The Project Gutenberg eBook of Epistola de Heloysa a Abaylard

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Title: Epistola de Heloysa a Abaylard

Author: Alexander Pope

Translator: José Nicolau de Massuelos Pinto

Release date: October 3, 2007 [eBook #22870]

Language: Portuguese

Original publication: Londres: Officina De Guilherme Lane, Rua De Leadenhall, 1801

Credits: Produced by Pedro Saborano. (produced from scanned images
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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK EPISTOLA DE HELOYSA A ABAYLARD ***



Gravura de Heloysa


EPISTOLA

DE

HELOYZA A ABAYLARD,

COMPOSTA

NO IDIOMA INGLEZ

POR

POPE,

E TRASLADADA

EM VERSOS PORTUGUEZES

POR * * Mos.


LONDRES:

NA OFFICINA DE GUILHERME LANE,

RUA DE LEADENHALL.

1801.

III

ASSUMPTO.

Abaylard, e Heloyza viveraõ no duodecimo Seculo; merecendo neste a mais destincta Contemplaçaõ, assim pelos seus talentos, e Conhecimentos literarios, como pelas qualidades externas, de que a Natureza liberalmente os tinha dotado, nenhuma couza porem concorreo tanto para os fazer celebres, como a sua Paixaõ desgraçada: Depois de huma longa serie de infortunios, se retirou cada hum delles a Mosteiros, aonde consagraraõ o resto de seus dias a exercicios de Religiaõ, e Penitencia.

IV

Succedeu, que alguns annos depois da sua separaçaõ, huma Carta, em que Abaylard narrava a hum de seus Amigos todas as suas desgraças, chegou por cazualidade ás maõs de Heloyza, despertou esta narraçaõ toda a sua ternura; e deu occaziaõ a esta famoza Carta, que pinta taõ vivamente os Combates da Natureza, e da Graça.

1

EPISTOLA
DE
HELOYZA A ABAYLARD.

Neste retiro quieto, Onde em morna solidaõ Levanta os olhos aos Ceos Cançada contemplaçaõ; No Lugar onde o Silencio Repouza profundamente Que movimentos perturbaõ Minh'alma com dõr vehemente! Porque razaõ se extraviaõ Fòra do sancto retiro Meus sentimentos profanos Porque motivo eu suspiro! 2E porque meu coraçaõ, De Amor o fogo esquecido, Inda será devorado Ja a cinzas reduzido? Que! Amarei ind'agora! Eis a Carta qu'elle envia, He o nome de Abaylard, Que inda bejo entre agonia; Nome fatal e querido! Nunca mais proferirei C'os meus labios, a que os votos. Impoem do Silencio a lei: He para sempre encerrada Terna idea de Abaylar No coraçaõ, que naõ posso C'o a do meu Deos separar. Que minha Maõ se suspenda, Tal nome naõ và traçar.... Mas, oh Ceos, que tenho escripto! Va-o meu pranto apagar. 3Debalde Heloiza aflicta Recorres ao pranto, á prece, Determina o coraçaõ, E sempre a maõ lhe obedece! Muros, que encerrais sombrios Mais de mil votos ardentes; E que os ecchos repetis. De Suspiros penitentes; Rochedos, grutas de espinhos, Por toda aparte errissados, Penhas que o uzo amacia Dos joelhos lacerados: Altàres, aonde Virgens, Com hum fervor incessante, Vellaõ de noite, e de dia Com palidez no semblante: Imagens d'aquelles Sanctos, Que aos Ceos por vencer se aprazem Tua vista, e meu silencio Insensivel me naõ fazem: 4Sempre o Ceo em vaõ me chama, Quando em fervente Oraçaõ, Subjeita me a Natureza Metade do Coraçaõ; E as preces, jejuns, e o pranto Naõ póde extinguir thé gora, Nem ao menos moderar O fogo que me devora. Apenas tremula abri Tua Carta, ah meu Querido! Logo teu nome s'of'rece A meus olhos, meu sentido; Eis que subito rebenta O sentimento magoado De minhas desgraças todas, Nome fatal, e adorado! Que jamais eu pronuncio, Sem que meu pranto amargozo, Envolto em crueis suspiros, Me lembre o trance horroroso 5Tremo sempre, se o meu nome Co'a vista infeliz acerto, Pois sei que algum infortunio O seguirá de bem perto, Meus olhos nadando em pranto, Correndo de linha em linha, Achaõ somente desgraças Da minha sorte mesquinha Mil vezes de ardente amor M'inflama a voracidade, Outras da dor opprimida Geme a tenra mocidade; Em fim no retiro escuro D'hum Mosteiro clauzurada Manda a Religiaõ se extinga A paixaõ mais inflamada; Aonde deve acabar Com impossivel victoria As duas paixoens mais nobres O terno Amor, e a Gloria. 6Mas assim mesmo, Abaylard, Escreve me, sim, consente Que eu saiba os ternos transportes, Que inda tua alma hoje sente: Nossas dores se confundaõ, Se temos o mesmo Fado, Naõ escape hum só suspiro, Que naõ seja compensado; Se he est'unico remedio, Illezo do Fado inhumano, Serás dos meus inimigos Abaylard o mais tirano! Minhas lagrimas--saõ minhas, Naõ as poupo á Amor saõ dadas, Ainda as que ser deviaõ Na oraçaõ derramadas: Meus tristes olhos naõ tem, Nem podem ter outra acçaõ, Será o ler, e o chorar Sua eterna occupaçaõ. 7Huma parte em tuas penas Tenha por triste prazer, Ou inda mais venhaõ todas O meu Coraçaõ encher; O Ceo inspirou primeiro Das letras alta invençaõ, Para dar aos desgraçados Suave consolaçaõ: Para huma captiva amante Foi hum celeste favor; Ellas exprimem, e fallaõ Toda a ternura de Amor; Hum juvenil Coraçaõ, De seu soccorro ajudado, Puros dezejos sem susto Explica ao seu Bem amado; A alma se manifesta Co'a singeleza devida, Aos olhos do charo objecto He longa auzencia illudida; 8Juntando longiquuos Lares, Corre hum suspiro inflamado Por seu magico poder Do Indo ao Polo apartado. Bem sabes com que innocencia Teu amor antecipava; Que da amizade a apparencia O nosso ardor disfarçava; Que achei sempre em teu aspecto Huma angelica figura; Que emanava dos teus olhos Huma chama etherea, e pura; Tua Amante, sem receio Absorta a teu lado estava, Por isto, sim, sem remorso Minha paixaõ fomentava: Se erguias celeste canto Ao Supremo Author do dia, Me figura que o Ceo Attentamente te ouvia; 9Athé as verdades sanctas, Reveladas com certeza, Parecia que de teus labios Cahiaõ com mais belleza. Que perceitos dictarias, Que hoje mesmo eu naõ estime, Facilmente me ensinaste Que o Amor naõ era hum crime: Á seducçaõ dos sentidos Depressa me abandonei, Naõ vi outra Devindade Senaõ a que em ti achei; A posse da Gloria eterna Com tanto prazer naõ via, Deixei de invejar hum Ceo Que por te amar perderia. Ah! Quantas vezes eu dice, Se á eleiçaõ de hum espozo Paterna lei me obrigasse Com laço eterno, e odiozo. 10Julgara toda a uniaõ Pelo tormento maior, Se naõ fosse vinculada Com os encantos de Amor; He amor qual avezinha, Se vê prizoens conjugaes Estende ligeiras pennas, Eis voa, naõ torna mais: Embora d'honras, riquezas Seja hymeneo coroado, E o nome de quem o abraça Seja sancto, e respeitado; Mas brilhantes apparencias De vulgar satisfaçaõ Tornaõ se em nada ao aspecto Da verdadeira paixaõ; Honras, credito, riquezas Que sois á vista de Amor? Inspira este Deos ciozo Com vingativo furor 11Inquietas paixoens terriveis Ao que profano dezeja Nelle buscar outro bem Que so o de Amor naõ seja Se visse a meus pés prostrado Do Mundo o amplo Senhor Inda pelo Throno do Mundo Desprezára o seu amor; Thé recuzando do Cezar O consorcio o mais brilhante Preferira de quem amo Ser huma fragil amante. Se outro titulo encontrasse Mais terno, e livre seria Este o nome preciozo Que para elle tomaria. Que dita se duas almas Com indissoluvel firmeza No seu livre amor conhecem Só as leis da Natureza! 12Hum so objecto ocupa O Coraçaõ que amor sente, He possuido, e possue Em mutua paixaõ ardente; Em dous Amantes se encontraõ Pensamentos sempre iguaes; E sem que os labios se expliquem Os olhos expressaõ mais. Se he esta a maior ventura, Que hum amante pode achar Esta mesma n'outro tempo Foi a minha, e de Abaylar.... Mas que subita mudança Me apprezenta o impio Fado! Ceos que vejo! O meu amante Prezo, nû, ensanguentado! Aonde estava Heloiza Neste momento horroroso!... Gritos, forças se armariaõ Contra o lance sanguinozo. 13Oh barbaros, suspendei A feroz maõ homecida, Ou arrojai toda a raiva Contra a minha infausta vida! Ao menos se ambos culpados A mesma sorte condemna Recaha em dous o castigo Soframos a mesma pena... A dôr me opprime, e perturba... Por pejo, e piedade cesse... Meus soluços, e vergonha Na garganta a voz impece. Poderás ser esquecido, Dia solemne, e fatal Onde quais victimas fomos, E esp'rando o golpe mortal Junto aos tremendos Altares, Entre combates violentos, Correo meu inutil pranto Em taõ funestos momentos. 14Dei ao Mundo hum adeos eterno Á flor dos annos mingoados, E bejo o sagrado véo Com os meus beiços gelados. Tremem os Altares sanctos Quando minha voz conhecem, E até os sagrados Lames Arquejando se amortecem: O Ceo acredita apenas A Conquista que fazia; Ouvem com espanto os Anjos Os votos que eu proferia; Mas com tudo ao Sanctuario Com palidez penetrava, E os olhos que à Cruz proponho Em ti somente os fitava. Graça eficaz, puro zelo Da santa Religiaõ Naõ compunhaõ o caracter Desta infeliz vocaçaõ; 15Era hum amor desgraçado Essencia d'hum Ser constante, Tudo entregava e perdia Por ter perdido hum Amante. Com teus olhos, teus discursos Vem suspender meu tormento, Este poder te deixaraõ; Possa em teu seio hum momento Repouzar minha cabeça: Seja em teus labios bebido De amor o doce veneno De teus olhos recebido; Ja naõ pertendo do Fado Que outro algum bem me destine, Da-me, sim, o que dar podes, Deixa que o resto imagine.... Porem nao! Fujaõ de todo Pensamentos criminozos, Có meu dever vem mostrar-me Eternos bens mais ditozos, 16Tira a meus olhos a venda, Pinta-me a Celeste Gloria, Faze minh'alma te fuja Dando ao seu Deos a Victoria. E se a meus votos te negas Minhas fieis companheiras Os teus cuidados merecem Saõ do teu gremio as primeiras, Saõ plantas que cultivaste, Filhas da tua piedade. Que o Mundo vaõ desprezáraõ Na mais tenra Mocidade, Ao innocente Retiro Pela Virtude guiadas Dentro das Paredes sanctas Por ti mesmo levantadas. O teu zelo fervorozo Tem ornado este Dezerto, E n'hum Ermo dezabrido Vio-se O Parayzo aberto; 17Aqui nem orfaõ aflicto Chora a paterna riqueza Para os Altares roubada, Que fas profana grandeza; Nem bellos quadros se admiraõ, Nem as dadivas brilhantes, Offertas de pecadores, Sem virtude agonizantes, Tributo de hum vaõ dezejo De comprar o Ceo, negado Por cauza do meio torpe Para alcançar empregado; Mas singela Architetura, Como a Piedade que a habita, Melhor os Hymnos repete Á Magestade Infinita. Se ao menos te transportasses Ao lugubre Retiro, Que da pezada existencia Verá meu final suspiro 18Debaixo destes Zimborios, De piramides c'roados, Que os tectos de eterna noite Seriaõ sempre afumados, Mas pelas sombrias fréstas, Somente huma luz escassa, Com as trevas de mistura, O Sol medrozo traspassa: Teus olhos dessipariaõ A escuridaõ tenebroza; E em torno de ti brilhára Huma gloria radioza; Mas aqui nenhum objecto Consolador se apprezenta, Tudo, tudo ergue gemidos? E do pranto se alimenta. Vem pois meu Pay, meu Irmaõ, Meu Espozo, meu Amante, Tua Escrava, tua Irman, Tua Filha nesse instante, 19Possa em favor de taes nomes, Nomes que dicta o Amor, Tua excessiva piedade Excitar em seu favor; Couza alguma melhor põde Dar me erforso a meditar Ou meus voluveis dezejos De huma vez determinar; Thè vejo com indif'rença Simples divina belleza Do espetac'lo qu'off'rece O quadro da Natureza; Estes pinheiros plantados Entre erguidas Penedias, Donde hum vento surdo agita As suas comas sombrias: Os regatos serpiando Por entre penhas fragozas Co'murmurio, que retumba Em as grutas cavernosas; 20Estes lagos de cristal, Onde Favonio contente Com seu agradavel sopro Encrespa a face dormente: Objectos saõ, que algum dia Eraõ por mim taõ prezados, Naõ me daõ alivio agora Naõ suspendem meus cuidados: Pelos solitarios bosques A negra Tristeza erra, Esta abobeda sombria Sepulcros somente encerra; Espalha em torno hum silencio Qual da mort' atro, e medonho, Com seu ar afea hum quadro N'outro tempo taõ rizonho: Murcha o esmalte das flores; Fas denegrida a espessura, Thè do Mar horrido o som Que em sequebrando murmura; 21Porem devo aqui viver, Em quanto durar o alento, Da submissaõ a hum Amante, Triste fatal monumento. A morte so quebrar pode Estas cadeas illezas, Nas suas maõs deixarei Todas as minhas fraquezas; Entaõ meu ardor extincto Minhas cinzas recolhidas Aqui esp'rarei que sejaõ Com as tuas confundidas. Ah infeliz! Pois te julgaõ De hum Deos Espoza leal.... Quando somente es escrava Do Amor, e de hum Mortal! Vinde, Oh Ceos, em meu socorro... Mas vem esta imprecaçaõ D'hum effeito de piedade? Ou d'atroz exesp'raçaõ? 22Que! No azilo o mais puro De Castidade glorioza, Nutro de hum profano amor Huma chama criminoza? Eu me devo arrepender.... Mas fazer posso o que devo? Choro o Amante, e minha culpa A choralla naõ me atrevo? Eu reconheço este crime, Subjeito a perpetua pena; Mas o coraçaõ me arrasta Quando o remorso o condemna; Dos prazeres me arrependo, Em que engolfada medito; E por fragil contextura Outros iguaes solecito. Mil vezes levanto os olhos Aos Ceos, minha ofença choro, Outras mil o pensamento Em contemplar te demoro, 23Electrizada de Amor Desprezo emfim a innocencia, Que recobrar pertendia Com austera penitencia; De ti esquecer me posso! Odiar minha fraqueza! Quando a cauza do delicto He a propria Natureza! Se destruilla pertendo Sinto emfim, que o seu Author He o pranteado objecto Do meu excessivo amor! Como separar do crime A minha paixaõ intento, Se existe em confuza maça Amor arrependimento! Como pode hum coraçaõ, Qual o meu taõ consternado, Pertender hum vencimento A esforço humano vedado! 24Antes que minh'alma possa Seus males adormecer, Que combates se preparaõ Entre o amor, e o dever! Arrepender-se mil vezes, Recahir, chorar o amante, Repulsallo; em tudo incerta... Sem o esquecer hum instante... Mas naõ! Ja ethereo influxo De todo o temor separa Para consumar meus votos Sacro auxilio se prepara. Vem meu Pay, faze qu'eu possa A Natureza enfrear, Qu'amor renuncie, á vida, A mim... Ao proprio Abaylar; Enche do divino Amor Meu coraçaõ, sim acode; E quando delle evadires Somente hum Deos entrar pode. 25Ah! Mil vezes de huma Virgem O destino afortunado, Que ao seu Creador somente Tem seus dias consagrado; Esquece o Mundo enganozo, Que assim esquecido a tem, Com as doçuras do socego Goza o mais solido bem: Humilde resignaçaõ Faz sua prece attendida; Entre o trabalho, e o repouzo Se reparte a sua vida: Hum sono doce a dispoem Para a Vigilia, e Oraçaõ; Tem com serenos dezejos Sempre a mesma inclinaçaõ; He o pranto o seu thezouro, Aos Ceos penetraõ seus hymnos, Cercaõ a de graça pura Fulgentes raios divinos; 26Vellaõ-a em torno os Anjos, Bafejando hum sono grato, Tecem de apraziveis sonhos Da eterna Gloria o retrato; Para ella o Divino Espozo O annel nupcial prepara; Escuta o Côro das Virgens, Que em seu louvor se entoara: Fragantes rozas do Edén, Que naõ podem ser murchadas, Com mais viva côr rebentaõ As que lhe saõ destinadas; As azas dos Serafins, Que os bandos rentos abalaõ, Mil perfumes esquezitos Benignamente lhe exhalaõ; E su'alma emfim voando Entre a celeste armonia Sente o seu fim antevendo A sempre eterna alegria 27Dif'rente tropel de sonhos Minh'alma errante extravia; E quando em nocturnas sombras Me retrata a fantezia Bem como te hei conhecido; Entaõ minha consciencia Se immudece, e á Natureza Deixa liberta influencia; Meu coraçaõ todo inteiro, Naõ tendo mais que temer, Voa para ti a buscar O seu unico prazer Eu sim te escuto, e te vejo, Com minhas maõs deligente Vou a segurar-te ancioza Cerro o fantasma apparente; Desperto-me, e nada escuto, Naõ vejo mais que o engano; Dezaparece o fantasma, Como tu foge tirano; 28Eu o revoco, e he surdo Á minha suplica activa, Estendo os braços, so acho Huma sombra fugitiva; Outra vez os olhos fecho Para o sonho recobrar... Vinde outra vez illuzoens, Vinde outra vez me encantar. Ah que em vaõ vos torno a ver Pois comtigo irei vagar Pelos aridos dezertos Nossas desgraças chorar: Logo a huma torre te elevas Do tempo meia escarpada Pelos carcomidos muros De tristes heras cercada; Ou sobre montoens de rochas, Cujo cimo as nuvens fende; Que em arrogante estructura Sobranceiro ao Mar se estende; 29D'ali, qual dos Ceos me fallas; Mas negras vagas me aterraõ, Separaõ-nos densas nuvens, Os ventos furiozos berraõ; Gélo de horror, eis o sono Foge de arranco, e me deixa Outra vez entre os tormentos Da minha amargoza queixa. O destino a teu respeito Tem seu rigor moderado, Pois dos prazeres, e penas Fria suspensaõ te ha dado: He tua vida o socego, Teu Coraçaõ sem paixoens, Similhante ao Mar, em quanto Naõ conheceo Aquiloens: He igual o teu estado Ao de hum sancto adormecido, Que he de todos os pecados Plenamente absolvido; 30E que em seu Deos confiando Huma certa salvaçaõ Para alcançar naõ preciza D'outra alguma espiaçaõ. Vem pois, querido Abaylard, Que receio te domina? Amor o abrazado faxo Para os Mortos naõ destina; Imperio em ti ja naõ tem O fogo que amor ordena, A Natureza immudece, A Religiaõ o condenã; Mas quando fria indif'rença Governa em teu Coraçaõ, Por ti ainda Heloiza Sente a mais viva paixaõ! Oh chama em meu peito eterna Activa chama exesp'rada! Á alampeda sepulcral Tristemente assemelhada; 31Que dà innutil calor Ás urnas de pedra fria, Que para os Mortos se accende, A quem somente alumia: Que outras scenas se preparaõ Por onde os meus passos seguem! Qu'imagens ternas, p'rigozas Com profia me perseguem! Ou quando sobre os sepulcros, Ou prostrada ante os Altares, Illudindo os meus sentidos Cauzaõ me acerbos pezares: Sempre entre o Ceo, e Heloiza, A imagem tua apparece; Apenas escuta hum Hymno A tua voz reconhece; E quando em truncadas preces Aos Ceos minha voz levanto, A cada som que articulo, Me corre alternado pranto. 32Ou se entre nuvens de incenso, Que á Imagem d'hum Deos se envìa, E o som devoto do Orgão Me enche toda de armonia; Se occorre hum so pensamento, Que a imagem tua m'offerece Vejo Abaylar; e a meus olhos Tudo o mais dezaparece; Lumes, Templo, Sacerdotes Á minha vista naõ tornaõ; E quando aos Sanctos Altares Mais de mil faxos adornaõ; E aos Anjos que emtorno os cercaõ Penetra o maior respeito Hum mar de paixoens ardentes Me innunda o cançado peito, Mas se no tempo em qu'of'reço Hum coraçaõ mais contricto Ante o Throno do meu Deos; E arrepender me medito; 33Que invoco este Deos Piedozo Com meu pranto penitente; Que vai penetrar minh'Alma Huma Graça transcendente; Se te atreves, qual me encantas, Abaylard es poderozo, Vem revogar os decretos Do mesmo Ceo rigoroso; Disputa-lhe hum Coraçaõ Com teus olhos, inda mais, Aos meus escurece a imagem Das Ditas Celestiaes; Desvia a Graça Divina Com hum Mando absoluto E o meu arrependimento Se te apraz torna-o sem fructo, Dos Ceos me fecha o caminho, Acharás minh'alma franca, Dos braços do mesmo Deos A tua Victima arranca.... 34Mas que digo, desgraçada! Foge-me!... O Ceo mé depare Entre nós altas montanhas, Immenso Mar nos separe; Naõ tornes mais, naõ me escrevas, De mim algum pensamento Naõ tenhas, nem leve parte Do que he por ti meu tormento: Teus juramentos disolvo, De ti nem lembrar-me quero Tudo o que a mim se refere So que aborreçao espero.... Olhos cheios de ternura Qu'inda tanto me lembrais, Doces ideas queridas Adeos para nunca mais.... E tu, Oh Graça Divina; Virtude Celestial, Esquecimento tranquillo Do Mundo torpe, e fatal; 35Continua esp'rança qu'es filha Do Ceo, e tudo alegrais, Fé que d'immortalidade Nosso gozo anticipais; Quaes Hospedes, doces, ternos Em meu Coraçaõ entrai; E a hum eterno repouzo Minh'alma aflicta entregai. Sobre o tumulo estendida Triste Heloiza pondera Como hum bem que ja no Mundo Somente dezeja, e espera.... Que escuto! Que som he este! Será dos Ventos rugido? Ou será voz que me chama, Que julgo ja ter ouvido? N'huma noute, em que eu vellava: As alampedas sombrias, Que estendem seus frouxos raios Em torno das Campas frias; 36Os lumes quaze expirantes, Me figura a fantezia Profunda voz subterranea, Que d'hum sepulcro surgia, Exclamando--"Triste Irman, Eis aqui o teu lugar, Este o azilo que deves Eternamente ocupar; Como tu fui algum dia Huma victima de Amor, Tremi, orei, devorando A mais tormentoza dôr; So neste perpetuo sonno Pude o repouzo encontrar; So aqui os desgraçados Se deixaõ de lastimar Cessaõ dos tristes Amantes Os dolorozos clamores, E perde a superstiçaõ Os seus lugubres temores; 37Porque hum Deos mais indulgente, Que o Mortal se persuade, Benignamente perdoa A humana fragilidade." Eu corro, eu corro, que os Anjos Os seus bersos rescendentes De fino aroma preparem, E as palmas sempre virentes; Eu corro onde os Pecadores Podem repouzo encontrar; E os Justos de chamas puras Seus Coraçoens inflamar: Charo Abaylard, me difere Pias honras luctuozas; Vem adoçar-me a passagem Ás Moradas Gloriozas; Vê os meus labios convulsos, Meus olhos immoveis cerra, Recolhe o final suspiro; Que minh'alma dezencerra... 38Porem naõ... Antes pertendo De tua maõ vacilante Co'as sacras Vestes cingido Huma vella agonizante: Of'reçe a cruz a meus olhos; Que pertendo aos Ceos volver, Ensiname, e ao mesmo tempo De mim aprende a morrer; Olha entaõ esta Heloyza, Que tanto chegaste a amar, Quando naõ he ja hum crime O seu rosto contemplar; Em lividez convertidas As rozas do meu semblante, Ja eclipsado nos olhos Da vida o verniz brilhante; Toma minha maõ, e aperta Thé que cesse o respirar, Que extincta minha existencia, Eu deixe emfim de te amar... 39Quanto es eloquent', oh Morte, So tu dás liçaõ preciza, Que he louca a paixaõ profana, Que hum mero pó diviniza. Virá tempo, em que este objecto, Que me vence, e me domina Na materia organizada Sofrerá total ruina! Praza aos Ceos, que estas angustias Do trance da vida á morte Por hum Extasi Divino Teu sofrimento conforte: Anjos em nuvens brilhantes Baixem do Ceo desvellados, E sejaõ dos Ceos abertos Raios de gloria emanados; E os Celestes Moradores, Saudando tu'alma pura, Te abracem c'hum mesmo afecto Igual á minha ternura. 40Hum mesmo marmore possa Os nossos nomes conter; E immortal minha paixaõ, Qual tua fama fazer; Entaõ se em fuctura idade Dous Amantes viajando; E do Paraclito as fontes Com devoçaõ procurando; Unindo suas cabeças Para ler nossa Inscripçaõ Bebendo seu mutuo pranto Co'a mais viva compaixaõ. "Praza aos Ceos, que em nosso Amor, Ambos diraõ transportados, A sorte naõ imitemos De Amantes taõ desgraçados." Que enternecidos seriaõ! E o que ás Aras s'of'recendo, Inda na pompa solemne Do sacreficio tremendo; 41Que comoçaõ sentira, Se os olhos seus dirigir Sobre o piedozo Sepulcro Que nossas cinzas cobrir! Por hum instante deixando O Ceo, do pranto assaltado, Seo movimento de dôr Logo será perdoado. Se o Destino a algum Poeta Da mesma sorte afligisse Que hum pezar igual ao meu Na su'alma pressentisse; Que a chorar annos inteiros Elle fosse condemnado Os encantos que perdera Auzente o seu Bem amado. A considerar de continuo Na imagem que o faz arder, Aflicto sem esperança De mais a tornar a ver. 42Se ao meu excessivo Amor O seu Amor igualar Escreva a funesta Historia De Heloyza, e de Abaylar. Aquelle que mais piedozo Nossos infortunios sente Este o Genio, aquem he dado, Cantallos mais dignamente.

FIM.

GUILHERME LANE, RUA DE LEADENHALL.