveitam porém essa
facilidade... conversando com os diplomatas.
Não lêem Schiller, nem Goethe, nem Shakespeare,
nem
Macaulay, nem Pascal, nem Montaigne; não entram no genio das
differentes nacionalidades e das differentes litteraturas;
não
comparam entre si as civilisações, chegando por
esta
comparação a conhecerem de um modo mais ou menos
perfeito
a humanidade, não senhor! Conversam com os
gommeux da diplomacia estrangeira e contentam-se
com isso!
Na musica que, mais do que nenhuma arte, lhes revelaria o
coração do homem no
coração de tantos homens de genio, o que ellas
vêem sómente
é o modo de executarem mais difficuldades e de desesperarem
de inveja mais rivaes!..
Na pintura, copia da natureza que as podia fazer penetrar no seio
carinhoso e fecundo da grande mãe, são
tão
frivolas, tão superficiaes,
como em todas as outras cousas.
As mais das vezes não teem animo de colherem uma
flôr do
jardim e de a copiarem com o pincel ou com o lapis! Copiam copias,
amesquinhando a natureza, e atrophiando a propria
imaginação!
São estes defeitos, que todas nós as que pensamos
[177]
um pouco, devemos
combater com todas as nossas forças!
Longe de mim o aconselhar á mulher que se emancipe dos seus
graves e obscuros deveres, que tente luctar com o homem, e arrancar-lhe
a palma das grandes descobertas e das grandes conquistas!
O que eu pretendo é provar-lhe que é divina entre
todas, a missão a que o futuro a convida.
A mulher de sala tem por força de morrer; surja pois a
mulher da
familia, ser complexo, grande e nobre sêr, que as
geraçães vindouras
hão de admirar fervorosamente.
A mulher da familia não é de certo a matrona
desgeitosa, deselegante, só occupada em dar a vida, o leite
e o
alimento aos filhos de um affecto, despido de todas as flores e de
todas as poesias.
Não, ella deve ser instruida, profundamente instruida, tendo
ao
mesmo tempo a consciencia de que essa instrucção
a
não aparta do
cumprimento religioso dos mais humildes deveres do amanho da casa e da
maternidade.
O homem deve achar n'ella não só a
enfermeira desvelada das suas doenças; não
só a
distribuidora sensata e economica do seu alimento; não
só
a
dona de casa aceiada, vigilante, infatigavel; não
só a
mãe carinhosa, dedicada, capaz dos maximos e dos mais
[178]
perseverantes sacrificios,
senão tambem a companheira do seu espirito; a socia das suas
aspirações; a
intelligencia que comprehenda e partilhe as suas legitimas
ambições e as suas chimericas phantasias; o animo
viril que saiba amparal-o nas horas de desalento; a mão
firme e
branda, que saiba guial-o nos momentos escuros de lucta e de
tentação: o seio terno que
lhe acolha a cabeça cansada na hora sinistra das derrotas; o
bello e enthusiastico espirito que applauda a suprema embriaguez das
suas victorias; n'uma palavra, a mulher digna de ser mãe e
de
educar uma
geração de fortes.
É preciso, que se compenetrem bem d'esta idéa
fundamental: o trabalho, seja de que especie fôr
não
desdoira uma mulher nem deixa de ser compativel com as mais delicadas
distracções de um espirito culto.
Trabalhar não é fazer
crochet, não é
cozer durante seis mezes na mesma camisa, que ha de ser offerecida a um
pobre romantico, a um pobre de
opera-comica; não é bordar
umas eternas
babouches, que se começam no dia
seguinte ao do casamento, e que se acabam dez annos depois.
Trabalhar é ser util, é occupar o espirito,
é adquirir conhecimentos ou espalhal-os em torno de si,
é
concorrer para o bem-estar dos outros e para o seu
aperfeiçoamento proprio.
[179]
A mulher que trabalha levanta-se cedo, não conhece as
scismas voluptuosas, os languores morbidos, as
flâneries
sem motivo e
sem fim.
É activa, por isso não tem aquellas horas de
tédio profundo, que descobrem diante de um olhar os
horisontes
sinistros e esbraseados do suicidio; tem saude porque o tempo bem
applicado e bem dividido não lhe deixa intervallos para se
escutar, se sondar, para analysar as suas pequenas
dôres, os seus pequenos incommodos, e os aggravar tomando
remedios nocivos, e entregando-se á molleza que a pouco e
pouco
destroe a robustez do corpo; gosa de tudo com alegria, com vitalidade,
com expansão, não desdenha nenhum dever, nenhuma
occupação, nenhum trabalho porque o amor e a
intelligencia prendem-se a tudo que ella faz.
Porque sabe conversar na sala com facilidade e chiste, nem por isso
deixa de saber estar na cosinha, observar um por um todos os
utensilios, vêr se
estão limpos, inventar um
menu que
reuna
as condições da economia e da variedade, ensinar
a sua
cosinheira, fazer mesmo por suas mãos um prato predilecto,
que
á mesa o marido e os filhos hão de saudar com
alegria e saborear com appetite.
Desejo que ella saiba bordar, mas exijo que saiba serzir panno, dar
rêdes com perfeição,
cozer a roupa
[180]
da casa e
a roupa dos filhos, cortar e fazer os seus vestidos, dando assim mais
que um exemplo de economia, um exemplo de moralidade! protestando
até onde chegam os seus limites, contra a torrente impetuosa
e
funesta, que arrasta as familias desde o luxo até
á
infamia, desde a impostura até
á quebra de todas as dignidades e de todos os pudores.
Quero mais, que ella se não envergonhe de confessar que
trabalha, e que não diga que o seu fato é feito
por uma
qualquer modista estrangeira, quando é ao seu laborioso
serão que ella deve a
elegancia que d'este modo é duplamente preciosa e
sympathica.
Não imagine a mulher, que entre os deveres que acceitou ha
uns que a deslustram, e outros que lhe ficam bem.
Debaixo do ponto de vista da razão todos os deveres
são eguaes e estão prezos entre si por uma cadeia
invisivel.
Da alegria da mesa depende a alegria do lar; da economia de todos os
instantes, depende o bom humor das festas de familia; da elegancia e
primoroso aceio da mulher depende a ternura inexgotavel do marido; do
modo porque ella rege e domina o seu pequeno imperio domestico, depende
a educação dos filhos,
a moralidade do interior, a harmonia intima da vida, e
[181]
até a graça, o espirito, a liberdade com que ella
conversa e ri na sala.
Todas as mulheres se queixam dos maridos, e nenhuma ainda percebeu o
seguinte: são ellas que preparam e determinam o seu destino;
é a ellas que a familia em geral deve a sua desordem, a sua
dissolução, ou a sua felicidade.
Não basta ter todas as graças, é
preciso ser util, e no fardo que se acceita em commum tomar a parte que
mais custa a supportar.
Não basta ser util, prestadia, arranjada, economica;
é
preciso ter a intelligencia que idealisa um pouco os tristes e aridos
encargos da vida.
Toda ou quasi toda a mulher se sente amesquinhada pelo seu destino, e
protesta contra as leis, contra os usos, contra as
instituições, que a exilaram
dos altos cargos da republica, que lhe tolheram o passo para todas as
eminencias sociaes, e que a condemnam á obscuridade e
á
lhaneza do viver domestico.
Oh! abençoados sejam os costumes, as leis, as
instituições, que deram ao homem tudo que
é ruido,
pompa, ostentação, orgulho e vaidade, e que nos
deram a
nós a dôce missão de encaminharmos o
futuro, de guiarmos a humanidade no caminho do bello e do bom!
Se até agora temos trahido essa missão a que
fomos
[182]
destinadas, a
culpa é nossa e não de quem
constituio sob uma fórma tão racional e
tão justa
a sociedade.
O tempo que passamos no barulho vazio das festas mundanas, colhendo
decepções e rancores,
excitando invejas, provocando sensuaes applausos, porque o
não
gastamos a lêr, a estudar, a penetrar no
mundo da natureza e no mundo da sciencia em todos os seus aspectos
tão varios, em todas as suas
manifestações tão sympathicas; porque
não
dirigimos a poder de trabalho e de esforço a primeira
educação de nossos filhos, e deixamos que
mãos
mercenarias lhe arranquem aquella dôce penugem da alma que
é a ignorancia dos pequeninos?
Porque não fazemos da nossa casa, um ninho alegre e
fôfo,
que o nosso marido prefira ao botequim, ao Gremio, ao Club, ao
restaurante, á casa dos seus amigos, e onde elle esteja
certo de
encontrar o alimento mais saboroso e mais hygienico, o ar mais puro e
lavado, a poltrona mais commoda, a
conversação mais animada, mais substancial, mais
chistosa
e menos pedante?
Pouco a pouco á regeneração da mulher,
seguir-se-hia a regeneração do homem, deixariamos
de ser
a ruina, para nos tornarmos o conforto; deixariamos de ser o
tédio para nos tornarmos a alegria.
[183]
Talvez não houvesse tantos bailes e saraus, talvez
Offenbach,
Dumas filho, Sardou tivessem menos espectadores, talvez as salas de
bilhar perdessem um pouco da sua popularidade; talvez os ourives e as
modistas fechassem algumas das suas lojas, mas em
compensação quebravam menos negociantes,
perdiam-se menos
mulheres, a calumnia renunciava a uma grande
porção do seu alimento diario, o falso luxo que
mata de
fome os filhos e que arrasta sedas pelas ruas enlameiadas da cidade, ou
se reclina voluptuosamente nos coxins flascidos d'um coupé
de
oito mollas, o falso luxo deixaria de ostentar com tão
descarada
altivez as suas lentejoulas compradas com moeda vil, e esta nossa
sociedade, que parodía tão ridicula e
tão desgraçadamente a sociedade cosmopolita,
opulenta e
artificial da França, tomava diverso rumo, assumia a
dignidade
que lhe falta, e descobriria no futuro o ideal, que não tem
e
que procura nas trevas.
O primeiro passo para que este deploravel estado de cousas melhore um
pouco, é que as mulheres comecem a trabalhar.
As ricas instruam-se; as pobres ajudem seu marido sem se envergonharem
da sua honesta pobreza, e todas sem exceptuar qualquer
posição social,
occupem o tempo para não darem logar ás
tentações da vaidade, aos sonhos morbidos que
enfraquecem o corpo
[184]
e o espirito, ás negras horas dissolventes do
tédio, em que tudo se concebe e se admitte como possivel,
até o esquecimento de todos os deveres, até o
proprio crime com o seu romantico cortejo de
sensações e
de terrores.
CAPITULO XII
A toilette
As mulheres teem, na generalidade, um costume deploravel! Só
se vestem e se enfeitam e querem ser amaveis para o publico.
O marido, ainda o mais feliz e mais extremoso, tem sempre um rival
terrivel, um rival exigente, um rival que lhe rouba parte das
prerogativas e lhe cerceia parte dos direitos.
Esse rival é o publico, é esse detestavel tyranno
chamado
tout le monde, a quem tudo
se sacrifica, e do qual em recompensa só se recebem criticas
e desdens!
Para elle nos vestimos, para elle levamos horas e horas a combinar o
effeito da nossa
toilette, para elle estamos defronte do espelho
prendendo
flores no cabello, inventando as difficeis architecturas do penteado,
[186]
para elle sabemos
tocar piano e sabemos cantar, para elle desejamos ser formosas! para
que elle nos applauda―mentiroso e humilhante applauso!―exhaurimos
todos os recursos da nossa imaginação.
Para agradarmos a elle, que é o
extranho, nos esquecemos dos que são
nossos!
Em casa as mulheres, pelo menos as mulheres portuguezas, as que eu de
mais perto conheço, preferem a tudo, aquillo a que
tão
impropriamente chamam
estar á vontade.
Usam uma
robe-de-chambre desbotada,
quando não trazem um vestido velho que já
não serve para a
rua; trazem o cabello em
papelotes
ou
frisado em ganchos, e como querem descansar um pouco das talas que
impuzeram aos pés, consolam-nos, mettendo-os em umas largas
babouches
desgeitosas.
Pela manhã, á hora do almoço
dão vontade de chorar!
O marido olha para ellas e... de duas uma:―ou sente fastio ou come
como um lobo.
De qualquer dos modos manifesta a sua melancolia.
Questão de temperamento que não vem ao caso
analysar aqui.
Ao meio dia, eis porém, que se lembram das visitas que
não tardam, das
inimigas intimas que
veem
[187]
colhêr invejas e semear despeitos, de todas as ferozes
exigencias
sociaes, de que são submissas escravas!
Desfranzem a testa, ageitam um sorriso malicioso ou sentimental,
consoante o genero da physionomia, mergulham o corpo nas
tepidas
e perfumadas caricias do banho, vestem-se, burnem-se, penteiam-se,
pintam-se... e apparecem transformadas.
Durante umas poucas de horas estão no palco.
O auditorio é escrupulosissimo. Ao menor indicio que lhe
destôe, manifesta sem piedade o seu desagrado.
Ellas, no entanto, suam
sous le
harnais, mas são intrepidas até
á heroicidade.
Teem caricias felinas, sorrisos que adormecem a tristeza nos
corações mais desconsolados, sabem
ser engenhosas, cheias de invenções felizes,
conseguem plenamente o seu fim, e ao deixarem a scena fica no ar uma
impressão boa, quasi enternecida.
Chegou a occasião de voltar aos
bastidores.
N'este caso os bastidores são a
companhia do marido.
Oh! Como ellas veem cansadas, aborrecidas, cheias de tedio, e de
desalento! Despem, com a voluptuosidade com que se despe um cilicio,
todas essas elegancias que as torturavam; o sorriso ficticio
apaga-se-lhes dos labios, a luz ficticia esmorece-lhes no olhar.
[188]
A pelle precisa de
cold-cream, de
veloutine, de todos os ingredientes nauseabundos:
o cabello
cahe-lhes aos pés, solto dos ganchos que o prendiam, e em
quanto
a aia, com um sorriso ladino, os recolhe cuidadosamente na caixa de
cartão, o marido contempla assarapantado, cheio de ingenuo e
comico assombro, aquella cabeça que ainda ha pouco, no
orgulho
com que se erguia, na magestade altiva com que ostentava o delicado
edificio das tranças e dos
riçados, lembrava uma das
cabeças gentis que o seculo
XVIII beijou com enlevos e que a guilhotina beijou com volupia
selvagem.
O pé estreito e
cambré, que ainda ha
pouco nos circulos vertiginosos da valsa, fazia pensar n'aquellas
andorinhas forasteiras, que roçam a terra com o
vôo inquieto e leve, sacode as prisões que o
ligavam
dolorosamente, e dilata-se á vontade, com uma furia de
independencia verdadeiramente demagogica e revolucionaria, na primeira
chinela que apparece.
Todo o aspecto physico se transfigura e―consequencia fatal d'esta
mesma causa―o aspecto moral transfigura-se tambem.
Como a dissimulação eterna é
impossivel ainda aos mais hypocritas, os defeitos que tão
cuidadosamente se esconderam ao publico, revelam-se ao marido.
Riamos sem vontade ainda agora!
[189]
Com a fortuna! Desabafemos o nosso mau humor, visto que estamos em
casa!
Tinhamos paciencia para aturar com expressão interessada e
benevola as sensaborias muito estafadas de um senhor engravatado, de
luvas côr de canario e bigode retorcido e insolente?...
Sejamos agora desapiedadas para as historias já um pouco
velhas,
mas em summa bastante apresentaveis que o nosso marido nos quer contar!
Fingir! sempre fingir!... Impossivel!
Sejamos verdadeiras, ao menos n'esta occasião, já
que só desagradamos áquelle que tem
obrigação restricta de nos aturar, quer queira,
quer não!
Isto, que á primeira vista parece insignificante, quasi
frivolo, tem
um alcance enorme no
destino de vv. ex.
as,
minhas senhoras!
O marido, ao perceber que de todas as mulheres a mais desagradavel
é a sua, tem um momento de profunda tristeza, ao qual
succedem
uns poucos de annos de revolta!
É assim que se destroe a familia, é assim que se
torna desflorido e deserto o lar.
Em compensação enchem-se os salões, os
clubs, os theatros, os botequins. Resta saber se
uma das
cousas póde n'uma sociedade honesta e bem constituida
supprir a outra.
[190]
Sejam mais garridas em casa, e sejam-no menos fóra; aspirem
á elegancia desprezando os
mentirosos artificios; procurem, antes de tudo, agradar á
familia e conseguirão a pouco e pouco, sem
esforço
premeditado, agradar aos estranhos.
Uma familia boa, unida e feliz é como um fóco de
calor que attrahe e que irradia luz benefica.
Ha casas onde se entra e onde nos sentimos como n'um meio sympathico e
captivante.
São sempre as casas em que a mulher possue a intelligencia
do coração, essa cousa rara e
preciosa, que suppre a formosura, o talento e todos os attractivos do
espirito.
Vestir-se com uma graça despretenciosa e simples, rodear-se
de
cousas bellas, sentir e communicar em torno de si o prazer das
distracções delicadas,
ser em casa um perfume vivo, uma harmonia suave que não
cansa,
uma luz serena que allumia e que não deslumbra, eis o que
é ser mulher na accepção
completa da palavra.
Toda a mulher tem de ser
coquette
para o marido emquanto para o marido a eterna
tentação for o
pômo vedado.
Em geral só se conhecem os dous extremos.
Ou a matrona envolvida na sua virtude como n'uma couraça,
temivel, assanhadiça, formidavel, imaginando
[191]
merecer
todas as homenagens do esposo, porque afugenta com medonho aspecto as
homenagens de todos os outros; ou então a mulher dos
salões, a
flôr exotica das nossas estufas mundanas, Salamandra que vive
no
fogo, Ninon de
biscuit que
se compraz nas adorações que provoca e que
inspira, infativel
actriz que só á luz da
ribalta sabe desenvolver e
manifestar todos os seus recursos.
Entre os dous contrastes é que fica a verdade.
Mulheres, desenvolvei no seio da familia as graças que
desperdiçaes pelas voragens d'este mundo.
Tende todas as flexibilidades e todas as resistentencias, todas as
graças e todas as energias; sêde o encanto, sem
deixardes
de ser a virtude; e sobretudo perdei de vista o publico, esse brutal
amante que vos absorve, que vos perde e que nunca vos corresponde.
CAPITULO XIII
Victoria Woodhall
Uma oradora americana
Os Estados-Unidos, que são decididamente a patria das
excentricidades colossaes, o paiz em que o excesso do positivismo, como
que para justificar o axioma de que
os extremos se tocam,
tem conduzido a intelligencia a uma especie de permanente
hallucinação, os Estados-Unidos estiveram para
dar
segundo affirmou a imprensa ingleza, mais uma prova evidente do seu
amor pelas originalidades ruidosas.
Dizia-se que a presidencia d'esta republica tão poderosa e
florescente ia ser offerecida a uma mulher, e citava-se o nome d'essa
mulher, que é uma das mais fervorosas e apaixonadas
propagandistas da reforma politica e social, uma das advogadas mais
eloquentes da emancipação completa do seu sexo.
[194]
Já muitas vezes o temos dito, antipathisamos formalmente com
esta doutrina revolucionaria, da qual não esperamos
senão
funestos resultados, por isso
nenhum laço de sympathia póde prender-nos
á
famosa Victoria Woodhall, de que se occupam com verdadeiro enthusiasmo
alguns dos jornaes importantes da Inglaterra e da America do Norte.
Não deixaremos, porém, de estudar com
attenção os poucos dados que conhecemos do seu
caracter e
da sua intelligencia, porque, embora como mulher―não
concordemos com as suas theorias,―como artista―não podemos
deixar de reconhecer que ella é um producto perfeito do seu
meio.
Victoria Woodhall é moça, tem uma formosa
presença,
sabe vestir-se, o que
já
é deveras para notar-se n'uma advogada convicta dos
direitos
politicos da
mulher,
e se aprecia os triumphos que a sua palavra um pouco emphatica costuma
arrancar aos numerosos ouvintes que a escutam, nem por isso desdenha os
cuidados minuciosos da elegancia mundana.
Teem-na visto prégar sobre um texto biblico, que ella
modernisa
segundo as conveniencias da sua these, trajando elegantemente um
vestido de velludo preto, e com uma rosa purpurea aninhada nas
lustrosas tranças escuras do seu cabello garridamente
penteado.
É casada, visto que lhe chamam Mistres Woodhall,
[195]
mas nos salões onde tem
preleccionado apparece sempre só sobre uma elevada
platafórma, de onde préga ás turbas.
O marido, se existe, é um simples comparsa, ninguem o nota e
ninguem se occupa em fallar d'elle. Entre parenthesis: não
ha
posição mais
deploravel que a do marido de uma mulher
celebre,
quer dizer de uma mulher que falla em publico, que apparece, que
declama, que tem os ruidosos triumphos da actriz, da cantora, da
agitadora politica, e agora os mais modernos da preleccionista social.
Nunca pudemos deixar de sentir muito dó do Barão
Stael, de
monsieur
Rolland, do
marido de Henriqueta Beecher Stowe, e de tantos outros
forçados
e obscuros satelites d'esse astro brilhante e phenomenal que
é a
mulher acclamada pelo indiscreto applauso das multidões.
Agora o marido de Mr. Victoria Woodhall, se acaso vive, o que
não podemos de modo algum affirmar, não tendo
nunca
ouvido citar o seu nome, parece-nos uma victima igualmente lamentavel
do mesmo negro fado.
Victoria tem dado conferencias, extraordinariamente
concorridas, em
Nova-York, em Londres, em Liverpool e em outros centros industriaes da
Inglaterra e da America.
[196]
Tem a voz insinuante e harmoniosa, a gesticulação
arrebatada e artistica, a palavra facil, fluente, emphatica, mas
tão quente e apaixonada que exerce sempre uma
impressão
profunda nos que a escutam.
Como já dissemos não tem os terriveis oculos
azues, nem o rosto anguloso e severo de Mrs. Beecher Stowe, uma mulher
que fez no seu paiz uma revolução
humanitaria, e que destruiu aos nossos olhos todo o effeito sympathico
da sua cruzada contra a escravatura com aquellas conferencias pedantes
pelas quaes concluiu a sua carreira litteraria.
A mulher oradora precisa de ser formosa, sob pena de ser
ultra-ridicula. Parece-nos, porém, que do ridiculo simples,
sem
circumstancias aggravantes, não a salva nem mesmo a
formosura.
Victoria Woodhall no seu paiz préga em favor da santidade do
matrimonio, da reforma da educação,
de todos os graves e momentosos assumptos de que hoje depende a
regeneração politica e moral das
sociedades.
Fóra do seu paiz, porém, não
vão tão longe ainda as suas
aspirações.
O que ella por emquanto reclama é a igualdade e nivelamento
absoluto de deveres e direitos entre a mulher e o homem.
Adoptamos com todo o coração não os
meios, mas o fim d'essa propaganda tão necessaria; mas
não podemos
[197]
concordar de modo algum com o complemento que a feminil oradora
proclama indispensavel.
Achamol-o contraproducente, illogico, funesto ás
instituições abaladas, que se pretendem
salvaguardar.
Queremos o casamento grave, austero e santo, querermos a
creança
educada com solicitude extremosa, queremos a mulher respeitada e
querida, consciencia de bronze e coração de
cêra,
queremos
na arte um ideal severo e levantado, queremos na sociedade a
incorruptivel e serena justiça, queremos o homem regenerado
e
forte, e é porque desejamos tudo isso, que pedimos a Deus
afaste
para bem longe de nós o terrivel flagello da mulher
dominando o
seu proprio destino e o destino da sociedade.
N'um discurso de Victoria Woodhall, pronunciado em Nova-York e
applaudido enthusiasticamente por um auditorio de 40:000 pessoas
leem-se os trechos seguintes:
«Fallando do casamento, é escusado dizer que
falamos n'esse casamento ideal que toda a maldade dos homens
não póde destruir; n'esse casamento, de
cujos membros poderá dizer-se com verdade:
Foram
unidos por Deus, e o poder do homem, não logrará
desunil-os;
n'esse casamento, de cujas alegrias jámais
quererão apartar-se os que um dia as conhecerem; n'esse
casamento que é tão sagrado, tão puro,
tão santo, que
[198]
nem a sombra de uma discussão póde existir entre,
os dous factores que o determinam; fallamos n'esse casamento em que os
dous representantes oppostos da humanidade―o elemento positivo e o
negativo das raças―se tornam pela
acção e pelo
pensamento n'um unico ser, e tão perfeito, que os mesmos
motores
o movam e o façam pensar e obrar; em resumo, n'esse
casamento do
qual nem a sombra d'um elemento estranho possa alterar a pureza, a
unidade, a ideal
perfeição.
«O casamento é geralmente considerado como um
assumpto por demais frivolo ou pueril.
«Aceitam-no ou quebram-lhe os laços com a mesma
pressa e a
mesma idéa das responsabilidades que elle impõe,
como se
o considerassem uma
instituição especialmente designada para
satisfazer as
egoisticas paixões da humanidade.»
Sim, concordamos plenamente com este levantado ideal do casamento que a
formosa preleccionista apresenta e proclama, mas affirmamos que elle
nunca poderá realisar-se se triumpharem universalmente as
doutrinas que ella tão ardentemente advoga.
A prova evidente d'esta nova asserção
é ella quem se encarrega de nol-a fornecer.
A mulher, como nós a sonhamos e a queremos, não
é
a forasteira acclamada e illustre que anda espalhando
[199]
por sobre a cabeça das turbas indifferentes ou
passageiramente
commovidas, as suas convicções
e as suas theorias sociaes.
Recolhida no seu modesto e placido interior, mãe de um bando
infantil, mimoso e louro, de que ella fosse a providencia, o amparo, a
suprema alegria, esposa de um homem forte e honesto, de um trabalhador,
de um membro activo e laborioso da moderna sociedade, a
acção d'esta mulher seria muito mais restricta,
mas incontestavelmente mais util e mais salutar.
Não daria uma hora de commoção
dramatica ao auditorio que viesse ouvil-a, curioso de excentricidades
novas; não julgariam possivel a sua
eleição como presidente de uma republica
poderosa; mas as
pessoas que vivessem em mais ou menos estreito contacto com ella
receberiam a influencia honesta do seu exemplo, e os filhos que ella
educasse seriam outros tantos elementos fecundos da futura
regeneração social.
Não é prégando o respeito ao casamento
que se convencem os homens, é provando esse respeito nas
minimas acções e nas acções
mais decisivas de uma existencia.
Mrs. Victoria Woodhall tem arrebatamentos soberbos de eloquencia
oratoria, fulminando a decadencia em que o sentimento da familia tem
modernamente cahido, mas como quer ella provar-nos que comprehende
[200]
essa absoluta identificação de duas almas,
essa absorpção de um espirito em outro espirito
seu
irmão, ella que affirma tão rasgadamente a sua
individualidade, ella que apparece em plena luz deixando na sombra
aquelle de que não póde ser senão a
metade incompleta, a porção imperfeita e
mutilada.
Anda n'uma gloriosa faina a converter as suas irmãs que
prevaricam ou descreem, ou ignoram.
Mas se o exemplo da gloriosa propagandista as tentar e seduzir?
Onde fica o lar modesto, o aceio do ninho, o terno amor dos filhos
pequeninos, as obscuras virtudes domesticas, toda a graça,
toda
a poesia, todo o conchego, todo o encanto mysterioso e indestructivel
d'essa ineffavel união chamada o casamento?
Não nos surprende, porém, este producto
extraordinario de uma sociedade agitadissima e ainda para si propria
indefinida e indefinivel.
A America tem-se feito a si mesmo, não procura para as suas
leis e para os seus costumes uma solida base tradicional.
N'ella que é tão forte como
nação, tão pertinaz nos intentos,
tão energica nas acções,
n'ella que é uma prova terminante de como em dous seculos se
fórma
[201]
uma raça,
unica e cheia de virginal vigor, ha cousas que estão ainda
perfeitamente vagas e fluctuantes.
O destino das mulheres é uma d'essas cousas.
Politicamente possuem os mais amplos direitos, podem ser tudo, aspirar
a tudo, todas as carreiras estão abertas diante dos seus
passos;
socialmente é quasi um dogma o respeito que inspiram.
Ninguem ousa insultal-as nem com uma palavra, nem com uma suspeita,
gosam de uma liberdade absoluta, andam sós, viajam
desprotegidas
ou antes protegidas pela sua fraqueza omnipotente, nos caminhos de
ferro, nos omnibus, nos paquetes; sentam-se sósinhas
á
meza redonda de um
hotel, fazem emfim impunemente, apoiadas pela
despotica soberania dos costumes, tudo que a nós,
européas de facto ou de
tradição, se affigura quasi monstruoso de
inconveniencia.
E no entanto, apesar d'este reinado apparente, apesar d'este predominio
ostensivo, é bem mais profunda a invisivel influencia que as
mulheres do velho mundo exercem em torno de si, não sobre as
leis, o que seria pouco, mas sobre os costumes, o que é
quasi
tudo.
É que somos as rainhas do lar; de nosso bom ou mau juizo
depende
a paz ou a guerra, a ventura ou a desgraça, a prosperidade
ou a
ruina, a dôce mediania tranquilla ou a agitada e tempestuosa
existencia mundana.
[202]
Não parecemos nada e somos tudo!
Os que mais nos desdenham não escapam ao nosso poder.
Submettem-se-lhe inconscientemente. Os que luctam contra nós
teem de confessar-se vencidos.
Não somos medicas, não somos advogadas,
não somos professoras, não somos preleccionistas
officiosas de qualquer theoria, mais ou menos arriscada; mas somos a
influencia continua e permanente, a voz surda que sempre se escuta, a
tentação funesta ou a
guia providencial, o grande poder obscuro, a que se não
furta o
filho, o irmão, o marido, o proprio pae!
Que importa que não possamos exercer a nossa
acção dentro da esphera restricta e limitada das
leis, se os costumes ahi estão, para que nós os
criêmos, os modifiquemos, os transformemos, para que
nós lhes dêmos o nosso collectivo impulso enorme!
Na America, visto que a mulher tem a faculdade de luctar com o homem no
campo da actividade pratica, é-lhe restringido fatalmente o
seu
poder na esphera em que ella póde e deve ser rainha.
O casamento na America protestante, dizem os viajantes que teem
observado os costumes d'essa raça estranha e vigorosa,
é
um contracto temporario que se baseia no calculo, e que o mais leve
atricto póde destruir.
O divorcio é alli um facto vulgarissimo, ha mulheres
[203]
divorciadas de tres maridos que
contrahem muito serenamente um quarto matrimonio tão sagrado
e
tão respeitavel como os tres primeiros.
Os filhos resentem-se inevitavelmente d'este estado transitorio em que
permanece a familia.
Não teem respeito nem disciplina, e é mais do que
provavel que não tenham amor.
Em pequenos teem de sujeitar-se ás regras estabelecidas,
logo
porém que sahem da infancia representam por si proprios,
encetam
a grande lucta da vida.
A independencia pessoal, o individualismo britannico, accentua-se alli
d'uma fórma muito mais saliente.
Cada um por si, eis a lei que rege o
verdadeiro
Yankee, lei que herdou de seus
avós anglo-saxonios e que exagerou, accommodando-a
ás despoticas exigencias do seu meio.
Assim como a sociedade politica, assenta no principio da mais ampla e
rasgada descentralisação, assim a sociedade moral
é dominada por um principio exagerado de independencia, que
afrouxa necessariamente os laços da familia.
Não se faz idéa entre nós do que
é um interior nos Estados-Unidos.
Nas classes burguezas e medianamente favorecidas dos bens de fortuna,
vive-se por assim dizer em commum
[204]
n'uma especie de hospedaria, em que
se reune uma duzia ou mais de familias.
Ás horas da refeição agglomera-se em
torno da meza aquella multidão de indifferentes que mal se
conhecem; comem á pressa absortos em
preoccupações de ordens diversas que ainda mais
os separam e os distanceiam.
A comida feita sem amor, sem solicitude, sem o cuidado que inspiram
á boa mãe e á boa
esposa as predilecções dos filhos e do marido, a
hygiene
da familia, a economia do lar, não tem para nenhum dos
commensaes nem alegria nem sabor.
Comem como quem cumpre uma obrigação
indispensavel e enfadonha, e d'alli partem para a faina, para o
trabalho sem treguas, para a lucta acerba e pertinaz.
Nem um momento de repouso ou de tranquillo devaneio.
A vida é o trabalho; o tempo é mais do que
dinheiro, é sangue.
A existencia dos americanos é uma existencia de operario,
tressuada, esmagadora.
Todos querem conquistar a sua porção legitima de
abundancia ou mais ainda, de riqueza.
Para que?
Para terem bem firme a consciencia de que a mereceram.
[205]
Ha uma pressa febril, uma impaciencia vertiginosa, uma ancia de todos
os instantes n'esta raça de impetuosos luctadores.
As qualidades e os defeitos britannicos attingem além do
Atlantico um relevo exagerado.
N'esta vida cortada de obstaculos e difficuldades, n'esta vida em que a
energia do homem, o seu vigor physico e moral, a dura tenacidade do seu
querer, se exercitam e robustecem na mais desenvolvida escala, que
lugar póde haver para a poesia, para a arte, para as
tranquillas
doçuras da vida domestica, para os prazeres de uma culta
sociabilidade?
Ha tempo apenas para admirar as extravagancias imprevistas, as cousas
novas e excentricas que firam a attenção, que se
imponham
rapida e subitamente ao
pasmo das turbas.
Deriva do modo inteiramente caracteristico porque os americanos
entendem a vida, o lugar que n'ella dão á mulher.
Isolada
por um esteril respeito, despojada de todo o predominio que entre
nós lhe concedem os costumes, e a
tradição
religiosa e social, a
mulher para tentar adquirir a consciencia da sua
força,
tem
fatalmente de ir procural-a na arena em que luctam os homens.
Isto em vez de os converter, mais os liberta d'aquelle poder occulto e
latente, d'aquella doce e invisivel influencia
[206]
que partindo d'alto lhes
suavisaria a indole, os costumes e os gostos.
Victoria Woodhall é o fructo genuino d'esta sociedade
incompleta
n'uns pontos e n'outros inteiramente transviada do verdadeiro caminho,
do caminho que conduz á felicidade e ao equilibrio de todas
as
faculdades humanas.
Só na America do Norte é que esta valente
prégadora das reformas sociaes podia ter nascido,
só a
America é que podia entendel-a e applaudil-a com
tão
sincero enthusiasmo!
Se ámanhã uma das nossas mulheres
começasse a percorrer as grandes cidades da Europa
meridional,
prégando a transformação dos costumes,
os direitos politicos do sexo feminino, a reforma das
instituições, a sua prédica, por mais
eloquente
que fosse, seria abafada em uma tempestade homerica de risos!
Aqui muito á puridade, eu não sei se somos
nós, que temos razão!
CAPITULO XIV
I
Fallemos dos nossos criados.
É um assumpto este de importancia summa.
Tem relações estreitas com a
administração da casa, com o seu aceio, arranjo,
conforto
e bom governo; com a moralidade que n'ella existe, com a figura que
ella representa em relação ás outras
casas.
Parece uma questão ridicula e comesinha; tem sido estragada
por
todas as matronas de mau humor que desafogam n'ella a superabundancia
da sua bilis; é o assumpto obrigado das
conversações das
mães burguezas, em quanto nas pequenas
soirées dos quartos
andares
as meninas estafam um
desgraçado piano asthmatico, os
litteratos
da familia recitam versos a
Ella,
[210]
e tres commendadores gordos e
vermelhos disputam acalorada e ferozmente a uma banca de voltarete.
Ninguem todavia ainda encarou esta questão debaixo do seu
verdadeiro aspecto.
Declama-se contra a decadencia e desmoralisação
dos
criados de hoje, mas ninguem pensou que esta decadencia, que esta
desmoralisação, provém
forçosamente de alguma causa que é necessario
conhecer e
destruir.
Á primeira vista, observando na familia, esse elemento que
se
tem tornado tão indispensavel quanto perigoso, nota-se o
seguinte:
―Que os criados de hoje não se podem comparar aos criados
antigos, nem na fidelidade, nem na lealdade, nem no desinteresse, nem
na moralidade.
Já se vê que esta regra tem
excepções numerosas, de que não
tractaremos, mas que reconhecemos e admittimos.
―Que dia a dia se nota n'esta classe um desapego mais profundo pelas
familias a quem serve, e em cujo seio penetra.
―Que elles são sempre ou quasi sempre os auxiliares da
traição, do vicio, da desobediencia, e que
portanto é profundamente corruptora a influencia que exercem
na
familia.
―Que o seu interesse consiste em especularem com
[211]
as fraquezas ou as maldades d'aquelles
de quem dependem, e que vivem e medram na immoralidade dos seus
superiores.
―Que pelo seu comportamento se revelam inimigos natos de todos que
estão acima d'elles, e que presentindo a vantagem que lhes
póde provir do rebaixamento dos entes de quem receiam a
severidade ou que são forçados, muito contra sua
vontade,
a
respeitar, o fim que elles teem, e que procuram por todos os modos
attingir, é o seguinte: penetrar vagarosa e
cautelosamente na confiança dos amos, extorquir-lhes os seus
segredos, e divulgal-os por sêde instinctiva de
vingança,
ou exploral-os, por desejo immoderado de ganho.
Posto isto, provado está que os criados são os
nossos
inimigos necessarios, e que
é preciso que para com elles a nossa attitude seja por em
quanto inteiramente defensiva.
E dizemos
por em quanto, por uma
razão muito simples.
Porque entendemos que, quando n'uma classe inteira se manifestam
symptomas de corrupção e de
gangrena, a culpa vem por força de longe, e
de
cima,
e que devemos applicar-nos com todas as nossas forças e
todos os nossos desejos, a modificar essa culpa, e a redimil-a por fim.
[212]
A que póde attribuir-se o contraste notavel que se reconhece
entre os criados
antigos e
os criados de hoje?
A muitas causas independentes da nossa vontade, e sobretudo da vontade
d'elles; as causas que teem o seu
quê
de politicas, e
seu
quê de economicas, o
seu
quê de sociaes, o seu
quê de philosophicas.
Vejam em quantas questões nebulosas e importantes entesta
esta humilde questão de criados.
Transformação completa do viver social e do viver
domestico.
D'antes a familia era fundada n'um principio de muito menos
justiça, mas n'uma base de muita mais solidez.
Havia o
chefe que acolhia
á sua vasta sombra, os irmãos, os parentes
pobres, os
filhos, os servos que eram tambem uma tradição e
tambem
uma
herança.
Quando o chefe morria succedia o filho ou o irmão mais
velho,
que herdava os irmãos, os tios, os parentes pobres, os
servos,
todos os haveres, e tambem todas os encargos da numerosa communidade.
Os criados entravam ao collo de sua mãe que vinha ser aia,
ou
varredora, ou engommadeira, ou outra cousa qualquer e sahiam de 60 ou
80 annos no caixão para o cemiterio, deixando na familia
nova
geração de servos que eram seus filhos.
[213]
D'este modo havia estabilidade nos seus empregos. Só eram
demittidos por
erro de
officio.
Não receiavam o dia de ámanhã,
não sentiam a esmagadora indifferença dos
superiores a
revelar-lhes que na familia eram párias, eram estranhos,
eram
inimigos.
Não precisavam de se apossar de um segredo, de
ameaçar
tacitamente com uma denuncia, de lisongear vilmente um vicio ou mesmo
uma mania, para darem solidez e garantia de
duração
á sua
posição dependente e precaria!
Em quanto que na vasta sala de jantar, de tectos apainelados, e
custosos pannos de Arras, em torno da pesada meza de carvalho,
primorosamente entalhada, se reunia alegre a numerosa familia, em que
umas poucas de gerações se enlaçavam,
na
cosinha do palacio, ao lume crepitante das fornalhas enormes, reunia-se
tambem a familia ainda mais numerosa dos antigos servos.
Eram paes, mães, filhos, ás vezes netos.
Não estavam privados de todas as
condições humanas, tinham as suas festas intimas,
as suas alegrias, os seus affectos.
O seu maior empenho consistia em que a familia de que dependiam,
florescesse e prosperasse; a sorte d'elles e dos seus, estava por assim
dizer, identificada com a sorte dos amos.
[214]
Affeiçoavam-se áquellas paredes, ou
áquelles moveis, á senhora que era branda e
protectora
para elles, ás creanças que tinham ajudado a
crear, e que
um
dia viriam a conceder-lhes a mesma protecção que
hoje
recebiam dos paes.
Eram maus, interesseiros, crueis ás vezes! Embora!
É porque eram homens, e não porque eram servos.
Tinham as qualidades boas ou más da humanidade e
não as de uma determinada classe.
D'aqui a sua superioridade sobre os criados de hoje.
No regimen moderno, a familia tem outra
constituição e outros costumes.
As fortunas extremamente divididas já não
consentem esse modo de viver opulento e patriarchal.
Os mesmos ricos, que são no fim de contas os grandes
financeiros
modernos, esses que juntaram a fortuna de que gosam á custa
de
privações e de trabalho, são egoistas
para todos,
e particularmente duros para os inferiores.
Na sua opinião os criados são machinas. Umas
machinas que vestem casaca, e usam gravata branca.
Exigem d'elles um serviço irreprehensivel, uma obediencia
passiva, uma disciplina exemplar.
[215]
De resto odeiam-nos porque lhes teem um certo mêdo.
Comprehendem perfeitamente que são rediculos, elles que
andaram
tanto tempo de tamancos, a varrer os armazens, a levarem
empurrões e maus tractos dos caixeiros grandes da casa, a
curvarem-se humildemente diante dos
patrões,
dando-se agora aquelles ares superiores e desdenhosos de potentados.
Emquanto comem em pratos de Sevres ou do Japão, uns manjares
exquisitos que o cosinheiro, o seu cosinheiro de dez ou doze libras por
mez, lhes impinge traiçoeiramente, sentem-se acanhados
diante do
olhar frio, do olhar metallico dos criados de meza, e imaginam que
elles no mudo escarneo d'esse olhar, lhes dizem que estão
percebendo o seu desastramento, os seus gestos grosseiros, e
até
a saudade com que recordam a assorda e o bacalhau salgado dos bons dias
da mocidade.
D'esta hostilidade mutua nada bom póde resultar.
Os amos são orgulhosos, cheios de desdem, de
indiferença, de duro egoismo; os criados são
hypocritamente humildes, são invejosos, e malevolamente
escarnecedores.
Só um laço póde ligar estes
sêres; a cumplicidade.
[216]
De cima não haverá brandura em quanto de baixo
não houver subserviencia criminosa.
Ambos o comprehendem de sobejo; comprehendem-no sobretudo os criados
que andam á mira d'um segredo, d'uma
indiscrição,
d'uma descoberta
qualquer que os faça levantar a cabeça.
No dia em que a aia recebe a primeira confidencia da senhora, no dia em
que entrega o primeiro bilhete, no dia em que lhe é escutado
o
primeiro recado de que a encarregam, invertem-se os papeis, e
só
continua apparentemente aquella humildade que a suffocava de colera e
de despeito.
Era escrava obediente e muda, hoje é cumplice, o que quer
dizer tyranna.
Ao marido em caso identico succede o mesmo.
Moralidade d'esta situação: o criado de hoje
triumpha quando seus amos se rebaixam.
Entremos nas casas burguezas, que constituem hoje a maioria.
Vive-se com pouco, ha uma ou duas criadas, a pobreza traz comsigo uma
certa promiscuidade que abala o respeito.
Já aqui os criados não são automatos
que se movem ao impulso d'uma vontade superior.
[217]
Não são mudos, não teem a fria
apparencia aristocratica que revela a opulencia da casa em que servem.
Pelo contrario; as criadas estão iniciadas nos pequenos
segredos
da familia, mas como a vida de hoje, toda de expedientes, toda no ar,
desiquilibrada, impostora, não tem aquella dignidade da vida
antiga, as criadas com o seu malicioso instincto plebeu penetram esse
viver, julgam-no e escarnecem-o.
Podia-se viver decentemente com o pouco que ha. Chega mesmo para uma
alimentação sadia, para a
satisfação das necessidades indispensaveis; se a
dona da
casa desenvolver os seus recursos de economia, conseguir-se-hia sem
muito trabalho, no fim do anno,
joindre les deux bouts
como expressivamente dizem os francezes.
O pae é um funccionario bem collocado, o rendimento se
não é grande pelo menos é
sufficiente para uma vida mediocre e laboriosa.
Diante d'este quadro parece-nos que não ha brecha por onde
possa penetrar a malicia interesseira da criadagem.
Pois ha, minhas senhoras!
O dono da casa tem um emprego bom, é verdade, mas aspira a
subir
de posto, quer de mais a mais a carta de conselho, leva isto
em
capricho por causa das
[218]
picuinhas do seu collega da
secretaria, o conselheiro Fulano; logo, para attingir este fim desejado
é preciso antes de tudo
figurar.
Tem de ir aos
chás do seu
amigo deputado, ás
soirées do barão de tal
que
é muito
influente, tem de dar de jantar de vez em quando ao seu
amigo
cicrano que é parente do primo da
mulher do secretario
particular do ministro, tem de gastar muito em apparato ridiculo, em
luxo avariado, em pompa feita de remendinhos.
A mulher, já se entende, não lhe fica atraz!
Podéra!
E ella então que tem de se vingar d'uns chascos que as
snr.
as
Silvas fizeram ha tres annos a um vestido de seda um tanto usado que
ella trazia; e que tem de fazer rebentar de inveja a
D.
Leocadia que é mulher d'um commendador seu
conhecido; e de
quebrar os olhos á
prima Ausenda que anda a dizer
pelas casas do seu conhecimento «que não sabe onde
ella vae buscar para tanto luxo!»
Filhas d'estes paes o que serão as meninas?
Querem vestidos de seda, embora os comprem em
segunda
mão,
querem joias
embora sejam falsas, querem botinas de tacão alto, porque as
teem visto ás pequenas da viscondessa de M. e da baroneza de
S. e da marqueza de V.; querem apparecer no theatro,
[219]
querem ir ao
Club, querem tomar
banhos quando não seja em praia elegante, ao menos na
Ericeira; querem
reunir á noute uma
vez
por semana, umas visitas que nunca vão, querem fazer emfim o
que por ahi faz
toda a gente.
Resultado d'isto, resultado inevitavel.
Deve-se na tenda, deve-se no carvoeiro, deve-se na modista, deve-se no
sapateiro, deve-se na loja de fazendas, deve-se ás criadas.
A falta de seriedade na vida, acarreta comsigo um milhar de pequeninas
humilhações insupportaveis.
As criadas vão á porta receber os credores, e
trazem dentro os recados com um sorriso maganão que escapa a
todas as reprehensões e a todos os castigos.
Se estão de mau humor resmungam, fazem causa commum com o
inimigo,
que
é no fim de contas o
confrade; se
estão bem
dispostas dão alvitres, inventam e lembram desculpas,
lamentam a
senhora, etc., etc.
De qualquer dos modos amesquinham os amos, estabelece-se entre elles e
ellas uma intimidade funesta.
Destroe-se assim o respeito, disciplina, a obediencia, aquella
hierarchia que tem de existir n'uma familia para que essa familia
esteja bem organisada.
Um dia, as
meninas, que teem recebido a
educação
[220]
mais perniciosa e mais falsa, fartam-se
d'aquella vida de privações intimas, de balofas
apparencias
e querem fugir d'ella.
Teem só uma porta: o casamento.
Nas familias pobres da burguezia, o casamento é julgado a
porta por onde se sahe da miseria!
Quantas vezes não é elle a porta por onde se
entra na desgraça!
Começam então a namorar.
A namorar seja quem fôr. O alferes que passa, o
dandy
pelintra que encontram nos
seus passeios, o
litterato pallido e fatal que
olhou
para ellas da plateia.
Quem é a confidente natural d'este
namoro, a auxiliar forçada d'esta
intriga ridicula?
A criada!
É ella quem espia a mãe, e quem ajuda a
enganal-a; é ella quem entrega e recebe as cartas,
é ella quem se
farta de rir com a
menina,
ouvindo contar o que ella lhe disse, e o que elle lhe tornou!
Quantos perigos, quantas humilhações, quantas
vergonhas n'este facto que é hoje trivial e repetidissimo!
A criada só tem a ganhar na execução
d'estes misteres.
Ganha indulgencia para as suas proprias faltas,
[221]
uma advogada que ou por medo ou por
sympathia defende a sua causa, e até se tanto fôr
preciso
se revolta
por amor d'ella contra a authoridade maternal. Ganha quem a ajude no
trabalho!
Ganha a possibilidade de ser insolente e atrevida, de se vingar da sua
posição inferior, de
desafogar o mau genio, e isto sem perigo de qualidade alguma.
Quando se não dão estes casos que ahi deixamos
apontados dão-se outros identicos ou outros similhantes.
Da parte dos superiores indifferença profunda, desejo de
explorar de todos os modos e feitios os dependentes, rudeza, orgulho,
egoismo, desapego.
Da parte dos inferiores, a mesma indifferença creada a pouco
e
pouco pela incerteza ácerca do dia de
ámanhã;
desaffeição
pronunciada, despeito, inveja, e desejo de trabalhar o menos possivel,
em troca do maior salario que poderem alcançar,
separação de vida, de interesses, de alegrias, de
affectos.
Se entra em casa a doença com todo o seu cortejo de lugubres
tristezas, de vigilias e de lagrimas, nunca a criada saberá
ser
enfermeira. Fará o
serviço, resmungando, furiosa, desattenta, fazendo esperar
um caldo para ir á janella
ver quem
passa; deixando apagar
[222]
o lume de
noite porque adormecerá inteiramente esquecida dos que
soffrem e
velam.
E que lhe importa a ella no fim de contas que elles morram ou se
salvem.
Hoje está aqui, ámanhã
estará n'outra parte!
Se adoecer vem uma maca e leva-a para o hospital abandonada,
sósinha como um cão!
Não dá porque não recebe.
Entre os criados e os amos os interesses são absolutamente
oppostos.
A unica circumstancia que póde alterar esta
situação reciproca: a cumplicidade.
Que admira, pois, que todos os dias se observe maior e mais profunda
immoralidade nos criados das grandes cidades? que admira que as
excepções se
vão tornando dia a dia mais raras?
A culpa é de uns e d'outros, mas o mal tem ainda remedio.
Procuremos apontal-o.
No que respeita aos amos cumpre:
Que sejamos benevolos para que a humildade dos nossos inferiores nunca
seja para elles uma
humilhação.
Que tenhamos no interior das nossas casas a maxima dignidade e o maximo
respeito de nós mesmos e dos outros, para que o nosso
exemplo
levante ainda os que estão mais baixo.
[223]
Que vivamos de modo que nunca receiemos o escarneo, ou a censura de
alguem, para que sobre nós nunca possam exercer-se
influencias
funestas.
Que não exploremos a actividade dos pobres, para que os
pobres
não tenham interesse em explorar as nossas fraquezas, e
já que é indispensavel
crear-se e educar-se a classe dos criados, juntemos todos os recursos
da nossa experiencia e do nosso bom senso, para dar prompto e efficaz
remedio a todos os males que são por assim dizer o
privilegio
especial d'essa classe.
II
No capitulo anterior, tractando d'esta questão,
tentámos apresentar as causas que determinam e aggravam a
decadencia e desmoralisação dos criados
modernos.
Essas causas teem um resultado fatal que vem a ser o seguinte:
É tão precaria, tão falta de
garantias, tão exposta a continuas
alterações a sorte dos criados, que
para ella só descem os que n'outra esphera não
poderiam achar collocação que lhes dê a
subsistencia.
Os bons, que por acaso ou por circumstancias fortuitas
[224]
acceitam este modo de vida,
são ainda mais desgraçados do que os maus, porque
são mais explorados.
Portanto ou fogem d'elle, ou se corrompem fatalmente.
Estamos, pois, em face d'este dilemma.
Ou havemos de não ter criados, ou havemos de os ter maus.
É verdade que fomos nós que voluntaria ou
involuntariamente os corrompemos e estragámos.
Concedo.
Agora, porém, não se tracta d'isso.
Achamos o resultado das nossas proprias culpas e procuramos os meios de
o modificar.
Primeira necessidade imprescindivel: é preciso educarmos os
nossos futuros criados.
Mas como?
Creando para isso instituições especiaes, ou
modificando a indole das que já existem.
Tractemos antes de tudo das mulheres.
Estão por todo o reino espalhadas, e ainda bem que assim
é, as instituições de
caridade, tanto de iniciativa dos particulares, como de iniciativa do
Estado.
O que é que n'esses asylos se aprende, salvo
excepções possiveis, mas que não
chegaram ainda ao nosso conhecimento?
[225]
Aprende-se em primeiro lugar o que hoje é indispensavel para
toda e qualquer situação, por mais humilde que
seja;
aprende-se a ler, escrever, contar, coser e marcar.
Aprende-se em segundo lugar a bordar de branco, a bordar de missanga, a
bordar com cabello, a fazer crochet, a tocar orgão ou
harmonium; ha alguns onde se aprende grammatica,
historia, geographia, etc., etc.
Muito bem.
Em cada cem raparigas, admittimos que haja dez, cuja intelligencia
superior possa mais tarde aproveitar-se d'este genero de estudos.
Serão mestras regias, serão talvez caixeiras de
alguma pequena loja, serão mesmo professoras particulares se
houverem progredido no estudo e adquirido uma
instituição
mais solida e mais proficua.
Que fazemos das outras noventa?
Imaginemos que cincoenta casaram muito moças.
Acham um artista, um carpinteiro, um chapeleiro, um entalhador, um
pedreiro, um operario de fabrica, que as rouba á desamparada
solidão que estava á espera d'ellas e que as leva
para o
seu pobre albergue desguarnecido e miseravel.
Dos conhecimentos que adquiriram na educação dada
pelo asylo quaes aproveitarão, quaes
applicarão á sua felicidade, ao seu bem estar
domestico?
[226]
Com que trabalho poderão auxiliar o trabalho do marido,
insufficiente para acudir a todas as necessidades do
ménage?
Que officio aprenderam a exercer?
Dão as voltas de casa, varrem, limpam o pó,
cosinham, mas fazem tudo isto mal.
Nunca ninguem as compenetrou bem da importancia altissima
d'estes misteres tão humildes.
Ter a roupa do marido bem desencardida, bem engommada, com os seus
remendos bem deitados, ter a casa acciada e fresca, ter uma comida
pobre mas saborosa e bem temperada, ter a alegria, a
abnegação, a boa vontade, e, em muitas das horas
que
ficam vagas, exercer qualquer pequena industria que ajude o marido,
banir de casa a tagarellice das visinhas, viver só com o seu
homem, com os seus filhos, no trabalho continuo, no trabalho fecundo,
isso que é de certo o ideal, quem é que lh'o
ensinou a
praticar?
Deixemos, porém, essas cujo destino agora não
precisamos de apreciar e voltemos para as que ficam.
Sahem do asylo, vão umas servir, outras vão ser
costureiras, vendedeiras, etc., etc.
Umas são as pobres creaturas roucas e aguardentadas que ahi
vemos atravessar as ruas, apregoando hortaliças, ou fructa,
outras as pallidas e anemicas
[227]
creanças, de
cuia
postiça, chapeu de aba revirada, polonaise phenomenal, bota
de
tacão alto e cambada, que encontramos á noutinha
ou de
manhã cedo, indo
para casa das modistas, ou voltando de lá.
As outras quem as não conhece, ao menos por ter ouvido
fallar d'ellas?
São as criadas de hoje, ou serão as criadas de
ámanhã.
A educação que lhes deram está em
contraposição perfeita com a tarefa que teem de
cumprir.
Uma que foi apresentada para cosinheira, não tem as minimas
noções culinarias, mas em
compensação lê correctamente os jornaes
que veem de manhã.
Outra, cuja obrigação é engommar,
não tem geito senão para bordar de matiz.
Algumas, menos favorecidas da intelligencia, não sabem o que
aprenderam, nem aprenderam aquillo que fazem.
São as mais vulgares!
Porque é pois que se não dá
ás raparigas do povo, ao menos ás que
são educadas nos asylos de
beneficencia, uma educação em harmonia com o seu
futuro papel?
Não reprovamos de certo a leitura, a ortographia,
[228]
uns elementos de arithmetica, mas o que
reprovamos é que haja uma uniformidade absoluta na
educação que se ministra a tantas e tantas
creanças de indoles diversas, de intelligencias
diversissimas.
Aquellas que tivessem disposições para um genero
de
trabalhos mais levantados, deviam encontral-o n'uma casa especialmente
destinada para as filhas do povo que até aos 12 annos
tivessem
dado
manifestações inequivocas de claro e perspicaz
entendimento.
Ali formar-se-hiam futuras professoras, ou futuras artistas.
Haveria n'esse estabelecimento mestras ou mestres que a cada uma
conforme a sua vocação ensinassem
as linguas, a musica, a pintura em porcellana, a grammatica, a
geographia, a contabilidade, etc., etc.
A essa casa, que devia ser subsidiada pelo governo e auxiliada pela
bolsa particular, iriam as mães de familia procurar
professoras
portuguezas para as suas filhas, professoras cuja
educação fosse completa,
e cuja moralidade podesse ser affiançada.
Mais tarde os chefes de casas de commercio, mais capazes de
comprehenderem o grande alcance d'esta innovação,
iriam
tambem buscar a essa casa
raparigas honestas, que elles podessem sentar á mesa ao lado
de
suas filhas, e a quem confiassem a contabilidade e os livros do seu
estabelecimento.
[229]
Os fabricantes de louças e outros industriaes achariam na
intelligencia e na prompta comprehensão feminina grande
auxilio,
e auxilio mais economico.
Abaixo logo d'essa cathegoria mais elevada de intelligencia, haveria,
n'outra casa, as que tivessem especial tendencia para os trabalhos que
requerem não só engenho, mas tambem habilidade
manual.
Costureiras de vestidos, modistas de chapeus, raparigas que soubessem
fazer rendas, fazer franjas, etc., etc., e que o asylo logo que lhes
houvesse completado a aprendizagem, podia empregar convenientemente.
Seriam estas, preferidas de certo a raparigas avulsas que entram para
qualquer officio completamente ignorantes do trabalho que teem a fazer.
A disciplina escolar, a instrucção elementar
recebida, a aprendizagem methodica, affirmava-lhes a sua superioridade
enorme sobre as outras.
Collocadas assim as mais destras e as mais intelligentes, ficariam
aquellas cujo espirito menos desenvolvido se recusava a uma
applicação difficil.
Estas seriam educadas expressamente para criadas de servir.
Mas que educação precisa uma criada?
[230]
Ora essa!
Uma criada precisa uma educação tão
cuidadosa como uma duqueza.
A differença consiste unicamente n'isto:
Uma tem de educar-se para criada, e outra tem de educar-se para
duqueza.
No asylo destinado a formar criadas, haveria o mesmo escrupulo na
escolha das mestras.
Antes de tudo uma moralidade austera.
Depois no que toca á parte technica da
educação, officinas distinctas onde cada uma das
discipulas fosse alternativamente aprender os serviços que
mais
tarde tivesse a cumprir.
Officinas onde se aprendesse a cosinhar segundo as regras da hygiene.
Officinas onde se aprendesse a engommar segundo os processos mais
adiantados. Outras onde se lavasse roupa de lã, e roupa de
linho
e algodão.
Outras onde se talhasse roupa branca, fatos de creança, e
fatos de senhora.
Não se attenderia aqui como no
atelier das modistas do asylo superior, aos
caprichos da moda, mas unicamente á commodidade, ao bom
gosto e á
hygiene.
Outras ainda onde se cozesse á machina.
Haveria mulheres especialmente encarregadas de
[231]
ensinarem as discipulas a varrer, a limpar o
pó, a esfregar o sobrado, ou a enceral-o á moda
franceza,
a deitar bem
rêdes, a fazer
meias, a cerzir panno, etc., etc.
Haveria n'este estabelecimento um requinte de aceio hollandez.
As mestras escolhidas primeiro nos paizes estrangeiros, e depois
educadas pelo mesmo asylo, ensinariam com o maior cuidado ás
suas discipulas, que as criadas destinadas pelo seu trabalho a
penetrarem no seio de familias inteiramente estranhas a viverem em
contacto com gente de muita qualidade eram forçadas a ter,
além da honestidade commum a todas as mulheres honestas, uma
honestidade particular da sua classe, uma honestidade composta de
elementos muito variados.
Dir-lhes-hiam que uma criada boa tem de ser leal, tem de ser digna, de
resistir ás más
tentações, de ser fiel, de ser boa companheira,
de ser
laboriosa e de ter o escrupulo mais exagerado no cumprimento das suas
obrigações.
N'este asylo ainda haveria subdivisões necessarias.
As mais geitosas para um certo e determinado trabalho applicar-se-hiam
a elle de preferencia, não desprezando porém os
outros.
Aquella que fosse destra para tudo, aproveitaria
[232]
egualmente todos os elementos que houvessem de
constituir a sua educação.
Ser criada não é―entenda-se bem―nem uma
vergonha nem um
pis aller; ser
criada é um officio, ás vezes mais complicado que
os outros, porque comprehende muitos.
A unica differença é que se póde ser
uma boa criada não sendo excessivamente intelligente, e que
as
qualidades aqui indispensaveis são robustez, destreza de
mãos, fidelidade, amor de trabalho.
Não se diga que isto é uma utopia impossivel.
No estado de adiantamento a que chegou entre nós o principio
de associação applicado á
beneficencia, nada mais facil do que organisar por este modo os asylos
do paiz, ou pelo menos de uma cidade do paiz.
Não augmentaria de modo algum a despeza, mas progrediria
necessariamente a educação popular.
Reunidas debaixo de uma direcção geral, todas as
casas de
Beneficencia de uma cidade, passaria esta não a crear asylos
novos, mas a modificar a indole dos que existem.
Estabelecer-se-hia uma especie de gradação
natural.
[233]
Em baixo a casa que recebesse sem distincçao todas as
creanças de 4 a 10 annos que estivessem no caso de serem
admittidas.
Alli, sob a direcção de professores
intelligentes, e de directoras de espirito cultivado, far-se-hia aos 12
annos de edade a escolha.
Umas seriam enviadas para o asylo profissional de 1.ª classe,
outras
para o asylo profissional de 2.ª classe, a terceira para o
asylo das
criadas futuras.
Aquellas que estivessem mais adiantadas trabalhariam logo, de modo que
grangeassem um salario por mesquinho que fosse.
Esse salario entraria como elemento de receita na caixa central.
Este plano, como se vê, não é mais que
um plano embryonario, o germen d'uma idéa que se nos
affigura util e praticavel.
Outros melhor do que nós o estudem e desenvolvam, se
entenderem que o merece.
Quanto a nós, acreditamos piamente que só
então começariamos a ter criadas.
As que sahissem do asylo com 20 annos de edade ficariam sujeitas a uma
certa e determinada vigilancia,
[234]
cujo systema e cujas bases nos não compete agora explicar.
Com estas garantias de moralidade, e de bom serviço, seriam
preferidas a todas que as não tivessem, e pelo menos fariam
uma
util concorrencia ás criadas
indisciplinadas e ignorantes que hoje temos.
As casas dignas e honestas teriam criadas cujo comportamento as
não deslustrasse.
As outras ficariam com as que teem hoje.
Não merecem mais.
Nos asylos dos rapazes, seguir-se-hia uma norma egual ou parecida.
Esses como teem campo muito mais vasto para exercerem as suas
actividades complexas, dariam de certo, bem educados e bem dirigidos,
um pequeno contingente para a classe dos criados.
Seria um bem.
Uma criada representa sempre uma necessidade, um criado representa
sempre um luxo!
Para que ha de haver criados de meza ociosos e insolentes, cosinheiros
envenadores e infieis?
Estes serviços tão faceis
não podem ser feitos por mulheres?
Logo que este uso se propagasse entre os ricos,
[235]
deixaria de ser indicio de pobreza, ou de
habitos plebeus.
No fim de contas tudo isto não passa de
convenção!
Já que o Estado julga descer occupando-se d'estas
pequeninas
questões de
moralidade domestica, que a iniciativa individual o substitua.
Ninguem mais do que nós tem applaudido o engrandecimento
progressivo, o rapido desenvolvimento das
instituições de
caridade.
Não é o dinheiro que falta, porque entre
nós quando se falla na miseria, a caridade nunca faltou; o
que falta é uma direcção boa.
A rotina n'isto como em tudo é funestissima.
A nossa caridade official dá pão e vestuario
ás creanças, mas que faz em favor das mulheres?
Dando-lhes uma educação que não
está em harmonia com os seus meios futuros, condemna-as
á
miseria, á desgraça, quantas vezes á
ociosidade
e á ignominia?
A educação deve fazer-se pratica e positiva, deve
tornar-se um preventivo efficaz contra os maus conselhos da pobreza ou
da preguiça!
Os que pensarem n'isto farão um bem á familia, e
á
sociedade.
CAPITULO XV
I
São ellas a alegria da familia, como a familia é
a suprema ventura dos felizes, e o supremo consolo dos
desgraçados.
Quando apparecem trazem comsigo o sol; tudo se illumina.
Sorriem os labios mais ironicos, marejam-se de lagrimas doces os olhos
mais aridos, estendem-se prodigas de bençães as
mãos mais avaras.
Ellas são a graça que se ignora, a fraqueza que
nenhum
poder assusta, a innocencia que interroga, a aurora intellectual que
desponta e que diffunde em torno de si uma luz cariciosa e limpida, uma
luz que se reflecte em jubilos no coração das
mães.
Tudo na vida é para ellas mysterio, mysterio que as chama e
as attrahe, cujas trevas as não apavoram,
[240]
em cujos sinistros meandros nem sequer
receiam perder-se.
Em cada um d'aquelles pequeninos cerebros encerra-se em germen tudo que
é no homem pequenez ou grandeza, genio ou mediocridade,
força ou impotencia, virtude,
abnegação,
esquecimento de si ou
egoismo, vicio e crime.
Onde ha maior mysterio do que a creança?
Debalde a interrogamos; não sabe responder, senão
áquelles que pelo poder da sympathia logram identificar-se
com ella.
Recebel-a das mãos de Deus é para a mulher, para
a mãe a mais tremenda das responsabilidades, e
desgraçadamente aquella de que tem a consciencia menos
definida e menos clara!
Ser mãe, quem o não é?
A difficuldade e o segredo é saber sel-o.
Na sociedade, tal como ella está constituida e
continuará a estar por largos e dilatados annos, dous entes,
um
homem e uma mulher, moços ambos, encontram-se, olham-se,
sorriem-se e pensam de si para comsigo que estão
apaixonados.
Durante alguns dias, alguns mezes, a que elles em falsa e sentimental
linguagem chamam
seculos, repetem
[241]
um ao outro, n'um tom mais ou menos
desafinado os
duettos de ternura doentia que os
romancistas, os prosadores e os
maestros
inventaram
para conveniencia sua... dos seus emprezarios e editores, e para
envenenamento do resto da humanidade.
N'este meio tempo, por detraz dos bastidores, os paes, que fingem
não
ver
nada, calculam
in
petto quaes os prós e os contras pecuniarios do
matrimonio hypothetico.
Se os primeiros levam certa vantagem aos segundos, celebra-se com a
devida pompa o almejado consorcio, e n'essa noite ha mais dois
desconhecidos, dois indifferentes, dois estranhos acorrentados um ao
outro por um laço que devia ser sagrado, e que muitas vezes
consegue sómente ser... dourado!
O marido no outro dia vae para as suas labutações
do costume, para a vida exterior que o reclama e absorve, a mulher fica
em casa provando os vestidos do enxoval, experimentando se lhe fica bem
a touca, distinctivo invejavel das noivas, ensaiando os seus primeiros
vôos timidos de senhora independente, que póde
á sua vontade fechar o piano, atirar fóra o lapis
e as
tintas,
deixar para um canto a costura e o bordado, e subverter-se sem receio
das censuras maternas no
dolce
far niente, que tanto a namorava em seus dias de educanda
submissa.
[242]
D'alli a um anno, se é boa, docil, se tem a
intuição das cousas delicadas, se um poderoso
instincto
de creatura amoravel lhe pede que espalhe em volta de si a felicidade,
concedamos-lhe que já tem tido tempo de conhecer e apreciar
seu
marido, que principia a estimal-o, que se lembra um poucochinho
envergonhada dos falsos lyrismos de solteira, das cartas que lhe
escrevia
fazendo estylo
e copiando phrases
dos grandes apaixonados que a lenda e o romance immortalisam; que tem,
emfim, ainda incompleta, mas já accentuada a
noção
da verdade e da justiça que ha
de guiar-lhe a vida.
Param, porém, aqui os seus conhecimentos, e um dia,
surpreza,
encantada, extactica, chorando de alegria, umas lagrimas verdadeiras,
d'estas que se escoam entre risos de gratidão, percebe que
tem
nos braços um pequenino ser, a quem tem direito de chamar
filho,
porque o gerou no seio em longos mezes de agonia insondavel.
Que ha de fazer d'elle? Como ha de desenvolver, robustecer, cultivar a
saude d'aquelle entezinho, fragil e indefezo, que lhe solta no
regaço os seus primeiros vagidos, buscando com a boquinha
faminta e o instincto animal, que Deus concede a todos os seres
creados, a primeira gotta do leite materno, que é a sua
vida?
[243]
Entram as amigas e dizem-lhe em côro:
―Não o cries que perdes a formosura, o viço, a
mocidade, tudo o que prende e captiva teu marido.
―Não o cries, que tens de te despedir dos bailes, das
noites
triumphantes em que a valsa nos arrebata nos circulos vertiginosos, em
que as flôres e as finas essencias nos embriagam com o
perfume
enervante, em que a musica nos côa nos sentidos as suas
caricias
languidas, em que a luz crúa do gaz nos beija as espaduas
opalinas, em que a admiração dos homens nos
envolve na
audaz provocação dos seus olhares, em
que a inveja das mulheres nos enrosca em espiraes de cobra.
―Não o cries, que terás de perder as noutes,
não entre alegrias e folgares, mas na alcova, onde a medo
bruxoleia a luz mortiça da lamparina, junto de um pequeno
berço, ouvindo aquelle choro da infancia,
tão doloroso para os ouvidos maternaes.
Teu marido fugirá de ti; elle, que anda cansado da faina
diaria,
quer as noutes tranquillas, os somnos fartos, as placidas madrugadas;
repugnam-lhe os primeiros trabalhos que a creança tem que
dar
por força á mãe, que fôr
mãe, na
accepção plena da palavra.
Não creio que a maior parte das mulheres ouça os
funestos
e corrosivos conselhos das amigas falsas; hoje começa a
radicar-se em todos os espiritos a convicção
[244]
justa e sensata de que só a mãe, quando
é robusta, ou quando é simplesmente
sã, deve amamentar o filho.
Entregal-o aos braços mercenarios de mulher estranha
é aceitar a mais tremenda das responsabilidades.
A ama póde communicar no leite os seus vicios, os seus
instinctos maus, as suas doenças ou defeitos de
organisação hereditaria, toda a
herança fatal de um passado inteiramente desconhecido para
as
pessoas que tão levianamente lhe confiam o que devia ser o
mais
precioso thesouro da sua alma.
Abstraiamos, pois, a ama, por não querermos suppôr
que se trata aqui de uma mãe frivola até ao
crime, despiedosa até á ferocidade, ou fraca a
ponto de não poder cumprir os deveres da sua
missão
maternal.
Fica-nos simplesmente a mãe inexperiente e ignorante em face
da
recem-nascida creatura, flôr que precisa o mais desvelado
cultivo, a mais complexa das educações.
Não a accusemos ao vel-a aceitar o seu mimoso fardo com
tão leviana confiança, com uma
tão plena inconsciencia da grande missão que
precisa de cumprir.
A culpa não é d'ella; n'este ponto ha um
criminoso apenas―é o homem.
[245]
Abrem-se universidades, lyceus, escolas, seminarios, institutos
scientificos, para educarem no seu seio os jurisconsultos, os medicos,
os sacerdotes, os mathematicos, os commerciantes, os sabios, os
cidadãos do futuro.
Só falta uma escola, a primeira, a mais indispensavel das
escolas, a que facilitaria e tornaria fructiferos os trabalhos das
outras: falta a
escola das
mães!
Ninguem se lembrou ainda de a crear, julgam-na desnecessaria, ou talvez
que a julguem frivola.
―Como é que se ha de ensinar a ser mãe?
é só a natureza que instrue a mulher. Ha
mães de
quinze annos que sabem mais n'este assumpto do que velhos pensadores de
sessenta. Deixae obrar a natureza, é ella a grande mestra, a
suprema inspiradora!
De accordo, meus senhores; quem é que nunca se lembrou de
negar
á mãe o seu divino instincto de
protecção e de ternura? Quem ao vel-a segurar com
tão delicado carinho o tenro corpo do filho, acalental-o nos
braços, adivinhar-lhe as necessidades e os desejos
até para elle indistinctos, negará que entre
esses dous
entes ha uma cadeia mysteriosa, que a natureza nunca poderá
mais
desatar?
Mas é necessario que o estudo auxilie o maravilhoso
instincto,
que elle ensine á mãe a comprehender no seu
triplice aspecto, physico, moral e intellectual,
[246]
a educação do ser complexo, que hoje é
uma fraqueza que implora auxilio e ajuda, que
ámanhã
será uma força util ou funesta, conforme a
direcção que haja recebido desde os mais tenros
annos.
O estudo que comprehende todos os outros estudos, e que deve,
portanto, constituir o ponto culminante da
instrucção,
é a theoria e a pratica da
educação da infancia.
Estas palavras de Herbert Spencer, o philosopho mais notavel da moderna
Inglaterra, um grande pensador, um chefe de escola, provam de sobejo
até que ponto, aos olhos do homem que medita, avulta hoje o
grande problema da educação.
É um erro imaginar que a creança nasce boa.
Ha n'ella instinctos innatos de natureza selvagem, instinctos
primitivos, que só uma habil cultura modifica, transforma,
encaminha ou desarreiga.
Toda a creança é curiosa: mães
aproveitae essa grande força, que conduz o homem
á conquista de
todas as grandes descobertas da sciencia e da arte, e que
póde quando entregue a si conduzir a creança
ao mais deploravel e mesquinho dos vicios de caracter, á
curiosidade esteril do ocioso, da
senhora
visinha.
A creança tem o instincto do roubo. Apossa-se do que
[247]
vê, do que attrahe pelo brilho, do
que lhe desafia a cubiça, a gulodice, o amor da posse.
Leitora, quando o teu pequenino de tres ou quatro annos tiver artes de
te roubar uma joia muito querida, um manjar muito reservado, um
bibelot qualquer, que seja para ti de grande
estimação, não
chores desconsolada, lendo n'esse primeiro symptoma sinistras
prophecias. Esse prenuncio de ambição desregrada
póde, dirigido com previdente vigilancia, transformar-se na
legitima energia que leva o homem a desejar a posse das riquezas
honestamente adquiridas, a exercer no seu espirito uma influencia
fortificante, a tornal-o pertinaz no caminhar para um ficto que de
longe antevio.
Dirigir toda e qualquer tendencia para um fim elevado e util, combater
a inercia, a preguiça physica e intellectual da
creança,
empregando activos reagentes, ir ajudando lenta e gradualmente a
evolução
natural do entendimento infantil, abrir-lhe o espirito a todas as
curiosidades sãs, apontar para a natureza inteira como para
um
livro enorme, mysterioso, cheio de apaixonado interesse, de peripecias
dramaticas, de imagens vistosas, que elle ha de ir decorando a pouco e
pouco, conduzil-o até ao limiar da adolescencia, puro de
coração, immaculado no corpo, prompto e apto para
absorver em si os conhecimentos complexos que o esperam, robusto,
são, energico, confiante, cheio de crença
[248]
nos outros, e de
crença maior em si, eis a missão
das mães. Que de cousas não são
indispensaveis para a saber cumprir!
Uma das cousas que a mulher quasi geralmente ignora
é a
hygiene pratica, que ella tanto precisava saber, tendo, como tem, a seu
cargo a
distribuição e direcção do
alimento da
familia.
Do alimento que se ministra á creança depende em
grande parte não só a sua futura saude, mas, o
que poucas mulheres sabem,―o seu caracter futuro!
Dae a uma creança alimentos irritantes, inflammaveis,
apimentados; deixae-a usar sem discernimento de bebidas em que o alcool
predomine, e tereis o temperamento adulterado, o caracter azedo, os
habitos baixos, os gostos perversos, todas as
aberrações
de um organismo estragado.
Dae-lhe só carne, alimentae-a brutalmente de materias
fortemente
azotadas, e fareis d'ella, da meiga e fragil creatura, do pequeno anjo
de cabellos louros e olhos innocentes, um temperamento sanguinario,
selvagem, amigo das luctas bravias, das
distracções
violentas, dos exercicios athleticos, que caracterisam as rigorosas
raças do norte.
Exemplo: os inglezes, que só domam as revoltas
[249]
brutaes do temperamento com a forte
disciplina de uma educação que é o
supremo
milagre do espirito sobre a materia.
A alimentação fraca produz os organismos inertes,
fleugmaticos, sem impulso, sem fibra, sem energia duravel.
Saber pois, conhecer os diversos attributos que caracterisam a
alimentação do homem, saber
combinal-os de modo que todos concorram para o seu bem-estar physico, e
que nenhum produza as graves
perturbações organicas de que podem ser origem,
é
a sciencia das mães, sciencia para cujo estudo devem tender
todos os seus esforços.
A actividade quasi incessante da creança é um dos
meios
que mais efficazmente concorrem para o seu crescimento physico e, por
consequencia, para o seu desenvolvimento intellectual.
As mães, julgando fazer n'isto um grande serviço
a seus
filhos, combatem por todos os modos esta actividade, obrigando as
creanças a uma quietação
que se transforma em supplicio para os pequeninos corpos
buliçosos, que um impulso involuntario leva a um quasi
continuo movimento.
[250]
Não é só com as
reprehensões, ás vezes asperas e sempre injustas,
não é só encerrando
os pobres seres pequeninos em espaço muito estreito para os
seus
desejos, é tambem vestindo-os para obedecer ao despotismo da
moda, e ás exigencias da propria vaidade de um modo que
está em pleno contraste com a idéa
que todo o espirito um pouco sensato deve formar das
aspirações e necessidades da infancia!
A creança, que quer e que precisa de correr no
espaço
amplo, pelas ruas pedregosas, pelos campos lavrados, pela matta cheia
de raizes, traz quasi sempre uma botina alta, justa, de salto levantado
e estreito! Ella, que aspira aos movimentos livres, que se compraz nos
grandes gestos, que trepa
ás arvores, que se roja pelo
chão, que atira ao longe os improvisados projectis que
encontra,
sente-se cruelmente cingida por um fato rico, elegante, phantasioso,
caro por força, e que tem o defeito duplo e contradictorio
de a
entristecer lentamente, inconscientemente pelas censuras e ralhos de
que lhe é motivo incessante―visto que
não ha nada mais avarento do que a prodigalidade e nada mais
economico do que a ostentação―e de a tornar
vaidosa pelo habito e pelo gosto de attrahir as vistas dos frivolos, e
a inveja dos pobres, dos pequenos rotos, dos miseraveis de cinco annos,
que ignoram as alegrias bemditas da sua liberdade indomada!
[251]
Mães, arrancae ao vestuario dos vossos filhos tudo que
fôr vaidade, falso luxo, ostentação
ridicula!
A graça das creanças consiste na plena
expansão da sua vitalidade; o luxo d'ellas está
no doce
aroma de infancia que de si exhalam, e que falla de aceio, de pureza,
de carinho materno, que revela―aos que sabem ver―as matinaes e
frescas alegrias do banho, as risadas crystallinas como perolas que se
desfiam, os gritinhos infantis, as fugidas subitas, todo esse poema,
que ninguem traduz, de um bando de pequeninos corpos, feitos de leite e
rosas, com cabelleiras louras por aureola, que uns braços
amorosos amparam, susteem, acariciam, em quanto que um sorriso meigo e
pensativo illumina em clarões de limpidez ideal, uma bocca
que
só sabe abençoar, uns olhos
de mãe, que nunca desamparam nem desfitam o tepido ninho das
suas doces aves implumes.
II
Por muito tempo todas as attenções do homem se
fixaram
n'um ponto que se avistava para além da vida terrestre.
[252]
Curava-se sómente da alma considerando a terra morada
transitoria, cheia de males e de miserias, e o corpo ephemero
involucro, especie de lodoso carcere onde o espirito prisioneiro
anciava por levantar o vôo para as altas espheras da eterna
bemaventurança.
Este pensamento, que dominava todos os outros e ao qual todos os outros
se subordinavam, é a causa suprema de onde deriva toda a
philosophia da edade média, e que determina o ideal a que
tenderam os sonhos de milhares de gerações,
nossas
predecessoras na vida.
Foi elle que estabeleceu o medonho antagonismo entre o espirito e a
materia, causa de tantos erros e de tão falsas
interpretações; foi elle
que levou o homem perdido e transviado a considerar a natureza como a
sua mais cruel inimiga, como a sua
tentação mais perigosa e abominavel.
D'esta guerra anti-humana e anti-natural nenhuma conquista verdadeira
poderia provir.
Era falso o ponto de vista de que o homem partia, falsissimas todas as
deducções que d'esse ponto de vista resultavam.
O corpo era um farrapo miseravel que só merecia desprezo e
humilhação; todo o prazer, ainda o
mais natural era um peccado que cumpria expiar cruelmente;
[253]
a vida era um periodo curto de
passagem e penitencia; a creança nascida já vinha
contaminada do peccado original; a alma, só a alma precisava
dos nossos cuidados, das nossas meditações, do
nosso
mais especial e esmerado cultivo!
Quantos erros de educação, de moralidade e de
hygiene!
Quantas revoltas medonhas este despotismo espiritual não
excitava!
Mas foi por acaso esse tempo de pura espiritualidade?
Pelo contrario!
Nunca os instinctos maus do homem imperaram com mais violencia! Nunca
se materialisaram mais todos os cultos e todas as idéas!
O Deus que todos adoravam em extasis apaixonados, era o Christo
dolorido, cadaverico, crivado de pregos, escorrendo sangue de cada uma
das suas chagas abertas.
A dôr maternal era symbolisada por sete espadas atravessando
um coração dilacerado.
Os fanaticos mostravam á admiração das
turbas os estygmas sangrentos das suas carnes palpitantes.
Os ascetas tinham visões nas quaes o Padre Eterno, o
Christo, a
Virgem, os Santos, lhes appareciam sob a fórma humana, com
feições diversas e caracteristicamente
[254]
accentuadas, fallando na linguagem mais correntia e mais
chã.
A
resurreição da
carne era um dos pontos fundamentaes do dogma catholico. O
espiritualismo d'essas éras barbaras era muito mais
material do que a sciencia de hoje.
―Para que aperfeiçoarmos e amenisarmos a vida,―diziam do
alto
dos seus pulpitos ou nas paginas dos seus tractados as
terriveis
authoridades d'essas éras tão hostis para o
homem.―Quanto maiores supplicios houvermos padecido n'este momento
rapido, maior quinhão de gloria tem para nós a
eternidade. Sofframos todas as humilhações mais
abjectas,
curvemo-nos diante de todas as tyrannias, deixemos que os vermes
devorem o nosso corpo ulcerado, sejamos grandes em face do Senhor, como
Job na sua gloriosa estrumeira. Os que forem ultimos cá em
baixo, serão os primeiros no céu!
E a humanidade, ébria de um sonho de beatitude immortal,
perdia
a força para combater, e esperava passivamente a
resurreição esplendida que os
illuminados lhe promettiam!
Oh! quanto devemos á robustez de espirito, á
fé fecunda e creadora que moveu alguns homens privilegiados
a
fazerem-nos sahir d'esse marasmo estagnador!
[255]
Foram esses homens os verdadeiros creadores da sciencia, que hoje
illumina até os mais ignorantes, dos bens que hoje
desfructam
até os mais desgraçados.
Um dos problemas resolvidos pelos modernos, e que se não
fossem
esses benemeritos de que acima fallamos ficaria para sempre obscuro,
é o problema da educação.
Segundo o ponto de vista da edade média, a mãe
não devia attender senão á alma de seu
filho.
Era preciso fazer d'elle um santo, e as mais das vezes só se
fazia um bandido.
E que o alvo a que se tendia era estupido e anti-natural e os meios de
que se usava eram inteiramente contraproducentes.
Hoje a mãe já não tem desculpa nem da
sua ignorancia propria, nem da ignorancia da sua época.
Se não sabe é porque não quer saber.
O homem moderno tem applicado grande parcella da sua prodigiosa
actividade em descobrir os meios mais efficazes de fazer as
gerações que vão seguir-se-lhe
melhores do que as
gerações que o precederam.
Está pacificada a guerra que se havia travado entre a alma e
o corpo.
[256]
Mais ainda; hoje comprehende-se perfeitamente que é da saude
do
corpo que depende a saude da alma, e que os maus são quasi
sempre os enfermos ou os defeituosos.
O caminho das boas mães está naturalmente
traçado.
Não poupar esforços para aperfeiçoar e
robustecer o corpinho querido, dentro do qual está crescendo
e desabrochando a flôr maravilhosa, a flôr
delicadissima, que é a alma infantil.
Poucas pessoas comprehendem a fundo qual seja a responsabilidade de
ser mãe.
Não a póde haver mais seria e mais tremenda.
Desde que a creança nasce até ao segundo periodo
da sua vida, em que ella já começa a ser
susceptivel de ensino, quantos cuidados multiplos, engenhosos,
delicados e constantes!
Um movimento menos suave, um golpe de ar quando a creança
está no banho, um abafo excessivo ou uma imprudente e rapida
mudança de habitos, qualquer pequena cousa que á
primeira
vista parece insignificante, póde ter um alcance enorme no
futuro do querido entezinho.
Sabemos de uma creança que ficou cega, porque estabeleceram
uma
corrente de ar no quarto em que ella tomava um banho tepido.
[257]
Conhecemos uma pobre mulher, que tem padecido toda a vida cruelmente,
que nunca pôde trabalhar, nem ser util a ninguem, porque a
tornou
rachitica uma quéda que a fizeram dar brincando com ella em
pequena.
Ha muita gente que se diverte estupidamente atirando as
creanças
ao ar, fazendo-as dar voltas, abalando-lhes o pequeno cerebro.
Quem póde dizer os resultados fataes para o seu organismo
que d'ahi resultam!
A creança é tudo que ha de mais fragil e de mais
delicado.
Pensem bem todas as mães que um erro de hygiene
póde ás vezes fazer de uma indole pacifica uma
indole perversa.
A alma e o corpo, os dous irreconciliaveis, inimigos de outro tempo,
estão hoje para todos os olhos
tão estreitamente unidos, tão profundamente
identificados, que não ha abalo ou
sensação que um
experimente e de que o outro deixe de resentir-se logo.
Pensam muitas mães que o melhor meio de emendarem os erros
de
seus filhos, são os ralhos repetidos e os castigos severos.
[258]
Engano perfeito!
O unico meio de educação verdadeiramente proficuo
é o exemplo.
Que encargo de almas não assume a mulher que quizer ser boa
mãe!
A mais doce e a mais tocante relação reciproca
que existe entre a mãe e o filho, é aquella em
virtude da qual a mãe educando-se educa, e o filho sendo
ensinado ensina.
Emquanto ensinamos os nossos filhos, a nós proprias nos
estamos illustrando.
Pensando nas virtudes que elles devem adquirir e no meio de lh'as
inocularmos no coração, como que
se nos vão lentamente revelando todas as bellezas
incomparaveis
d'este mundo moral, de cuja contemplação
andavamos, senão alheiadas, ao menos distrahidas.
Oh! de quantos rasgos bons não é origem para a
mãe, o receio de vêr traduzir-se um espanto
accusador nos olhos limpidos de seu filho.
E depois é necessario que todas as educadoras pensem muito
n'esta verdade tão simples e tão lucida.
O exemplo, é que ensina, guia e robustece a alma e educa o
espirito.
Que importa que ella pregue e ensine as boas palavras, e a brandura do
caracter, se ella não provar
[259]
com o seu exemplo de todos os dias a
divina graça d'estas qualidades e d'estes usos?
A creança obedecerá talvez, mas sem convencimento
e sem alma!
Para que todas as bençãos de Deus chovam sobre a
cabeça das que sabem ser boas mães, nem esta
benção suprema lhes faltou.
Ao contacto divino da infancia, na doce intimidade da innocencia,
perdem defeitos e ganham virtudes.
A educação bem comprehendida é
tão util á mãe como á
creança.
Imagine-se uma creatura fraca, indolente, tendo sido de pequena
criminosamente amimada, mas ao mesmo tempo possuidora de claro e
perspicaz entendimento.
Tem habitos inveterados de preguiça, tem horas desoladoras
de
tedio e de morbida melancolia. O tempo para ella é pesado e
longo.
Vive, não
gosando as
horas porém
matando-as como
póde.
Não se occupa, não reage contra o seu natural e
funesto
prostramento, não tem um fim util e querido para o qual
viva.
Um dia esta creatura infeliz é mãe!
[260]
Comprehende toda a responsabilidade que lhe cahiu sobre os hombros, e
como no fim de contas é intelligente e boa, quer cumprir
dignamente a sua sagrada missão.
Como é milagrosa e abençoada a influencia que
n'este caso
a creança innocente exerce no caracter de sua
mãe.
Acabaram-se as longas scismas dolentes, as doentias tristezas, os
inuteis desalentos! É preciso que ella ensine a viver
á
fragil creaturinha que Deus confiou aos seus braços.
Quantas d'estas redempções se não
devem á infancia! Quantas vezes a mão
inconsciente de um
pequeno ser de dous ou tres annos não tem redimido
os
erros de seus paes!
Lembra-nos, a proposito d'isto, uma poesia deliciosa que
lêmos ha muitos annos, e cuja idéa
é esta.
Duas desgraçadas creaturas, d'estas que a miseria prende
ás vezes mutuamente por ephemeros laços,
arrastavam juntas uma vida angustiada e degradante.
Ella sem coragem, sem aceio, sem
actividade, sem aquella força que ao mais negro
albergue póde dar
a mysteriosa graça dos ninhos;
elle, ocioso, cruel, covarde diante da
desgraça e
diante do trabalho, ébrio
[261]
ás vezes, d'aquella selvagem
embriaguez da aguardente e do absintho.
Porque se conservaram unidos?
Nem elles proprios o sabiam.
Poder do habito, abjecto marasmo das supremas
degradações.
Um dia, n'aquelle antro miseravel, soou o vagido de uma
creança.
Não se admirem.
Tambem ás vezes das podridões de uma sepultura
desabrocha uma rosa de maio.
Quando á noite o homem voltou de suas
divagações sem rumo, a pobre mulher prostrada nas
palhas apodrecidas da enxerga, perguntou-lhe espantada:
―Porque me não bates? porque me não ralhas? quem
é que suspendeu o insulto da tua bocca, e os golpes dos teus
braços?
E elle, o homem perdido e brutal, respondeu baixinho com um
enternecimento desconhecido na voz rouca:
―
Tenho medo de acordar o pequenino.
―
J'ai peur de réveiller
l'enfant.
Oh! creanças, creanças, como isto revela bem o
poder
divino que é tão vosso!
[262]
Tenho fallado muito ás mães n'este assumpto.
Nunca me cansarei de lhes repetir que se entreguem bem do intimo d'alma
á educação dos
seus filhos!
É que não ha creanças más,
como não ha homens perversos.
Ha creanças mal educadas e ha homens pervertidos.
Na educação que as creanças recebem
dominam ainda perigosos preconceitos, e dizemos
perigosos, por que n'este grave assumpto todo o
erro é um perigo.
Apontemos alguns.
Toda a mãe ambiciona possuir um filho modelo.
Quer dizer, um menino muito direito, muito aprumado, que falla como um
livro, que sabe grammatica, maximas moraes, que repete versos
classicos, que nunca faz bulha, que tem gestos desdenhosos e
reprehensivos para a travessura dos outros, que nunca se esquece das
lições, que é emfim um
prodigio que todas as mães invejam, e
apontam como ideal a seus filhos menos privilegiados.
Esta classe de creanças póde dizer-se que
é a unica verdadeiramente antipathica.
Evitemos quanto possivel que os nossos filhos sejam
meninos
modelos.
Para evitar este resultado, é preciso não dar
excessiva
[263]
attenção ás graças
naturaes da creança, não a louvar de modo que
ella ouça, não a
forçar a estudos precoces, fazel-a brincar, correr dar-lhe
plena liberdade de movimentos e de impulsos.
Se a creança tem demasiada propensão para os
estudos mais
proprios de outra edade, cumpre distrahil-a, pôl-a em
contacto
com a natureza, ensinal-a a comprehender a alma
das cousas.
Nada melhor para
desenvolver o
espirito e o
coração das creanças do que a vida no
campo.
Plantas, arvores, animaes, os alegres trabalhos da lavoura, tudo que
desperta sans curiosidades no entendimento infantil.
Dae ao vosso filhinho um alegrete do jardim para elle tratar, dae-lhe
um animalzinho manso e inoffensivo a que elle se affeiçoe.
Ás vezes quando o nosso filhinho bate com a cabecinha no
chão, ou em qualquer movel da casa, vemos com
indifferença a criada que o trata bater tambem, fingindo-se
muito zangada, no objecto que sem culpa nem consciencia é a
causa da magoa que
afflige o
nosso pequeno
amor.
Este velho costume das aias e das mães pouco atiladas,
é um erro.
[264]
Torna a creança absurdamente vingativa.
D'ahi a bater ou a ter vontade de bater em quem a contraria,
não vae nada.
De cada idéa falsa se faz n'estes cerebros delicados e
impressionaveis o germen de um vicio ou de um defeito.
Quantas mães eu não tenho ouvido dizer: Meu filho
é tão teimoso! Meu filho é
tão guloso! Ou tão tagarella, ou tão
curioso!―ou tão colerico!
Mães, procurae bem no passado e achareis a semente d'isso
que hoje é planta damninha e venenosa.
Combater a teima, com a teima, a gulodice natural com a abstinencia
forçada, a cólera instinctiva, com os castigos
implacaveis, é pessima tactica.
O meio de levar uma creança a esquecer-se de que teimava,
é distrahir-lhe a
attenção para assumpto muito diverso d'aquelle
que a absorvia.
Quando uma creança é exageradamente gulosa, o
meio de a
emendar é leval-a a envergonhar-se do seu defeito, a
córar d'elle diante de si propria.
Nas cóleras a que todas as creanças
são mais ou menos sujeitas, o remedio mais efficaz
é uma brandura magoada.
[265]
Que a mãe deixe ver que os erros de seu filho a
não enfurecem, mas a fazem soffrer muito.
A creança ficará desarmada e moralisada.
Para ella a revelação subita de que foi causa de
grande
amargura para aquella a quem mais estremece, corresponde ao despertar
da consciencia e ao pungir do seu primeiro espinho!
Usemos na educação dos meios puramente moraes, e
não das degradantes correcções
physicas.
Acordemos por todos os modos imaginaveis o bom senso da
creança, e a impressionabilidade do seu ser moral.
Que ella conheça sempre o mal e o bem, não pelos
inconvenientes ou vantagens que d'estas duas cousas possam provir, mas
pelo que ellas valem, pelo que significam, pelo rebaixamento que uma
inclue em si, e pela essencia superior de que a outra é
feita.
III
N'este delicioso e querido assumpto da educação
infantil tudo está dito, e tudo está ainda por
dizer.
As regras geraes teem forçosamente de ser modificadas na sua
applicação a casos particulares; nenhuma
[266]
creança existe no mundo
que seja absolutamente egual a outra creança; é
ao espirito da mãe que pertence o gravissimo e
delicado encargo de corrigir, ampliar, alterar, restringir
as regras e os preceitos enunciados pelos
educadores e pelos moralistas.
O que é, pois, necessario antes de tudo, é levar
as mães a pensarem profundamente n'estas altas
questões, e a estudarem com pertinaz paciencia o caracter
das creanças cujos destinos teem de dirigir.
Conhecemos uma senhora, aliás muito boa e muito dedicada,
que, tendo cinco filhos, os educa a todos pelo mesmo systema.
Resultado inevitavel e fatal:
As creanças são todas deploravelmente educadas.
Ernesto Legouvé, distincto escriptor francez, que tem
consagrado
grande parte da sua vida a notaveis estudos sobre a sorte da mulher, e
sobre a
educação da creança, publicou ha mezes
um bello
livro que d'aqui recommendo a todas as minhas leitoras.
Intitula-se―
Nos filles et nos fils,
e contém uma serie de scenas e estudos de familia, muito
proprios para ampliar e esclarecer o coração e o
entendimento das mães em certos momentos criticos da sua
difficil missão.
Um d'esses trechos, e talvez um dos mais importantes, trata das
creanças e dos criados, da intimidade
[267]
forçada e muitas vezes
perigosa que entre elles se estabelece, e dos resultados nocivos que
d'essas relações resultam para a
educação.
Legouvé leu este trecho na
Academia
Franceza; por aqui se reconhece a sua importancia, a maneira
superior por que foi tratado.
Muitas mães desattendem na educação
dos seus filhos a questão gravissima dos criados.
Deixam que as creanças vivam n'um contacto muito intimo com
gente de tracto grosseiro, de comportamento equivoco, de linguagem
eivada de erros, de conversação baixa e
degradante.
Quantas mães eu não tenho ouvido dizer
ás suas filhinhas de quatro, cinco e oito annos:―
Vae
lá para dentro; deixa-me conversar?!
Imaginam ellas que para a creança nenhuma consequencia
má póde provir da sua intimidade com as criadas.
Enganam-se.
Antigamente, quando os domesticos faziam, por assim dizer, parte
integrante da familia, nasciam e morriam na casa, não havia
perigo em que as
creanças estivessem junto d'elles e com elles tagarellassem
e
brincassem.
O instincto d'essas boas creaturas, afinado na convivencia de pessoas
de educação elevada, fazia-lhes
[268]
comprehender que as creancinhas eram uns
seres sagrados e queridos, cuja intelligencia se não devia
macular nem de leve, cujos ouvidos tinham de ser escrupulosamente
respeitados.
Hoje, infelizmente, como já o dissemos, esse modo de
comprehender a vida de familia, modificou-se completamente.
Os nossos criados entram e sahem com uma rapidez e uma facilidade
incrivel; não criam raizes em parte alguma, e este viver de
párias no meio dos que teem lar e alegrias intimas e familia
e
tecto seu, desenvolve-lhes contra os amos uma estranha hostilidade.
Dizem mal por gosto, por necessidade, por um costume de classe.
Precisam de vingar-se, e vingam-se dos maus e dos bons, sem escrupulo e
sem remorso.
De cada casa d'onde sahem trazem os segredos, as
anecdotas mais
intimas, os incidentes comicos, os acontecimentos grotescos; e contam
tudo isto, uns aos outros, n'uma grande liberdade de palavras, de
apreciações e de commentarios.
Surprehenderam aqui um drama, alli um ridiculo, conhecem as miserias de
muito interior, os vicios que se fazem pobreza, e a pobreza que se faz
vicio.
Com o amor do pittoresco e do maravilhoso, que
[269]
ha sempre na alma do povo, dão
um colorido phantastico aos seus contos, que attrahe por
força a curiosidade da creança.
Imaginem-se uns ouvidos de cinco, de seis, de oito ou nove annos a
beberem essa deploravel sciencia!
E não se diga que a creança não
entende!
A creança tem o instincto da curiosidade desenvolvido n'um
extraordinario grau!
A creança entende quasi tudo, e d'aquillo que não
entende guarda a memoria até á
edade em que o mysterio lhe seja naturalmente explicado.
Não levar nunca para um caminho mau a curiosidade de uma
creança, deve ser um dos maiores cuidados da mãe.
Mas dir-me-hão: as pessoas crescidas conversam por
força
em mil assumptos melindrosos; se realmente as creanças
percebem,
como evitar que ouçam?
É n'isso positivamente que está o mal.
Na sala de uma senhora que tem filhos e que se compenetra absolutamente
dos seus deveres de mãe, deve haver o maximo escrupulo na
escolha das diversas conversações.
Assim como ha limpeza nas habitações, porque
não haverá limpeza nos espiritos?
Não ha tantos assumptos attrahentes de
conversação?
[270]
Será absolutamente preciso dizer mal, murmurar, revelar
indiscretamente mysterios alheios?
Não quer isto dizer que a humanidade se limite a um
puritanismo
de palavras, que degenerará por
força em hypocrisia; mas entre esse excesso ridiculo e a
liberdade absoluta que se usa diante das creanças, creio que
ha
um meio termo que seria facil de adoptar.
E depois, seja dito com toda a coragem: ou se é
mãe no
sentido completo e absoluto d'esta palavra ou se é mulher do
mundo.
Ou nos havemos de consagrar á companhia dos nossos filhos,
á sua educação, ao
desenvolvimento gradual das suas delicadas faculdades, á
vigilancia solicita das suas almas e dos seus corpos, ou havemos de dar
aos tenros espiritos de quem somos guias, o deploravel espectaculo das
fraquezas e dos defeitos que tanto lhes desejamos fazer evitar.
Na creanca do sexo feminino a tendencia que mais cedo se desenvolve
é a vaidade.
A pequenita de tres annos já começa a ter orgulho
e presumpção no seu vestidinho bordado, nas suas
saias de
folhos, no seu chapéu vistoso e garrido.
[271]
Todos se riem da
gracinha.
―Meu anjinho! Como é presumida! Diz a mãe toda
enlevada.
E gaba-a muito.―Estás linda! a minha filha é
muito
bonita. Fica-lhe tão bem este
vestido!
Mais tarde, d'ahi a quinze annos, quando a creancinha do outro tempo
é um rapariga delambida, arrebicada, cheia de appetites
luxuosos, de ambições
extravagantes, sonhando com um noivo
muito rico
que
lhe sacie todos os seus desejos de riqueza e de pomposa elegancia,
quando os homens serios e honestos olham para ella com desdem, e no seu
intimo a desprezam como uma boneca inutil e frivola, de quem
é a
culpa, digam-no sinceramente?
A culpa é de quem favoreceu, em vez de combater, esse pendor
funesto, tão natural á mulher, e que
só á
custa de muita reflexão ella
consegue vencer.
A culpa é da mãe, que teve orgulho dos defeitos
da sua filha, em vez de lidar por transformal-os em virtudes.
A mulher é vaidosa? Pois bem! se não podemos
destruir
esse vicio organico, demos-lhe ao menos um rumo diverso do que elle
leva.
Que, em vez de ter vaidade dos seus trapos e dos seus miseraveis
arrebiques, ella tenha vaidade de ser boa, laboriosa, honesta,
instruida e forte.
[272]
Façamos comprehender bem ao nosso anjinho de tres annos, que
é bem mais difficil e glorioso ser docil do que ter um
vestido
novo; que é muito mais digno de louvor saber ler do que
trazer
um chapéu de plumas.
Isto não é mais do que indicar o caminho.
Não ha mãe cujo instincto a não
advirta de que estamos fallando verdade.
Até a escolha da boneca é uma cousa importante!
Uma boneca esplendidamente vestida, de chapéu com flores, de
luvas e cabellos d'ouro annellados, inspira um certo assombro, e depois
uma certa inveja. Uma boneca de trapos, estupida, inerte e molle causa
desdem e antipathia.
Oh! a primeira boneca! que jubilo supremo que ella não deu a
todas nós! Comparavel á
alegria da primeira boneca, só a alegria do primeiro filho!
É a mesma hesitação em lhe tocarmos
com medo que ella se
quebre! o mesmo susto! a
mesma curiosidade! o mesmo enlevo! o mesmo espanto namorado e feliz!
A mãe intelligente comprehende e sabe aproveitar isto.
[273]
A boneca é como a aprendizagem da maternidade!
―Está nua, coitadinha, está nua a tua boneca,
Lili. Que
frio que ella deve ter! Que desconforto! Que pena de olhar para ti e de
te vêr tão bem
vestida e quente e confortavel. Senta-te aqui ao pé de mim,
Lili, vamos nós fazer o fatinho da tua boneca!
E como o coração é que sempre domina e
guia a mulher, eis o coração fazendo um milagre
n'aquella mulhersinha de oito annos, que deixa de ser a traquinas, a
turbulenta, a ociosa creaturinha, e que principia a conhecer as
delicias do trabalho e os santos prazeres do sacrificio.
O sacrificio por uma boneca!
Sim, o sacrificio, e porque não?
Só quem não é mãe e quem
nunca foi creança é que escarnecerá da
expressão que empregamos.
Pois não sabem que essa primeira boneca, que se recolhe nua
nos braços, e que se veste, que se
calça, que se conchega, que se adormece entre beijos e
affagos, é o primeiro sonho de um
coração de
mãe?
As amigas das nossas filhas!
Grave e momentoso assumpto, não raro descurado
[274]
e de cujo esquecimento ou de cujo
desleixo resultam ás vezes damnos irremediaveis.
No collegio é que se travam quasi sempre as primeiras
amizades. Ora, nós para as meninas desadoramos o collegio.
Por muito bom que elle seja, achamol-o sempre pessimo.
Quem é que nos responde pela boa escolha de
relações que alli adquirem nossas filhas?
Quem nos diz que essas creanças todas que alli se reunem, e
que
entre si trocam as mais intimas e minuciosas confidencias,
só
viram bons exemplos,
só conhecem quadros de santa e impeccavel moralidade?
Pois nenhuma d'ellas trará comsigo aquella funesta
curiosidade, que perdeu a nossa primeira mãe?
Todas são innocentes, todas ignoram da vida o que ella tem
de baixo ou de corrosivo?
Quem nos affirma que ellas saberão ser boas e honestas
companheiras, que não lançarão com uma
palavra imprudente um germen venenoso, que não
corromperão com precoce perversidade o espirito da
creança innocente, que n'ellas se confiar?
As amigas das nossas filhas são aquellas de quem logo depois
de
nós depende a pureza, a candura, a innocencia d'ellas!
É de uma grave imprudencia acceitar para uma
[275]
filha nossa, sem escolha e
sem criterio, a companhia de outra creança.
Cumpre conhecer bem a mãe, a educação
que ella dá aos seus filhos, o modo porque vivem, o
caracter, a moralidade d'essa familia.
E que as mães, n'este ponto, se não prendam com
preoccupações de banal delicadeza. Primeiro que
tudo está o futuro das suas filhas.
Se a educação de um rapaz é
já difficilima, que será a
educação de uma menina?
Quantos perigos a evitar, quantos obstaculos a temer, quantas
contrariedades em meio do caminho!
Que a mãe procure ser a melhor amiga de sua filha, e que
esta
não receie confiar-lhe nem os seus pequeninos segredos
infantis,
nem as mysteriosas comoções da sua alma
adolescente.
N'esta deploravel educação que hoje se
dá e se recebe, a primeira cousa de que os filhos tratam
é de enganar os paes.
De que provém isto? Da mal entendida severidade d'estes.
A indulgencia para as primeiras travessuras prepara naturalmente a
creança para se confiar sem medo ao
coração que a
sabe entender e lhe sabe
perdoar.
Mas é muito delicado este ponto da missão
maternal.
[276]
Se o excesso da severidade cria a desconfiança e a mentira,
o excesso da indulgencia cria o cynismo e a desvergonha.
Que difficil não é para um espirito de
mãe saber ao mesmo tempo attrahir a confiança e
impôr o
respeito!
Levar o filho que peccou a confessar a culpa, não por ter a
certeza de que será facilmente perdoado, mas por lhe exigir
a
consciencia que não esconda o seu delicto aos olhos
d'aquella
que sabe com mão delicada e firme repôr no caminho
direito
o ente fragil que se transviou.
No dia em que a mãe tiver alcançado do
coração de sua filha ou de seu filho esta
singular
conquista de veneração e de amor, póde
sentir-se
tranquilla e satisfeita, póde sem medo responder pelo
futuro.
Para concluirmos este capitulo que, talvez por muito incorrectamente
desenvolvido enfastiasse as leitoras, sem lograr a ventura de as
convencer, damos em seguida o fragmento de uma carta, que por
circumstancias que seria inutil referir, ha pouco tempo chegou
ás nossas mãos.
Como verão, pertence esse trecho a uma carta
[277]
que na vespera do seu casamento
foi dirigida á sua
filha por uma extremosa mãe.
Explica muito melhor do que nós o podemos fazer o triumpho
de um bom coração maternal.
«Não tive animo de te dizer todas estas cousas
frente a frente.
Tive medo de chorar, e tu sabes, meu anjo, que detésto acima
de tudo os enternecimentos intempestivos.
Depois, teria pejo, eu, tua mãe, eu que julgo ter concorrido
pelos cuidados de toda a vida para o excellente exito da minha
obra―quer dizer, da tua
educação―teria pejo de te encher de louvores que
embora
justos, recahiriam um pouco sobre mim.
Sabes que eu nunca te deixei, que por amor de ti renunciei, e de muito
boa vontade, á companhia dos indifferentes e dos frivolos,
que
só viriam destruir ou modificar o effeito de todos os meus
esforços,
tão santamente abençoados por Deus!
Com que saudades eu me lembro dos serões de outro tempo, em
que
tu já serena, grave e modesta como és hoje, lias
ao
pé de mim, emquanto os
nossos bons e velhos amigos conversavam em cousas sãs, em
cousas
simples, das que não podem ferir os ouvidos de uma menina!
Não te aconselho que renuncies ao mundo por
[278]
amor dos anjinhos que virão de
certo abençoar e consagrar o teu casamento; mas
peço-te
que sejas escrupulosa
como eu sempre fui na escolha d'aquelles que admittires na sagrada
intimidade do teu lar.
Procurei sempre evitar em ti todos os excessos, mesmo os excessos bons.
Não te quiz beata, nem
espirito forte; não desejei que fosses
uma
metaphysica, nem um entendimento demasiadamente positivo, nem mulher
só de sala, nem mulher exclusivamente do
ménage.
O ideal, minha filha, é que de tudo se saiba ser um pouco.
Gostarei que recebas com graça senhoril na tua saleta de
todos
os dias, artistica e confortavel, mas não desejarei menos
que
saibas ensinar a tua cozinheira, fazer o rol da tua roupa, concertar o
fato de teus filhos, e economisar sem mesquinhez e gastar sem avareza.
Não quiz nunca que tivesses outra amiga, e creio ter feito
bem.
Se foi egoismo, Deus não me castigou por elle, porque devi a
essa precaução, por ventura
excessiva, ter tido a deliciosa confidencia das tuas primeiras alegrias
e dos teus primeiros sonhos.
Ámanhã já não
serás minha, querido encanto; nem já
serão os meus beijos os unicos que a tua pura
[279]
testa de vinte annos
receberá! Mas n'esta saudade dilacerante que me punge,
quantas compensações
supremas eu não encontro!
Entrego-te ao teu noivo, tão candida, tão
ignorante do mal como deviam ser todas as creanças da tua
edade, que tivessem mãe, que só n'ellas
pensasse e só por ellas vivesse!
Nunca ouviste pronunciar uma palavra grosseira, nunca ouviste applaudir
um acto injusto, nunca se abaixaram os teus olhos seraphicos a um
espectaculo ignobil.
Eu fui sempre a tua fiel companheira; e, como as vestaes velavam o fogo
sagrado, velei eu pela tua immaculada innocencia!
De que ventura se privam as que preferem o mundo aos seus filhos!
Ignoram as alegrias profundas de ser mãe, como eu fui, como
tu serás, minha joia!
Não ha na tua alma um pensamento, uma idéa, uma
saudade,
que eu não conheça, e se
ámanhã quizer folhear diante de teu marido o
livro
radioso da tua infancia e da tua adolescencia, não haveria
n'elle uma só pagina que eu lhe não podesse
repetir de
cór.
Respondo pelo passado e respondo pelo futuro. Basta-me essa gloria para
me consolar de todas as minhas saudades!
[280]
É bem pezada n'este mundo a cruz das boas mães,
mas
não te esqueças nunca, minha filha, que mesmo
n'esta hora de tantas lagrimas, eu confesso bem alto, não ha
rosas mais frescas, mais puras e mais orvalhadas do que as rosas que
enfloram e entrelaçam essa cruz!
Só d'aqui a muitos annos comprehenderás a
angustia com que te digo―
adeus!
Então, sei que has de chorar por mim!»
CAPITULO XVI
Cartas de um marido
Meu caro amigo.
Onde é que fui desencantal-a? perguntas tu com justificado
espanto.
E tens razão.
O facto é que nunca a vi, valsando n'um baile á
luz
quente e abafadiça do gaz, decotada, cheia
de pó de arroz e de suor, abandonando-se n'uma postura
voluptuosa, nos braços de um sujeito esgrouviado, de casaca,
collarinhos de papelão, e olhar que tenta ser magnetisador e
irresistivel, e que depois de tamanhos esforços
não
consegue ser senão
comico.
Nunca a encontrei cantando n'um concerto duetos apaixonados em
beneficio dos meninos pobres, vendendo n'um bazar sorrisos de
dançarina e
bibelots de fancaria em beneficio dos velhinhos
aleijados, representando
[282]
n'um sarau dramatico, comediazinhas maliciosas em beneficio
dos adultos
cegos.
Frequentando os theatros de segunda ordem, onde os palhaços
e as
cocottes
de Offenbach, e dos modernissimos
maestrinos da
decadencia se
desengonsam em scena, fazendo gestos desmanchados e sublinhando com
sorrisos torpes as suas cantilenas de
café-concerto, debalde a procurei pelas
frisas, e pelos
camarotes, applaudindo as farçadas impuras, e dando
gargalhadas
que attrahissem a attenção e os maliciosos
commentarios
da platéa.
Nas noites de verão, no Passeio Publico, quando ha musica,
fogo
de artificio, muito calor e muito aperto, e as meninas burguezas que
ainda não podem gozar da
villeggiatura
elegante, passeiam
com
toilettes claras, na plena
expansão da
flirtation lisbonense, confesso que muitas vezes
atravessei a
multidão, pisado, empurrado, offegante, sem respeito pelas
caudas de seda, de
foulard, de linho
transparente, que para alli vão desfructar o prazer de se
encherem de poeira e de rasgões, e que debalde procurava
reconhecel-a em cada vulto feminino, esbelto, gracioso, que passava
pisando a areia das ruas, com o tacão alto das estreitas
botinas
de pellica.
Até comecei a frequentar S. Luiz, a igreja da
devoção fidalga, do arrependimento perfumado de
poudre
[283]
d'iris, do mais alto,
do mais distincto e do mais desdenhoso beaterio...
Vi todas as nossas flores da
alta
vida, trajando com
discrição finamente aristocratica, revelando
a elegancia que as distingue, no modo de se ajoelharem, de se
persignarem devotamente, de erguerem os olhos com extasi piedoso, para
a imagem alabastrina da Virgem, que parece erguer-se como um lyrio
desabrochado, d'entre as verduras e as brancas florescencias que a
cercam de todos os lados.
Vi-as descalçarem, das suas estreitas luvas de cinco
botões, as mãos esguias,
avelludadas, feitas da alvura dos marfins; vi-as curvarem-se
até
ao
chão, humilhadas, contritas,
mas sempre correctas; lerem uma
oração
privilegiada, em cada
um dos quatro ou
seis grossos volumes devotos que trazem comsigo, beijarem com felina
graça as mãos rechonchudas e macias dos
louros abbades francezes, disputarem entre si com delicadeza,
não
inteiramente isenta de colera, a sua vez de confissionario, e de
confidencias adocicadas e asceticas; mas nenhuma d'essas encantadoras
filhas de Eva, com os seus gestos miudos, os seus movimentos
ondeantes de serpente, as multiplas seducções da
sua
artificial formosura, me deu a idéa boa, sã,
carinhosa,
como um affago de mãe, que eu tivera vendo-a, a ella.
[284]
Escuso de accrescentar que
ella
não se encontrava entre essas todas.
Um dia porém,―que bom dia aquelle!―tornei a vel-a em casa
de uma amiga de minha mãe.
Não me pareceu bella, pareceu-me boa, mas de uma bondade em
que
a belleza não deixava de entrar, embora como elemento
secundario.
Estava com as suas amigas em volta de uma grande mesa de
serão. Largára um pequeno trabalho
da agulha, e começara a lêr alto a pedido de todas
as companheiras.
Lia um livro de Michelet,
L'insecte.
Tinha a voz grave, sonora, musical, como eu sempre imaginei que havia
de ser; a luz coada pelo globo fosco do alto candieiro, banhava de
vagos tons dourados o seu cabello simplesmente penteado, torcido n'um
grosso rolo luminoso sobre a nuca torneada e forte.
Não me lembro bem de como estava vestida, signal de que era
tão despretencioso o seu trajo que não prendia
nem
demorava a attenção.
Havia de ser por força bastante distincto para lhe
não
alterar
a graça; bastante singelo para não dar um aspecto
de artificio á sua natural e casta formosura.
Emquanto a ouvia ler, parecia-me comprehender melhor aquella grande
alma luminosa do velho Michelet.
[285]
E sentia em mim a vivificante sympathia da natureza, o amor dos
pequeninos, a ternura comprehensiva para tudo que vive, que sente, que
palpita na enorme Creação.
Quando acabou de ler, fechou o livro, e naturalmente, sem languidez,
sem cansaço, pegou de novo no trabalho, e
recomeçou a
bordar.
Aproveitei o ensejo e sentei-me n'uma cadeira vaga ao seu lado.
Conversámos muito. Em muita cousa, em quasi tudo.
Era um gosto ver de perto a luz tranquilla e doce d'aquelle olhar azul
escuro, reflectido, serio, innocente.
Não baixava os olhos deixando transparecer nas faces rubor
intempestivo; tinha um modo seu de olhar, franco, sincero, de uma
limpidez de lago suisso em que se reflectisse o largo céu da
primavera.
De vez em quando ria-se.
Que musica crystallina a do seu riso!
Uma das vezes lembra-me, que seguindo o falso pendor da nossa
detestavel educação de sala, fui
sentimental, sem dar por isso, de uma
sentimentalidade piegas, da que produz sempre um
certo effeito no espirito das meninas que
valsam.
Levantou subitamente a cabeça, como se ficasse um tanto
surprehendida, como se tivesse agourado melhor de mim, á
primeira vista.
[286]
Depois, não sei o quê, provavelmente a
expressão alambicada da minha cara, desafiou-lhe a vontade
de rir, uma vontade de rir irresistivel!
Coitadinha! Que bem educada que ella é!
Suffocou aquella boa hilaridade tão espontanea!
Disfarçou
perfeitamente o effeito comico que eu lhe produzira, isto com uma
graça, tão cheia de
infantilidade!
Castigou-me melhor assim, do que outra qualquer fingindo um enleio
theatral.
D'alli a nada, a dona da casa, uma senhora de aspecto muito distincto e
muito bondoso, veio pedir-lhe com grande empenho que fosse para o
piano.
Levantou-se docilmente, e tocou e cantou emquanto quizeram ouvil-a!
Era a simplicidade, a graça, a mais delicada
intuição artistica, isto acompanhando uma
vocação musical deveras notabilissima.
Nem uma só d'aquellas languidas arias italianas, de um
sentimentalismo tão dissolvente e que parecem banhar a alma
que
as escuta n'um tepido banho de caricias molles!
Musicas graves e de uma austera melancolia como as dos mestres
allemães; ou musicas graciosas, ligeiras, scintillantes,
inoculando no espirito uma
sensação de frescura matutina, de robusta
alegria, levando-nos
[287]
atraz das suas
notas de crystal, pelas pradarias illuminadas da luz das alvoradas
estivas, onde os melros maliciosos assobiam, saltando de ramo em ramo!
Quando sahi d'alli, d'aquella casa hospitaleira, em que o espirito
parecia dilatar-se affectuosamente, pensei de mim para mim que ella
havia de ser minha mulher!
...Sabes uma cousa? Temos um filho! Estas palavras a ti não
te
dizem nada, a mim banham-me o coração n'uma
alegria que
em lingua humana se
não póde exprimir.
A deliciosa canção da minha felicidade, canto-a
eu em
beijos chilreados, no corpinho roliço e avelludado, no
corpinho
de leite do meu primeiro pequenino!
Vivemos em um bairro pouco central, em uma rua muito socegada, onde
passam pouquissimos trens, e onde se não ouve o pregoar
rouquenho dos
vendilhões ambulantes.
O nosso orçamento é de uma exiguidade que faz
rir, mas
não sei porque minha mulher tem a habilidade de fazer render
da
maneira mais milagrosa os nossos modestissimos haveres.
Creio que se ámanhã me visse rico, não
podia ser tão feliz.
Se eu fosse rico, havia de ter criados, não é
verdade?
[288]
Criados graves,
solemnes, de olhar sonso, que vivessem da minha vida, que maculassem
com a sua ironia baixa as santas expansões do meu affecto de
marido e de pae, que invejassem a minha felicidade, que calumniassem as
minhas intenções, os meus
actos, a minha vida toda!
Ao jantar um ou dous d'aquelles figurões altos, espadaudos,
ociosos, vestidos de preto, haviam de espreitar com olhar guloso cada
bocado que eu mettesse na bôca; teria um cozinheiro gordo, de
barrete branco, que me fizesse molhos indigestos, uma criadinha de
quarto buliçosa, e petulante que se risse do
burguezismo pacato dos meus habitos.
Viveria escravo, preso nas malhas de ouro, d'esta grande rede que se
chama a riqueza.
Receberia muitas visitas, muita gente indifferente ou hostil, que
viesse para me bajular, e que se fosse embora para me morder
traiçoeiramente pelas costas.
Uma governante ingleza empavezada, grotesca, um pouco pedante, cortaria
na sua flôr, na querida alma transparente do meu pequeno
anjo, os
carinhos, as expansões innocentes, os risos inextinguiveis e
sem
causa, tudo que é hoje a nossa alegria!
E depois, habituado ao luxo não sentiria o conchego!
Satisfeitos até á saciedade todos os desejos,
[289]
não teria nunca a boa, a vivificante
sensação do obstaculo vencido!
E o socego depois do trabalho! E as alegrias da posse, quando o objecto
longo tempo cubiçado, para alcançar o qual se
fizeram
tantas economias, se supportaram tantas
privaçõesinhas,
nos apparece emfim em todo o prestigioso brilho do impossivel, que de
repente se deixa conquistar!
Ai! as minhas alegrias de pobre, que saudades que eu terei d'ellas mais
tarde!
Mas, meu querido A., não comeces tu agora a lamentar-me
imaginando-me novo monge entregue ás austeridades da
penitencia
voluntariamente acceita!
Não te disse eu que uma boa mulher que nos ame, e que nos
saiba
amar, é um thesouro inestimavel, que o homem desdenha, e que
por
isso, se tem feito tão raro?
A minha casa não tem estofos de seda, não tem
custosos
moveis de carvalho entalhado, não tem frageis porcellanas de
Saxe, de Sevres ou do Japão, não tem tapetes
turcos, nem
artisticos Gobelinos.
Mas olha que nem sempre o luxo é o conforto, nem sempre a
opulencia é a graça, nem sempre as
cousas caras são as cousas elegantes!
A nossa pequenina casa, toda forrada de papel claro, com as suas
cadeiras de
cretonne, as suas cortinas muito brancas, e vasos
de plantas em pequenas
[290]
estantes de madeira, e jarras de flôres na mesa de
jantar, com a luz clara e
festiva do sol, a illuminal-a toda, com o aceio escrupuloso que
é o luxo dos pobres, com a tranquilidade doce e recolhida,
que é a poesia dos que se amam e na qual põe a
espaços a nota clara e festiva o riso do nosso
filhinho, a nossa casa é
como que a deliciosa encardenação do
poema do nosso amor!
Todas as senhoras que eu conheço sahem muito; os maridos
voltam
á noite exangues das enfadonhas
labutações do dia, com o espirito abatido, com o
corpo
cansado e no entanto teem de seguil-as ao baile, ao theatro, a casa das
amigas, de figurarem de comparsas na fastidiosa comedia social, de se
mostrarem debaixo de um aspecto desfavoravel, de realizarem emfim
á risca o lendario typo que o
romantismo amarrou ao pelourinho do ridiculo, o
marido
macambuzio, o
marido desengraçado, o
marido sem espirito, em quanto á roda,
fresco,
malicioso, cheio de ditos e anecdotas, com uma rosa na abotoadura,
borboleteia o
galan que povôa de
perigosas seducções a fantasia de todas as pobres
mulheres frageis!
Minha mulher á noite sahe raras vezes, de modo que eu
durante o
dia, na atmosphera pesada e asphyxiante do escriptorio, estou sem
querer a scismar no conforto que me espera quando eu voltar.
[291]
O jantarinho quente, saboroso, cozinhado pela nossa velha Anna, debaixo
da direcção da minha querida Maria, a toalha
muito
branca, um ramo de lilazes no centro, as fructeiras de vidro com as
suas pyramides de fructas, sahindo do ninho fresco e avelludado das
folhas verdes, os talheres muito bem limpos, um grande
conchêgo
na atmosphera, e em tudo visiveis o gosto
d'ella,
os cuidados
d'ella, o affecto
d'ella
manifestando-se no bem-estar
que me envolve e me acaricia!
Depois, á noite, o gabinete com a mesa redonda no centro, o
candieiro de Carcel de luz clara e discreta, a poltrona de marroquim,
com os grandes braços abertos que me convidam, os jornaes do
dia, a ultima
Revista,
um romance novo, e a minha
querida mulhersinha, com um vestido que lhe fica muito bem e que andou
ella propria a fazer ás minhas escondidas―a ladina!―como
se eu
não tivesse olhos perspicazes que vêem de longe!
com os
seus longos cabellos louros penteados d'aquelle modo simples e
puramente artistico, que faz da cabeça de cada estatua grega
uma
cabeça encantadora, e sobretudo com o seu sorriso bom, o seu
olhar affectuoso e honesto, a sua voz consoladora que é uma
musica, a melhor das musicas para o meu coração!
Para além do reposteiro entre-aberto, vê-se a
alcova,
[292]
o berço de cortinados brancos, e á luz
branda da lamparina, sobre uma cadeira, um vestidinho claro, uns
pequenos sapatos, umas meiazinhas de côr, umas cousas para
que
ninguem repara, e que a mim me fazem ás vezes chorar.
Tenho já perguntado a mim mesmo, que differença
existe
entre mim e os outros homens, porque é que elles andam pelo
gremio, pelos cafés, pelos theatros, alguns pelas salas, e
porque estou eu tanto em casa, finda que seja a minha tarefa diaria?
Serei melhor do que os outros maridos?
Não; ella é que é melhor do que as
outras mulheres.
A felicidade de que eu gozo devo-a á sua
comprehensão tão santa dos deveres, e ao meu
egoismo todo masculino.
Vou para onde me chama maior somma de alegrias e de confortos que posso
conhecer n'este mundo.
Não ha n'isto merito nem dedicação
dignos de louvor.
Se á noite a nossa pequena sala se enchesse das amigas de
minha
mulher, palradeiras, frivolas, pueris, a discutirem banalidades,
é provavel que eu fugisse para qualquer outra parte.
Se quando chegasse a casa, a visse prompta para sahir, á
minha espera para me fazer envergar uma
[293]
terrivel casaca muito hostil, que me
acenasse de longe com as suas azas de gafanhoto, se ella me apparecesse
toda occupada de si, da sua
toilette, dos triumphos que ia ter, e esquecendo
completamente as exigencias mais prosaicas, do meu temperamento de
homem, da minha vida de trabalhador, com certeza que me chegaria a
minha hora de revolta, que o trabalho deixaria de ser o meio de que eu
me servisse para alcançar o bem estar dos meus, e que se
tornaria simplesmente uma tarefa exercida sem alma, sem alento
interior, só para que o mundo me não alcunhasse
de ocioso e de zangão da grande colmêa social.
Dos defeitos d'ella proviriam todos os meus defeitos, dos seus
esquecimentos, todas as minhas faltas.
Já vês quanto ganhei casando-me com esta querida e
nobre creatura.
Se me perguntares o que ella sabe, dir-te-hei que sabe tudo, e que a
sciencia toda lhe provém de uma só fonte―o
coração.
Comprehende Shakespeare e faz deliciosamente uma
omellete,
toca com o sentimento
mais fino e mais ideal, uma phantasia de Beethoven, e inventou um
systema engenhoso e abreviado de fazer o rol da lavadeira; adora as
flores, os versos, as creanças, os livros, tudo que
é bello, tudo que é bom na natureza, e de
manhã,
com a sua touquinha de cambraia branca,
[294]
o seu avental de merino, um
espanador de pennas
na
mão, pondo os moveis em
harmonia, tocando em todas as cousas, imprimindo em tudo o cunho da
symetria e da ordem, atarefada, sem distracção,
sem enfado, parece uma
spinster ingleza atacada
da
monomania do arranjo.
A brincar com o filho, na rua areada do nosso pequeno jardim,
dir-se-hia a sua irmã mais velha; na hora da
atribulação, na hora difficil em que de
um bom conselho depende ás vezes a dignidade de um homem,
lembra
um espirito austero, cheio de altivas
aspirações estoicas.
O contacto d'ella faz bons os que são maus, faz
robustos os que são fracos!
São estas as mulheres que salvam a honra e a felicidade dos
maridos.
Queres um conselho? Procura no mundo outra Maria como
é a minha e casa-te.
CAPITULO XVII
Confidencias maternaes
Minha querida amiga.
Ha quasi quatro mezes que te não escrevo, e supponho que
não estarás por isso mal comigo.
Não sei bem dizer-te como se passam os meus dias, e quando
ás onze horas da noite adormeço,
um poucochinho fatigada e deixando sempre para o dia seguinte parte da
tarefa d'aquelle dia, metto a mão na consciencia e sinto que
não commetti o delicto de desperdiçar um
só
instante.
E talvez que no fim de contas assim não seja.
Ouve-me tu, e julga.
Fez hontem um anno o meu querido
baby.
É louro, é rosado, tem uma cabelleira revolta e
crespa
que lembra uma aureola de anjo, ou uma juba de leão
pequenino, tem um corpo roliço, mimoso, redondinho
[296]
que parece
feito por uma fada muito habilidosa no seu torno de marfim.
Começa a andar, e os passos d'elle, desastrados e timidos
enchem-me a alma de um susto, de uma
inquietação, de uma delicia, de um
não
sei
quê profundamente novo na minha vida e que eu
não encontro palavras que exprimam bem!
Até aqui parecia-me que
elle era
eu, que fazia parte de mim, que nós
ambos formavamos um todo.
Agora percebo e com uma surpreza que ás vezes chega a ser
dolorosa! que me enganara, e que cada um d'aquelles passinhos hoje
tão miudos e tão
vacillantes, ámanhã apressados e firmes, o
irá
afastando
de mim na vida, se eu o não souber seguir, fazendo-me como
elle
pequena, como elle infantil, penetrando intimamente na sua alma e ao
mesmo tempo compenetrando-me bem de todas as doces claridades matutinas
que ha dentro d'aquelle espirito que vae desabrochar.
Não comprehendes bem esta iniciação
lenta, que no momento em que o corpo da mãe e o corpo do
filho
deixam de ser um só, faz uma só das duas almas de
ambos?
Visto que elle já não póde ser
eu, é preciso que eu seja
elle;
só assim lhe poderei ir inoculando na alma e
no entendimento, tudo que no meu entendimento
[297]
e na minha
alma houver de bom; só assim me poderei ir lentamente
transformando sob a influencia regeneradora e purificante d'aquella
immaculada innocencia!
Oh! divina transmissão mutua de virtudes e de
forças, que constitue o laço
moral e inquebrantavel que une a mãe ao filho das suas
doloridas entranhas!
Por ora nada tenho que ensinar ao meu louro
bébé.
Tenho só de escutar o que diz no silencio, aquella pequenina
alma em embryão, e de aprender a ler n'aquelle mysterioso
livro
que é indecifravel para todos e que é
tão
eloquente para mim.
Bébé tem uns grandes olhos; uns dizem que
são azues, outros dizem que não. Por ora
não tem
côr; ou para melhor dizer ha na sua limpidez de crystal todos
os
cambiantes e todos os reflexos. Os olhos de Bébé
são como a alma d'elle, teem a
doçura do leite que bebe, teem a suavidade dos beijos com
que o
visto noite e dia.
Scisma ás vezes vagamente... longamente... Em que?
Não ha
ninguem que o saiba dizer, visto que um coração
de
mãe o não
adivinha. Scisma no céu d'onde veio? Talvez. Ha mysterios de
luz
na alma profunda das creanças.
Gosta da claridade dos dias limpidos, das arvores, das côres
vivas, e tambem da opalina tristeza do luar.
[298]
Gosta dos sons, dos risos, das caricias,
é uma alma que vive em pleno azul.
Nenhuma sombra n'aquella tela transparente onde a mão de sua
mãe vae escrever as primeiras
palavras.
Muita gente imagina que ser mãe custa apenas as
dôres
dilacerantes de algumas horas, os incommodos mais ou menos crueis d'um
certo periodo, e depois os cuidados de doze ou treze mezes.
Quem pensa assim não sabe o que é ser
mãe!
Pois tu não ouviste que elle espera, e que a primeira
palavra
definida e clara que ha de vibrar na sua alma, sou eu que hei de
dizel-a, é a minha
mão tremula, fraca e inexperiente que ha de tornar-se firme
para
a gravar indelevelmente?
E se a voz esmorecer? E se a mão vacillar?
Quem me disse a mim que acertarei? quem me deu forças para
encaminhar um sêr que só de
mim ha de receber na terra o santo e a senha?
E depois quando o vejo tão lindo, querendo já
esboçar o primeiro capricho, querendo experimentar a
primeira
vontade, querendo vencer o primeiro obstaculo, pergunto a mim mesma se
terei valor sufficiente para lhe fazer perceber que a vida é
uma lucta, para se tanto fôr preciso, ser eu propria que
lucte
com elle, e que o ensine a ser vencido!
[299]
De quantas coragens mais que viris precisa de compor-se a fraqueza
maternal!
Mas nenhum d'estes vagos pensamentos que eu deixo aqui tão
mal expressos te diz quaes são as
occupações em que levo os meus dias!
Meu Deus! e olha que acordo cedo!
Ainda bem a cotovia não deixa ouvir a sua alegre voz
matinal,
ainda bem o gallo não atrôa os campos
com o seu grito estridulo de combate, que é um convite
impetuoso
para o trabalho, já a voz do meu filho me acorda tambem a
mim.
Que penna póde contar as delicias d'aquelle despertar! Os
risos,
as negaças, os beijos, e o modo malicioso com que elle
deitado
nos meus braços e depois de fartar as exigencias do
pequenino
estomago, larga o seio para me sorrir com os beicinhos tintos de leite,
e torna de novo a pegar-lhe para saborear voluptuosamente, lentamente o
que já não tem vontade de engulir com a avidez
deliciosamente glutona da infancia.
Vem depois o banho, o banho que é um poema!
Está alli a grande bacia de agua tepida, e emquanto o dispo,
elle salta e ri, e deita-se para traz e namora a transparencia da agua,
até ao instante em que mergulha emfim entre risadas de
crystal que me echoam no coração.
[300]
Tu sabes lá os cuidados, as manhas, as idéas
engenhosas que é necessario pôr em
pratica para
illudir a impaciencia d'estes seres adoraveis! O banho dura meia hora,
e acabo d'alli encharcada, despenteada, cançada,
triumphante.
É uma victoria de todos os dias.
O resto do dia pertence-lhe a elle quasi exclusivamente.
É um tyranno o meu
bébé.
Tenho de o passear, de lhe dar de comer, porque é preciso
que
saibas que o doutor vendo que elle
já tem oito dentes―carnivora creatura!―me deu
licença
emfim para lhe dar tres vezes ao dia a sua competente papinha, tenho
sobretudo de o entreter porque a imaginação
infantil que
desperta tem
exigencias de que tu não podes fazer idéa!
É
spleenetico como um
velho
lord o meu seraphim de palmo e meio de
altura.
Dá-se-lhe um brinquedo agora, recebe-o com uma apparencia de
enthusiasmo que illude os inexperientes; d'alli a um instante
põe-n'o de parte desdenhoso, enfastiado, insaciavel...
Quer ver sempre cousas novas, quer que o emballem, e lhe cantem e o
levantem ao ar e o façam rir.
Por'ora trata-se simplesmente de enganar aquella
[301]
actividade graciosa e irrequieta, mas
quando chegar o momento de a applicar?
Sabes uma cousa? sou felicissima e tenho muito mêdo...
Quatro annos depois.
Cinco annos! Sabes lá! Um homem, positivamente um homem!
É mau.
Deixa lá dizer que são boas as
creanças. Olha que é uma perfeita
illusão, minha querida.
Que bem se conhece n'elle já, o bravio animal que todos
nós somos!
Bébé
é um monstro!
No outro dia levei-o commigo a casa d'uma senhora minha amiga. Pois
imagina que elle matou com a sua espada de pau, a boneca de pellica e
semeas de Julia, uma pequenita de 3 annos, a filha mais nova da dona da
casa!
E como ella chorasse muito humilde, muito medrosa diante d'aquella
sanha terrivel, chegou a ameaçal-a―o
desgraçado!―com a
mesma espada de pau que já fizera tamanhos maleficios.
Chorei de pena de o ver tão mau, tão irascivel,
[302]
tão colerico, e elle o leão pequenino,
ajoelhou-se com as mãosinhas postas aos meus pés,
e gago,
cheio
de lagrimas, com os grandes olhos espavoridos,
disse-me―perdão
mamã!
Ó Magdalena, imagina tu a força de que eu
precisei para o não devorar de beijos! Pois não o
fiz!
Mostrei-lhe uma cara seria, magoada, cheia de
consternação e não o abracei em todo o
dia.
Ha de ser colerico, já vês.
Quem me ensinará a mim a corrigil-o?
Já sei o que me respondes.―Faze queixa ao pae. O pae que
lhe ralhe.
Deus me defenda de tal.
Em primeiro lugar o medo não corrige, humilha;
não modifica, rebaixa. Depois eu não quero
recorrer a ninguem para influenciar a alma de meu filho.
O pae ha de intervir sim senhor, porém mais tarde. Por'ora
é elle meu, só meu.
Toda a creança tem defeitos, e ai d'aquella que os
não tem! Arrenego das
creanças-modêlos.
Transformar esses defeitos―que são indicios caracteristicos
do temperamento da organisação, de qualidades
muitas vezes herdadas―em forças activas e fecundas, eis o
grande problema da educação.
E talvez tu cuides, minha pobre amiga, que as
gracinhas
de
bébé ficam por
aqui?
[303]
Pois ainda ha mais? exclamas tu assustada.
Sim, ha muito mais. Ha cousas que eu com a ajuda de Deus tenciono
aproveitar e dirigir para o futuro bem d'elle.
Bébé roubou!... imagina!
No outro dia desappareceram-me de cima de uma
etagére
da saleta umas
bugigangas de marfim que me tinham trazido de Macau; adivinha onde fui
dar com ellas?
No seu quarto dos
bonitos.
Não estavam escondidas, valha a verdade! estavam
impudicamente espalhadas ao sol, com uma
ostentação de cynismo deveras aterradora.
Não posso explicar bem o trabalho que tive para, sem polluir
aquella innocencia sagrada, lhe explicar que n'este mundo ha
meu
e
teu, e que a propriedade é um direito
inviolavel.
Como não ha nada mais difficil―para não dizer
impossivel―do que introduzir uma idéa abstracta na
cabeça d'uma creança, não imaginas de
quantos artificios e quantas manhas me valí.
Cheguei a
roubar-lhe tambem eu
propria, parte dos seus
bonitos.
Então é que era vel-o, sem se atrever a
condemnar-me, e no entanto sentindo revoltados, lá dentro da
sua alminha de cinco annos, todos os instinctos de justiça
[304]
que sempre mais tarde ou mais cêdo alli tinham de
manifestar-se.
―Tiveste muito pena de te tirarem os teus bonitos?
―Tive muita sim, mamã, respondeu todo sobresaltado e ainda
mal restabelecido do susto.
―Ora ainda bem! O
bébé agora
nunca mais tira nada a ninguem, ouviu?
―Ah! sim, e ficou-se instantes como que seguindo um trabalho que sem
elle mesmo querer se lhe ia fazendo lá dentro. Ah! sim,
é
muito feio tirar
ás pessoas o que ellas teem. Bébé
nunca mais
tira...
No outro dia a Guilhermina, a minha velha aia que tu conheces
perfeitamente, dizia-me consternadissima:
―Ninguem faz idéa de como o menino é
mentiroso. Inventa cousas que é de fazer tremer uma pessoa.
De feito, não ha nada mais prodigioso do que a phantasia de
bébé.
Conta os factos mais extraordinarios que nunca se deram, como se
tivesse assistido a elles. Da mais pequenina cousa deduz uma longa
historia falsa. Umas vezes encontrou na rua um homem muito feio que o
quiz levar comsigo; outras vezes mordeu-lhe um bicho, que elle parece
ter visto e que descreve com as côres mais vivas. Quando
está um pedaço longe de
[305]
mim vem narrar-me
assombrosos acontecimentos que se deram com elle, do mesmo modo quando
me deixa instantes, conta á Guilhermina uma infinidade de
pormenores que só existiram na sua
imaginação.
Como é que eu hei de conseguir subordinar a um principio de
exactidão e de verdade aquelle espirito iriado e
phantastico,
para o qual todas as cousas tomam uma fórma differente da
realidade?
Crear uma alma! que missão difficil, que missão
esmagadora.
No fim de contas as forças da natureza não
são boas nem más; da
applicação d'ellas
é que tudo depende.
Do meu anjinho, impetuoso cheio de ambições, de
curiosidades, de irrequieta alegria, de cubiças intuitivas,
de
energia vital, póde uma direcção
boa fazer um caracter nobre, viril, pertinaz, capaz de todas as luctas,
prompto para todos os combates, investigador, inventivo, cheio das
beneficas curiosidades do bem, e das ambições
generosas
que levantam e enobrecem.
E pensar, meu Deus, que mal dirigidas, todas estas qualidades, todas
estas forças, todas estas
manifestações de vida intensa, podem leval-o
á
perdição, á infamia, ao crime!..
Oh! meu Deus, dae-me vida e entendimento para que só eu
amolde e affeiçôe a querida
alma de meu filho!
[306]
O Luiz faz hoje o seu primeiro exame no Lyceu; já se
não chama
bébé,
já não tem aquelles annellados cabellos de ouro
que eram
o meu orgulho e as minhas unicas joias, os seus bellos olhos escuros
já não
tem a doçura pensativa, o pasmo encantador da alma que se
busca
e que se ignora; usa jaquetinha e calças, e hontem dei a uma
vizinha pobre uma blusa que era d'elle, a sua ultima blusa de ha dous
annos.
Que tolice! Sabes que lh'a dei a chorar?
O meu Luiz é quasi um homem.
É bom, é meigo, é d'uma deliciosa
innocencia, de uma expansão de vida que assombra!
Não é meditativo, nem poeta; nada d'isso.
É d'uma alegria impetuosa; d'uma actividade sem limites.
Gosta de estudar para me satisfazer a mim, mas tenho a certeza que
gosta de brincar para se satisfazer a si.
Não sabe muito; ao pé dos nossos
sabichõesinhos em miniatura, creio
mesmo que
passará por um ignorante; mas a verdade é que
está
apto e preparado para aprender tudo.
Suppõe tu um lavrador que fizesse as suas sementeiras antes
de
preparar a terra com os convenientes adubos, e aqui tens parte dos
educadores de hoje.
[307]
No meu filho―perdôa-me este santo orgulho―nenhuma qualidade
foi
atrophiada, todas estão no pleno desenvolvimento que lhe
é proprio, n'aquella florescencia opulenta no fim da qual
já se antevê
sazonado e saboroso o promettido fructo.
Tem o corpo d'um pequeno atleta. Capaz de resistir ás longas
viagens, aos estudos complicados da sciencia moderna, aos trabalhos
complexos do luctador d'este seculo estranho e poderoso.
Até os seus recreios e distracções
foram dirigidos com desvelo.
Desenvolvem-lhe o corpo dia a dia, a natação, a
gymnastica, a equitação, todos os exercicios
physicos que tendem a duplicar e desenvolver o vigor natural do homem,
a creal-o mesmo se elle originariamente não existe.
Vivemos muito no campo, durante a sua risonha infancia. O amor e o
conhecimento intimo da natureza, das plantas e dos bichos, das cousas
inanimadas e das cousas mudas, o espectaculo grandioso ou suave dos
campos e das montanhas, dos tempestuosos mares, ou das placidas e
fartas lezirias, entra como um elemento fortalecedor, vivificante,
cheio de ensinamentos praticos na educação das
creanças.
Nunca uma arvore ensinou uma acção má;
nunca
uma flôr ou um ninho de aves crearam um pensamento abjecto.
[308]
Não poz nunca o pé n'um collegio. Não
conhece nem as alegrias nem as lastimas d'essa intimidade que tem
decididamente mais resultados funestos do que vantagens conhecidas.
Aprendi quanto me foi possivel, não para lhe ensinar, mas
para
estudar com elle, e comprehender antes d'elle o que era preciso que
elle comprehendesse.
Diante dos seus bellos olhos limpidos e curiosos não
consenti
nunca que passassem os abjectos quadros que polluem tanta
imaginação infantil.
Não me cancei inutilmente a prégar-lhe
sermões de moralidade abstracta; pratiquei o bem para que
elle o praticasse; em minha casa só tem visto
exemplos dignos.
Mais tarde, quando os maus, rindo lugubremente, lhe disserem que o bem
não existe, elle não
acreditará n'essa blasphemia porque pensará em
mim!
Não é ainda um homem, mas promette vir a sel-o!
Está quasi cumprida a minha tarefa.
Hoje quando elle voltar contente de haver sido premiado―porque estou
certa de que o será―acceitarei ainda os seus beijos como
uma
recompensa.
D'aqui ávante é a seu pae que pertence a
direcção suprema d'aquelle espirito que
desabrocha para
todas as altas curiosidades da vida.
[309]
Choro porque as mães são fracas, Magdalena, mas
para que choro eu?
Já nada, nada na terra nem mesmo a minha morte nos
póde separar.
Todas as virtudes que elle tiver, serão simplesmente o
fructo
das flores que eu tenho cuidado com tanto amor, assim como essas flores
veem dos germens que eu semeei cheia de susto, de delicias, de
ambições, de louco anceio!
Fui eu que o conduzi pela mão, ao mesmo tempo tremula e
confiante, até ao limiar da sua pura adolescencia.
Sinto orgulho é verdade, mas tambem sinto saudades!
Saudades do tempo em que o embalava nos meus braços, em que
elle só de mim vivia, como eu
vivia só para elle.
Foram as minhas alegrias mais superiores e mais completas.
D'ora ávante é preciso que elle se emancipe um
pouco da minha tutella extremosa, que elle se vá
robustecendo ao contacto rude dos homens e das cousas.
Fui eu que o formei. Sinto que pertencerá ao numero dos
fortes, e que não succumbirá na lucta da vida...
[310]
Como estou velha, minha querida amiga de outros dias!
Lembrei-me tanto de ti, hoje, na igreja onde fui assistir ao casamento
do meu Luiz!
Tem 24 annos, realisou as doces promessas que eu sonhara e sahiu hoje
de casa de seus paes para outra casa que vae ser d'elle.
Tu não sabes a nuvem de tristeza que obumbra a minha alma,
não sabes como todos os egoismos humanos se revoltam em mim,
e
ameaçam fazer-me naufragar na sua formidavel tempestade!
Oh! deixa-me desabafar comtigo!
Quem é que ainda revelou ao mundo o martyrio que crucifica
as mães!
Foi para outra que eu andei formando aquelle divino thesouro com todas
as riquezas que pude juntar dentro da minha alma!
Tantas noites que velei a pensar, a estudar, a pedir á voz
intima da consciencia que esclarecesse e fortalecesse e guiasse o meu
fragil coração de
mulher!
Tantos annos de abnegação profunda, de
abnegação sem nome, de todas as horas, de todos
os
instantes, esquecida de tudo que não fosse aquella alma
pequenina que andava a crear e a robustecer.
[311]
N'esse empenho me fugiu a mocidade. Por elle, pelo meu adorado ingrato
me esqueci de tudo que fôra meu!
E hoje elle partiu; partiu risonho, triumphante, orgulhoso como um rei,
sem se lembrar que onde vira até alli sua mãe,
deixava
uma triste
condemnada!...
E ha quem falle por ahi em ciumes romanescos, em ciumes ephemeros, em
ciumes d'um instante! Qual ciume poderá comparar-se a este
que
me está
dilacerando o peito?
Oh! Luiz! oh! meu amor! oh! minha solidão!...
Na ultima vez que te escrevi estava louca, minha velha amiga.
Nunca está só quem ama, e espera, e crê
em Deus, e semeou o bem no seu caminho.
Veio lembrar-me tudo isso n'essa hora de amarga revolta que passou, o
querido companheiro de toda a minha vida, o meu honesto guia, aquelle
que partilhou commigo todas a sublimes responsabilidades que ha no amor
dos paes.
Já sou avó minha amiga, o meu Luiz é
já pae.
Nas alegrias d'elle vejo reflectidas as alegrias extinctas, cujo aroma
vago perfuma a minha alma de uma saudade ineffavel.
[312]
Não se esqueceu de mim, o meu querido filho; tem presentes
todas
as minhas licções, o
laço mysterioso que um dia nos uniu conserva-se
inquebrantavel,
e hoje não deixa ainda de vir consultar-me a cada instante
como
nos dias em que a sua alma e a minha trocavam incessantemente
confidencias mutuas.
Estou consolada!
Vejo descer a velhice sobre mim como uma noite calma, tranquilla e
cheia de estrellas!
Não é nunca infructifera a obra das
mães.
O meu sacrificio, se o foi, será continuado, e desatar-se-ha
em flores bemditas de geração em
geração.
Felizes todas as que puderem adormecer como eu no seio de um filho a
quem deram tudo que tinham de melhor, de quem receberam tudo que n'este
momento levanta a minha alma para além da vida terrestre, e
me
faz antever o somno tranquillo e doce das consciencias justas.
FIM.
DA MESMA AUTHORA
NO PRÉLO
CONTOS E PHANTASIAS, 1 vol.
Lista de erros corrigidos
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